terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

LULA E A FALÊNCIA DA "DOUTRINA GARCIA"

Lula sabe mais que os “intelectuais progressistas” reunidos em seu instituto para, nas palavras do assessor Luiz Dulci, “definir um plano de trabalho para o desenvolvimento e integração” da América Latina. Há muito reduzidos à condição de intelectuais palacianos, os convidados celebraram os “avanços” na integração regional e a miraculosa clarividência do ex-presidente. O anfitrião, contudo, pediu-lhes algo diferente da bajulação habitual: a formulação de uma “doutrina” da integração latino-americana. No décimo-primeiro ano de poder lulista, o pedido traz implícito o reconhecimento de um fracasso estrondoso de política externa — e da crise regional que se avizinha. 

“Não tem explicação, depois de mais de 500 anos, eu inaugurar a primeira ponte entre Brasil e Bolívia; não tem explicação, depois de mais de 500 anos, eu inaugurar a primeira ponte entre Brasil e Peru”, proclamou o ex-presidente, sem ser corrigido por nenhum dos intelectuais que decoravam o ambiente. O trem inaugural da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré chegou a Guajará-Mirim em abril de 1912. Os presidentes Café Filho e Paz Estenssoro inauguraram a Estrada de Ferro Brasil-Bolívia em Santa Cruz de La Sierra, em janeiro de 1955. A Ponte da Amizade, sobre o Rio Paraná, uma ousada obra de engenharia, foi inaugurada em 1965, conectando o Paraguai às rodovias brasileiras e ao porto de Paranaguá. As pontes que Lula inaugurou estavam previstas na Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), aprovada na conferência de chefes de Estado de Brasília, em 2000, no governo FHC. De lá para cá, sob o lulismo, integração regional converteu-se em eufemismo para alianças políticas entre governantes “progressistas”. 

Desde 2003, com a nomeação de Marco Aurélio Garcia como assessor especial da Presidência, a política brasileira para a América Latina foi transferida da alçada do Itamaraty para a do lulopetismo, impregnando-se de reminiscências políticas antiamericanas, terceiro-mundistas e castristas. O coquetel conduziu-nos ao impasse atual, que Lula é capaz de identificar mesmo se tenta disfarçá-lo pelo recurso à bazófia autocongratulatória. 

A “Doutrina Garcia” acalenta a utopia de uma integração impulsionada por investimentos estatais e de grandes empresas financiadas por recursos públicos. Contudo, a estratégia de expansão regional do “capitalismo de estado” brasileiro esbarrou nas resistências nacionalistas de argentinos, bolivianos e equatorianos, que assestaram sucessivos golpes em negócios conduzidos pela Petrobras e por construtoras beneficiadas por empréstimos privilegiados do BNDES. Numa dessas amargas ironias da história, o espectro do “imperialismo brasileiro” reemergiu como acusação dirigida por líderes latino-americanos “progressistas” contra o governo “progressista” de Lula. A “Doutrina Garcia” rejeita a ideia de livre comércio, que funcionou como pilar original do Mercosul. A Argentina dos Kirchner aproveitou-se disso para violar sistematicamente as regras do Mercosul, desmontando o edifício da zona de livre comércio. No seu instituto, Lula denunciou a “preocupação maior de relação preferencial com os EUA ou com a Europa ou com qualquer um, menos entre nós mesmos”. Entretanto, na celebrada última década, a América Latina não aprofundou o comércio intrarregional, limitando-se a estabelecer uma “relação preferencial” com a China, que absorve nossas exportações de commodities. O primitivismo ideológico impede até mesmo a conclusão de um tratado comercial Brasil-México, elemento indispensável em qualquer projeto de integração latino-americana. 

A “Doutrina Garcia” almeja promover a liderança regional do Brasil, preservar o regime autoritário cubano e erguer uma barreira geopolítica entre América Latina e EUA. Em busca da primeira meta, o Brasil colidiu com as pretensões concorrentes da Venezuela de Hugo Chávez, que criou a Aliança Bolivariana das Américas (Alba). A concorrência entre o lulopetismo e o chavismo paralisa a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), esvaziando de conteúdo suas reuniões de cúpula. Em busca das outras duas metas, que compartilha com o chavismo, o Brasil ajudou a converter a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) numa ferramenta de proteção da ditadura castrista e de desmoralização da Carta Democrática da Organização dos Estados Americanos (OEA). Dias atrás, Cristina Kirchner definiu a ascensão de Cuba à presidência rotativa da Celac como o marco de “uma nova época na América Latina”. Ela tem razão: é o fim da curta época na qual os Estados da região levaram a sério seus proclamados compromissos com os direitos humanos e as liberdades públicas. 

Distraídos, os intelectuais palacianos nada perceberam, mas a falência da “Doutrina Garcia” foi registrada no radar de Lula. De um lado, abaixo do celofane brilhante da Unasul e da Celac, desenvolve-se um processo que deveria ser batizado como a desintegração da América Latina. A principal evidência disso encontra-se na emergência da Aliança do Pacífico, uma área de livre comércio formada sem alarido por México, Colômbia, Chile e Peru, aos quais podem se juntar o Panamá e outros países centro-americanos. De outro, lenta mas inexoravelmente, desmorona a ordem castrista em Cuba, aproxima-se uma incerta transição na Venezuela chavista e dissolve-se o consenso político kirchnerista na Argentina. Quando clama por uma nova “doutrina” da integração latino-americana, o ex-presidente revela aguda consciência da encruzilhada em que se colocou a política externa brasileira. 

A consciência de um problema é condição necessária, mas não suficiente, para formular suas possíveis soluções. Lula e seu cortejo de intelectuais não encontrarão uma “doutrina” substituta sem lançar ao mar o lastro de anacronismos ideológicos do lulopetismo. Isso, porém, eles não farão. Por: Demétrio Magnoli Fonte: O Globo, 31/01/2012

O PROBLEMA CHAMADO LULA

Eu acho que Lula estava sendo honesto quando dizia que iria ser Palestrante dali para frente, e que assistiria a Copa do Mundo como espectador e não como Presidente no Terceiro Mandato. 

Infelizmente, duas coisas aconteceram. 

Fracassou como Palestrante, porque não se preparou e infelizmente não se preocupou com conteúdo, essencial para o público ouvinte. 

FHC é um excelente palestrante porque tem conteúdo e cobra bem menos. 

Segundo, o seu câncer lhe trouxe a visão de finitude e a necessidade de que falta agora tempo para fazer tudo o que queria, neste caso para o Brasil. 

Foi o mesmo câncer que fez Jobs lançar tudo o que sonhava e fez a Apple dar o salto quântico que deu. 

Só que Dilma também tinha um sonho, que não era o bem do Brasil, como todos imaginam. 

A agenda dela é a inserção da Mulher, na qual nós a apoiamos totalmente, e ela está percebendo que seu governo está um fracasso, e se continuar assim nenhuma mulher será eleita novamente. 

Uma das razões do fracasso é o Lula, a outra é o José Dirceu. 

Nenhum empresário acerta algo com a Dilma, sem conversar antes com o Lula e o José Dirceu, separadamente. 

Sabem que sem a benção dos dois o projeto não andará, mesmo sendo aprovado pela Dilma. 

Por isto, este país está totalmente parado em termos de investimentos, apesar do custo de capital baixo, conseguido a duras penas pela Dilma. 

São poucos os projetos que agradam Lula, Dirceu e Dilma ao mesmo tempo. Aliás, as chances são zero. 

Dilma já conseguiu minar o Dirceu, e brilhantemente todos acham que foi o Supremo. 

Dilma também está minando Lula, permitindo que ele seja investigado. 

O que obviamente piorou a sua situação, porque os dois sabem disto e estão furiosos. 

A guerra com o Lula está agora declarada. 

Ela fez um pronunciamento contra o Terceiro Mandato de Lula, que ninguém até agora percebeu. 

Ela disse que está procurando Ministros nesta sua próxima reforma Ministerial que estejam dispostos a ficar seis anos. (E não dois.) 

Com esta Lula não esperava. A guerra está declarada. A agenda Mulher da Dilma vem primeiro. 

Mas nenhum país cresce se todos precisam conversar com três manda chuvas antes de aprovar um projeto. 

E os manda chuvas estão agora brigando entre si. 

Dilma daqui nove meses, estará em FIM DE MANDATO, e aí ninguém irá obedecê-la de vez, a não ser que fique claro que ela irá se reeleger, e não o Lula. 

O nosso PIB está pífio não por razões de Economia, mas por questões Administrativas. 

Os poucos administradores de esquerda, que o PT possui, precisam dizer ao Dirceu e ao Lula que eles estão atrapalhando a causa Socialista. Eles tiveram a chance deles, agora é a vez da Mulher. Muito mais importante. 

