sexta-feira, 9 de julho de 2010

A falência do Welfare State

A falência do Welfare State
Ubiratan Iório


A Wikipedia – o “pai dos burros” da era cibernética – define o Estado de bem-estar social ou Estado-providência como “a organização política e econômica que coloca o Estado como agente da promoção (protetor e defensor) social e organizador da economia. Nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda vida e saúde social, política e econômica do país em parceria com sindicatos e empresas privadas, em níveis diferentes, de acordo com a nação em questão. Cabe ao Estado do bem-estar social garantir serviços públicos e proteção à população.

Pois bem, os fatos estão sobejamente a mostrar que essa concepção de Estado está falida. Na Europa, foram seis décadas em que os estados gastaram acima de suas possibilidades. O resultado não podia ser outro: dívidas públicas astronômicas (que estão, na média da Europa, em cerca de 90% do PIB), ameaça de inflação, desemprego e um legado moral de gastança que cairá sobre os ombros inocentes das futuras gerações.

A Europa, enfim, acordou e hoje vemos diversos países tentando adotar medidas duras para a correção do problema das imensas necessidades de financiamento do setor público.

Os governos asiáticos também sinalizam estar despertando, embora preguiçosamente. O governo de Obama ainda não acordou. Parece dormir ainda um sono profundo, povoado por falsos sonhos em que os gastos públicos são capazes de gerar o bem estar de todos...

Na América Latina e no Brasil, os governos (com as honrosas exceções do Chile, da Colômbia e do Peru), permanecem em sono pesado, como indica a manchete principal do jornal O Globo de hoje: "gastos levam contas públicas ao pior resultado em 18 anos”. Ainda é possível encobrir a gravidade do problema, porque o crescimento do PIB e a elevação da arrecadação tributária podem, durante algum tempo, fazer isso. Mas a hora do ajuste de contas não tardará e nem falhará...

A bomba vai estourar nas mãos do próximo presidente, seja ele quem for. Quem viver verá.



*Economista, professor, autor de "Economia e Liberdade: a Escola Austríaca e a Economia Brasileira", entre outros

Texto originalmente publicado no blog Ubiratan Iorio

Os vitoriosos de hoje

Os vitoriosos de hoje

"As vítimas de ontem são os vitoriosos de hoje. Elas não se envergonham de mostrar a cara e manter viva a memória nacional, ao contrário dos torturadores, que trafegam pelas sombras e insistem em negar o que fizeram." Frei Betto escreveu isso na passagem dos 30 anos da Lei de Anistia. Agora, capitaneados pelo secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, os "vitoriosos de hoje" negociam com o ministro da Defesa, Nelson Jobim, o conteúdo do decreto que cria a Comissão Nacional da Verdade. Toda a disputa se trava em torno da fabricação da "memória nacional".

Frei Betto não é sempre contra a violência política de Estado. Há pouco, quando se preparava para receber em Havana mais um prêmio da ditadura castrista, publicou um artigo sobre a blogueira Yoani Sánchez. Dias antes, ela sofrera um sequestro relâmpago e agressões corporais de agentes da polícia secreta cubana. No artigo, o piedoso frade sugere que o evento existiu apenas como maligna invenção de Yoani e, ainda, que a blogueira funciona como peão do "inimigo externo" da indômita Cuba socialista. Até onde pode ir Frei Betto em nome de sua causa?

Não é exato dizer que as "vítimas de ontem" são os "vitoriosos de hoje". Elas fazem parte do condomínio que está no poder, mas à custa de uma dupla renúncia. Em primeiro lugar, renunciaram ao seu programa original, que persiste apenas na esfera simbólica e se manifesta iconicamente em eventos como o da premiação de Frei Betto. Em segundo lugar, renunciaram aos seus princípios políticos e se associaram aos "vitoriosos de ontem", que formam um componente crucial da base governista. Eis o motivo pelo qual Vannuchi não terá a "verdade" que almeja no fim da negociação em curso.

Justiça e verdade não são a mesma coisa. A primeira depende das leis vigentes e se coagula na decisão, certa ou errada, de um tribunal superior. A segunda é uma leitura do passado, uma narrativa mais ou menos amparada nos fatos, que se condensa como consenso circunstancial, sempre sujeito a revisão. Sancionada pelo último general-presidente no outono da ditadura militar, a Lei da Anistia tinha os intuitos simultâneos de impedir a produção da justiça e promover um equilíbrio entre duas verdades conflitantes. Na versão formulada por Vannuchi, a Comissão da Verdade pretende unicamente consagrar a verdade dos autodeclarados "vitoriosos de hoje".

