domingo, 28 de outubro de 2012

POR QUE OS PIORES CHEGAM AO PODER

Todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe de maneira absoluta. - Lord Acton


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Analisaremos agora uma ideia que, se de um lado serve de consolo para muitos que consideram inevitável o advento do totalitarismo, de outro enfraquece sobremodo a resistência dos que a ele se oporiam com todas as forças se lhe compreendessem a natureza. Trata-se da ideia de que os aspectos mais repelentes dos regimes totalitários se devem à casualidade histórica de esses regimes terem sido estabelecidos por canalhas e bandidos. Se, na Alemanha, a criação de um regime totalitário levou ao poder os Streichers e Killingers, os Leys e Heines, os Himmlers e Heydrichs — argumenta-se —, isso sem dúvida poderá provar a perversidade do caráter alemão, mas não que a ascensão de tais homens seja consequência inevitável de um regime totalitário. Por que não seria possível que o mesmo sistema, se necessário à consecução de objetivos importantes, fosse dirigido por indivíduos honestos para o bem da comunidade?

Não devemos iludir-nos supondo que todas as pessoas de bem são forçosamente democratas ou desejam fazer parte do governo. Muitos prefeririam confiá-lo a alguém que reputam mais competente. Embora isso possa ser importante, não há erro ou desonra em aprovar uma ditadura dos bons. O totalitarismo, ouve-se dizer, é um sistema poderoso tanto para o bem como para o mal, e o fim para o qual é usado depende inteiramente dos ditadores. Aqueles que julgam não ser o sistema que cumpre recear, e sim o perigo de que ele venha a ser dirigido por maus indivíduos, poderiam até ser tentados a prevenir esse perigo fazendo com que ele fosse estabelecido antes por homens de bem.

Não há dúvida de que um sistema "fascista" inglês ou americano diferiria muito dos modelos italiano ou alemão; por certo, se a transição fosse efetuada sem violência, poderíamos ter esperanças de que surgisse entre nós um líder melhor. E, se eu tivesse de viver sob um regime fascista, preferiria indubitavelmente um que fosse dirigido por ingleses ou americanos a qualquer outro. Entretanto, isso não quer dizer que, julgado pelos padrões atuais, um sistema fascista inglês viesse no fim a revelar-se muito diferente ou muito menos intolerável do que seus protótipos. Há razões de sobra para se crer que os aspectos que consideramos mais detestáveis nos sistemas totalitários existentes não são subprodutos acidentais mas fenômenos que, cedo ou tarde, o totalitarismo produzirá inevitavelmente. Assim como o estadista democrata que se propõe a planejar a vida econômica não tardará a defrontar-se com o dilema de assumir poderes ditatoriais ou abandonar seu plano, também o ditador totalitário logo teria de escolher entre o fracasso e o desprezo à moral comum. É por essa razão que os homens inescrupulosos têm mais probabilidades de êxito numa sociedade que tende ao totalitarismo. Quem não percebe essa verdade ainda não mediu toda a vastidão do abismo que separa o totalitarismo dos regimes liberais, a profunda diferença entre a atmosfera moral do coletivismo e a civilização ocidental, essencialmente individualista.

O "embasamento moral do coletivismo" foi, é claro, muito debatido no passado; mas o que nos interessa em nosso estudo não é sua base moral e sim seus resultados morais. Nos debates habituais sobre os aspectos éticos do coletivismo pergunta-se se este é exigido pelas convicções morais existentes, ou se devem existir certas convicções morais para que o coletivismo produza os resultados esperados. A questão que estudaremos, entretanto, é: que atitudes morais serão geradas por uma organização coletivista da sociedade, e por que ideias morais tal sociedade tenderá a ser dirigida? A interação da moral e das instituições poderá fazer com que a ética resultante do coletivismo seja totalmente diversa dos ideais morais que levam a exigir a implantação desse mesmo coletivismo. Embora nos inclinemos a pensar que, como o desejo de um sistema coletivista nasce de elevados motivos morais, em tal sistema se desenvolverão as mais altas virtudes, não existe, na realidade, nenhuma razão para que qualquer sistema estimule necessariamente aquelas atitudes que concorrem para o fim a que ele se destina. As ideias morais dominantes dependerão em parte das qualidades que conduzem os indivíduos ao sucesso num sistema coletivista ou totalitário e, em parte, das exigências do mecanismo totalitário.

Devemos agora voltar por um momento ao estágio que precede a supressão das instituições democráticas e a criação de um regime totalitário. Nesse estágio, a exigência geral de uma ação governamental rápida e decidida torna-se o elemento dominante da situação, enquanto a insatisfação com o curso lento e trabalhoso dos processos democráticos faz com que o objetivo seja a ação em si. É então que o homem ou o partido que parecem bastante fortes ou resolutos para "fazerem as coisas funcionar'' exercem maior sedução. "Forte", neste sentido, não indica apenas uma maioria numérica, pois o povo está insatisfeito justamente com a ineficácia das maiorias parlamentares. O que as pessoas procuram é um homem que goze de sólido apoio, de modo a inspirar confiança quanto à sua capacidade de realizar o que pretende. E aqui entra em cena o novo tipo de partido, organizado em moldes militares.

Nos países da Europa Central, os partidos socialistas já haviam familiarizado as massas com organizações políticas de caráter semimilitar, que tinham por objetivo absorver tanto quanto possível a vida privada dos seus membros. Para conferir um poder esmagador a um grupo, bastava estender um pouco mais o mesmo princípio, buscando a força não no imenso número de votos garantido em eleições ocasionais, mas no apoio absoluto e irrestrito de um grupo menor, porém perfeitamente organizado. Para conseguir impor um regime totalitário a toda uma nação, o líder deve em primeiro lugar reunir à sua volta um grupo disposto a submeter-se voluntariamente à disciplina totalitária que ele pretende aplicar aos outros pela força.

Embora os partidos socialistas tivessem poder político suficiente para obter o que desejassem, desde que resolvessem empregar a força, relutaram em fazê-lo. Sem o saber, tinham assumido uma tarefa que só poderia ser executada por homens implacáveis, prontos a desprezar as barreiras da moral reinante. Muitos reformadores sociais aprenderam, no passado, que o socialismo só pode ser posto em prática por métodos que seriam condenados pela maioria dos socialistas.

Os velhos partidos socialistas sentiam-se inibidos por seus ideais democráticos; não possuíam a insensibilidade necessária à execução da tarefa por eles escolhida. É importante notar que, tanto na Alemanha como na Itália, o êxito do fascismo foi precedido pela recusa dos partidos socialistas a assumir as responsabilidades do governo. Repugnou-lhes empregar os métodos que eles próprios haviam apontado. Ainda esperavam pelo milagre de um acordo da maioria em torno de um plano especial para a organização de toda a sociedade. Outros já haviam aprendido que, numa sociedade planificada, não se trata mais de saber sobre o que concorda a maioria do povo, mas qual é o maior grupo cujos membros encontraram um grau de acordo suficiente para tornar possível a direção unificada de todos os assuntos públicos; ou, caso não exista nenhum grupo bastante numeroso para impor suas ideias, de que forma e por quem ele pode ser criado.

Há três razões principais para que um grupo numeroso, forte e de ideias bastante homogêneas não tenda a ser constituído pelos melhores e sim pelos piores elementos de qualquer sociedade. De acordo com os padrões hoje aceitos, os princípios que presidiriam à seleção de tal grupo seriam quase inteiramente negativos.

Em primeiro lugar, é provavelmente certo que, de modo geral, quanto mais elevada a educação e a inteligência dos indivíduos, tanto mais se diferenciam os seus gostos e opiniões e menor é a possibilidade de concordarem sobre determinada hierarquia de valores. Disso resulta que, se quisermos encontrar um alto grau de uniformidade e semelhança de pontos de vista, teremos de descer às camadas em que os padrões morais e intelectuais são inferiores e prevalecem os instintos mais primitivos e "comuns". Isso não significa que a maioria do povo tenha padrões morais baixos; significa apenas que o grupo mais amplo cujos valores são semelhantes é constituído por indivíduos que possuem padrões inferiores. É, por assim dizer, o mínimo denominador comum que une o maior número de homens. Quando se deseja um grupo numeroso e bastante forte para impor aos demais suas ideias sobre os valores da vida, jamais serão aqueles que possuem gostos altamente diferenciados e desenvolvidos que sustentarão pela força do número os seus próprios ideais, mas os que formam a "massa" no sentido pejorativo do termo, os menos originais e menos independentes.

Se, contudo, um ditador em potencial tivesse de contar apenas com aqueles cujos instintos simples e primitivos são muito semelhantes, o número destes não daria peso suficiente às suas pretensões. Seria preciso aumentar-lhes o número, convertendo outros ao mesmo credo simples.

A esta altura entra em jogo o segundo princípio negativo da seleção: tal indivíduo conseguirá o apoio dos dóceis e dos simplórios, que não têm fortes convicções próprias, mas estão prontos a aceitar um sistema de valores previamente elaborado, contando que este lhes seja apregoado com bastante estrépito e insistência.