Talvez assim eles ouçam. Por: Stephen Kanitz 

INTERESSE NACIONAL, SOBERANIA E DEMOCRACIA

O resultado da eleição presidencial nos EUA mostrou um país literalmente rachado ao meio. O Parlamento grego aprovou por 153 votos (em 300) reformas demandadas por credores oficiais. A Alemanha de hoje está profundamente dividida quanto à extensão de seu papel na resolução da crise do euro. A transição de poder na China foi marcada por longas e intensas disputas internas. O governo espanhol vive dúvidas hamletianas sobre formalizar ou não um pedido de ajuda extra ao resto da Europa. A questão de como se caracteriza, e se exerce na prática, o "interesse nacional" e a soberania de um país (no curto, no médio e no longo prazos) voltou a ficar relevante para o debate. Inclusive no caso do Brasil e dos outros três do Bric.


George Kennan, brilhante intelectual e diplomata norte-americano, não tinha o extraordinário sentido de marketing de Jim O'Neill, o economista da Goldman Sachs que cunhou o acrônimo Bric para designar os mesmos quatro países que Kennan havia chamado, quase uma década antes, de "países-monstros" (monster countries) do mundo: China, Índia, Rússia e Brasil - além dos EUA.

Pensando mais no seu país, Kennan notou que países de grandes território, população e dimensão econômica teriam uma característica comum, que chamou de hubris of inordinate size e definiu como "uma certa falta de modéstia na autoimagem nacional do grande Estado - um sentimento de que o papel do país no mundo deve ser o equivalente a seu tamanho, com a consequente tendência relativa a presunçosas pretensões e ambições... Em geral, o país de grande dimensão tem uma vulnerabilidade a sonhos de poder e glória para os quais são menos facilmente inclinados os países menores".

Em texto para discussão publicado dois anos e meio atrás procurei avaliar se seria possível extrair algo relevante para o Brasil da experiência dos três outros Brics na definição de seus respectivos interesses nacionais. Três daquelas "lições" me parecem ainda mais válidas hoje.

A primeira é que China, Índia e Rússia têm objetivos de longo prazo em termos de seus interesses nacionais e, portanto, as políticas e ações domésticas e internacionais pelas quais buscam esses objetivos devem ser políticas de Estado, e não do governo de turno (como a busca de segurança alimentar, energética e militar). Políticas que não dependem de pessoas específicas, de culto à personalidade do grande líder, do grande timoneiro, do grande guia e genial mentor.

A segunda reside na percepção de que, na área internacional, a apropriada execução das políticas de Estado requer uma cuidadosa e realista avaliação do que os chineses chamam de comprehensive national power, que é constituído pelos recursos econômicos, políticos, militares, diplomáticos, científico/tecnológicos e culturais de que dispõe o país. Avaliações irrealistas desses recursos podem levar a patéticas aventuras e a discursos marcados pela dissonância cognitiva entre o querer e o poder.

A terceira está relacionada ao fato de que os três países-monstros pensam e exercitam a busca de seus interesses nacionais em termos de círculos concêntricos, que vão dos problemas domésticos ao círculo mais amplo dos problemas globais, passando pelos círculos intermediários, que os analistas desses países chamam de "vizinhança imediata" e "vizinhança estendida". China, Índia e Rússia e suas lideranças sabem que o peso, a influência, o prestígio e a força da voz de cada um no mundo é função de sua capacidade de equacionar problemas domésticos e do reconhecimento de sua gravitas por parte de suas "vizinhanças".

Nesse contexto, e indo além dos Brics, cabe perguntar: regimes democráticos têm mais ou menos dificuldades para definir com clareza seus interesses nacionais? Em livro recente, o decano dos estudos americanos sobre poder (hard and soft) nas relações internacionais, Joseph S. Nye Jr., escreve: "Numa democracia, o interesse nacional é simplesmente aquilo que os cidadãos, após deliberação apropriada, afirmam que é... Lideranças políticas e especialistas podem apontar para os custos de indulgência em certos valores, mas se um público informado discorda, os especialistas não podem negar a legitimidade destas opiniões".

É claro que o fundamental dessa visão é a expressão "após deliberação apropriada por parte de um público informado". O que nem sempre ocorre em algumas democracias. E, se mesmo após tais deliberações por parte de um público informado, emerge um país profundamente dividido ou uma posição que não seja muito mais que a expressão de um vago desejo?

A expressão de desejos coletivos não se traduz, naturalmente, em políticas que transformem os desejos em realidade. Como escreveu Paul Volcker em seu relatório para a ONU (Boas Intenções Corrompidas: o Escândalo do Programa Petróleo por Alimentos): "Após mais de 50 anos de experiência, tive inúmeras oportunidades de observar em primeira mão a frustração das boas intenções: debates infindáveis, defesa de interesses muito especiais, falta de visão ampla e oportunidades perdidas entre o impasse político e a inépcia administrativa".

A propósito, quero concluir lembrando o moto constitucional de um grande país, o Canadá, que pode ser visto como síntese de seu interesse nacional: "Peace, order and good government". Trivial e genérico como possa parecer a alguns, é seguramente uma tríade muito mais relevante, para qualquer país, do que "conflito, desordem e mau governo", infelizmente, uma tríade muito mais disseminada neste nosso mundo de quase 200 países legalmente soberanos. Cada um à sua maneira, e com seus conflitos de interesses internos, tentando situar onde estaria seu "interesse nacional" em meio a este espesso nevoeiro da segunda década do século 21. 
Por: PEDRO MALAN  O Estado de S.Paulo - 11/11

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

QUATRO MIL ANOS DE CONTROLE DE PREÇOS


Comentário do IMB:

A economia brasileira opera como se estivesse separada em dois compartimentos. Há aqueles setores em que o governo interfere muito e há aqueles setores em que ele interfere bastante. 

Interferência estatal existe em cada canto da economia, pois o governo está sempre tributando e regulando — isto é, confiscando dinheiro e impondo normas incompreensíveis e impossíveis de serem obedecidas integralmente. No entanto, naqueles setores em que o governo interfere menos, ou seja, nos quais ele se limita a tributar e impor ordens, raramente se ouviu falar em problemas de escassez. Quando foi que você ouviu falar de crise na indústria de lápis? Ou na indústria de papelão? Ou na indústria de sorvetes? Na indústria de parafusos? E na indústria de eletrônicos, então? Quando foi que você ouvir falar de escassez no setor alimentício? Quando foi que um restaurante a quilo deixou de abrir porque não havia comida? 

Nestes setores, oferta e demanda, por mais oprimidas que sejam pelos impostos e regulamentações do governo, conseguem se mover sincronizadamente, e o consumidor jamais temeu qualquer tipo de escassez nestas áreas.

É justamente naqueles setores em que o governo faz sua interferência mais violenta, isto é, por meio decontrole de preços, que a escassez e o desabastecimento são a regra, e não a exceção. Antes de tudo, é necessário entender que a escassez não é necessariamente a completa ausência de um produto. Há várias formas de escassez. A escassez explícita é aquela vista atualmente no setor da saúde pública, em que faltam medicamentos e atendimentos, e as consultas têm de ser agendadas com até um ano de antecedência. 

Mas há também outros graus de escassez. Por exemplo, um engarrafamento é uma escassez. Um bem (rua) está sendo ofertado a preço zero para uma demanda (carros) que tende ao infinito. Um aeroporto congestionado, em que aviões chegam a ficar uma hora esperando autorização para decolar é outro exemplo de escassez: a administração do aeroporto é estatal e não sabe praticar discriminação de preços, cobrando tarifas mais altas para as companhias aéreas operarem em horários de pico, e mais baixas para horários de menos demanda. E o setor privado é impedido de construir aeroportos para suprir essa demanda.

Operadoras de celulares que não entregam o prometido ou cujas ligações vivem caindo são outro exemplo de escassez. O governo, por meio de sua agência reguladora, fechou o mercado para apenas algumas poucas empresas, impedindo que grandes empresas estrangeiras (Vodafone, Verizon, AT&T Mobility, T-Mobile, Orange, entre outras) venham operar aqui. É a agência reguladora que decide quem pode e quem não pode operar no Brasil, um arranjo que vai totalmente contra a ideia de livre mercado e livre concorrência.

Atualmente, é o setor energético quem está na mídia. Riscos de apagão e de desabastecimento de gasolina são fenômenos que assombram o brasileiro a cada dois anos em média. E isso não deveria ser surpresa alguma: são dois setores sob completo controle do governo; dois setores cujos preços dos serviços são diretamente decretados pelo governo, e cuja oferta, embora não seja monopolista em teoria, o é na prática. 

Por exemplo, se uma empresa quiser prospectar petróleo aqui no Brasil e nos vender, ela não pode. Os preços cairiam muito, e preços baixos afetariam as receitas da Petrobras, que é uma empresa utilizada para fins políticos. Ademais, após mais de 40 anos de monopólio (quebrado apenas em 1997), a Petrobras já se apossou das melhores jazidas do país. Nem tem como alguém concorrer. É como você chegar atrasado ao cinema: os melhores assentos já foram tomados, e você terá de se contentar com os piores.