A justiça é um patrimônio coletivo. Augusto Pinochet foi processado num tribunal chileno por violações de direitos humanos e um tribunal argentino condenou Jorge Videla à prisão perpétua. Tais veredictos não são triunfos das "vítimas de ontem" e não compensam os amigos, irmãos, filhos e netos vitimados nos subterrâneos das ditaduras. Eles equivalem a contratos históricos das duas nações, que comprometem as gerações futuras no repúdio à tirania e na proteção das liberdades políticas e dos direitos humanos.

A Lei da Anistia proíbe o Brasil de firmar consigo mesmo um contrato dessa natureza. Os "vitoriosos de hoje" acatam tal interdito. Nos termos daquela lei, classificada por Frei Betto como "uma vitória parcial", eles trocam o contrato nacional por indenizações pecuniárias pessoais cujos valores oscilam em função do prestígio e da influência dos beneficiários. Vannuchi, que os representa, coerentemente assegurou que a Comissão da Verdade "não é contra a Lei da Anistia".

A verdade - isto é, a "memória nacional" - é um patrimônio privado. Nas ditaduras comuns, a censura e a repressão sustentam a hegemonia da verdade oficial. Nas ditaduras totalitárias, como a cubana, o partido único veicula a sua verdade dogmática por meio dos sistemas de comunicação e educação e de todas as instituições culturais. Nas democracias, por definição, não existe uma verdade de Estado, mas verdades concorrentes que dialogam no mercado de ideias. A pretensão de, por meio da Comissão da Verdade, marcar uma verdade particular com o sinete de verdade oficial evidencia o que pensam da democracia os "vitoriosos de hoje".

"A anistia foi a pedra de toque da transição da ditadura para a democracia e acredito que isto é um pacto político e como tal não vale a pena reabrir essas velhas feridas." As palavras do deputado Raul Jungmann, que refletem a covardia de nossa elite política, foram escolhidas para exprimir a repulsa de Jobim e dos comandantes militares à Comissão da Verdade. Eles todos sabem que Vannuchi não persegue a justiça e respeita o "pacto político" que protege o vértice da cadeia de comando da ditadura militar. Mas a falsa acusação de violar a sacrossanta Lei da Anistia funciona como expediente eficaz para atingir o fim realmente visado.

Os comandantes militares insurgem-se contra as propostas de identificação das estruturas empregadas nos subterrâneos da tortura e de proibição legal de batizar logradouros com o nome dos responsáveis pela tortura. Eles não se erguem contra uma inexistente ameaça judicial, mas cerram fileiras em torno de um valor simbólico: a imagem dos chefes das Forças Armadas do passado recente, que identificam com a instituição militar atual. No fim das contas, negam aos "vitoriosos de hoje" até mesmo um troféu puramente virtual.

Há uma narrativa histórica implícita na Lei da Anistia, que emerge na declaração do brigadeiro da reserva José Carlos Pereira: "Se a coisa é séria e se quer investigar, teria que investigar os dois lados, é claro." A descrição do Estado ditatorial e dos militantes de esquerda, armados ou não, como "dois lados" simétricos de uma guerra ideológica internacional cumpre o papel de tese de legitimação da violência política oficial. O artigo de Frei Betto sobre Yoani Sánchez constitui uma versão adaptada dessa mesma obscenidade.

Os "vitoriosos de hoje" não são muito diferentes dos de ontem. Uns e outros negociarão suas verdades particulares - e continuarão a negar a justiça à Nação brasileira.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br

Eleição sem maquiagem

Fernando Henrique Cardoso - O Estado de S.Paulo
O mundo continua se contorcendo sem encontrar caminhos seguros para superar as consequências da crise desencadeada no sistema financeiro. Até a ideia (que eu defendi nos anos 1990 e parecia uma heresia) de impor taxas à movimentação financeira reapareceu na voz dos mais ortodoxos defensores do rigor dos bancos centrais e da intocabilidade das leis de mercado. No afã de estancar a sangria produzida pelas exacerbações irracionais dos mercados, outros tantos ortodoxos passaram a usar e até a abusar de incentivos fiscais e benesses de todo tipo para salvar os bancos e o consumo.


Paul Krugman, mais recentemente, lamentou a resistência europeia à frouxidão fiscal. Ele pensa que o corte aos estímulos pode levar a economia mundial a algo semelhante ao que ocorreu em 1929. Quando a crise parecia acalmada, em 1933, suspenderam-se estímulos e medidas facilitadoras do crédito, devolvendo a recessão ao mundo. Será isso mesmo? É cedo para saber. Mas, barbas de molho, as notícias que vêm do exterior, e não só da Europa, mas também da zigue-zagueante economia americana e da letárgica economia japonesa, afora as dúvidas sobre a economia chinesa, não são sinais de uma retomada alentadora.