Serão, assim, aqueles cujas ideias vagas e imperfeitas se deixam influenciar com facilidade, cujas paixões e emoções não é difícil despertar, que engrossarão as fileiras do partido totalitário.

O terceiro e talvez mais importante elemento negativo da seleção está relacionado com o esforço do demagogo hábil por criar um grupo coeso e homogêneo de prosélitos. Quase por uma lei da natureza humana, parece ser mais fácil aos homens concordarem sobre um programa negativo — o ódio a um inimigo ou a inveja aos que estão em melhor situação — do que sobre qualquer plano positivo. A antítese "nós" e "eles", a luta comum contra os que se acham fora do grupo, parece um ingrediente essencial a qualquer ideologia capaz de unir solidamente um grupo visando à ação comum. Por essa razão, é sempre utilizada por aqueles que procuram não só o apoio a um programa político, mas também a fidelidade irrestrita de grandes massas. Do seu ponto de vista, isso tem a vantagem de lhes conferir mais liberdade de ação do que qualquer programa positivo. O inimigo, seja ele interno, como o "judeu" ou o "kulak", seja externo, parece constituir uma peça indispensável no arsenal do líder totalitário.

Se na Alemanha o judeu se tornou o inimigo, cedendo em seguida o lugar às "plutocracias", isso foi decorrência do sentimento anticapitalista em que se baseava todo o movimento, o mesmo acontecendo em relação à escolha do kulak na Rússia. Na Alemanha e na Áustria, o judeu chegara a ser encarado como o representante do capitalismo porque a antipatia tradicional votada por vastas classes da população às atividades comerciais tornara tais atividades mais acessíveis a um grupo praticamente excluído das ocupações mais respeitadas. É a velha história: a raça alienígena, admitida apenas nas profissões menos nobilitantes, torna-se objeto de ódio ainda mais acirrado precisamente por exercê-las. O fato de, na Alemanha, o antissemitismo e o anticapitalismo terem a mesma origem é de grande importância para a compreensão do que tem acontecido naquele país, embora os observadores estrangeiros poucas vezes se deem conta disso.

Considerar a tendência universal da política coletivista ao nacionalismo como decorrência exclusiva da necessidade de um apoio sólido seria negligenciar outro fator não menos significativo. Com efeito, é questionável que se possa conceber com realismo um programa coletivista que não atenda aos interesses de um grupo limitado, ou que o coletivismo possa existir sob outra forma que não a de um particularismo qualquer, nacionalista, racista ou classista. A ideia de uma comunhão de propósitos e interesses com os próprios semelhantes parece pressupor maior similaridade de ideias e pontos de vista do que aquela que existe entre os homens na qualidade de simples seres humanos. Se não podemos conhecer pessoalmente todos os outros componentes do nosso grupo, eles terão de ser pelo menos do mesmo tipo dos que nos cercam, terão de pensar e falar do mesmo modo e sobre os mesmos assuntos, para que nos possamos identificar com eles.

O coletivismo em proporções mundiais parece inconcebível, a não ser para atender aos interesses de uma pequena elite dirigente. Ele por certo suscitaria problemas, não só de natureza técnica, mas sobretudo moral, que nenhum dos nossos socialistas estaria disposto a enfrentar. Se o proletário inglês tem direito a uma parcela igual da renda atualmente proporcionada pelos recursos financeiros do país, assim como ao controle do emprego desses recursos, porque eles resultam da exploração, então pelo mesmo princípio todos os hindus teriam direito não só à renda mas também ao uso de uma parcela proporcional do capital britânico.

Que socialistas, porém, pensam de fato em repartir de maneira equitativa, entre toda a população da terra, os atuais recursos de capital? Para todos eles, o capital pertence não à humanidade, mas à nação — embora, mesmo no âmbito da nação, poucos ousem sustentar que as regiões mais ricas devem ser privadas de "seus" bens de capital para auxiliar as regiões mais pobres. Os socialistas não estão dispostos a conceder ao estrangeiro aquilo que proclamam como um dever para com os seus concidadãos. De um ponto de vista coletivista coerente, os direitos dos países pobres a uma nova divisão do mundo são de todo justificados — embora, se fossem aplicados com lógica, aqueles que os reivindicam com maior insistência acabassem quase tão prejudicados quanto as nações mais ricas. Têm, por conseguinte, o cuidado de não fundamentar suas exigências em princípios igualitários, mas numa pretensa capacidade superior de organizar outros povos.

Uma das contradições inerentes à filosofia coletivista é que, embora baseada na moral humanista aperfeiçoada pelo individualismo, só se mostra praticável no interior de um grupo relativamente pequeno. Enquanto permanece teórico, o socialismo é internacionalista; mas ao ser posto em prática, na Alemanha ou na Rússia, torna-se violentamente nacionalista. Esta é uma das razões por que o "socialismo liberal", tal como o imagina a maioria das pessoas no mundo ocidental, é apenas teórico, ao passo que a prática do socialismo é em toda parte totalitária. No coletivismo não há lugar para o amplo humanitarismo do liberal, mas apenas para o estreito particularismo do totalitário.

Se a "comunidade" ou o estado têm prioridade sobre os indivíduos, se possuem objetivos próprios superiores aos destes e deles independentes, só os indivíduos que trabalham para tais objetivos podem ser considerados membros da comunidade. Como consequência necessária dessa perspectiva, uma pessoa só é respeitada na qualidade de membro do grupo, isto é, apenas se coopera para os objetivos comuns reconhecidos, e toda a sua dignidade deriva dessa cooperação, e não da sua condição de ser humano. Os próprios conceitos de humanidade e, por conseguinte, de qualquer forma de internacionalismo são produtos exclusivos da atitude individualista e não podem existir num sistema filosófico coletivista.[1]

Além do fato fundamental de que a comunidade coletivista só pode chegar até onde exista ou possa ser estabelecida uma unidade de propósitos individuais, vários elementos contribuem para fortalecer a tendência do coletivismo a tornar-se particularista e exclusivista. Destes, um dos mais importantes é que o desejo de identificação do indivíduo com um grupo resulta com frequência de um sentimento de inferioridade, e por isso tal desejo só será satisfeito se a qualidade de membro do grupo lhe conferir alguma superioridade sobre os que a este não pertencem. Às vezes, ao que tudo indica, o próprio fato de esses instintos violentos que o indivíduo é obrigado a refrear no seio do grupo poderem ser liberados numa ação coletiva contra os estranhos constitui mais um incentivo para fusão de sua personalidade com a do grupo.

Uma profunda verdade está expressa no título do livro de Reinhold Niebuhr, Moral Man and Immoral Society (O Homem Moral e a Sociedade Imoral) — embora seja difícil aceitar conclusões a que chega a sua tese. Na verdade, como diz ele em outra obra, "o homem moderno tende a se considerar uma pessoa de moral elevada por ter delegado seus vícios a grupos cada vez mais numerosos".[2] Agir no interesse de um grupo parece libertar os homens de muitas restrições morais que regem seu comportamento como indivíduos dentro do grupo.

A atitude de muitos planejadores de nítida oposição ao internacionalismo explica-se também pelo fato de que, no mundo atual, todos os contatos exteriores de um grupo constituem obstáculos ao planejamento efetivo da esfera em que este pode ser empreendido. Não é, pois, mera coincidência se conforme descobriu com pesar o organizador de um dos mais abrangentes estudos coletivos sobre o planejamento, "os 'planejadores' são, em sua maioria, nacionalistas militantes".[3]

As propensões nacionalistas e imperialistas dos planejadores socialistas — muito mais comuns do que em geral se admite — nem sempre são tão flagrantes como no caso dos Webb e de alguns outros fabianos primitivos, nos quais o entusiasmo pela planificação se somava, de modo característico, à veneração para com as grandes e poderosas unidades políticas e ao desprezo pelos pequenos estados. Referindo-se aos Webb na ocasião em que os conheceu, há quarenta anos, afirmava o historiador Elie Halévy que



seu socialismo era profundamente antiliberal. Não odiavam os conservadores, eram até muito tolerantes com eles; entretanto, mostravam-se implacáveis para com o liberalismo gladstoniano. Era no tempo da guerra dos bôeres e tanto os liberais quanto aqueles que começavam a constituir o Partido Trabalhista haviam-se alinhado aos bôeres contra o imperialismo britânico, em nome da liberdade e da humanidade. Mas os dois Webb e seu amigo Bernard Shaw não os apoiaram. Eram ostentosamente imperialistas. A independência das pequenas nações poderia ter alguma importância para um individualista liberal mas, para coletivistas como eles, nada significava. Ainda ouço Sidney Webb a explicar-me que o futuro pertence às grandes nações administrativas, onde os funcionários governam e a polícia mantém a ordem.

Em outra parte, Halévy cita a afirmação de Bernard Shaw, mais ou menos da mesma época, de que "o mundo pertence necessariamente aos estados grandes e poderosos, e os pequenos devem ser incorporados, a eles ou esmagados e aniquilados".[4]

Citei por extenso essas passagens, que não deveriam surpreender num relato sobre os precursores alemães do nacional-socialismo, porque apresentam um exemplo muito característico da glorificação do poder que facilmente conduz do socialismo ao nacionalismo e que tanto influencia as concepções éticas de todos os coletivistas. No que se refere aos direitos das pequenas nações, Marx e Engels pouco diferiam da maioria dos outros coletivistas coerentes, e as opiniões que ambos expressaram ocasionalmente a respeito dos tchecos ou dos poloneses assemelham-se às dos nacional-socialistas contemporâneos.[5]

Enquanto para os grandes filósofos sociais individualistas do século XIX, como Lord Acton ou Jacob Burckhardt, e mesmo para socialistas contemporâneos como Bertrand Russell,que herdaram a tradição liberal, o poder sempre se afigurou o supremo mal, para o coletivista puro ele é um fim em si mesmo. O próprio desejo de organizar a vida social segundo um plano unitário nasce basicamente da ambição de poder, mas não apenas disso, conforme destacou Russell com propriedade. Esse desejo resulta sobretudo do fato de que, para realizar seu objetivo, os coletivistas precisam criar um poder de uma magnitude jamais vista até hoje — poder exercido por alguns homens sobre os demais — e de que seu êxito dependerá do grau de poder alcançado.

Isto permanece válido ainda que muitos socialistas liberais orientem suas ações pela desastrosa ilusão de que, privando os indivíduos do poder que possuem num sistema individualista e transferindo-o à sociedade, lograrão acabar com o próprio poder. O que todos aqueles que usam esse argumento esquecem é que, concentrando-se o poder de modo a empregá-lo a serviço de um plano único, ele não será apenas transferido mas aumentado a um grau infinito; e que, enfeixando-se nas mãos de um só grupo uma autoridade antes exercida por muitos de forma independente, cria-se um poder infinitamente maior — tão amplo que quase chega a tornar-se um outro gênero de poder.

É de todo errôneo afirmar, como por vezes se faz, que o grande poder exercido por uma comissão de planejamento central "não seria maior do que o poder exercido conjuntamente pelas diretorias das empresas privadas".[6] Numa sociedade baseada na concorrência, ninguém exerce uma fração sequer do poder que uma comissão planejadora socialista concentraria nas mãos; e se ninguém o pode empregar de modo intencional, não passa de abuso de linguagem afirmar que este se encontra nas mãos de todos os capitalistas reunidos. Falar do "poder conjuntamente exercido pelas diretorias das empresas privadas" é apenas manipular palavras, se essas diretorias não se unem para uma ação comum — o que significaria, é evidente, o fim da concorrência e a criação de uma economia planificada. Fracionar ou descentralizar o poder corresponde, forçosamente, a reduzir a soma absoluta de poder, e o sistema de concorrência é o único capaz de reduzir ao mínimo, pela descentralização, o poder exercido pelo homem sobre o homem.

Já vimos como a separação dos objetivos políticos e dos objetivos econômicos representa uma garantia essencial da liberdade individual e como, em consequência, tal separação é atacada por todos os coletivistas. Devemos acrescentar agora que a "substituição do poder econômico pelo político", tão demandada hoje em dia, significa necessariamente a substituição de um poder sempre limitado por um outro ao qual ninguém pode escapar. Embora possa constituir um instrumento de coerção, o chamado poder econômico nunca se torna, nas mãos de particulares, um poder exclusivo ou completo, jamais se converte em poder sobre todos os aspectos da vida de outrem. No entanto, centralizado como instrumento do poder político, cria um grau de dependência que mal se distingue da escravidão.

Das duas características principais de todo sistema coletivista — a necessidade de um sistema de objetivos aceito por todos os membros do grupo e o desejo imperioso de conferir ao grupo o máximo de poder para realizar tais objetivos — brota um sistema moral definido, que em certos pontos coincide e em outros se contrapõe violentamente ao nosso. Dele difere, entretanto, num detalhe que torna questionável podermos aplicar-lhe o termo "morar'': tal sistema não deixa à consciência individual a liberdade de aplicar suas regras próprias, nem mesmo conhece quaisquer regras gerais cuja prática seja exigida ou permitida ao indivíduo em todas as circunstâncias. Isso torna a moral coletivista tão diferente daquilo que conhecemos como moral que é difícil encontrar nela qualquer princípio — o que, no entanto, ela possui.

A diferença de princípio é praticamente a mesma que já consideramos em relação ao estado de Direito. Como o Direito formal, as regras da ética individualista são gerais e absolutas, por mais imprecisas que possam parecer sob certos aspectos. Prescrevem ou proíbem um tipo geral de ação, sem levar em conta se num caso específico o objetivo último é bom ou mau. Trapacear ou roubar, torturar ou trair segredos é considerado mau, apresentem ou não consequências prejudiciais em determinado caso. E sua maldade intrínseca não se altera, mesmo que em dadas circunstâncias ninguém venha a sofrer por isso, e mesmo que tais ações tenham sido praticadas em nome de um propósito elevado. Embora por vezes sejamos forçados a escolher entre dois males, estes não deixam por isso de ser males.

Na ética individualista, o princípio de que o fim justifica os meios é considerado a negação de toda a moral. Na ética coletivista, torna-se a regra suprema; não há literalmente nada que o coletivista coerente não deva estar pronto a fazer, desde que contribua para o "bem da comunidade", porque o "bem da comunidade" é para ele o único critério que justifica a ação. A "razão de estado", em que a ética coletivista encontrou a sua formulação mais explícita, não conhece outros limites que não os da conveniência — a adequação do ato particular ao objetivo que se tem em vista. E o que a "razão de estado" afirma no tocante às relações entre diferentes países aplica-se também às relações entre diferentes indivíduos no estado coletivista. Não pode haver limites para aquilo que o cidadão desse estado deve estar pronto a fazer, nenhum ato que a consciência o impeça de praticar, desde que seja necessário à consecução de um objetivo que a comunidade impôs a si mesma ou que os superiores lhe ordenem.

Dessa ausência de normas absolutas e formais na ética coletivista não se infere, naturalmente, que a comunidade não estimule certos hábitos úteis do indivíduo, e que não condene outros. Ao contrário, ela se interessará muito mais pelos hábitos individuais de vida do que uma comunidade individualista. Ser membro útil de uma sociedade coletivista requer qualidades muito precisas, as quais devem ser fortalecidas por uma prática constante. A razão por que designamos essas qualidades como "hábitos úteis", uma vez que não é possível denominá-las virtudes morais, é que nunca se permitiria ao indivíduo colocar essas regras acima de quaisquer ordens positivas ou deixar que se tornassem um obstáculo à realização dos objetivos concretos da comunidade. Elas apenas servem para preencher as lacunas deixadas pelas ordens diretas ou pela indicação de finalidades concretas. Jamais, entretanto, poderão justificar um conflito com a decisão da autoridade.

As diferenças entre as virtudes que continuarão a ser valorizadas num sistema coletivista e aquelas que virão a desaparecer são bem elucidadas por uma comparação entre as virtudes atribuídas aos alemães, ou melhor, ao "prussiano típico", mesmo por seus piores inimigos, e aquelas que lhes são negadas pela opinião geral, mas que o povo inglês, com alguma razão, se orgulhava de possuir em alto grau. Poucos deixarão de admitir que os alemães, em geral, são laboriosos e disciplinados, detalhistas e enérgicos a ponto de se mostrarem insensíveis, conscienciosos e coerentes em qualquer tarefa à qual se dedicam; que possuem um acentuado senso de ordem, dever e estrita obediência à autoridade, e que muitas vezes dão provas de grande capacidade para o sacrifício pessoal e de admirável coragem diante do perigo físico. Essas virtudes fazem do alemão um instrumento eficiente na execução de uma tarefa prescrita, e todas elas foram cuidadosamente ensinadas no velho estado prussiano e no novo reich, também sob o domínio prussiano.

O que se supõe faltar ao "alemão típico" são as virtudes individualistas da tolerância e do respeito pelos demais indivíduos e suas opiniões; o pensamento independente e aquela integridade de caráter que fazem o indivíduo defender suas convicções perante um superior — qualidades que os próprios alemães, em geral cônscios de não possuírem, chamam Zivilcourage; a consideração pelos fracos e doentes; e o saudável desprezo e antipatia pelo poder, que somente uma longa tradição de liberdade pessoal pode criar. Parece faltar-lhes ainda quase todas essas pequenas porém importantes qualidades que facilitam as relações entre os homens numa sociedade livre: a bondade e o senso de humor, a modéstia pessoal, o respeito pela privacidade e a fé nas boas intenções de seus semelhantes.

Após tais considerações, não causará surpresa a ninguém que essas virtudes individualistas sejam ao mesmo tempo virtudes eminentemente sociais, qualidades que suavizam os contatos sociais e que tornam menos necessário, e ao mesmo tempo mais difícil, o controle que vem de cima. São virtudes que florescem onde quer que tenha prevalecido a sociedade de tipo individualista ou comercial e que, inversamente, inexistem quando predomina a de tipo coletivista ou militar — diferença que se pode (ou se podia) observar nas várias regiões da Alemanha, como agora se observa entre as ideias que reinam naquele país e as ideias características do Ocidente. Até bem pouco, pelo menos, nas regiões da Alemanha que mais longamente estiveram expostas às forças civilizadoras do comércio - as antigas cidades comerciais do sul e do oeste e as cidades hanseáticas - os conceitos éticos em geral tinham muito mais afinidade com os dos povos ocidentais do que com aqueles que hoje prevalecem em toda a Alemanha.

Seria, no entanto, injusto considerar as massas que sustentam um regime totalitário destituídas de qualquer fervor moral só porque prestam apoio irrestrito a um sistema que a nós se afigura a negação dos melhores valores morais. Para a sua grande maioria, é justamente o contrário que se verifica: a intensidade das emoções morais em que repousa um movimento como o nacional-socialista ou o comunista talvez só possa ser comparada à dos grandes movimentos religiosos da história. Uma vez admitido que o indivíduo é simples instrumento para servir aos fins da entidade superior que se chama sociedade ou nação, manifesta-se necessariamente a maior parte dessas características dos regimes totalitários que nos enchem de horror. Da perspectiva coletivista, a intolerância e a brutal supressão da dissidência, o completo desrespeito pela vida e pela felicidade do indivíduo são consequências essenciais e inevitáveis dessa premissa básica. O coletivista pode aceitar esse fato, e ao mesmo tempo afirmar que seu sistema é superior àqueles em que se permite que interesses individuais "egoístas" criem embaraços à plena realização das metas visadas pela comunidade. Quando os filósofos alemães repetidas vezes caracterizam como imoral em si mesma a busca da felicidade pessoal e apenas digno de louvor o cumprimento do dever imposto, estão usando de completa sinceridade, por mais incompreensível que isso pareça às pessoas educadas numa tradição diferente.

Onde existe uma finalidade comum e soberana, não há lugar para uma moral ou para normas gerais. Até certo ponto, nós próprios experimentamos isso durante a guerra. A guerra e o perigo mais grave, no entanto, levaram os países democráticos a uma situação que só de longe se assemelhava ao totalitarismo, poucas vezes prejudicando os demais valores em função de um objetivo único. Mas quando toda a sociedade é dominada por alguns fins específicos, é inevitável que, vez por outra, a crueldade se torne um dever; que ações que nos revoltam, tais como o fuzilamento de reféns ou o extermínio de velhos e doentes, sejam tratadas como meras questões de conveniência; que arrancar centenas de milhares de indivíduos de suas casas e transportá-los compulsoriamente para outro lugar se converta numa linha de ação política aprovada por quase todos, menos pelas vítimas; ou que ideias como a "conscrição das mulheres para fins de procriação'' possam ser consideradas a sério. O coletivista tem sempre diante dos olhos uma meta superior para a qual concorrem essas ações e que, no seu modo de ver, as justifica, porque a busca do objetivo social comum não pode ser limitada pelos direitos ou valores de qualquer indivíduo.

Mas enquanto para a massa dos cidadãos do estado totalitário é muitas vezes a dedicação desinteressada a um ideal — embora esse ideal nos pareça detestável — que os leva a aprovar e até a praticar tais atos, o mesmo não se pode alegar em favor dos dirigentes da política estatal. Para ser um auxiliar útil na administração de um estado totalitário não basta que um indivíduo esteja pronto a aceitar justificações capciosas de atos abomináveis. Deve estar preparado para violar efetivamente qualquer regra moral de que tenha conhecimento, se isso parecer necessário à realização do fim que lhe foi imposto. Como o chefe supremo é o único que determina os fins, seus instrumentos não devem ter convicções morais próprias. Cumpre-lhes, acima de tudo, votar uma fidelidade irrestrita à pessoa do líder; em seguida, o mais importante é que sejam desprovidos de princípios e literalmente capazes de tudo. Não devem possuir ideais próprios que desejem realizar, nenhuma ideia sobre o que é justo ou injusto que possa criar obstáculos às intenções do líder. Desse modo, as posições de mando oferecem àqueles que possuem convicções morais semelhantes às que têm guiado os povos europeus poucos atrativos que compensem a repugnância causada por muitas das tarefas a executar, e escassas oportunidades de satisfazer os desejos mais idealistas, de recompensar os inegáveis riscos, o sacrifício da maioria dos prazeres da vida privada e da independência pessoal que esses postos de grande responsabilidade sempre impõem. A única satisfação é a da ambição do poder em si mesmo, o prazer de ser obedecido e de fazer parte de uma máquina perfeita, imensamente poderosa, diante da qual tudo deve ceder.

Por outro lado, embora pouco haja para induzir homens bons, segundo nossos padrões, a aspirar a cargos de importância na máquina totalitária, e muito para afastá-los dessas posições, haverá oportunidades especiais para os insensíveis e os inescrupulosos. Será preciso desempenhar tarefas de inegável crueldade, mas que não podem deixar de ser executadas, a serviço de alguma finalidade superior, com a mesma perícia e a mesma eficiência que quaisquer outras. Havendo, assim, necessidade de ações intrinsecamente nocivas e que todas as pessoas ainda influenciadas pela moral tradicional relutarão em fazer, a disposição para praticar tais ações converte-se no caminho da ascensão social e do poder. Numa sociedade totalitária, são numerosas as posições em que é necessário praticar a crueldade e a intimidação, a duplicidade e a espionagem. Nem a Gestapo, nem a administração de um campo de concentração, nem o ministério da Propaganda, nem a S.A. ou a S.S. (ou seus equivalentes italianos ou russos) são lugares favoráveis à prática de sentimentos humanitários. E, no entanto, é exercendo esses cargos que se chega às posições supremas no estado totalitário. É corretíssima a conclusão do ilustre economista americano que, após enumerar os deveres das autoridades num estado coletivista, afirmou:



Eles seriam obrigados a fazer essas coisas, quisessem ou não; e é tão reduzida a probabilidade de o poder ser exercido por homens que detestem a sua posse e exercício quanto a de alguém extremamente bom e sensível vir a ser feitor de escravos.[7]

Não nos é possível, todavia, esgotar aqui o assunto. O problema da seleção dos líderes está intimamente ligado ao amplo problema de selecioná-los segundo as opiniões que essas pessoas exibem, ou melhor, de acordo com a presteza com que se adaptam a um corpo de doutrinas em constante transformação. E isto nos conduz a um dos mais característicos aspectos morais do totalitarismo: sua relação com as virtudes que se incluem na denominação geral de veracidade e seus efeitos sobre estas. Trata-se de assunto tão amplo que requer um capítulo especial.

Texto extraído do capítulo 10 de O Caminho da Servidão

[1] É inteiramente dentro do espírito do coletivismo que Nietzsche faz Zaratustra dizer: "Até agora mil metas existiram, porque mil pessoas existiram. Mas falta ainda o grilhão para os mil pescoços, pois ainda falta a meta única. A humanidade não tem uma meta. Mas dizei-me, ó irmãos, eu vos peço: se falta uma meta à humanidade, não é a própria humanidade que está faltando?".
[2] Citado de um artigo do dr. Niebuhr por E. H. Carr, em The Twenty Years' Crisis, 1941. p. 203.
[3] Mackenzie, F., org. Planned Society, Yesterday, Today, Tomorrow: A Symposium. 1937. p. XX.
[4] Halévy, E. L'ère des Tyrannies, Paris, 1938, p. 217. e History of the English People, Epílogo, v. I, pp. 105-6.
[5] Cf. Marx, Karl, Revolution and Counter-revolution, e a carta de Engels a Marx datada de 23 de maio de 1851.
[6] Russell, Bertrand, The Scientific Outlook, 1931, p. 211.
[7] Knight, F. H. em The Journal of Political Economy, dez. 1938, p. 869.

Friedrich A. Hayek (1899-1992) foi um membro fundador do Mises Institute. Ele dividiu seu Prêmio Nobel de Economia, em 1974, com seu rival ideológico Gunnar Myrdal "pelos seus trabalhos pioneiros sobre a teoria da moeda e das flutuações econômicas e por suas análises perspicazes sobre a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais". Seus livros estão disponíveis na loja virtual do Mises Institute.

QUATRO IMAGENS MENTAIS PARA IMUNIZAR PESSOAS SENSATAS CONTRA O KEYNESIANISMO

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Quatro imagens fornecem as ferramentas conceituais necessárias para refutar a teoria econômica keynesiana: a arma, a carteira, o título da dívida e a impressora de dinheiro. Lembre-se delas todas as vezes que você ler uma propaganda keynesiana exaltando os últimos planos de gastos do governo. Explico.

Pense que você está em um debate público. Se você quiser arruinar um oponente intelectual em um debate, descubra qual o seu principal ponto fraco e atenha-se a ele. Nunca o deixe escapar. Garanta que a platéia sairá do debate tendo em mente todas as refutações que você apresentou.



Ao se preparar para um debate, lembre-se sempre desse princípio da comunicação eficaz: "É mais fácil esquecer uma fórmula do que uma imagem mental".

Economistas acadêmicos amam fórmulas. E essa é justamente sua maior vulnerabilidade. Ao contrário das fórmulas da física, as fórmulas dos economistas escondem profundos erros conceituais; erros que simples imagens mentais mostram ser um absurdo total. O indivíduo comum pode prontamente perceber e entender esses erros por meio do uso de simples imagens mentais. Já os economistas acadêmicos, por outro lado, são deliberadamente treinados em sua pós-graduação para ignorar essas imagens. Eles são facilmente cegados por fórmulas. Isso os coloca em desvantagem nos debates públicos, especialmente quando têm de debater membros de uma escola de pensamento econômico que não utiliza fórmulas: a escola austríaca de economia. Irei agora dar uma demonstração de como esse princípio funciona num debate.

A FÓRMULA CENTRAL DO KEYNESIANISMO

A descrição da economia keynesiana na Wikipédia é um bom lugar para se começar. Aqui, temos a fórmula keynesiana presente em todos os livros-texto:

Em representação científica, a Fórmula Keynesiana consiste da seguinte composição:

C + I + G + X - M = Y(PIB)

que significa:

Consumo + Investimento + Gastos Governamentais + Exportações - Importações = Produto Interno Bruto

Isso é coisa padrão. Começa aqui:

Os gastos são o núcleo da economia keynesiana — que formam o gasto agregado. Consumo (C) é uma série de decisões individuais de alocação de recursos por toda a sociedade. Investimento (I) é uma série de decisões individuais de alocação de recursos por toda a sociedade. Exportações (X) são uma série de decisões individuais de alocação de recursos por toda a sociedade. O mesmo se aplica às importações.

Já os gastos governamentais representam um tipo diferente de decisão de alocação. "Está vendo essa arma? Está vendo para onde ele está apontada? Passe a carteira!"

O estudante pode ver que o gasto total se baseia em todas as quatro letras da fórmula. C, I, X e M se originam das ações dos proprietários originais dos recursos. Já o G não se origina das ações dos proprietários originais dos recursos. G se origina da ação do seu novo proprietário, após múltiplas transações feitas sob a mira da arma.

G não cria nada. G confisca. G não pode gastar nada que não tenha antes extraído à força dos consumidores ou investidores.

C, I, X e M são baseados na produção. Eles representam forças criativas. G é baseada no confisco. Não é uma força criativa. Tudo o que é gasto por G é feito à custa de C, I, X ou M. Quando G gasta, ele o faz à custa de todos os outros.

Um estudante perspicaz é esperto o bastante para imaginar o que a maioria das pessoas faz quando constantemente ameaçadas por ladrões com armas, mesmo quando os ladrões carregam distintivos. Elas não irão colocar todo o seu dinheiro em suas carteiras. Elas irão esconder parte do seu dinheiro. Elas não irão gastá-lo. Pessoas que carregam distintivos e armas chamam esse ato de entesouramento da moeda. Trata-se de Algo Muito Ruim, eles nos asseguram.

PEGANDO EMPRESTADO DE PEDRO PARA SUBSIDIAR PAULO

É aqui que Keynes vem ao socorro dos governos de todos os lugares. Para evitar que as pessoas entesourem seu dinheiro — mantendo-o assim a salvo da sanha tributária, mas consequentemente levando a uma redução do gasto agregado —, Keynes aconselhou aos governos oferecerem títulos de dívida que paguem juros. Dessa forma, os governos poderiam obter empréstimos, gastar e, com isso, manter o nível do gasto agregado. "Escondam as armas. Ofereçam títulos."

Apenas estudantes muito espertos irão fazer essas duas perguntas óbvias:
De onde o governo irá tirar dinheiro para pagar esse empréstimo e seus juros?
De onde as pessoas irão tirar dinheiro para emprestar ao governo?

As respostas dos políticos para a primeira pergunta é fácil: (1) nós iremos contratar mais homens com distintivos e armas; (2) nós iremos oferecer mais títulos de dívida. Porém, essas não são respostas elucidativas; são apenas embromação, pois a pergunta continua sem resposta.

Então Keynes acrescentou isso: "Imprimam mais dinheiro". Ele especificamente ensinou que os salários reais iriam cair junto com o poder de compra em tempos de inflação de preços. Membros dos sindicatos iriam aceitar esses menores salários reais, Keynes ensinou. Isso iria levar a um maior emprego: salários menores significam mais demanda por mão-de-obra. Ele implicitamente supôs que os sindicalistas eram tolos, assim como os economistas que eles contratariam para fazer negociações.

E quanto à segunda pergunta? De onde os emprestadores tirarão dinheiro para emprestar para o governo? A resposta de Keynes fazia aparente sentido naquela época, quando as pessoas guardavam ouro (nos EUA) ou moeda corrente (em todo o resto do mundo) em casa. Porém, após 1934 nos EUA, quando Seguro Federal para Depósitos Bancários foi criado (seguro esse que hoje existe em todo o mundo), o argumento de Keynes perdeu o sentido. As pessoas passaram a depositar seu dinheiro nos bancos. Os bancos então passaram a emprestar esse dinheiro. Dali em diante, o governo poderia emitir vários títulos e incorrer em grandes déficits orçamentários, que os bancos iriam utilizar o dinheiro de seus correntistas para comprar esses títulos do governo. O problema é que os empreendedores agora não teriam mais a mesma facilidade de antes para conseguir empréstimos junto a esses bancos, que passaram a canalizar o dinheiro para os títulos do governo.

Keynes imaginou que, sob esse arranjo, o gasto agregado não iria se alterar. É aí que sua teoria desmorona.

Mesmo no primeiro caso — entesouramento da moeda —, o argumento já não fazia sentido em 1933. Quando a moeda é entesourada, os preços têm de cair. Quando os preços caem em consequência do entesouramento — que representa um aumento da demanda por moeda —, a moeda volta a ser gasta. Os vendedores tornam-se sedutores: "Tenho uma grande promoção para você!" Com isso, as pessoas deixam de entesourar e passam a gastar. Se os preços são livres e flexíveis — e em um livre mercado eles são —, então o governo não precisaria emitir títulos para fazer com que as pessoas voltassem a gastar. Bastaria apenas remover todas as restrições legais que impedem esse rearranjo de preços: tarifas, quotas e políticas de preços mínimos.

Tão logo o estudante entenda isso, o professor poderá ir adiante e passar da lógica para a retórica: persuasão por meio da imagística.

SUBSTITUA IMAGENS POR FÓRMULAS

Eis o verbete da Wikipédia para gastos do governo.


Gastos governamentais ou despesas governamentais consistem em compras do governo, as quais podem ser financiadas por senhoriagem [inflação], impostos ou empréstimos contraídos pelo governo. Os gastos governamentais são considerados um dos principais componentes do produto interno bruto.

John Maynard Keynes foi um dos primeiros economistas a defender déficits governamentais como parte de uma política fiscal para curar uma contração econômica. Na economia keynesiana, acredita-se que um maior gasto governamental eleva a demanda agregada e aumenta o consumo.

Aqui, eu sugiro o seguinte. Faça a pergunta novamente: "Como o governo irá fazer para pegar o dinheiro da carteira ou da conta bancária dos emprestadores sem que isso reduza os gastos deles?" 

Continue mencionando 'carteira'. As pessoas conhecem e entendem de carteiras. Elas não entendem muito é de fórmulas. Continue mencionando 'impressoras'. Elas sabem o que é falsificação.

O estudante deverá sempre ter a imagem mental de uma arma, de uma carteira, de um título de dívida e de uma impressora. Uma fórmula não transmite conhecimento eficazmente. Uma imagem mental, sim. As pessoas esquecem fórmulas mais rapidamente do que esquecem imagens mentais.

O núcleo da economia keynesiana é este: atribuir uma produtividade econômica autônoma à agência em posse da arma. De alguma forma, o governo pode elevar o gasto agregado da economia (1) sem estar produzindo nada de novo e (2) sem que isso reduza os gastos em outros lugares da economia. Keynes nunca explicou como isso seria possível. Nem seus discípulos.

Eis o núcleo do erro keynesiano: "G pode aumentar sem subtrair de C, I, X e M". É fácil mostrar isso pela fórmula. Mas ainda é apenas uma fórmula. Tente transformar a fórmula em uma imagem mental.

Diga ao estudante, "Quando você vir G, pense numa arma" [em inglês é mais fácil: G = Gun]. Essa imagem mental destroi a autoridade da fórmula.

E o estudante vai retrucar: "Toda a economia keynesiana não pode ser resumida apenas nisso". Mas pode. Com efeito, toda a economia keynesiana é apenas isso. E ele prossegue: "Alguém teria apontado isso ainda em 1936 se isso fosse tudo o que há nela." Poucos, além de Mises e Hayek, fizeram isso. E esses poucos passaram a ser ignorados após 1948, o ano em que Paul Samuelson publicou seu livro texto de economia.

Como assim? Por que toda essa platitude foi aceita? Por causa daquilo que George Orwell observou em 1946, o mesmo ano em que Keynes morreu. "Enxergar o que está na frente do nariz exige um esforço constante".

Seja a criança na parada que grita: "O imperador está nu!" Comece com a explicação mais simples — a visual — sobre o núcleo do colossal erro de Keynes. Não deixe passar batido.

Comece com a arma, a carteira, o título da dívida e a impressora. A fórmula do PIB é simplesmente uma fachada para agradar economistas.


Gary North , ex-membro adjunto do Mises Institute, é o autor de vários livros sobre economia, ética e história. 

UMA MOEDA FORTE PODERIA TRAZER DESVANTAGENS PARA OS BRASILEIRTOS?

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Não é nenhum exagero dizer que não há uma semana em que não recebamos perguntas sobre "importações destruírem empregos", "real valorizado prejudicar a indústria nacional", "moeda desvalorizada ter suas vantagens", "protecionismo ter alguma importância estratégica" e todas as variáveis do tipo. Não obstante todas as perguntas possíveis sobre protecionismo já terem sido respondidas por completo em nossos artigos sobre protecionismo, há alguns detalhes sobre o assunto que ainda não foram explorados a contento. A maioria das vezes, as perguntas centram-se na questão das tarifas de importação. Hoje, ela centrará na questão da valorização da moeda.


Um leitor nos envia a seguinte pergunta:


Boa noite,

Tenho uma dúvida de teoria econômica. Agradeço se puderem me esclarecer.

Qual seria a política cambial certa em um cenário de guerra cambial, onde todos os países competem desvalorizando suas moedas? Por exemplo, o Brasil. Se nossa presidente, seguindo os ensinamentos da Escola Austríaca, cruzasse os braços e deixasse o mercado atuar, nossa economia estaria em uma situação melhor agora? Suponhamos que em vez de desvalorizar o real, como o BC está fazendo, ele deixasse a nossa moeda apreciar. Hoje, o real estaria valendo ouro e as importações, tanto as que são para consumo quanto as de insumos para a indústria, seriam impulsionadas como nunca antes, é verdade. Mas não aconteceria um processo de desindustrialização semelhante ao sofrido pelos EUA devido à política cambial chinesa? Neste caso, no final das contas, estaríamos em melhor ou pior situação?

Pode-se citar, como pontos positivos, um provável aumento de produtividade da indústria, em razão do crescimento das importações de insumos e bens de capital. Contudo, como confiar que esse aumento seria suficientemente grande para compensar — e este é o ponto negativo — a perda de competitividade dos preços dos nossos produtos? 

Por fim, uma moeda valorizada funcionaria como refúgio para os investidores (como o franco suíço até um tempo atrás), o que reduziria drasticamente os juros de captação e seria um estímulo para o governo se endividar mais.




Em resumo, a pergunta do leitor em nada difere das outras dezenas que já recebemos sobre o assunto. Porém, esta é mais interessante porque permite um maior aprofundamento sobre uma questão muito pouco entendida pelos brasileiros, por total falta de experiência com o assunto: os benefícios de se ter uma moeda forte.

Primeiro, uma correção

Antes de responder diretamente às perguntas do leitor, é importante fazer uma correção técnica em seu raciocínio. Em seu terceiro parágrafo, o leitor afirma que se o Banco Central brasileiro não estivesse imprimindo reais para desvalorizá-lo perante o dólar, o real hoje estaria substancialmente valorizado. Esse raciocínio não é correto.

Sim, é verdade que o que determina a taxa de câmbio de uma moeda é o seu poder de compra. Consequentemente, a moeda que for menos inflacionada tenderá a ter um poder de compra mais elevado em relação às outras moedas, e sua taxa de câmbio, por conseguinte, será a mais apreciada. Porém — e esse é o 'grande lance' —, o que determina o poder de compra de uma moeda não é apenas a sua oferta, mas também ademanda por esta moeda.

Se o Banco Central brasileiro interrompesse por completo a expansão monetária, de modo que quantidade de reais na economia se tornasse fixa, tal medida, por si só, não seria nenhuma garantia de que a nossa taxa de câmbio iria se apreciar e o real passaria a "valer ouro", como disse o leitor. Tudo iria depender da demanda(nacional e mundial) por reais. A demanda por moeda pode ser entendida como 'a procura por moeda para se realizar transações econômicas'. Quanto maior o crescimento de uma economia, maior tende a ser a demanda por sua moeda. Ou seja: a demanda por uma moeda tende a ser proporcional ao crescimento da economia daquele país. 

Em outras palavras: se o Banco Central brasileiro interrompesse a expansão do crédito no país, que hoje apresenta um crescimento em torno de 18% ao ano, a economia entraria em profunda recessão. Estando em recessão, a demanda (nacional e mundial) por reais deixaria de aumentar (poderia até cair). E isso, por si só, impediria qualquer apreciação no valor do real no mercado internacional. O real não iria se valorizar, e a taxa de câmbio, ao contrário do que disse o leitor, não estaria "valendo ouro".

Um exemplo prático desta teoria pôde ser observado no Brasil em 2003. Naquele ano, com a inflação de preços (IPCA) chegando aos 17%, o Banco Central subiu os juros e fez com que a expansão de crédito caísse de 13% para 3% ao ano, uma das menores da história do real (ver o quarto gráfico deste artigo). Isso, no entanto, fez com que o câmbio fosse de 3,70 reais por dólares para apenas 2,80 reais por dólares, sendo que, no primeiro semestre de 2004, o real já havia se desvalorizado novamente para mais 3 reais por dólar. Ou seja, a abrupta interrupção da expansão creditícia daquele ano, longe de gerar uma forte valorização do real, gerou apenas recessão.

Desde que o câmbio passou a ser flutuante, em 1999, o dólar só ficou abaixo de 1,70 real durante alguns meses de 2008 e de 2010/2011, justamente quando a economia estava crescendo às suas taxas mais vigorosas desde a introdução do real.

Esta explicação, por si só, já deveria servir para aplacar os temores do leitor e de todos os outros que, como ele, temem a "ininterrupta valorização" do real perante o dólar e a consequente "aniquilação da indústria nacional". Ao contrário do senso comum, é muito difícil manter uma moeda permanentemente forte. É necessário sabercombinar baixa expansão do crédito com contínuo crescimento econômico. Até hoje, apenas os suíços e os alemães souberam fazer isso por várias décadas.

1º resposta

Implícito em todo o raciocínio do leitor está a noção de que desvalorizar o câmbio — ou seja, inflacionar a moeda — é uma medida benéfica para a indústria e neutra para o resto da população. Nada mais falso. O que o leitor não disse explicitamente, mas deixou claro nas entrelinhas, é que medidas inflacionárias podem ser boas para alguns e neutras para o restante da população, de modo a criar um genuíno "ganho social" para o país. 

Embora o setor industrial realmente se beneficie com a desvalorização do câmbio, este benefício se dá em detrimento do bem-estar de todo o resto da população do país, que não apenas tem de arcar com um custo de vida mais elevado em decorrência da inflação de preços gerada pela inflação monetária, como ainda fica privada de obter bens importados a preços acessíveis. Como pode alguém defender a redução do poder de compra de vários em prol de bem-estar de alguns poucos? Isso é elitismo puro e duro.

Vejam o que houve recentemente no Brasil, que adotou a medida de desvalorização cambial defendida pelo leitor. Em julho de 2011, um dólar valia R$1,54. Isso significa que um brasileiro que ganhava um salário de R$3.000 tinha um poder de compra de US$1.948. Hoje, após a adoção das medidas defendidas pelo leitor, um dólar vale R$2,02. Logo, um brasileiro que ganha R$3.000 viu seu poder de compra cair para US$1.485. Para manter seu poder de compra inalterado, este brasileiro teria de ganhar hoje R$3.934.

Como pode esta abrupta redução no poder de compra da população brasileira ser defendida? Como ela pode ser boa para a economia? Como pode uma população estar em melhor situação se ela hoje possui mais dificuldades para adquirir bens estrangeiros? Se um país quer ser uma potência, como ele irá conseguir isso reduzindo o poder de compra de sua população? Todo esse raciocínio equivale a dizer simplesmente que dificultar o comércio é uma medida que cria riqueza para todos.

2ª resposta

Também implícito no raciocínio do leitor está a noção de que uma economia saudável é aquela que possui baixas taxas de desemprego. Outro erro. Baixas taxas de desemprego é algo que pode ser atingido da noite para o dia: basta colocar os desempregados para cavar buracos. Ou aumentar as contratações do setor público. Reza a lenda que a URSS tinha desemprego zero. Não duvido. Dizem o mesmo de Cuba. Não duvido. Mas de que adianta você ter um emprego se você não pode consumir nada com o seu salário? De que adianta você trabalhar e ganhar em troca um salário que não lhe dá nenhum poder de compra? De que adianta você trabalhar e não poder adquirir nada, pois o governo cria empecilhos? É a isso que uma sociedade deve aspirar? 

Ter um trabalho mas não poder usufruir os frutos do seu trabalho é escravidão. Por isso comunismo é escravidão. Você trabalha e não pode usufruir os frutos do seu labor. Por que defender isso?

Em termos de bem-estar, é preferível ser um desempregado alemão que ganha 800 euros de seguro-desemprego e que pode utilizar esta moeda (ainda) forte para adquirir bens estrangeiros a custos baixos, a ser um assalariado brasileiro que, com seus R$1.509 (rendimento médio real dos trabalhadores do setor privado com carteira assinada em 2011), tem hoje um poder de compra nominal de 576 euros, mas que, considerando todas as tarifas de importação, tem um poder de compra real muito abaixo disso. 

Pelo mesmo raciocínio, um desempregado espanhol ou português — que, com sua moeda forte, tem acesso a bens americanos e europeus a preços baixos — possui um padrão de vida mais elevado que o de um trabalhador médio brasileiro. Como pode alguém defender esta política de escravidão de todos em prol do bem-estar de poucos (do setor industrial)? 

Uma sociedade formada por uma minoria exportadora e rica e por uma maioria que não tem poder de compra já existe: a China. É para lá que os defensores do mercantilismo cambial querem nos levar. Prefiro ser desempregado em Portugal. O padrão de vida é muito maior.

Completando

Em outros artigos já foi explicado que o real empecilho à indústria nacional, longe de ser o câmbio, sempre foi a carga tributária, a inflação monetária, a burocracia, as regulamentações restritivas, a infraestrutura precária, os sindicatos e os encargos sociais e trabalhistas. O câmbio é apenas o bode expiatório favorito dos incompetentes que querem transformar uma inocente variável na única culpada por todos os malefícios estruturais e arcaicos da nossa economia. Portanto, aqueles que estão genuinamente preocupados com a indústria nacional deveriam parar de se preocupar com o câmbio e concentrar seus esforços em pressionar o governo a parar de oprimir o setor com todos os empecilhos acima listados. Não queiram reduzir o poder de compra da população. Isso é imoral.

Como não poderia deixar de ser, o leitor citou o fantasma da "desindustrialização americana", um mito criado pela mídia. Mito? Sim, mito. Não houve industrialização; houve aumento de produtividade. Não confiem em mim; olhem os dados e concluam. 


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Embora o emprego na indústria americana (linha azul) tenha se reduzido, a produção industrial do país (que é o que realmente importa para a economia) seguiu crescendo. Isso se chama aumento de produtividade.

Após fazer terrorismo com a falaciosa situação industrial americana, o leitor faz a pergunta fulminante: "Neste caso, no final das contas, estaríamos em melhor ou pior situação?"

Não obstante o temor do leitor em relação ao câmbio não possuir fundamento, vamos supor aqui, para o bem do debate, que uma liga de alemães e suíços tomasse o controle do BACEN e passasse a impor sua filosofia monetária. Imaginemos também que, como que por mágica, repentinamente o Brasil passasse a apresentar baixas taxas de expansão do crédito e sólidas taxas de crescimento econômico. Em suma, o real passaria a se valorizar continuamente. Vamos supor também que não haja nenhuma alteração no arcabouço tributário, regulador e estrutural da economia. O Brasil passa a ter uma moeda valorizada mas sem ter uma economia competitiva (eu falei que era necessário uma mágica para isso acontecer). Creio que era essa arranjo que o leitor tinha em mente. 


"Neste caso, no final das contas, estaríamos em melhor ou pior situação?"

Em melhor situação, sem a menor sombra de dúvida. E, se você discorda, então, por coerência, você não apenas tem de recusar qualquer proposta de aumento salarial, como também tem de dizer que, quanto maior for o seu aumento salarial, pior será a sua situação — ou, o que dá no mesmo, dizer que quanto maior for a sua reduçãosalarial, melhor será a sua situação. Quem defende desvalorização cambial está defendendo a redução do poder de compra da população. E defender redução no poder de compra é o mesmo que defender redução salarial. É incoerência ser a favor de uma medida (desvalorização da moeda) e ser contra a outra (redução salarial).

Recentemente, passei uns dias na Europa. Portugal, Áustria, Itália e Suíça. Vou tirar Suíça e Áustria da equação porque sei que muitos irão protestar qualquer comparação destes países ao Brasil. Vou me concentrar apenas em Portugal. As notícias que chegam aqui é de que o país está à beira da catástrofe e que, em comparação, o Brasil é um paraíso. Puro sensacionalismo. Um trabalhador português, por causa de sua moeda forte, possui, por todos os motivos citados acima, um padrão de vida invejável para a classe média brasileira. Ele tem acesso a produtos importados a preços baixos de todos os países do mundo. Fartura de oferta é o que não lhe falta. Acessórios que, para os brasileiros são de luxo, para um português são corriqueiros. Questões culturais e morais à parte, um acesso mais fácil e mais barato a serviços e bens de consumo é justamente o que define o padrão de vida de uma sociedade.

Os carros que circulam corriqueiramente em Lisboa — oriundos majoritariamente da Alemanha, da França e da Itália — podem ser vistos apenas nos bairros mais chiques de São Paulo. Um carro popular europeu possui como itens de série apetrechos que no Brasil são opcionais caríssimos. No bairro do Chiado, você encontra comércio mais diversificado, mais elegante, mais vibrante e (muito) mais barato do que na Oscar Freire. Fui à FNAC de Lisboa à procura do iPhone 5. "Desculpe, mas está esgotado em todo o país. A próxima leva chega semana que vem." No Brasil, o iPhone 5 não se esgotou. Ele simplesmente não chegou. A rede El Corte Inglés, com oito andares de comércio de todos os tipos, faz qualquer shopping brasileiro parecer uma coleção de lojinhas de bairro (mas cujos preços fariam um suíço repensar seu conceito de riqueza). 

Um país como o Brasil, que possui reduzida oferta de bens estrangeiros e preços estratosféricos, realmente está em melhor situação do que um país em situação contrária? Se o Brasil fosse realmente invejável e a Europa estivesse realmente tão mal, não seriam os brasileiros que estariam invadindo Lisboa à procura de bens de consumo, mas sim o contrário.

Concluindo

Sim, uma moeda forte seria uma bênção para a população brasileira. Ela representaria um aumento do poder de compra do trabalhador e, consequente, um aumento em seu padrão de vida. Ela teria o mesmo efeito de um aumento salarial permanente. Ela imediatamente daria aos brasileiros acesso barato a uma farta quantia de bens e serviços estrangeiros, aumentando enormemente nosso padrão de vida. Os nacionalistas que hoje batem no peito para elogiar o Brasil e escarnecer a situação europeia certamente nunca saíram do país e não têm a mínima ideia da invejável qualidade de vida do cidadão médio nos países mais atrasados da Europa.

Mas uma moeda forte impõe certas disciplinas que, se não forem obedecidas e respeitadas, farão várias vítimas. Por exemplo, dado que uma moeda forte não combina com uma expansão pródiga do crédito, esta ausência de inflação monetária não permitirá a continuidade de atividades econômicas artificiais, as quais só podem ser sustentadas justamente por meio de contínuas expansões monetárias. Pense em um restaurante com música ao vivo tocada por uma banda barulhenta e desafinada. Ninguém realmente quer ouvir aquilo, mas acaba, por educação, pagando o couvert. O restaurante seria a atividade econômica sólida e a banda seria a atividade econômica artificial. Em um ambiente de moeda forte, não manipulada, esta banda não teria emprego. Seus integrantes teriam de procurar outras atividades mais produtivas. Já em um ambiente de moeda fraca e inflacionada, haveria dinheiro para o couvert desta banda. Mas o ônus viria na forma de pratos e bebidas mais caros para os clientes, bem como serviços mais relaxados e de menor qualidade.

Portugal e Espanha sempre possuíram moedas fracas (o escudo e a peseta, respectivamente). A entrada no euro repentinamente lhes trouxe um poder de compra maior que o do franco suíço. O padrão de vida de espanhóis e portugueses elevou-se substancialmente. Hoje, não é do euro que eles querem sair. Há apenas uma parcela improdutiva da sociedade — formada majoritariamente por sindicatos de funcionários públicos e privados — que está protestando contra privatizações e contra necessários cortes em seus salários.

Por isso, um país com moeda forte tem de ser produtivo, caso contrário haverá desempregados. Não há espaço para empregos em atividades econômicas artificiais, para as quais não há genuína demanda. Não há espaço para malabaristas de sinal ou para flanelinhas ganharem dinheiro. Ou eles procuram atividades produtivas, ou definham. Da mesma forma, uma moeda forte não dá espaço para políticos e burocratas criarem medidas — como a expansão do crédito — que beneficiem grupos de interesse e determinadas camadas eleitorais. 

Quanto à constatação final do leitor, que diz que "uma moeda valorizada funcionaria como refúgio para os investidores (como o franco suíço até um tempo atrás), o que reduziria drasticamente os juros de captação e seria um estímulo para o governo se endividar mais," há um erro em sua conclusão final. Dizer que uma economia funcionaria com refúgio para investidores e que isso reduziria os juros de captação está longe de representar um problema. Dizer que isso seria um estímulo para o governo se endividar ainda mais é uma inversão da realidade. É a moeda fraca que estimula o endividamento, e não a moeda forte. O Brasil sempre teve moeda fraca, nunca parou de aumentar seu endividamento bruto (que é o que realmente conta) e nunca demonstrou qualquer preocupação quanto a isso. Já os países do euro, moeda forte, estão sendo obrigados a apresentar medidas de redução de suas dívidas, algo impensável no Brasil. 

No mais, gostaria que o leitor me citasse quais os genuínos empecilhos que uma moeda fraca apresenta ao crescente endividamento estatal. Não consigo pensar em nenhum. Por último, mesmo que o raciocínio do leitor fosse correto, tal medida (aumento do endividamento) deveria ser imputada ao estado, aos seus políticos, aos seus burocratas e aos cidadãos que toleram tais desmandos, e não à moeda forte.

Como disse Jesús Huerta de Soto, uma moeda forte coíbe e limita as decisões arbitrárias de políticos e burocratas. Ela disciplina o comportamento de todos os agentes que participam do processo democrático. Ela promove hábitos morais de comportamento humano. Em suma, ela restringe as mentiras e a demagogia, e facilita e amplia a transparência e a verdade nas relações sociais. Nem mais e nem menos.

Por que não querer isso?

Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

sábado, 27 de outubro de 2012

EMPOBRECIMENTO PELO JUDICIÁRIO

Karl Marx ensinou que o capitalismo iria inevitavelmente entrar em colapso por causa do empobrecimento generalizado; um processo pelo qual um crescente número de pessoas seria deixado à míngua por um impiedoso sistema de mercado. Mas Marx estava enganado. O capitalismo não resultou em empobrecimento progressivo. É a interferência governamental na esfera privada que provoca o empobrecimento e não há melhor exemplo que a implacável tirania dos nossos tribunais de divórcio.


Mais do que qualquer outro fator, a pobreza é um atributo de um lar monoparental. Centros de pesquisas sociológicas, tais como o West Coast Poverty Center da Universidade de Washington diz que as mudanças “na estrutura das famílias nos últimos 40 anos contribuiu para o aumento nas taxas de pobreza”. Parece que a pobreza está em alta principalmente por conta do declínio do número de lares de constituição biparental, e não devemos ficar surpresos ao constatarmos que o estado está envolvido nesse declínio.

De acordo com o U.S. Census Bureau (2009), o ganho médio das famílias biparentais foi de US$71.830 enquanto a média para os lares governados por homens solteiros ficou em US$ 48.084 e os domicílios de mulheres solteiras em US$32.597. Por conta da família poder ser considerada a unidade econômica mais básica e já ter sido o centro da atividade econômica em uma era caracterizada pelas fazendas e empreendimentos familiares, é o caso de perguntar o que causou a erosão da família. Devemos também perguntar acerca da expectativa de aumento dessa erosão e como isso pode implicar tanto na liberdade econômica quanto na prosperidade nacional, pois os Estados Unidos sofreram uma erosão familiar. E também sofreu uma despercebida desmoralização tanto sociológica quanto econômica – especialmente enquanto o estado avançou agressivamente em prol do “resgate” de um número crescente de mães solteiras.

Para esclarecer esse assunto, entrevistei o professor Stephen Baskerville, autor do memorável livro Taken Into Custody: The War Against Fathers, Marriage, and the Family. De acordo com Baskerville, o empobrecimento que ocorre nos dias de hoje não é um simples caso de mães empobrecidas com filhos. Os pais também estão se tornando mais pobres com o sistema de divórcio. “Em relação à questão do porque tantos pais expulsos estão desempregados ou paupérrimos, não é difícil responder, assim que se entende como funciona a corte” disse Baskerville. “Assim que as crianças são separadas dos seus pais, nem a corte nem a burocracia têm incentivos para manter continuamente a solvência – de fato, um pai solvente é uma ameaça – então eles alegremente reduzem-no à penúria. No final das contas, uma nova leva de pais está constantemente sendo trazidos para o sistema”.

Eu perguntei para Baskerville se esse problema não se tratava apenas de pais caloteiros que se recusam a sustentar seus filhos. Baskerville respondeu: “O estereótipo do pai caloteiro é quase em sua totalidade uma propaganda feminista. A maioria desses pais não abandonaram seus filhos. Eles tiveram seus filhos roubados pelas cortes familiares”. Baskerville desenhou um panorama de corrupção judicial e legal onde, tipicamente, o pai é despejado de casa para virar um sem-teto. Se o pai recusar-se a gastar grandes quantias de dinheiro com um advogado caro, ele é penalizado com injustificadas – e elevadas– obrigações monetárias para com a criança. É um caso de pilhagem, com a diferença de acontecer sob a letra da lei.

“Um pai pode ser obrigado por uma corte a pagar 70%, 80% ou 90% [...] dos seus ganhos com pensão para o filho” comentou Baskerville. E se esses pais ficarem em débito e não puderem pagar eles são sumariamente presos. “Temos casos de pais presos há dez anos sem julgamento”, lembrou Bakerville. “E quase nunca existe um julgamento com júri em casos de pensão alimentícia. A aplicação da lei varia de jurisdição para jurisdição [...] O que é especialmente perigoso nesses casos de divórcio não é o fato dos pais terem de pagar quantias estratosféricas [...] É o fato de isso ser um suborno que incentiva as mães a se divorciarem. O que elas ganham nesses casos é livre de imposto. A esposa recebe uma fortuna inesperada e sem ter de pagar impostos por ela. Em outras palavras, você pode criar suas crianças como bem entender e ser pago por isso”.

A separação das famílias é, portanto, encorajada por um sistema que recompensa um lado e saqueia o outro, trazendo grandes oportunidades para os advogados. “É um problema gigantesco”, afirmou Baskerville, “que envolve entre 24 e 25 milhões de crianças. E não é surpreendente que a vasta maioria dos pedidos de divórcio são feitos pelas mulheres. A razão usual é a mulher dizer que não se sente amada”. O que se segue é algo chamado “divórcio unilateral”. Sob este sistema o casamento não é um contrato obrigatório, embora a Constituição dos EUA diga que os estados não podem aprovar leis que anulem a execução dos contratos. As implicações legais, sociológicas e econômicas são acachapantes. O casamento é agora um contrato que pode ser quebrado por qualquer uma das partes por qualquer capricho, e a parte de boa fé está sujeita à perdas financeiras sob a mão da parte que quebra os contratos, com a ajuda de juízes e advogados.

Não é a lei do contrato a base da nossa economia? Como a unidade da família é uma unidade econômica, não podemos subestimar as oportunidades que esse roubo “legalizado” representa. “Abriram as comportas da pilhagem” disse Baskerville. “A mulher recebeu o poder de ter uma aliança com o estado [...] e o pai está sozinho do outro lado [...] E sim, isso pode acontecer com um homem que sabe jogar o jogo do sistema, de modo que ele também pode saquear a mulher”. Assim, o casamento passa a parecer-se com a famosa teoria de jogo do “Dilema do Prisioneiro”, onde o primeiro a trair é o vencedor.

De acordo com Baskerville, há um movimento que encoraja as mulheres a acusarem seus maridos de violência doméstica, mesmo se ela não acontecer; tais acusações são parte de uma fórmula, que representa um meio para determinado fim. Sobre esse assunto, há pouco a se dizer. Em termos práticos isso não existe. “Qualquer homem que casa está vulnerável a essa ação” comenta Baskerville. E então as cortes são arbitrárias: “As cortes também não hesitam em convocar os pais demasiadas vezes até eles perderem seus empregos e irem presos por estarem desempregados. Não é incomum um pai ser convocado para uma corte cem vezes”.

Sob esse sistema, todas as esposas estão efetivamente casadas com o estado e todas as crianças estão sob a custódia do estado, de modo que todo homem é meramente convidado em sua própria casa – sujeito a despejo imediato a qualquer hora sem o devido processo da lei. “A ameaça mais direta à família nos dias de hoje são os tribunais de divórcio” comentou Baskerville. Eles encorajam o divórcio, que na maioria esmagadora das vezes é pedido pela mulher, e “é uma fórmula de enorme ganho para os advogados”. Além disso, disse ele, ninguém está lutando pelos direito dos pais porque “as pessoas não querem admitir que algo tão grande e tão maldoso está acontecendo”.

Por fim, Baskerville quer que sejamos honestos: “Se nós realmente acreditamos que nossa atual política de divórcio é apropriada, deveríamos, pelo menos, ter a honestidade de avisar os jovens que o casamento não dá a eles qualquer proteção contra a tomada dos seus filhos pelo governo, além de tudo mais que eles tiverem. Vamos avisá-los que durante seus casamentos, mesmo se eles se mantiverem fiéis aos seus votos, eles podem perder as crianças, suas casas, suas economias, seus ganhos futuros, sua liberdade e até mesmo suas vidas”.

Por: POR JEFFREY NYQUIST Publicado no Financial Sense.