Após ter pomposamente declarado autossuficiência em 2006, a Petrobras não pára de aumentar suas importações de petróleo, o que mostra que a estatal é incapaz até mesmo de controlar sua oferta.

No setor elétrico, o controle estatal faz com que o país mais bem dotado de recursos hídricos no mundo (recurso este que gera energia barata) tenha uma das contas de energia mais caras do mundo. Óbvio. Dado que se trata de um setor extremamente regulado e sem livre concorrência, o resultado não poderia ser outro. Não apenas a conta é alta, como há constantes riscos de apagão por escassez de oferta. É necessária uma incompetência alarmante para se chegar a um arranjo em que falta oferta mesmo quando se cobra um dos preços mais altos do mundo. 

Há coisas que apenas um monopólio estatal pode fazer por você.

A seguir, um sucinto relato do histórico dos controles de preços ao longo da história humana, uma praga que aparentemente nunca terá fim. Como perfeitamente sintetizou Roberto Campos, "Como as damas balzaquianas, de vida airada, o tabelamento de preços rejuvenesce à medida que se esquecem as experiências passadas. É a teoria dos que não têm teoria."

O argumento contra os controles de preços não é meramente um exercício acadêmico, algo restrito aos manuais de economia. Há um histórico de quatro mil anos de catástrofes econômicas causadas pelos controles de preços. Este histórico está parcialmente documentado em um excelente livro intitulado Forty Centuries of Wage and Price Controls (Quarenta Séculos de Controles de Preços e Salários), de Robert Schuettinger e Eamon Butler, publicado originalmente em 1979.

Os autores começam citando Jean-Philippe Levy, autor de The Economic Life of the Ancient World, que observou que no Egito, durante o século III a.C., "havia uma verdadeira onipresença do estado" na regulação da produção e da distribuição de grãos. "Todos os preços foram congelados por decreto em todos os níveis". Este "controle assumiu proporções assustadoras. Havia um exército de burocratas que inspecionavam diariamente o cumprimento do decreto".

Os agricultores egípcios ficaram tão enfurecidos com esse controle de preços, que vários deles simplesmente abandonaram suas fazendas. Ao final do século, "a economia egípcia havia entrado em colapso, junto com sua estabilidade política".

Na Babilônia, 4.000 anos atrás, o Código de Hamurabi continha uma barafunda de regulamentações e controle de preços. "Se um homem contratar um camponês, deverá dar a ele oito gurs (unidade de medida hamurábica) de cereais por ano"; "Se um homem contratar um boiadeiro, deverá dar a ele seis gurs de cereais por ano"; "Se um homem alugar um barco de seis toneladas, deverá pagar um sexto de um shekel de prata por dia por esse aluguel". E os decretos não paravam mais.

Tais imposições "sufocaram o progresso econômico no império por vários séculos", como mostram os registros históricos. Assim que estas leis foram implementadas, "houve um acentuado revés na prosperidade das pessoas".

A Grécia antiga também impôs controle de preços sobre cereais e estabeleceu "um exército de fiscalizadores nomeados para a função de estabelecer o preço do cereal em um nível que o governo ateniense julgasse justo". Esse controle de preços grego inevitavelmente levou à escassez de cereais. Por sorte, vários empreendedores corajosamente conseguiram se esquivar destas leis ignaras e, com isso, salvaram milhares da inanição. Não obstante a imposição de pena de morte para aqueles que desobedecessem às leis de controle de preços, tais leis "eram praticamente impossíveis de serem impingidas". A escassez criada pelo controle de preços criou grandes oportunidades de lucro no mercado negro, para a grande sorte do povo grego.

Em 293 d.C., o imperador romano Diocleciano gerou uma grande inflação de preços ao aumentar enormemente a quantidade de dinheiro em circulação. Em seguida, ele "estipulou um teto de preços para carnes, cereais, ovos, roupas e outros bens, e instituiu a pena de morte para qualquer um que vendesse seus artigos a um preço maior do que o estabelecido". Os resultados, como Schuettinger e Butler explicam em seu livro citando um historiador antigo, foram que "as pessoas simplesmente pararam de colocar seus bens à venda no mercado, dado que elas não mais poderiam obter um preço sensato por eles. Isso aumentou tão acentuadamente a escassez, que, após a morte de várias pessoas, a lei foi finalmente revogada."

Já em épocas mais modernas, foi por muito pouco que o exército revolucionário de George Washington não morreu de fome no campo de batalha graças ao controle de preços sobre alimentos que havia sido instituído pelo governo da Pensilvânia e por outros governos coloniais. A Pensilvânia impôs controle de preços especificamente sobre "aquelas mercadorias imprescindíveis para o exército", criando uma desastrosa escassez de tudo que o exército mais necessitava. O Congresso Continental sabiamente adotou uma resolução anti-controle de preços no dia 4 de junho de 1778, a qual dizia: "Considerando que já foi descoberto pela experiência que limitações impostas aos preços das mercadorias não apenas são ineficazes para o objetivo proposto, como também são igualmente geradoras de consequências extremamente maléficas, fica resolvida a recomendação aos vários estados para que revoguem ou suspendam todas as leis limitando, regulando ou restringindo o preço de qualquer artigo". 

Ato contínuo, escreveram Schuettinger and Butler, "Já no outono de 1778, o exército já estava suficientemente bem provido como resultado direto dessa mudança de política".

Os políticos franceses repetiram os mesmos erros após sua revolução, instituindo a "Lei de Maximum" em 1793, a qual impôs controle de preços sobre cereais e, depois, sobre uma longa lista de vários outros itens. Previsivelmente, "em algumas cidades francesas, as pessoas estavam tão mal alimentadas, que estavam literalmente caindo pelas ruas por desnutrição". Uma delegação representando várias províncias escreveu para o governo em Paris que, antes da lei do controle de preços, "nossos mercados estavam bem providos; porém, tão logo congelamos os preços do trigo e do centeio, estes cereais nunca mais foram vistos. Os outros tipos que não estão submetidos ao controle de preços são os únicos que podem ser encontrados à venda".

O governo francês se viu então obrigado a abolir sua maléfica lei de controle de preços após ela ter literalmente dizimado milhares de pessoas. Quando Maximiliem Robespierre estava sendo carregado pelas ruas de Paris a caminho de sua execução, a plebe gritava "Lá vai o maldito Maximum!" Se ao menos essa lição fosse aprendida por políticos contemporâneos...

Ao final da Segunda Guerra Mundial, os planejadores centrais americanos haviam se tornado ainda mais totalitários em termos de política econômica do que os nazistas derrotados. Durante a ocupação americana da Alemanha, no pós-guerra, os "planejadores" americanos se mostraram muito entusiasmados com os controles econômicos impostos pelos nazistas, inclusive o controle de preços. Desnecessário dizer que eram estes controles econômicos que estavam impedindo a recuperação econômica alemã. O notório nazista Hermann Goering chegou até mesmo a passar um sermão no correspondente de guerra americano Henry Taylor sobre o assunto. Como relatado por Schuettinger e Butler, Goering disse:


Todas as coisas que a sua América está fazendo no campo econômico estão nos causando vários problemas. Vocês estão tentando controlar os preços e os salários das pessoas — ou seja, o trabalho das pessoas. Se você faz isso, você inevitavelmente tem de controlar a vida das pessoas. E nenhum país pode fazer isso pela metade. Eu tentei e não deu certo. Tampouco pode um país fazer isso integralmente, indo até as últimas consequências. Eu tentei isso também e, de novo, não deu certo. Vocês não são melhores planejadores do que nós. Eu imaginava que seus economistas haviam lido e estudado o que ocorreu aqui.

Os controles de preços foram finalmente abolidos na Alemanha, em 1948, pelo Ministro da Economia Ludwig Erhard. A abolição ocorreu de uma só vez, em um domingo, quando as autoridades de ocupação americanas estavam ausentes de seus escritórios, incapazes de impedi-lo. Tal revogação produziu o "milagre econômico alemão". [Veja todos os detalhes do milagre alemão neste artigo].

Nos EUA, controles de preços foram a causa da "crise energética" da década de 1970 e dos apagões na Califórnia na década de 1990 (apenas os preços do setor de geração de energia foram desregulamentados na Califórnia; os controles foram mantidos no setor de transmissão e distribuição). 

[No Brasil, as destruições e os sofrimentos causados pelos controles de preços estão bem documentados aqui].

Ao longo de mais de quatro mil anos, ditadores, déspotas e políticos de todos os naipes viram nos controles de preços uma forma suprema de prometer ao público "alguma coisa em troca de nada". Com o gesto de uma mão, uma piscada de olhos e o movimento de uma caneta, eles prometem que irão deixar tudo milagrosamente mais barato. E o povo sempre acredita. 

Por mais de quatro mil anos, os resultados têm sido exatamente os mesmos: escassez e desabastecimento, várias vezes com consequências catastróficas; deterioração da qualidade do produto; proliferação dos mercados negros, nos quais os preços são maiores do que seriam em um mercado livre e os subornos desenfreados; destruição da capacidade produtiva daquelas indústrias cujos preços são controlados; distorções grosseiras dos mercados [no Brasil do Plano Cruzado, carro usado era mais caro do que carro novo]; criação de burocracias tirânicas e opressivas para fiscalizar o controle de preços; e uma perigosa concentração de poder político nas mãos destes burocratas controladores de preços.

E é isso que os economicamente ignorantes querem criar sempre que pedem ao governo que intervenha nos preços de um determinado setor da economia. 


EXPLICANDO A RECESSÃO EUROPEIA


O economista americano Steve Hanke, professor de economiaaplicada da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, EUA, considerado uma sumidade em assuntos monetários (foi ele quem acabou com todas as hiperinflações das ex-repúblicas soviéticas no Leste Europeu, da Bósnia e da Argentina), cunhou uma frase da qual todo cidadão comum jamais deveria se esquecer. Hanke a rotulou de 'regra dos 95%': "noventa e cinco por cento de tudo que é escrito sobre economia ou está errado ou é irrelevante."

Tal regra é perfeitamente aplicável para as análises feitas sobre o atual estado das economias europeias. Segundo os especialistas, o problema está na tal 'austeridade', a qual estaria sendo imposta a todo o continente pelos malvados alemães por motivos puramente sádicos, e estaria sacrificando os pobres gregos, espanhóis e portugueses. Culpar a austeridade é uma postura que gera aplauso fácil porque significa condenar cortes nos sagrados programas assistencialistas europeus, os quais todos os economistas convencionais sonham ver serem adotados universalmente em todos os países do Ocidente — adoção essa que requereria a supervisão destes economistas, é claro.

Muito embora a "austeridade" europeia esteja sendo feita não por meio exclusivo da redução de gastos, mas sim por uma combinação entre redução de gastos e elevação de impostos — e, como mostrou Philipp Bagus, os déficits orçamentários continuaram intocados —, ela não é a causa precípua da prolongada recessão do continente.

Qual é então o problema? 

Como tudo começou

Durante a década de 2000, os países europeus, e mais acentuadamente Espanha, Portugal, Grécia e Irlanda, vivenciaram tão explicitamente todas as etapas de um ciclo econômico descrito pela Escola Austríaca, que tal exemplo deveria doravante figurar em todos os escritos sobre o tema ciclos econômicos. O ciclo econômico vivenciado por estes quatro países está sendo tão completo, que é difícil imaginar algum outro exemplo prático que melhor ilustre aquilo que é descrito pela teoria austríaca.

A crise econômica e financeira europeia começou da mesma maneira que se iniciam todos os ciclos econômicos: por um processo de enorme expansão do crédito orquestrado pelo Banco Central Europeu em conjunto com o sistema bancário de reservas fracionárias dos quatro países citados. Tal processo de expansão do crédito consiste meramente em um processo de criação de dinheiro do nada. E é assim em todo o mundo atual. 

Sempre que uma empresa ou um indivíduo qualquer vão a um banco e pedem um empréstimo, o banco cria do nada dinheiro eletrônico na conta-corrente deste tomador de empréstimo. O dinheiro não foi retirado de nenhuma outra conta. Ele simplesmente foi criado. O bancário apertou algumas teclas no computador e dígitos eletrônicos surgiram na conta-corrente do mutuário. É assim que o dinheiro entra na economia no sistema monetário atual e é assim que a quantidade de dinheiro em uma economia aumenta. O sistema bancário destes países europeus, atuando sob a proteção e estímulo do Banco Central Europeu, literalmente criou bilhões de euros para serem emprestados para empreendedores e consumidores.

Veja a evolução do crédito na Espanha, de janeiro de 2002 (ano da introdução do euro) até janeiro de 2009, ano do início da crise.

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Observe que o crédito concedido mais do que triplicou em apenas 7 anos, indo de 600 bilhões de euros para mais de 1,8 trilhão de euros.

Todo este processo de concessão de crédito gerou quase que o mesmo efeito na oferta monetária do país, que neste mesmo período saiu de 400 bilhões para 1 trilhão.
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O mesmo fenômeno ocorreu na Irlanda. O crédito triplicou...
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... e a oferta monetária duplicou.
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E, finalmente, na Grécia. O crédito mais que dobrou...
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... assim como a oferta monetária.
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Qual foi a consequência de toda esta expansão creditícia e monetária?

Empreendedores, ao tomarem como empréstimo este dinheiro criado do nada pelo sistema bancário, passaram a investir naqueles projetos que mais estavam sob demanda. Nos casos específicos da Espanha e da Irlanda, no setor imobiliário. Os consumidores destes países, por sua vez, estavam recorrendo aos bancos justamente para obter financiamento para comprar imóveis. Esta súbita demanda por imóveis foi possibilitada pelo fato de que a expansão creditícia feita pelo sistema bancário de reservas fracionárias e orquestrada pelo Banco Central Europeu gerou uma forte queda nos juros.

Uma expansão creditícia e monetária é sempre um fenômeno extremamente perigoso porque funciona como uma droga. Quando o dinheiro recém-criado é injetado na economia pelos bancos, todo o sistema econômico passa a reagir de maneira expansionista. As pessoas ficam animadas. Empreendedores recebem financiamento barato para praticamente qualquer investimento que queiram fazer, não importa o quão irracional tal investimento seria em outras circunstâncias. Ao mesmo tempo, trabalhadores e sindicatos percebem que a demanda por seus serviços aumentou, pois há mais dinheiro na economia. Bens de consumo também passam a ser demandados com mais intensidade. A renda das pessoas cresce anualmente. Todo mundo fica feliz, principalmente porque tal arranjo faz parecer ser possível aumentar a riqueza sem qualquer sacrifício na forma de poupança e trabalho duro. Forma-se uma bolha. 

Este aparente ciclo virtuoso da nova economia ludibria todos os agentes econômicos: investidores estão muito contentes ao verem que suas ações crescem diariamente; as indústrias de bens de consumo conseguem vender tudo que põem no mercado e a preços crescentes; restaurantes estão sempre cheios e com longas listas de espera apenas para arrumarem uma mesa; trabalhadores e seus sindicatos veem o quão desesperadoramente empresários estão demandando seus serviços em um ambiente de pleno emprego, aumentos salariais e (nos países mais ricos) imigração; líderes políticos se beneficiam daquilo que parece ser uma economia excepcionalmente boa, a qual eles venderão ao eleitorado como resultado direto de sua liderança e de suas boas políticas econômicas; burocratas responsáveis pelo orçamento do governo ficam impressionados ao descobrir que, a cada ano, a receita está aumentando em cifras de dois dígitos.

Porém, tal arranjo não pode durar. Há um enorme descoordenação entre o comportamento dos consumidores e dos investidores. Os consumidores seguem consumindo sem a necessidade de poupar, pois a quantidade de dinheiro na economia aumenta continuamente, o que torna desnecessário qualquer abstenção do consumo. E os investidores seguem aumentando seus investimentos, os quais são totalmente financiados pela criação artificial de dinheiro virtual feita pelos bancos e não pela poupança genuína dos cidadãos. Tal arranjo é completamente instável. Trata-se apenas de uma ilusão de que todos podem obter o que quiserem sem qualquer sacrifício prévio.

Com o tempo, tamanha demanda gerada pela criação de dinheiro leva a um inevitável aumento dos preços. Ato contínuo, o Banco Central eleva a taxa básica de juros da economia e os bancos, além de reduzirem o volume de empréstimos concedidos, também começam a cobrar juros maiores. Afinal, se os bancos não aumentassem os juros cobrados, eles simplesmente receberiam — no momento da quitação do empréstimo — um dinheiro com um poder de compra menor do que o que esperavam receber quando concederam o empréstimo.

Essa nova postura dos bancos leva a uma redução da taxa de crescimento da quantidade de dinheiro na economia. E tal redução na taxa de crescimento da oferta monetária é exatamente o que põe um fim na euforia e gera o início da recessão.

A recessão

Durante a fase da expansão econômica artificial, os indivíduos intensificaram seu endividamento para poder consumir, na crença de que a expansão do crédito continuaria farta e que sua renda futura continuaria aumentando, o que facilitaria a quitação destas dívidas. Já as empresas embarcaram em investimentos de longo prazo levadas tanto pela redução artificial dos juros criada pela expansão do crédito (o que faz com que os investimentos se tornassem mais financeiramente viáveis) quanto pela expectativa de que o aumento futuro da renda possibilitaria o consumo dos produtos criados pelos seus investimentos.

No entanto, a redução da expansão monetária — que não pode se perpetuar para sempre — traz a realidade à tona. O aumento esperado da renda não se concretiza, o que faz com que as dívidas se tornem mais difíceis de serem quitadas. Isso faz com que todos aqueles investimentos que foram estimulados pela expansão artificial do crédito entrem em colapso, pois nunca houve uma demanda genuína por eles. Como os consumidores estão mais endividados e o nível geral de preços da economia aumentou — mas a oferta monetária se estabilizou —, a demanda cai (não cairia caso os investimentos houvessem sido financiados por poupança genuína, isto é, pela real abstenção do consumo dos indivíduos). 

Todos aqueles empreendimentos que até então pareciam lucrativos — como o setor imobiliário — se revelam um grande desperdício. A realidade é que simplesmente não havia demanda para tais projetos, pois tudo era baseado numa ilusão de prosperidade, aditivada pela expansão monetária e do crédito.

Até aqui, a narração acima em nada se distingue do atual momento brasileiro. A mecânica inicial de um ciclo econômico, seja no Brasil, seja na Europa ou nos EUA, é a mesma, variando apenas qual será o setor que receberá a maior parte dos investimentos estimulados pelo crédito fácil. O que tornou a recessão europeia especialmente dolorosa foi o que aconteceu com seu sistema bancário.

O que ocorreu na Europa — especialmente na Espanha e na Irlanda — é que o processo de expansão creditícia foi direcionado majoritariamente para o setor imobiliário. E em gigantesca escala. A bolha imobiliária espanhola foi muito maior que a americana — ao ponto de existirem hoje na Espanha, segundo Jesús Huerta de Soto, mais de um milhão de casas vazias, o que representa um incalculável desperdício de recursos escassos.

Sendo assim, quando a expansão creditícia foi interrompida e os juros foram elevados, não apenas a demanda por imóveis foi estancada, como também, e principalmente, as pessoas que estavam pagando hipotecas simplesmente começaram a dar o calote nos bancos. Como as construtoras que haviam tomado empréstimos também não mais estavam conseguindo vender seus imóveis, elas também começar a dar calote nos bancos. Acrescente a isso o aumento no desemprego em decorrência do mecanismo explicado acima, e você terá um ideia de quão volumosos foram os calotes nos bancos.

Ato contínuo, os bancos perceberam que seus empréstimos imobiliários — tanto para construtoras quanto para pessoas físicas — não mais seriam quitados aos valores originalmente esperados. Como os empréstimos fazem parte do ativo dos bancos, a consequência é que os ativos bancários passaram a valer muito menos do que imaginavam. 

Essa queda no valor dos ativos gerou um enorme problema nos balancetes dos bancos: o valor dos ativos despencou, mas o valor dos passivos (todos os depósitos de seus clientes) permaneceu o mesmo. Em termos contábeis, se há uma forte redução nos ativos e os passivos permanecem os mesmo, então há uma redução no patrimônio líquido (capital). Os bancos se tornaram insolventes. 

Quando um banco se torna contabilmente insolvente, ele pode fazer duas coisas: ou ele aumenta seus ativos (sem que tenha de aumentar seus passivos), ou ele reduz seus passivos. 

Aumentar ativos em um cenário de recessão é praticamente impossível. Ele teria de vender papeis em troca de dinheiro para aumentar suas reservas. Porém, além de as pessoas não estarem em condições de comprar papeis dos bancos, o próprio ato desesperado de venda de papeis já forçaria para baixo os preços dos mesmos, pois tal medida deixaria explícita a péssima situação do banco. O valor de seus ativos poderia cair ainda mais. 

Logo, a única solução plausível foi reduzir os passivos. E como os bancos reduzem passivos? Deixando de conceder empréstimos. Cobrando empréstimos pendentes (cuja quitação aumenta seus ativos), e não concedendo novos empréstimos. Essa era a única maneira de sanear seus balancetes.

E a consequência desta postura está perfeitamente ilustrada nos gráficos abaixo. 

Na Espanha, o volume de crédito concedido está em queda.
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Assim como a oferta monetária, que está apresentando deflação.
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O mesmo é válido para a Irlanda.
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E é ainda mais intenso para a Grécia, cujo volume de crédito e oferta monetária recuaram para níveis de sete anos atrás.
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A encrenca

Olhando o gráfico, fica fácil entender por que a situação grega é tão calamitosa. Além da inevitável contração do crédito, que por si só reduz a quantidade de dinheiro na economia, também está havendo uma fuga de euros daquele país para os bancos alemães, mais seguros. Espanha e Irlanda também vivenciam o mesmo problema, embora com intensidade um pouco menor.

Enquanto o mundo vivia seu período glorioso de expansão monetária (2003-2008), o governo grego aproveitou essa bonança para aumentar os gastos, inchar o funcionalismo e a folha de pagamento. E fez tudo isso sem precisar aumentar impostos. Como foi possível? Como o crédito vinha de fora, e era abundante e barato, o governo percebeu que era mais vantajoso se endividar (em vez de tributar) para aumentar os gastos — e, depois, apenas rolar a dívida, pagando juros bastante camaradas. 

É lógico que tal arranjo grego seria insustentável no longo prazo, mesmo que os juros continuassem baixos. É como se você fosse a um restaurante e, em vez de pagar a conta inteira, pagasse só a metade, e prometesse pagar o resto e mais juros no dia seguinte. Porém, quando chegasse o dia seguinte, você faria um acordo com o dono do restaurante e, novamente, pagaria apenas a metade da conta daquele dia e empurraria todo o resto acumulado para o dia seguinte. E assim você iria fazendo todos os dias. Quando chegasse o fim do mês, o dono, desconfiado de que você iria dar o calote, simplesmente lhe apresentaria a conta total, com principal e juros acumulados, e exigiria o pagamento, não dando chances para mais rolamentos de dívida. É aí que você teria o infarto.

No caso da Grécia, a crise financeira internacional, com a contração do crédito, acelerou esse processo de cobrança da dívida — logo, os juros exigidos para a rolagem da dívida subiram. A farra grega acabou e, temerosos de um calote, as pessoas começaram retirar seu dinheiro do país, o que deixou os bancos em situação extremamente delicada.

Em um cenário de deflação monetária como esse que está acometendo estes países, a última coisa que os governos deveriam pensar em fazer seria aumentar impostos. Mas foi exatamente isso que os governos desses três países fizeram e prometem continuar fazendo. Não é à toa que a cada trimestre a imprensa noticia com fanfarra que o PIB destes países segue encolhendo. Óbvio. Deflação com aumento de impostos é um coquetel mortífero. Dado que há uma grande rigidez nos preços e nos salários nestes países (se os sindicatos não aceitam reduções salariais, os empresários não irão reduzir preços, pois seus balancetes iriam para o vermelho total), o resultado inevitável é uma disparada no desemprego.

Veja a evolução do desemprego em cada país clicando em seus respectivos nomes: Espanha, Irlanda, Grécia.

Para complicar ainda mais a situação, há a imposição de Basileia III, que exige o aumento do capital dos bancos. Como explicado, na atual situação, a única maneira de os bancos aumentarem seu capital é restringindo empréstimos e contraindo ainda mais a oferta monetária. Para Espanha e Grécia, que possuem economias amarradas, sindicatos fortes, altos impostos, e uma alta quantidade de regulamentações, esta nova rodada de deflação, a qual dificilmente será acompanhada de uma redução de preços e salários, poderá ser fatal para o desemprego. A Irlanda, por ter uma economia mais dinâmica, tem mais chances de sofrer menos. 

Conclusão

Todo processo de expansão creditícia, cedo ou tarde, se transforma em um processo de restrição ou contração do crédito. A intensidade da recessão tende a ser proporcional à intensidade da exuberância econômica que o país vivenciou.

Durante uma recessão, os consumidores estão mais pobres do que antes justamente por causa de todos os investimentos errôneos e insustentáveis que foram empreendidos em decorrência da expansão artificial do crédito, investimentos estes que imobilizaram capital e recursos escassos para seus projetos, recursos estes que agora não mais estão disponíveis para serem utilizados em outros setores da economia. No geral, a economia está agora com menos capital e menos recursos escassos disponíveis. Na Espanha, como dito, há hoje um milhão de casas vazias, sem compradores. Capitais e recursos escassos foram desperdiçados na construção destes imóveis, capitais e recursos que poderiam estar hoje sendo aplicados em outros setores da economia espanhola.

Adicionalmente, é fácil entender por que o atual problema destas economias não é de 'demanda'. Crises e recessões não são um problema de demanda. Crises e recessões são causadas por investimentos errôneos e insustentáveis — em decorrência da expansão do crédito bancário e pela distorção das taxas de juros —, para os quais nunca houve demanda legítima. Não se trata de um problema de demanda agregada, mas sim de um problema de capital que foi desviado para aplicações que não eram genuinamente demandadas pelo público.

Sendo assim, de nada adianta os governos — e principalmente os malvados alemães — incorrerem em déficits, aumentar os gastos e o Banco Central Europeu imprimir mais dinheiro, imaginando que tudo magicamente seria resolvido. O fato é que recursos escassos foram aplicados em investimentos para os quais não havia demanda. Este capital se encontra agora destruído (ou com um valor extremamente reduzido). A recessão nada mais é do que o período de reajuste desta estrutura de produção que foi distorcida pela expansão do crédito bancário e pela distorção das taxas de juros.

Portanto, para acabar com uma recessão, é preciso fazer com que este capital mal investido seja liquidado e que os investimentos sejam voltados para áreas em que haja genuína demanda dos consumidores. O governo fazer políticas que estimulem a demanda agregada, de modo a não permitir que haja essa reestruturação do capital, irá apenas prolongar a recessão. O governo elevar impostos e incorrer em déficits irá apenas retirar poupança do setor privado, justamente em um momento em que ele mais necessita dela. 

É exatamente isso que os governos europeus estão fazendo, e é exatamente isso que está prolongando a recessão. A culpa não é dos alemães, que foram bastante frugais nos últimos treze anos.
O motivo de toda a criação de crédito não se traduzir em idêntica expansão da oferta monetária se deve a dois fatos:


1) Importações. Na zona do euro, parte desse dinheiro é exportada para outros países em troca de bens importados.

2) Recapitalização dos bancos. Quando um banco quer aumentar seu capital, ele vende um papel. A pessoa ou empresa que comprar este papel irá transferir dinheiro da sua conta-corrente para este banco. O banco pegará este dinheiro (totalmente eletrônico) e irá contabilizá-lo como 'reservas bancárias', que é um ativo em seu balancete. Ao final do processo, houve uma redução da quantidade de dinheiro na economia e um aumento das reservas bancárias, que é um dinheiro que não está na economia. Exatamente o mesmo procedimento ocorre quando um banco vende dólares em sua carteira para algum cliente. Ou seja, embora bancos criem dinheiro concedendo crédito, eles também destroem dinheiro quando vendem algum papel para se recapitalizar.

Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

QUAL É A OFERTA MONETÁRIA "ADEQUADA"PARA UMA ECONOMIA?

Este artigo foi extraído do livro "O que o governo fez com o nosso dinheiro", futuro lançamento do IMB.


Agora podemos perguntar: qual é a oferta monetária em uma sociedade e como tal oferta é utilizada? Em específico, podemos suscitar aquela eterna pergunta: de quanto dinheiro "precisamos"? Qual a quantidade de dinheiro realmente necessária? Deve a oferta de moeda ser regulada por algum tipo de "critério", ou ela pode ser deixada totalmente para o livre mercado?

Em primeiro lugar, o estoque total — ou oferta —de moeda em uma sociedade, em qualquer momento, seria a massa total da moeda-mercadoria existente. Suponhamos, para o momento, que apenas uma mercadoria tenha sido escolhida pelo livre mercado para ser o dinheiro. Suponhamos ainda que essa mercadoria seja o ouro(embora pudéssemos ter adotado a prata ou mesmo o ferro; caberá ao mercado, e não a nós, decidir qual é a melhor mercadoria a ser utilizada como dinheiro). Visto que o ouro é o dinheiro, a oferta total de dinheiro será a quantidade total de ouro que existe na sociedade. O formato desse ouro não interessa — a menos que o custo de se alterar o ouro para determinados formatos seja maior do que alterá-lo para outros formatos (por exemplo, cunhar moedas custar mais que fundi-las). Nesse caso, um dos formatos será escolhido pelo mercado para ser a unidade de conta, e os demais formatos terão um ágio ou um desconto de acordo com seus os custos relativos no mercado.

As alterações no estoque total de ouro serão regidas pelas mesmas causas que regem as alterações na oferta dos outros bens. Aumentos na oferta serão consequência de uma maior produção das minas; reduções na oferta serão decorrência de desgaste natural, de uso no setor industrial etc. Dado que o mercado escolherá uma mercadoria durável como dinheiro, e dado que o dinheiro é exaurido na mesma taxa que outras mercadorias — mas empregado como meio de troca —, a produção anual de ouro em relação ao estoque total existente tenderá a ser bem pequena. Logo, alterações no estoque total de ouro geralmente ocorrerão a um ritmo muito lento.

Qual "deve" ser a oferta monetária? Vários tipos de critério já foram apresentados: que a quantidade de dinheiro deve aumentar de acordo com o aumento populacional, de acordo com o "volume de transações", de acordo com a "quantidade de bens produzidos", de modo a manter o "nível de preço" constante etc. Poucos, no entanto, sugeriram deixar a decisão para o mercado. Mas o dinheiro difere das demais mercadorias em um ponto essencial, e perceber tal diferença é o segredo para se compreender as questões monetárias. 

Quando a oferta de um bem qualquer aumenta, esse aumento gera um benefício social; é algo para regozijo geral. Uma maior quantidade de bens de consumo significa um maior padrão de vida para o povo; uma maior quantidade de bens de capital significa um maior padrão de vida maior no futuro. A descoberta de novas terras férteis ou de novos recursos naturais também promete aumentar os padrões de vida presente e futuro. Mas, o que pode ser dito a respeito do dinheiro? Será que um aumento da oferta monetária também beneficia o público em geral?

Os bens de consumo são, por definição, consumidos e exauridos pelos consumidores; bens de capital e recursos naturais são exauridos no processo de produção dos bens de consumo. Mas o dinheiro não é consumido e nem exaurido; sua função é apenas atuar como meio de troca — permitir que bens e serviços sejam transferidos rapidamente de uma pessoa para outra. Tais trocas são realizadas em termos de preços monetários.

Assim, se um aparelho de televisão é trocado por três onças de ouro, dizemos que o "preço" da televisão é de três onças. Em qualquer momento, todos os bens na economia serão cambiáveis por determinada quantidade de ouro. Como dito, o dinheiro, ou o ouro, é o denominador comum de todos os preços. Mas e quanto ao dinheiro em si? Será que ele tem um "preço"? Dado que o preço é simplesmente uma relação de troca, então o dinheiro certamente tem um preço. Contudo, nesse caso, o "preço do dinheiro" é um conjunto do infinito número de relações de troca que existem todos os diversos bens do mercado.

Assim, suponhamos que um aparelho de televisão custe três onças de ouro, que um automóvel custe sessenta onças de ouro, que uma bisnaga de pão custe 1/100 de onça de ouro e que uma hora dos serviços jurídicos do doutor Joaquim custe uma onça de ouro. O "preço do dinheiro", então, será um conjunto de trocas alternativas. Uma onça de ouro "valerá" 1/3 da televisão, 1/60 de um automóvel, 100 bisnagas de pão ou uma hora dos serviços do doutor Joaquim. E assim por diante. O preço do dinheiro, portanto, é o "poder de compra" da unidade monetária — nesse caso, da onça de ouro. O preço do dinheiro, ou o seu poder de compra, informa o que aquela unidade pode adquirir ao ser trocada, assim como o preço monetário de um aparelho de televisão informa quanto de dinheiro um aparelho de televisão pode conseguir ao ser trocado.

O que determina o preço do dinheiro? As mesmas forças que determinam todos os preços no mercado — a venerável, mas eternamente verdadeira, lei da "oferta e demanda". Todos nós sabemos que se a oferta de ovos aumenta, o preço de cada ovo tende a cair; se a demanda dos consumidores por ovos aumentar, o preço tenderá a subir. O mesmo fenômeno ocorre para o dinheiro. Um aumento na oferta de dinheiro tenderá a reduzir seu "preço"; um aumento na demanda por dinheiro irá aumentar seu preço. 

Mas o que é a demanda por dinheiro? No caso dos ovos, sabemos o que significa "demanda". A demanda por ovos é a quantidade de dinheiro que os consumidores estão dispostos a gastar em ovos, mais os ovos que estão guardados pelos fornecedores e que não estão à venda. Essa é a demanda total por ovos. Similarmente, no caso do dinheiro, "demanda" por dinheiro significa os vários bens que são oferecidos em troca do dinheiro, mais a quantidade de dinheiro entesourada e não gasta pelos indivíduos durante um determinado período de tempo. Em ambos os casos, a "oferta" pode se referir ao estoque total de um determinado bem no mercado.

O que ocorre, então, se a oferta de ouro aumentar e a demanda por dinheiro continuar a mesma? O "preço da moeda" cai, ou seja, o poder de compra da unidade monetária cairá em todos os setores da economia. Uma onça de ouro valerá agora menos que 100 bisnagas de pão, menos que 1/3 de um aparelho de televisão etc. De modo inverso, se a oferta de ouro diminuir, o poder de compra da onça de ouro aumentará.

Qual é o efeito de uma alteração na oferta monetária? Seguindo o exemplo de David Hume, um dos primeiros economistas a abordar o assunto, podemos nos perguntar o que ocorreria se, da noite para o dia, uma Fada Madrinha entrasse às escondidos em nossos bolsos, carteiras e nos cofres dos bancos e duplicasse a nossa oferta monetária. Neste exemplo, ela magicamente dobrou nossa quantidade de ouro. Será que nós agora estamos duas vezes mais ricos? É obvio que não. O que nos torna ricos é uma abundância de bens, e o que limita tal abundância é a escassez de recursos para produzi-los: a saber, terra, trabalho e capital. Multiplicar a quantidade de dinheiro não faz com que tais recursos deixem de ser escassos e se materializem milagrosamente. É verdade que podemos nos sentir duas vezes mais ricos por um momento, mas claramente o que ocorreu foi apenas umadiluição da oferta monetária. À medida que as pessoas saírem correndo para gastar essa riqueza recém-encontrada, os preços irão aproximadamente dobrar — ou ao menos aumentar até a demanda ser satisfeita e o dinheiro não mais estiver competindo consigo próprio pelos bens existentes.

Logo, vemos que, embora um aumento na quantidade de dinheiro, assim como um aumento na quantidade de qualquer outro bem, reduz o seu preço, tal alteração não produz — ao contrário do que ocorre com os outros bens — nenhum benefício social. O público em geral não se torna mais rico. Ao passo que novos bens de consumo ou de capital aumentam os padrões de vida da população, um aumento da quantidade de dinheiro na economia gera apenas aumento de preços — isto é, dilui seu próprio poder de compra. A explicação para este aparente enigma é que o dinheiro só é útil pelo seu valor de troca. Outros bens possuem diversas utilidades "reais", de modo que um aumento em sua oferta satisfaz os desejos de mais consumidores. Já o dinheiro, por sua vez, possui utilidade apenas enquanto possibilitador de trocas; sua utilidade está justamente em seu valor de troca ou em seu "poder de compra". Esta lei — de que um aumento na oferta monetária não confere um benefício social — deriva do uso exclusivo, específico e único do dinheiro como meio de troca.

Um aumento na oferta monetária, portanto, irá apenas diluir a efetividade de cada unidade monetária — ou, no nosso caso, de cada onça de ouro. Por outro lado, uma redução da oferta monetária irá aumentar a capacidade de cada unidade monetária de cumprir sua função. Chegamos assim à surpreendente verdade de que não importa qual seja a oferta monetária. Uma determinada quantidade de dinheiro será tão boa quanto qualquer outra quantidade. O livre mercado simplesmente se ajustará alterando o poder de compra, ou a efetividade, da unidade de ouro. Não há nenhuma necessidade de se interferir no mercado com o intuito de alterar a oferta monetária determinada pelo livre mercado.

Nesta altura, o adepto do gerenciamento estatal do dinheiro irá contestar: "Muito bem, admitindo que é inútil aumentar a oferta monetária, então a mineração de ouro não seria um desperdício de recursos? O governo não deveria manter a oferta monetária constante e proibir novas minerações?" Esse argumento pode ser plausível para aqueles que não possuem objeções às intervenções governamentais, mas não convencerá um resoluto defensor da liberdade. Porém, tal objeção ignora um ponto importante: o fato de que o ouro não é somente dinheiro; ele também é, inevitavelmente, uma mercadoria. Um aumento na oferta de ouro pode não conferir nenhum benefício monetário, mas confere sim benefícios não-monetários — ou seja, aumenta a quantidade de ouro utilizada no consumo (ornamentos, usos odontológicos e coisas do tipo) e na produção (insumos industriais). A mineração de ouro, portanto, não é de forma alguma um desperdício social.

Consequentemente, podemos concluir que a melhor maneira de determinar a quantidade de dinheiro na economia, assim como a quantidade de todos os demais bens, é deixando tal serviço a cargo do livre mercado. Além das indiscutíveis vantagens morais e econômicas da liberdade sobre a coerção, uma quantia de dinheiro estipulada por burocratas não será mais efetiva do que a quantidade de dinheiro estabelecida pelo livre mercado, o qual determinará a produção de ouro de acordo com sua relativa capacidade de satisfazer a necessidade dos consumidores — assim como já faz com todas as outras áreas da economia.[1]

A mineração de ouro, obviamente, não é uma atividade especialmente mais lucrativa do que qualquer outra. No longo prazo, a taxa de lucro desta atividade será igual à taxa de lucro líquida de qualquer outra indústria.

Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

COMO GANHAR O DEBATE ECONÔMICO

"Nós vencemos!"

Foi assim que o escritor e economistaAndy Duncan iniciou a palestra inauguraldo encontro anual da Property & Freedom Society (PFS), realizado no mês de setembro de 2012 em Bodrum, Turquia. Em 1912, Ludwig von Mises lançava seu livro A Theory of Money and Credit e, nos cem anos que se seguiram, uma batalha ideológica foi travada e vencida por Mises e seus seguidores. Refutando todas as críticas feitas contra sua metodologia ao mesmo tempo em que fazia críticas fulminantes e definitivas contra outras escolas de pensamento econômico, e demonstrando o caráter irrefutável de sua epistemologia, a Escola Austríaca se estabeleceu como a única verdadeira ciência econômica. No entanto, após a constatação dessa vitória, Duncan mencionou um pequeno problema: com exceção de algumas ilhas de sanidade, como os Institutos Mises espalhados pelo mundo, o resto da população mundial (99,99%) sofre de uma maciça síndrome de Estocolmo, apoiando vultosas e pavorosas intervenções do estado na economia e na vida privada, acreditando piamente naquilo que é propagado por teorias econômicas falaciosas.

Duncan propôs uma estratégia de como os ensinamentos da Escola Austríaca e as ideias de liberdade poderiam atingir um público maior do que este 0,01% atual: o uso da literatura. Seu amigo Jack England escreveu o que ele chamou de primeiro romance rothbardiano, o Sword of Marathon, com potencial para se transformar em um filme de Hollywood. A estratégia é inserir as ideias de Mises, Rothbard, Hoppe etc. em histórias de ficção, atingindo assim um público que jamais leria os livros acadêmicos destes autores. Este seria apenas um meio. E para atingirmos uma porcentagem relevante, uma porcentagem que faça com que mudanças efetivas sejam concretizadas — e eu diria que de 20 a 30% seria o suficiente —, temos de usar todos os meios possíveis e imagináveis.

A reunião anual da PFS é um evento exclusivo para convidados — e os convites, dizem, são mais disputados que o ingresso dourado da Fantástica Fábrica de Chocolate de Willy Wonka —, e reúne as maiores mentes do movimento pela liberdade no mundo. Além de palestrantes como Guido Hulsmann, Jeffrey Tucker, Anthony Daniels e Thorsten Polleit, a plateia, formada por não mais de 90 pessoas, ainda contou com gente do calibre de Michael McKay, Detlev Schlichter, Mark Crovelli e Helio Beltrão. A interação com os outros convidados acaba tendo um valor tão grande quanto as palestras. Além disso, ao final de cada dia foi realizado um painel no qual todos os palestrantes do dia respondiam às perguntas do público. O anfitrião Hans-Hermann Hoppe — o maior nome da Escola Austríaca de nossos tempos e fundador e presidente da FPS — nos brindou com sua presença em dois desses painéis. Cada vez que ele tomava a palavra, fazia comentários precisos e pontuais, confirmando que a genialidade humana se reflete na simplicidade. E, ao responder a uma pergunta do público, juntamente com o professor Salerno, ele nos presenteou com outro tipo de estratégia: a de como devemos responder às insanidades que dominam todos os meios acadêmicos e de comunicação.

A pergunta foi originalmente feita a Salerno, e mencionava o economista Paul Krugman e os truques a que ele recorre para explorar habilidosamente a ignorância do homem comum em relação à teoria econômica. A dúvida era sobre como seria possível ganhar o debate econômico dado que Krugman e outros economistas convencionais espalham com muita facilidade ideias econômicas sem sentido porém de fácil apelo popular. É muito difícil corrigir esta falta de sentido perante o público comum utilizando argumentos econômicos racionais. Afinal, a mentira, a embromação e a simplicidade possuem fácil apelo; já refutar a mentira utilizando a razão e a inteligência é uma postura mais trabalhosa e muito difícil de cativar o público geral (minuto 34:10).

Salerno remeteu à estratégia de Henry Hazlitt, que utilizava uma linguagem extremamente clara e direta, e ilustrava as ideias sem sentido dos economistas convencionais pró-governo com exemplos do dia a dia, e assim conseguia expô-los como a fraude que eram. E concluiu dizendo que é isso que se tenta fazer no Instituto Mises, na PFS e em outras organizações pró- livre mercado. Ou seja, traduzir e apresentar as ideias destes charlatães de forma simples, pois desta forma é fácil ver o quão tolas elas são — como, por exemplo, a ideia de que pedaços de papel podem estimular a economia. Para Salerno, o que está faltando são mais pessoas percebendo e fazendo isso. É imprescindível difundir a educação econômica. E, no ponto em que estamos, trata-se de uma questão de quantidade e não de qualidade. 

O professor Hoppe tomou a palavra neste momento e complementou, com a genialidade de sempre, da seguinte forma:


É muito importante que, nestas respostas a pessoas como Krugman, não nos envolvamos em detalhes técnicos e, em vez disso, façamos perguntas como se praticamente fossemos crianças:


"Explique para mim como aumentar o número de pedaços de papel pode fazer uma sociedade enriquecer."

"Se isso é capaz de gerar mais riqueza, explique para mim como ainda existe pobreza no mundo."

"Todos os bancos centrais do mundo não são capazes de imprimir a quantidade de papel que quiserem?"

"Se eles fizerem isso, você acha que a sociedade e o mundo ficariam mais ricos?"

Tenho certeza de que o sujeito não pode responder a esse tipo de pergunta. Ninguém pode responder a esse tipo de pergunta.

Mas, novamente, as pessoas costumam ficar empacadas, respondendo aos detalhes técnicos destes argumentos em vez de ficarem constantemente repetindo este tipo de pergunta simples e direta: "Por favor, explique para mim como é que um pedaço de papel pode fazer uma sociedade enriquecer."

De fato, como relatei no artigo Ressuscitem o Orson Welles!, a insanidade desta gente já chegou ao ponto de seu mais respeitado e renomado representante, Paul Krugman — ganhador do prêmio Nobel de economia e colunista do The New York Times — afirmar em rede nacional, e com a cara lavada mais lavada do mundo, que se os governos alocassem todos os recursos sociedade para combater uma inexistente invasão alienígena, a crise econômica estaria solucionada. Isso é um patente absurdo. Qualquer pessoa que tenha lido um único ensaio deBastiat sabe mais economia do que o maior expoente do mainstream. Ou melhor, qualquer pessoa com bom senso já é capaz de perceber a insanidade desta gente. O que faltou após uma declaração destas — e elas são feitas às centenas, todos os dias, em todos os jornais, revistas, programas de rádio e TV — foram pessoas respondendo a estas declarações absurdas com perguntas do tipo mencionado acima: "Explique para mim como é que direcionar todos os esforços e recursos escassos existentes para construir uma gigantesca arma contra alienígenas que não existem pode enriquecer a sociedade".

Vivemos realmente numa Era de Trevas no que se refere à ciência econômica. A insanidade domina os meios acadêmicos e de comunicação, e as consequências maléficas disso são sentidas por todos, com o governo intervindo cada vez mais e gerando cada vez mais pobreza — ou impedindo cada vez mais a criação de novas riquezas. Todos os dias, toneladas de ideias sem sentido são despejadas não apenas sobre a audiência de programas de rádio e de televisão, como também, e principalmente, sobre os leitores e espectadores de jornais. Todos os dias, alunos de economia são bombardeados por insanidades econômicas, jogadas sobre eles por professores que também tiveram essas mesmas ideias jogadas sobre eles quando eram alunos, e as aceitaram sem questionar. Acredito que a maioria dos professores e comentaristas de economia está apenas repetindo as insanidades que ouviram no passado, mas é inegável que existem aqueles que o fazem porque ideias que dão poder ao estado servem aos seus interesses particulares. Mas independentemente dos motivos, estas ideias não podem mais ser aceitas passivamente. O tipo de reação lógico-questionadora acima deve se seguir toda vez que alguém com bom senso ouvir coisas sem o menor sentido. Se não puder responder pessoalmente, envie e-mails para o meio de comunicação onde a insanidade foi exposta, telefone, mande carta.

Durante um jantar na semana passada, um jovem amigo libertário, estudante de Escola Austríaca, ouviu a seguinte frase: "Sem o BNDES, o Brasil não cresceria". Obviamente, ele quase engasgou com esta ideia estapafúrdia, mas sua reação não parou por aí; ele teve também a "reação hoppeana" descrita acima. Primeiro ele comunicou à pessoa que disse isso que ela sequer possuía conhecimentos básicos de economia, pois o que ela havia dito não fazia sentido. Mas a pessoa respondeu dizendo que era professor de economia, com mestrado na FGV. Meu amigo então pediu mais explicações: "Quer dizer que de 1500 até o BNDES surgir no segundo mandato Vargas, o Brasil era um matagal gigante com algumas caravelas e alguns engenhos... e então, a partir dali, evoluímos de pau-brasil e escambo para a prosperidade atual em um espaço de poucas décadas graças ao BNDES. É isso?"

A resposta do professor foi exatamente a de inserir detalhes técnicos dentro de um economês incompreensível, falando sobre indicativos macroeconômicos e geração sustentável de empregos etc. Meu amigo insistiu nas perguntas básicas: "Conte-me mais sobre como você matematizou as ações de milhões de mentes humanas pra concluir que crédito obtido por meio do roubo e da fraude e concedido centralizadamente é mais eficaz do que crédito oriundo de poupança própria concedido de acordo com as forças do mercado". 

O professor apelou para um argumento de autoridade e disse que quando ele tivesse um mestrado ele entenderia. Como previsto por Hoppe, ele não conseguiu responder a estas perguntas. Ninguém pode responder esse tipo de pergunta.

E como o professor Salerno enfatizou, precisamos de mais pessoas fazendo exatamente isso.

Fernando Chiocca é um intelectual anti-intelectual, praxeologista e conselheiro do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

NAUFRÁGIO TRIBUTÁRIO

Considerar que a função das empresas é gerar receita tributária emperra o país. Dilma deve impor concepção desenvolvimentista à Receita


Talvez um dos principais fatores do fracasso econômico do governo Dilma Rousseff em seus dois primeiros anos -com alta inflação, baixo PIB, um dos últimos lugares em crescimento na América Latina, pouco investimento, perda de competitividade internacional e crescimento da esclerosada máquina burocrática- seja o confuso, arcaico e oneroso sistema tributário.

Mediante ciclópicos autos de infração, a produção de complexas normas auxilia a fragilizar as empresas.

Militando há 55 anos na área fiscal e tendo convivido com os pais do Direito Tributário brasileiro, à época em que as leis eram feitas por juristas e não por “regulamenteiros”, tenho acompanhado a deterioração do sistema.

O cidadão, jamais consultado, vê-se de mais em mais envolvido num emaranhado de leis, portarias, instruções normativas, soluções de consulta. A única certeza que se apresenta é a insegurança jurídica.

Pretende a presidente Dilma atrair investimentos, mas a Receita Federal auxilia a afastá-los, considerando operações suspeitas fusões, incorporações e outras formas de agregação de sociedades. Isso tisna a agilidade competitiva das empresas brasileiras perante aquelas de outros países.

A famosa norma antielisão (LC 104/01), que ainda não foi regulamentada, é, sob disfarces diferentes, amplamente utilizada para inviabilizar tais operações, sob a alegação de que, ao escolher entre duas soluções rigorosamente legais, deve o contribuinte sempre adotar a que se apresentar tributariamente mais onerosa.


Participei da comissão de especialistas nomeada pelo Senado para propor uma reformulação do pacto federativo e do sistema tributário. Éramos 13 e, após seis meses de intensos trabalhos, apresentamos 12 propostas de emendas constitucionais, leis complementares, resoluções do Senado e leis ordinárias. Entregues em 30/10/2012 ao presidente do Senado, elas continham soluções para o equacionamento da guerra fiscal, novos critérios para os fundos de participação dos Estados e municípios, para os royalties do petróleo e para a reformulação da partilha tributária.Não discuto a idoneidade dos agentes fiscais, mas, sim, a errônea filosofia de que a função da empresa é gerar receita tributária e não provocar o desenvolvimento econômico e social do país. Essa filosofia está emperrando, definitivamente, o governo da presidente Dilma, não só com medíocre performance econômica, mas também com a desestabilização do terceiro setor -que faz o que o governo deveria fazer com nossos tributos-, sendo perseguido pelo poder público como se fosse fonte de receita tributária e não de assistência social e educação.

Apenas no que concerne à guerra fiscal, o governo federal aproveitou as sugestões.

Como o mandato não foi renovado, não pudemos continuar o trabalho para uma reforma tributária completa. Enquanto isso, o país naufraga num sistema que o próprio governo reconhece de há muito ultrapassado.

Na década de 60, no Canadá, a “Royal Comission of Taxation” se voltou a promover justiça social e desenvolvimento por meio de uma política tributária correta, que privilegia esses objetivos em lugar da mera arrecadação. Seu incremento decorre, necessariamente, do atingimento de ambos.

Creio que, se a presidente Dilma não impuser uma filosofia desenvolvimentista à Receita Federal, baseada no modelo canadense, dificilmente sairemos dos últimos lugares de desenvolvimento e seu governo continuará a ostentar um dos piores índices da América Latina, com baixo crescimento e alta inflação. Por: Ives Gandra Martins Fonte: O Estado de S. Paulo, 23/01/2013