Enquanto isso, vive-se no Brasil oficial como se nos tivéssemos transformado numa Noruega tropical, na feliz ironia deste jornal em editorial recente. E em tão curto intervalo que estamos todos atônitos com tanto dinheiro e tantas realizações. Basta ler o último artigo presidencial no Financial Times. A pobreza existia na época da "estagnação". Agora assistimos ao espetáculo do crescimento, sem travas, dispensando reformas e desautorizando preocupações. Se no governo Geisel se dizia que éramos uma ilha de prosperidade num mundo em crise, hoje a retórica oficial nos dá a impressão de que somos um mundo de prosperidade e o mundo, uma distante ilha em crise. Baixo investimento em infraestrutura? Ora, o PAC resolve. Receio com o aumento do endividamento público e o crescente déficit previdenciário? Ora, preocupação com isso é lá na Europa. Aqui, não. Afinal, Deus é brasileiro.

Só que a realidade existe. A prosperidade de uns depende da de outros no mundo globalizado. Por mais que estejamos relativamente bem em comparação com os países de economia mais madura, se estes estagnarem ou crescerem a taxas baixas, haverá problemas. A queda nos preços das matérias-primas prejudicará as nossas exportações, grande parte delas composta de commodities. A ausência de crescimento complicará a solução dos desequilíbrios monetários e fiscais dos países ricos e isso significará menos recursos disponíveis para o Brasil no mercado financeiro global. Não devemos ser pessimistas, mas não nos podemos deixar embalar em devaneios quase infantis, que nos distraem de discutir os verdadeiros desafios do País.

Infelizmente, estamos às voltas com distrações. Um cântico de louvor às nossas grandezas, de uma falta de realismo assustador. Embarcamos na antiga tese do Brasil potência e, sem olhar em volta, propomo-nos a dar saltos sem saber com que recursos: trem-bala de custos desconhecidos, pré-sal sem atenção ao impacto do desastre no Golfo do México sobre os custos futuros da extração do petróleo, capitalização da Petrobrás de proporções gigantescas, uma Petro-Sal de propósitos incertos e tamanho imprevisível. Tudo grandioso. Fala-se mais do que se faz. E o que se faz é graças a transferências maciças do bolso dos contribuintes para o caixa das grandes empresas amigas do Estado, por meio de empréstimos subsidiados do BNDES, que de quebra engordam a dívida bruta do Tesouro.

A encenação para a eleição de outubro já está pronta. Como numa fábula, a candidata do governo, bem penteada e rosada, quase uma princesinha nórdica, dirá tudo o que se espera que diga, especialmente o que o "mercado" e os parceiros internacionais querem ouvir. Mas a própria candidata já alertou: não é um poste. E não é mesmo, espero. Tem uma história, que não bate com o que se quer que ela diga. Cumprirá o que disse?

No México do PRI, cujo domínio durou décadas, o presidente apontava sozinho o candidato a suceder-lhe, num processo vedado ao olhar e às influências da opinião pública. No entanto, quando a escolha era revelada ao público - "el destape del tapado" -, o escolhido via-se obrigado a dizer o que pensava. Aqui, o "dedazo" de Lula apontou a candidata. Só que ela não pode dizer o que pensa para não pôr em risco a eleição. Estamos diante de uma personagem a ser moldada pelos marqueteiros. Antigamente, no linguajar que já foi da candidata, se chamava isso de "alienação".

Esconde-se, assim, o que realmente está em jogo. Queremos aperfeiçoar nossa democracia ou aceitaremos como normais os grandes delitos de aloprados e as pequenas infrações sistemáticas, como as de um presidente que dá de ombros diante de seis multas a ele aplicadas por desrespeito à legislação eleitoral? Queremos um Estado partidariamente neutro ou capturado por interesses partidários? Que dialogue com a sociedade ou se feche para tomar decisões baseadas em pretensa superioridade estratégica para escolher o que é melhor para o País? Que confunda a Nação com o Estado e o Estado com empresas e corporações estatais, em aliança com poucos grandes grupos privados, ou saiba distinguir uma coisa da outra em nome do interesse público? Que aposte no desenvolvimento das capacidades de cada indivíduo, para a cidadania e para o trabalho, ou veja o povo como massa e a si próprio como benfeitor? Que enxergue no meio ambiente uma dimensão essencial ou um obstáculo ao desenvolvimento?

Está na hora de cada candidato, com a alma aberta e a cara lavada, dizer ao País o que pensa.


SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA