quarta-feira, 6 de março de 2013

A ORIGILIDADE NÃO EXISTE

Em 1916, um obscuro autor alemão, Heinz von Lichberg, escreveu um conto. O "Times Literary Supplement", anos atrás, publicou esse conto. História simples: um jovem estudante aluga um quarto de hotel e apaixona-se pela filha pré-púbere dos donos. O final é lúgubre para a "ninfeta" em questão. Nome do conto? "Lolita."


Quando li essa revelação, caí do céu. "Lolita", o romance de Vladimir Nabokov publicado em 1955, é um dos meus livros da vida. Mas agora existia uma sombra de ilegitimidade a pairar sobre a obra: teria Nabokov roubado a história a Heinz von Lichberg?

Nas semanas seguintes, a polêmica instalou-se nas páginas do "TLS". Conclusão possível: sim, Nabokov provavelmente lera o conto durante a sua passagem pela Alemanha. Mas era impossível estabelecer com certeza se o roubo foi consciente ou inconsciente.

E não seria de excluir que, décadas depois de o ler, Nabokov tenha iniciado a sua "Lolita" como se a ideia fosse sua e apenas sua.

Eis a tese do neurocientista Oliver Sacks em ensaio magistral para o "The New York Review of Books". Sacks não se ocupa de Nabokov, claro, embora o título do seu texto seja, ironicamente, um evocação do escritor ("Speak, Memory"). Sacks está interessado em analisar o fenômeno da "criptomnésia", que por vezes se confunde com o rasteiro "plágio".

Um erro, avisa Sacks. "Plagiar" é roubar de forma intencional e consciente o trabalho
intelectual de terceiros. Mas "criptomnésia" é outra coisa: esquecermos as fontes do que lemos, deixando que a memória construa a sua própria "originalidade" sobre elas.

Isso é recorrente no trabalho intelectual e não existe autor --de Shakespeare a Coleridge, de Milton a T.S. Eliot-- que não tenha apresentado como seus os conceitos, as ideias e até as frases que nasceram de outras penas esquecidas.

Mas a "criptomnésia" não precisa do trabalho literário para tiranizar a nossa memória. O próprio Sacks relata uma experiência da sua juventude na Inglaterra, durante a Segunda Guerra, que nunca foi uma experiência real. Sim, ele julgava ter escapado a dois bombardeamentos nazistas. Até escreveu sobre eles com impressionante vivacidade.

Mas foi preciso o testemunho de um irmão mais velho para que a "verdadeira verdade" substituísse a "subjetiva verdade": ele, Oliver, experienciou o primeiro bombardeamento, não o segundo. Do segundo, lera apenas a respeito --e o impacto dessa leitura fez com que a memória diluísse a fronteira entre a "verdade histórica" e a "verdade narrativa". Ou, melhor dizendo, a "verdade narrativa" transformou-se em "verdade histórica".

A nossa memória é ambígua porque toma como verdade o que por vezes não foi verdade. Incorpora experiências, ou ideias, ou conceitos que não são radicalmente nossos. Mas que se oferecem como nossos quando as pegadas da originalidade já desapareceram do nosso areal interior.

Será isso uma fraqueza, que no limite impede qualquer criação ou recordação "autênticas"?

Longe disso, escreve Oliver Sacks: a "criptomnésia" é fundamental para qualquer atividade criativa. Se o nosso cérebro fosse um arquivo rigoroso, catalogando cada experiência ou referência com precisão mecânica, nós seríamos incapazes de funcionar ou criar. Não pela consciência insuportável de que nada é nosso.

Mas pelo motivo mais básico de que todas as informações, mesmo as mais desprezíveis, ocupariam todo o "espaço" mental.

Paradoxalmente, criamos porque esquecemos. E esquecemos, de forma ainda mais paradoxal, o que a nossa memória registrou como significativo para nós: um reservatório de conhecimentos ou encantamentos onde iremos voltar um dia --anos depois, décadas depois-- para construir as nossas "originalidades".

Por mim falo: escrevo porque leio. E esqueço o muito que li. Mas sei que nesse esquecimento a minha memória não dorme. Ela será sempre um ladrão silencioso e noturno, jogando para dentro da sacola uma ideia aqui, uma imagem acolá, uma provocação mais além.

Sem falar das minhas experiências de vida --as experiências vividas, as experiências escutadas, as experiências inventadas-- e que já fazem parte do meu DNA.

Serei uma fraude, como o velho Vladimir e a sua "ninfeta"?

Melhor, leitor, muito melhor: como todos nós, sou uma fraude que se julga original. Por: João Pereira Coutinho  Folha de SP

terça-feira, 5 de março de 2013

FAZ 100 DIAS

Faz 100 dias que Lula afronta o Brasil decente com o silêncio sobre o caso de polícia em que se meteu ao lado de Rose
Faz 100 dias que os brasileiros decentes foram afrontados pela descoberta do  escândalo em que Lula se meteu ao lado de Rosemary Noronha. Faz 100 dias que o país que presta é afrontado pela mudez malandra do caçador de votos que promoveu uma gatuna de quinta categoria a chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo. Faz 100 dias que o ex-presidente foge de perguntas sobre o caso de polícia que protagonizou em companhia da Primeiríssima Amiga e dos bebês quadrilheiros de Rosemary.
Surpreendido pela divulgação das maracutaias comprovadas por policiais federais engajados na Operação Porto Seguro, Lula fez o que sempre faz quando precisa costurar algum álibi menos cretino: perdeu a voz e sumiu. Passou a primeira semana enfurnado no Instituto Lula. Passou as duas seguintes longe do Brasil, driblando repórteres com escapadas pela porta dos fundos ou pela cozinha do restaurante.
Recuperou a voz no começo do ano, mas ainda garimpa no porão das desculpas esfarrapadas alguma que o anime a enfrentar jornalistas armados apenas de perguntas sem resposta. Para impedir que a aproximação do perigo, tem recorrido a cordões de isolamento, cercadinhos, muralhas humanas e outras mesquinharias improvisadas para livrá-lo de gente interessada no enredo da pornochanchada financiada por cofres públicos que apresentou ao Brasil, entre outros espantos, os talentos ocultos de Rosemary Noronha.
O silêncio que vai completando 2.500 horas, insista-se, só vale para o caso Rose. Entre 23 de novembro de 2012 e 3 de março de 2013, excluídos os poucos dias em que teve de desativar o serviço de som, o palanque ambulante continuou desempenhando simultaneamente os papeis de co-presidente da República, presidente honorário da base alugada, chefe supremo da seita, protetor dos pecadores companheiros, arquiteto do Brasil Maravilha e consultor-geral do mundo.
Abençoou catadores de lixo e metalúrgicos, leu mais de 300 livros, fingiu entender o que Sofia Loren disse em italiano, avisou que os EUA nunca mais elegerão um negro se Barack Obama fizer besteira, louvou bandidos de estimação, insultou a oposição, deliberou sobre a tragédia ocorrida no jogo do Corithians em Oruro, explicou aos governantes europeus como se transforma tsunami em marolinha, recomendou a FHC que pare de dizer o que pensa e descobriu que Abraham Lincoln reencarnou no Brasil com o nome de Luiz Inácio Lula da Silva. Fora o resto.
Só não falou sobre o que importa, agarrado à esperança de sobreviver sem fraturas expostas ao primeiro escândalo que não pode terceirizar. Não houve intermediários entre Lula e Rose. Não há bodes expiatórios que a apresentar. É natural que fuja como o diabo da cruz de pelo menos 40 perguntas formuladas pelo timaço de comentaristas:
1. Por que se recusa a prestar esclarecimentos sobre um escândalo investigado pela Polícia Federal que o envolve diretamente?
2. Considera inconsistentes as provas reunidas pela Operação Porto Seguro?
3. Por que disse em Berlim que não se surpreendeu com a Operação Porto Seguro?
4. Desta vez sabia de tudo ou, de novo, nunca soube de nada?
5. Onde e quando conheceu Rosemary Noronha?
6. Como qualifica a relação que mantém com Rose há 17 anos?
7. Em quais critérios se baseou para instalar uma mulher sem experiência administrativa na chefia do gabinete presidencial em São Paulo?
8. Por que pediu a Dilma Rousseff que mantivesse Rose no cargo?
9. Por que criou os escritórios da Presidência da República?
10. Continua achando necessária a existência de escritórios e chefes de gabinete?
11. Além de demitir Rose, Dilma Rousseff extinguiu o cargo que ocupava. A presidente errou?
12. Por que  Rose foi incluída na comitiva presidencial em pelo menos 20 viagens internacionais?
13. Por que foi contemplada com um passaporte diplomático?
14. Quem autorizou a concessão do passaporte?
15. Por que o nome de Rosemary Noronha nunca apareceu nas listas oficiais de passageiros do avião presidencial divulgadas pelo Diário Oficial da União?
16. Quem se responsabilizou pelo embarque de uma passageira clandestina?
17. Por que Marisa Letícia e Rose não eram incluídas numa mesma comitiva?
18. Quais eram as tarefas confiadas a Rose durante as viagens?
19. Todo avião utilizado por autoridades em missão oficial é considerado Unidade Militar. Os militares que tripulavam a aeronave sabiam que havia uma clandestina a bordo?
20. Como foram pagas e justificadas as despesas de uma passageira que oficialmente não existia?
21. Por que nomeou os irmãos Paulo e Rubens Vieira, a pedido de Rose, para cargos de direção em agências reguladoras?
22. Examinou o currículo dos nomeados?
23. Por que o aliado José Sarney, presidente do Senado, convocou irregularmente uma terceira sessão que aprovou a nomeação de Paulo Vieira, rejeitada em votação anterior?
24. Acha que são culpados?
25. Por que comunicou à imprensa, por meio de um diretor do Instituto Lula, que não comentaria o episódio por considerá-lo “assunto pessoal”?
26. Por que Rose se apresentava como “namorada do presidente”?
27. Se teve o nome usado indevidamente, por que não processou Rosemary Noronha?
28. Conversou com Rose nos últimos 100 dias?
29. Por que Rose tinha direito ao uso de cartão corporativo?
30. Por que foram mantidos em sigilo os pagamentos feitos por Rose com o cartão corporativo ?
31. Autorizou a inclusão, na decoração do escritório da Presidência em São Paulo, da foto em tamanho família em que aparece simulando a cobrança de um pênalti?
32. O blog do deputado federal Anthony Garotinho afirmou que Rose embarcou para Portugal com 25 milhões de euros. Se a denúncia é improcedente, por que não processa quem a divulgou?
33. Por que alegou que não comentaria o episódio por considerá-lo “assunto pessoal”, conforme comunicou à imprensa um dos diretores do Instituto Lula?
34. Era previamente informado por Rose das reuniões que promoveria no escritório da presidência?
35. Depois das reuniões, era informado por Rose do que fora discutido e decidido?
36. Por que, mais uma vez, alegou ter sido “traído”? Quem o traiu?
37. Se pudesse recuar no tempo, faria tudo de novo?
38. Não se arrepende de nada?
39.Não sente vergonha por nada?
40. Que história contou em casa?
Há dias, Lula acusou a imprensa de negar-lhe o espaço que merece. Está convidado a preencher o espaço que quiser com respostas a essas perguntas. Todas serão publicadas na íntegra.
Coragem, Lula.

segunda-feira, 4 de março de 2013

O QUE É O SOCIALISMO

O que é realmente o socialismo e qual o seu maior problema

_empresário_socialista.jpg_.jpg
Não há nada mais prático do que uma boa teoria. Por isso, proponho-me a explicar em termos teóricos o que é o socialismo e por que ele não apenas é um erro intelectual, como também é uma impossibilidade científica. Mostrarei por que ele se desmoronou — ao menos o socialismo real — e por que o socialismo que segue existindo na forma de intervencionismo econômico nos países ocidentais é o principal culpado pelas tensões e conflitos de que padece o mundo atual. 

Ainda estamos vivendo em um mundo essencialmente socialista, não obstante a queda do Muro de Berlim; e continuamos tolerando os efeitos que, segundo a teoria, são próprios da intervenção do estado sobre a vida social.

Para definir o socialismo, é necessário antes entendermos o conceito de "função empresarial". Os teóricos da economia dizem que a função empresarial é uma capacidade inata do ser humano. Não estamos nos referindo aqui ao empresário típico que leva adiante um empreendimento. Estamos nos referindo, isso sim, à capacidade inata que todo ser humano tem de descobrir, criar, tomar conhecimento das oportunidades de lucro que surgem ao seu redor e atuar de modo a se aproveitar das mesmas. Com efeito, etimologicamente, a palavra 'empresário' evoca o descobridor, alguém que percebe algo e aproveita a oportunidade. Em termos mais figurativos, seria a lâmpada que se acende.

A função empresarial é a mais essencial das capacidades do ser humano. Essa capacidade de criar e de descobrir coisas é o que, por natureza, mais nos distingue dos animais. Neste sentido geral, o ser humano, mais do que um homo sapiens é um homo empresario. Quem seria, portanto, um empresário? Não se trata apenas de Henry Ford ou de Bill Gates, que sem dúvida alguma são grandes empresários no âmbito comercial e econômico. Um empresário é toda e qualquer pessoa que tenha uma visão criativa, uma visão revolucionária. Madre Teresa de Calcutá, por exemplo. Sua missão era ajudar aos mais necessitados, e ela buscava fazer isso de forma criativa, unindo voluntários e canalizando os desejos de todos para o seu objetivo. Por isso, Teresa de Calcutá foi um exemplo paradigmático de empresário.

Portanto, entendamos a função empresarial como sendo a mais íntima característica de nossa natureza como seres humanos, a característica que explica o surgimento da sociedade e o seu desenvolvimento como uma extremamente complicada rede de interações. A sociedade é formada por inúmeras relações de interação e troca entre indivíduos, relações estas que são empreendidas porque, de alguma forma, imaginamos que estaremos melhor após elas. Todas estas relações são impulsionadas por nosso espírito empresarial.

Todo ato empresarial produz uma sequência de três etapas. A primeira consiste na criação da informação: quando um empresário descobre ou cria uma ideia nova; quando ele gera em sua mente uma informação que antes não existia. Para colocar essa descoberta em prática, ele parte para a segunda etapa, que é quando ele combina recursos para satisfazer necessidades. Se, de um lado, ele percebe que há um recurso barato e mal aproveitado, e, do outro, ele descobre que há demandas que podem ser satisfeitas com este recurso, ele irá atuar de modo a coordenar este "desarranjo". Ele irá comprar barato o recurso, utilizá-lo, transformá-lo, e vendê-lo a um preço maior, satisfazendo assim a demanda que ele havia percebido. Desta forma, a informação é transmitida a todos, o que nos leva à terceira e última etapa, que é quando os agentes econômicos, atuando de maneira descoordenada, observam, aprendem e descobrem que devem conservar e economizar melhor um determinado recurso porque alguém o está demandando. 

Estes são os três planos que completam a sequência: criação de informação, transmissão de informação e, o mais importante, o efeito de coordenação gerado pelas duas etapas anteriores. Desde o momento em que acordamos e nos levantamos da cama até o momento em que voltamos a dormir, disciplinamos nosso comportamento em função das mais distintas necessidades, em função das necessidades de pessoas que nem sequer conhecemos; e fazemos isso por iniciativa própria porque, seguindo nosso próprio interesse empresarial, sabemos que assim saímos ganhando. É importante entendermos tudo isso porque, em contraste, vejamos agora o que é o socialismo.

O socialismo deve ser definido como sendo "todo e qualquer sistema de agressão institucional e sistemática contra o livre exercício da função empresarial". O socialismo consiste em um sistema de intervenção que se impõe pela força, utilizando todos os meios coercitivos do estado. O socialismo poderá apresentar determinados objetivos como sendo bons, mas terá de impor estes objetivos supostamente bons por meio de intervenções coercivas que provocarão distúrbios neste processo de cooperação social protagonizado pelos empresários. Sendo assim — e essa é sua principal característica —, o socialismo funciona por meio da coerção. Esta definição é muito importante porque os socialistas sempre querem ocultar sua face coerciva, a qual é a essência mais distintiva de seu sistema.

A coerção consiste em utilizar a violência para obrigar alguém a fazer algo. De um lado temos a coerção do criminoso de rua que assalta um indivíduo qualquer; de outro temos a coerção do estado, que é a coerção que caracteriza o socialismo. Quando a coerção é aleatória, não sistemática, o mercado tem, na medida do possível, seus próprios mecanismos para definir direitos de propriedade e defender-se da criminalidade. Porém, se a coerção é sistemática e advém institucionalmente de um estado que detém todos os instrumentos do poder, a possibilidade de nos defendermos destes instrumentos e evitá-los é muito reduzida. É neste ponto que o socialismo manifesta sua realidade em toda a sua crueza.

O socialismo não deve ser definido unicamente em termos de propriedade pública ou privada dos meios de produção. Isso é um arcaísmo. A essência do socialismo é a coerção, a coerção institucional oriunda do estado, por meio da qual se pretende que um órgão planejador se encarregue de todas as tarefas supostamente necessárias para se coordenar toda uma sociedade. A responsabilidade é retirada à força dos indivíduos — que são naturalmente os únicos responsáveis por sua função empresarial, e que almejam seus objetivos e querem alcançá-los utilizando os meios mais adequados para tal — e repassada a um órgão planejador que, "lá de cima", pretende impor por meio da coerção sua visão específica de mundo e seus objetivos particulares. Nesta definição de socialismo, vale enfatizar que é irrelevante se este órgão planejador foi ou não eleito democraticamente. O teorema da impossibilidade do socialismo se mantém intacto, sem nenhuma modificação, independentemente de ser democrática ou não a origem do órgão planejador que quer impor à força a coordenação de toda a sociedade.

Definido o socialismo desta maneira, expliquemos então por que ele é um erro intelectual. 

O socialismo é um erro intelectual porque é impossível que o órgão planejador encarregado de exercer a coerção para coordenar a sociedade obtenha todas as informações de que necessita para fornecer um conteúdo coordenador às suas ordens. Este é o grande paradoxo do socialismo, e o seu maior problema. O planejador da economia necessita receber um fluxo ininterrupto e crescente de informação, de conhecimento e de dados para que seu impacto coercivo — a organização da sociedade — tenha algum êxito. Mas é obviamente impossível uma mente ou mesmo várias mentes obterem e processarem todas as informações que estão dispersas na economia. As interações diárias entre milhões de indivíduos produzem uma multiplicidade de informações que são impossíveis de serem apreendidas e processadas por apenas um seleto grupo de seres humanos.

Os teóricos da Escola Austríaca de Economia, Mises e Hayek, elaboraram quatro argumentos básicos no debate que mantiveram durante a primeira metade do século XX contra os teóricos da economia neoclássica, os quais nunca foram capazes de entender o problema inerente ao socialismo. E por que não foram capazes de entendê-lo? Pelo seguinte motivo: eles acreditavam que a economia funcionava exatamente como nos livros-textos de faculdade. Mas o que os livros-textos ensinam em relação ao funcionamento da economia de mercado é radicalmente falso e fictício. Tais manuais baseiam suas explicações sobre o mercado em termos matemáticos que supõem um ajuste perfeito. É como se o mercado fosse uma espécie de computador que ajusta de maneira automática e perfeita os desejos dos consumidores à ação dos produtores. O modelo ideal dos manuais é o da concorrência perfeita, descrito pelo sistema de equações simultâneas de Walras. 

Quando era universitário, minha primeira aula de economia foi com um professor que começou sua explanação com a seguinte e espantosa frase: "Suponhamos que todas as informações sejam conhecidas". E logo em seguida ele se pôs a encher o quadro-negro com funções, curvas e fórmulas. Esta é exatamente a hipótese da qual partem os neoclássicos: todas as informações são conhecidas e nada se altera; tudo é estático. Mas esta hipótese é radicalmente irreal. Ela vai contra a característica mais típica do mercado: a informação nunca é conhecida por todos; ela está dispersa pela economia. Ela não é um dado constante que está ali para ser consultado a qualquer momento. O conhecimento dos dados surge continuamente em decorrência da atividade criativa dos empresários: novos fins são almejados, novos meios são criados e utilizados. Logo, qualquer teoria econômica construída a partir deste pressuposto irreal está fatalmente errada.

Os economistas neoclássicos pensaram que o socialismo era possível porque supuseram que todos os dados necessários para elaborar o sistema de equações simultâneas de Walras e encontrar sua solução eram "conhecidos". Não foram capazes de apreciar o que ocorria neste mundo que tinham de investigar cientificamente; por conseguinte, não conseguiram entender o que realmente se passava.

Somente a Escola Austríaca seguiu um paradigma distinto. Ela nunca supôs que as informações já estavam dadas e eram conhecidas por todos. Ela sempre considerou que o processo econômico era impulsionado por empresários que continuamente incorrem em transações e descobrem novas informações. Somente ela foi capaz de entender e explicar que o socialismo era um erro intelectual. Ela desenvolveu seu argumento utilizando quatro enunciados: dois podem ser considerados "estáticos" e os outros dois podem ser considerados "dinâmicos".

Em primeiro lugar, a Escola Austríaca afirma, como já dito, ser impossível o órgão planejador coletar e utilizar corretamente todas as informações de que necessita para imprimir um conteúdo coordenador às suas ordens. O volume de informações que os seres humanos manejam e com as quais lidam diariamente é imenso, de modo que é impossível gerir o que sete bilhões de seres humanos têm na cabeça. Embora os neoclássicos não tenham sequer conseguido entender este argumento, ele é o mais fraco e o menos importante. Ao fim e ao cabo, nos dias de hoje, com toda a capacidade informática existente, é um pouco mais fácil lidar com volumes imensos de informação.

O segundo argumento é muito mais profundo e contundente. A informação com que lida o mercado não é objetiva; não é como a informação que se encontra impressa em um catálogo. A informação empresarial possui uma natureza radicalmente distinta; ela é uma informação subjetiva, e não objetiva. Ela é tácita, por assim dizer. Ela é do tipo "sabemos algo, temos a técnica, a prática e o conhecimento, mas não sabemos no que tudo isso consiste detalhadamente." Explicando de outra forma: é como a informação necessária para andar de bicicleta. É como se alguém quisesse aprender a andar de bicicleta estudando as fórmulas físicas e matemáticas que expressam o equilíbrio que mantém o ciclista enquanto ele pedala. O conhecimento necessário para saber andar de bicicleta não é adquirido desta forma, mas sim mediante um processo prático de aprendizagem, normalmente bem acidentado, que finalmente permite entender como se equilibra sobre uma bicicleta, além de detalhes fundamentais, como o de que, ao fazermos as curvas, temos de nos inclinar para não cairmos. É bem provável que Lance Armstrong desconheça os detalhes das leis da física que o permitiram vencer o Tour de France várias vezes, mas ele indubitavelmente possui o conhecimento de como se anda em uma bicicleta.

A informação implícita não pode ser moldada de maneira formalizada e objetiva; tampouco pode ser transmitida corretamente a um órgão planejador. Só é possível transmitir a um órgão planejador — de modo que este assimile e imponha uma coerção, dando um conteúdo coordenador às suas ordens — uma informação unívoca que não dê brechas a mal entendidos. Porém, a esmagadora maioria das informações das quais dependemos para sermos bem-sucedidos em nossas vidas não é objetiva; não é informação de catálogo. É informação subjetiva e tácita.

Mas estes dois argumentos — que as informações são extremamente volumosas e que possuem um caráter subjetivo — não bastam. Existem outros dois, de caráter dinâmico, que são ainda mais contundentes e cuja implicação inevitável é a impossibilidade do socialismo.

Nós seres humanos somos dotados de uma inata capacidade criativa. Continuamente descobrimos coisas "novas", almejamos objetivos "novos", e escolhemos meios "novos" para alcançá-los. É impossível transmitir a um órgão planejador a informação ou o conhecimento que ainda não foi "criado" pelos empresários. O órgão planejador pode se empenhar o quanto quiser em construir um "nirvana social" por meio de uma publicação diária de decretos e da imposição da força. Mas, para fazer isso — ou seja, para se alcançar o "nirvana social" — ele tem de saber exatamente o que ocorrerá amanhã. E o que vai ocorrer amanhã dependerá de uma informação empresarial que ainda não foi criada hoje, e que não pode ser transmitida ainda hoje para que nossos governantes nos coordenem eficientemente amanhã. Este é o paradoxo do socialismo, a terceira razão.

Mas isso ainda não é tudo. Existe um quarto argumento que é definitivo. A própria natureza do socialismo — que, como dito, se baseia na coerção, no impacto coercivo sobre o corpo social ou a sociedade civil — bloqueia, dificulta ou impossibilita a criação empresarial de informação, que é precisamente aquilo de que necessita o governante para dar um conteúdo coordenador às suas ordens.

Esta é a demonstração em termos científicos do motivo de o socialismo ser teoricamente impossível. É impossível o órgão planejador socialista coletar, apreender e colocar em prática todas as informações de que necessita para imprimir um conteúdo coordenador aos seus decretos. Esta é uma análise puramente objetiva e científica. Não é necessário pensar que o problema do socialismo está no fato de que "aqueles que estão no comando são maus". Nem mesmo anjos, santos ou seres humanos genuinamente bondosos, com as melhores intenções e com os melhores conhecimentos, poderiam organizar uma sociedade de acordo com o esquema coercivo socialista. Ela seria convertida em um inferno, já que, dada a natureza do ser humano, é impossívelalcançar o objetivo ou o ideal socialista.

Todas estas características do socialismo têm consequências que podemos identificar em nossa realidade cotidiana. A primeira é seu poder de encanto. Em nossa natureza mais íntima, sempre encontramos o risco de ceder ao socialismo porque seu ideal nos tenta, porque o ser humano sempre tende a se rebelar contra sua natureza. Viver em um mundo cujo futuro é incerto é algo que nos inquieta, e a possibilidade de controlar este futuro, de erradicar a incerteza, nos atrai. Em seu livro A Arrogância Fatal, Hayek diz que, na realidade, o socialismo é a manifestação social, política e econômica do pecado original do ser humano, que é a arrogância. O ser humano sempre teve o devaneio de querer ser Deus — isto é, onisciente. Por isso, sempre, geração após geração, temos de estar em guarda contra o socialismo, continuamente vigilantes, e entender o fato de que nossa natureza é criativa, do tipo empresarial. 

O socialismo não é uma simples questão de siglas, abreviações, sindicatos ou partidos políticos em determinados contextos históricos. O socialismo é uma ideia que está e sempre estará se infiltrando de maneira insidiosa em famílias, comunidades, bairros, igrejas, empresas, movimentos, partidos políticos de todas as ideologias etc. É necessário lutar continuamente contra a tentação do estatismo porque ele representa o perigo mais original que há dentro dos seres humanos, nossa maior tentação: crer que somos Deus. O socialista acredita ser genuinamente capaz de superar o problema da impossibilidade da coleta, da apreensão e da utilização de informações dispersas, problema esse que desacredita totalmente a essência do sistema que ele defende. Por isso, o socialismo sempre decorre do pecado da soberba intelectual. Por trás de todo socialista há um arrogante, um intelectual soberbo. E isso é algo fácil de constatarmos ao nosso redor.

O socialismo não é somente um erro intelectual. É também uma força verdadeiramente antissocial, pois sua mais íntima característica consiste em violentar, em maior ou menor escala, a liberdade empresarial dos seres humanos em seu sentido criativo e coordenador. E, como é exatamente isso o que distingue os seres humanos dos outros seres vivos, o socialismo é um sistema social antinatural, contrário a tudo o que o ser humano é e aspira a ser.

Jesús Huerta de Soto , professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo libertário ao redor do mundo. Ele é o autor da monumental obra Money, Bank Credit, and Economic Cycles.

domingo, 3 de março de 2013

EM TORNO DE YOANI SANCHEZ


Certas controvérsias surgidas dias atrás a propósito da blogueira Yoani Sanchez, uns considerando-a uma heroína, os outros uma perigosa agente camuflada dos irmãos Castro, podem ser resolvidas facilmente se a ânsia de julgar ceder o passo ao desejo de compreender.

Os próprios dados do problema trazem a sua solução, bastando ordená-los de maneira razoável.

1. Desde logo, é insensato pensar que as denúncias da blogueira possam fazer algum bem ao regime cubano. Mais do que ninguém nos últimos tempos, ela tem contribuído para divulgar crimes e atrocidades que mancham de uma vez para sempre a reputação dos irmãos Castro. Quando, por exemplo, os horrores da ditadura cubana foram expostos no nosso Congresso Nacional com a visibilidade que lhes deu a visita de Yoani Sanchez? Imaginar que o governo cubano se alegre com isso é levar longe demais a conjeturação de planos secretos.

2. Igualmente insensato é supor que, para fazer o que faz, Yoani tenha de ser uma direitista ou conservadora ou deva satisfações ideológicas aos que assim se definem. Ela nunca foi direitista nem conservadora, e não faz o menor sentido julgar a confiabilidade, a idoneidade ou a utilidade do seu trabalho por um imaginário dever de fidelidade a uma corrente política à qual ela nunca pertenceu.

3. Yoani é uma protegida de George Soros, o que basta para situá-la historicamente como um instrumento -- voluntário ou involuntário, pouco importa -- do grande processo de renovação interna do movimento revolucionário, empenhado em desfazer-se de sua antiga casca bolchevista para assumir feições mais sedutoras e lançar-se a novas e mais ambiciosas conquistas.

4. Nesse processo, os velhos bolchevistas que não puderem se adaptar às novas condições serão sacrificados, como ciclicamente acontece na história das revoluções, que progridem e crescem por autodestruição, limpando-se na sua própria sujeira cuja existência negavam até a véspera. Nessas transições, o movimento revolucionário se renova e se fortalece, mas torna-se temporariamente vulnerável, de modo que suas contradições internas podem ser aproveitadas pelos seus adversários, se estes não caírem nas duas esparrelas opostas: ou imaginar que os dissidentes internos do socialismo se converteram todos às idéias democráticas e conservadoras ou, inversamente, condená-los como falsos conservadores e agentes infiltrados quando seu discurso não coincide com aquilo que em outras nações se entende como conservadorismo “autêntico”.

5. Malgrado todas as ambigüidades e hesitações no curso do processo, em última instância é impossível que Yoani sirva igualmente ao novo e ao velho esquema revolucionário. A opção dela está feita, na prática. Como ela encara isso subjetivamente é irrelevante no momento. Seus motivos íntimos só se revelarão mais tarde, e até lá toda tentativa de julgá-la moralmente, seja para aplaudi-la, seja para condená-la, é ejaculação precoce.

6. A destruição do regime cubano é um bem em si, independentemente do seu futuro aproveitamento pelo movimento revolucionário, cuja nova encarnação terá de ser combatida num outro quadro de condições, totalmente diverso da luta contra a ditadura castrista.

7. Os conceitos descritivos e categorias mentais em que se expressa o conflito interno em Cuba não coincidem com os da luta politica no resto do continente latino-americano nem muito menos no Brasil em especial ou no quadro geral do mundo. Como diria um trotsquista, historicamente esses fenômenos pertencem a “fases” diferentes. Numa ditadura socialista totalitária, não é muito urgente saber se seus dissidentes são conservadores, liberais ou apenas socialistas com pretensões democráticas desiludidos com algo que lhes parece um pseudo-socialismo – diferenças que, no quadro de uma democracia, ou mesmo de um regime meramente autoritário como o brasileiro, podem se tornar essenciais. O “novo” socialismo do sr. George Soros só existe hoje fora de Cuba. Nesse quadro, ele representa o inimigo número um da democracia tradicional e de todos os conservadores. Dentro de Cuba, ele aparece junto com estes como a quintessência do direitismo reacionário – assim como, mutatis mutandis, no Brasil o socialismo light dos tucanos é pintado pelo governo com as cores da “extrema direita”. A diferença é que no Brasil algo à direita dos tucanos ainda pode subsistir em relativa liberdade, o que não acontece em Cuba. Se o governo cubano concede a Yoani Sanchez a margem de ação que nega a seus concorrentes de direita é por dois motivos: teme o apoio internacional que ela desfruta e, não excluindo a possibilidade de uma mudança de regime amanhã ou depois, embora lute para evitá-la, está preparado para aceitá-la com a condição de que ela não destrua de todo a idéia socialista, mas apenas lhe dê novo formato.

8. No presente momento, o trabalho de Yoani é da mais alta importância e não cabe depreciá-lo sob pretexto nenhum. O que importa é estar preparado para combater, mais tarde, as tentativas de aproveitar os resultados dele em favor do “novo” movimento revolucionário. Transformar isso numa luta pró e contra Yoani Sanchez, do ponto de vista da fidelidade ou infidelidade da blogueira a valores democráticos tradicionais que objetivamente nunca foram os dela, é processar o cão em vez do dono que o atiçou. Revelar os compromissos de Yoani com o movimento revolucionário é decerto útil e necessário, mas fazer disso um motivo para fulminá-la com anátemas ideológicos é extemporâneo e contraproducente. POR OLAVO DE CARVALHO Publicado no Diário do Comércio.

sábado, 2 de março de 2013

A ESCOLA AUSTRÍACA

A Escola Austríaca, o processo de mercado e a função empresarial

Obs: o artigo a seguir é a parte final de um texto escrito especialmente para a futura revista acadêmica do IMB. Leia a primeira parte aqui.



Mises, Hayek, Kirzner e a tendência ao equilíbrio

A vertente austríaca tradicional, composta por Menger, Mises, Hayek e Kirzner, entre outros, pode ser considerada, no que se refere a seu entendimento do fenômeno do mercado, como uma tentativa de reformulação e reconstrução das ideias neoclássicas fundamentais, conforme observou Sarjanovic. Com efeito, enquanto os neoclássicos enfatizavam a chamada análise de equilíbrio parcial ou geral e os problemas implicados por essa análise, colocando em uma posição secundária o estudo dos processos mediante os quais os mercados atingem o equilíbrio, a vertente principal dos austríacos prioriza como objeto de estudo o processo de mercado, relegando a análise das condições de equilíbrio a um plano não mais que instrumental.

Para a Escola Austríaca, o mercado é um processo de permanentes descobertas, o qual, ao amortecer as incertezas, tende sistematicamente a coordenar os planos formulados pelos agentes econômicos. Como as diversas circunstâncias que cercam a ação humana estão ininterruptamente sofrendo mutações, segue-se que o estado de coordenação plena jamais é alcançado, embora os mercados tendam para ele.

Carl Menger tem como quase todos os fundadores uma história complexa, na medida em que suas obras, como observou Langlois, contêm elementos que foram retomados de formas diversas por seus seguidores. Kirzner, por exemplo, sustenta que o fundador da Escola Austríaca não pode ser enquadrado como um teórico do desequilíbrio, ao passo que Jaffé, Alter e O'Driscoll sugerem que sua obra contém elementos que permitem classificá-lo como um precursor da abordagem que vê os mercados como processos de desequilíbrio. A leitura atenta dos trabalhos de Menger permite-nos verificar sua crença de que a economia não está permanentemente em equilíbrio, embora tenda sempre para o equilíbrio; contudo, não ficam claras suas posições nem sobre o papel do empresário, nem sobre o dos preços de equilíbrio.

Mises, por sua vez, sustentava que a principal característica da Escola Austríaca era sua teoria da ação e não uma teoria de equilíbrio ou de inação. Assim, seu objetivo é explicar os preços que são efetivamente praticados no mercado e não os preços que prevaleceriam em condições que jamais se verificam, como as que servem de apoio às teorias de equilíbrio de mercado. Por isso, ressaltava que "devemos reconhecer que sempre estudamos o movimento e nunca um estado de equilíbrio". De fato, o uso de "construções imaginárias", como o conceito de "economia uniformemente circular", que é uma das características da obra de Mises, não revela qualquer pretensão de representar a realidade; pelo contrário, seu objetivo é apresentar uma imagem tão essencialmente afastada da economia real que, a partir do forte contraste produzido em relação à complexa realidade econômica, seja possível compreendê-la tal como se apresenta.

A idéia hayekiana de coordenação intertemporal representa um avanço sobre a construção misesiana de "economia uniformemente circular", uma vez que o conceito de Hayek envolve, sem dúvida, uma aplicação mais consistente do subjetivismo, já que abandona o requisito de que os dados externos (preferências, tecnologia e recursos) não se alteram, requerendo, em troca, que esses dados não variem com respeito às expectativas que guiam os planos dos agentes econômicos. A contribuição de Hayek para a teoria do processo de mercado deriva, essencialmente, de sua visão de que o conhecimento humano é imperfeito. Essa limitação do conhecimento, que se traduz em informações incompletas e na possibilidade de ocorrência de alterações nas preferências, na tecnologia e nos recursos, reflete-se também nos planos de ação dos participantes do mercado. Assim, os agentes econômicos não apenas são parcialmente ignorantes, mas as informações que possuem em cada caso são diferentes e, não raro, contraditórias e, além disso, as expectativas que formam a respeito do futuro são, em boa parte, divergentes. Este problema, que Hayek denominou de "dispersão do conhecimento", é considerado por ele como a questão central a ser resolvida pela economia.

A pergunta relevante, para Hayek, deve ser: quanto conhecimento e que tipo de conhecimento por parte dos agentes econômicos tornam-se necessários para que possamos falar em coordenação perfeita entre os planos de todos os agentes econômicos, ou seja, em equilíbrio de mercado? O papel do mercado, então, é o de servir como um processo, mediante o qual, por tentativas e erros, tanto o conhecimento como as expectativas dos diferentes membros da sociedade vão se tornando paulatinamente mais compatíveis no decorrer do tempo. Surge desta maneira a importância fundamental, primeiro, do sistema de preços, com o papel de emitir sinais para que os diversos participantes do processo de mercado possam coordenar seus planos ao longo do tempo e, segundo, da competição, como o único meio de descoberta das informações que são realmente relevantes. Evidentemente, a ignorância gerada pela escassez de conhecimento e que envolve o processo de trocas, fará com que diversos planos fracassem e a tendência para um maior grau de coordenação dependerá, de um lado, da capacidade de cada agente aprender com seus próprios erros e, de outro, de sua capacidade de substituir por planos cada vez mais corretos os que fracassaram anteriormente.

Se desejarmos condensar para o leitor a posição de Hayek, podemos escrever que em sua concepção a importância do processo de mercado é a de servir como um mecanismo transmissor de informações, proporcionando economia de conhecimento. De fato, requer-se de cada participante do mercado um grau baixo de conhecimento, para que possa agir corretamente.
Dentre os "austríacos", contudo, é Israel Kirzner, londrino que viveu e estudou em Cape Town e que obteve seu PhD na Universidade de Nova Iorque, onde foi professor (atualmente está aposentado), quem mais se dedicou (juntamente com Lachmann, que pertence à geração anterior) à análise do processo de mercado e das características da atividade empresarial. Segundo ele, uma das causas da atual crise da teoria econômica é a ênfase excessiva que ela tem dedicado ao estudo dos casos de equilíbrio. Com efeito, embora não seja correto repelirmos de antemão a ideia de mercados em equilíbrio, o bom senso e a simples observação do mundo real, de um lado, e o espírito de seriedade acadêmica, de outro, obrigam-nos a reconhecer as limitações explicativas e normativas da ênfase no equilíbrio.

Ao adotarmos essa postura, deparamo-nos imediatamente com dois questionamentos aos modelos de equilíbrio geral derivados de Walras: se os agentes econômicos são tomadores de preços, como surgem, então, os preços? Além disso, como se coordenam as ações dos diferentes indivíduos? A corrente principal da teoria neoclássica recorreu ao conceito de "leiloeiro walrasiano" para dar resposta às questões, isto é, os preços seriam gerados por um ente fictício, não participante do mercado, cuja atuação também coordenaria a dos participantes. Kirzner, ao contrário, prefere explicar a formação de preços como o resultado da interação entre os agentes econômicos que atuam nos mercados.

Emerge, assim, a importância da função empresarial, cuja essência é um estado de permanente alerta, no sentido de conseguir captar oportunidades de lucros não descobertos anteriormente. Tais oportunidades, que se revelam nos mercados através de diferenciais entre preços, são descobertas gradualmente pelos empresários que, ao explorá-las, tendem a corrigir desequilíbrios anteriores e, com isso, a promover maior coordenação entre os planos individuais e, portanto, a gerar uma tendência de equilíbrio nos preços. Isto decorre do axioma fundamental da praxeologia, de que a ação humana, sendo motivada pela vontade de aumentar a satisfação individual, promove revisões nos erros anteriores que devem conduzir a erros sucessivamente menores. Na ausência de divergências de expectativas, o sistema tenderia automaticamente a um estado de completa coordenação que, no entanto, não é alcançado, na medida em que as divergências que cada participante do mercado formula subjetivamente tendem a gerar transformações permanentes.

O gráfico 4 é uma tentativa de ilustrar essa visão de tendência ao equilíbrio dos mercados como um processo que converge para o equilíbrio, sem, contudo, atingi-lo, devido às características que analisamos em Mises, Hayek e Kirzner. [Devo sua ideia economista Rezso Divenyi, ex-estudante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro]. Embora reconhecendo a impropriedade apontada pela metodologia austríaca no que se refere ao uso de gráficos de demanda e oferta para representar os mercados e também sabendo que o tempo, ao ser representado por uma reta, tal como no aparato newtoniano, assume as características de tempo estático (e não do tempo real, o relevante para a teoria econômica), podemos temporariamente deixar à parte essas críticas dos economistas austríacos e, contemporizando um pouco com a "mainstream economics", visualizar o processo de mercado ao longo do tempo como a série de diagramas de oferta e de demanda, cada um se referindo a um momento específico do tempo, que está representado pela linha diagonal.

Cada figura elíptica em um dado ponto do tempo representa o conjunto de possibilidades que podem estar acontecendo no mercado, naquele determinado momento, incluindo o ponto de equilíbrio. Com o decorrer do tempo o mercado converge para o equilíbrio, ou seja, para o vértice de cada um dos cones. Só que, antes que esse ponto de equilíbrio seja atingido, mudam as condições de mercado que determinam as curvas de oferta e demanda e, com isso, passamos para uma nova elipse. A partir daí, convergimos para o vértice de um novo cone, o qual, por sua vez, antes que seja atingido, já não representará mais uma situação de equilíbrio, e assim sucessivamente.

Algumas observações importantes

Mises e Hayek, obviamente, não são os únicos que ocupam teoricamente a metade do caminho entre Lachmann e Lucas: todas as visões concorrentes sobre a questão das tendências ao equilíbrio estão necessariamente em algum lugar entre os dois extremos polares. Os livros didáticos keynesianos, por exemplo, baseiam-se parcialmente no argumento da necessidade de "políticas de estabilização" para sustentar o equilíbrio de pleno emprego ao longo do tempo. Esta variante do keynesianismo, no entanto, negligencia erradamente o problema das perspectivas de se alcançar um equilíbrio intertemporal, preferindo enfatizar as perspectivas para equilibrar o mercado de trabalho em cada período, sejam ou não mediante despesas de gastos públicos em um determinado período para complementar os gastos do consumidor (que são vistos como insuficientes em algum período futuro) .

Mas o keynesianismo, convencionalmente interpretado, claramente ocupa, tal como a vertente austríaca principal, o meio termo (mas apenas na questão relativa ao equilíbrio): as forças de mercado podem ser efetivamente fortalecidas pelas políticas que os tornam mais eficazes do que Lachmann sugere, e que o fato em si delas deverem ser "aperfeiçoadas" pelas políticas as torna menos eficazes do que Lucas propõe.

A abordagem de Hayek, bem como suas críticas a Keynes, enfatiza diretamente a questão da coordenação intertemporal com uma pergunta: existe um conjunto de forças de mercado que vai transformar a trajetória desejada dos gastos dos consumidores e que se estende para o futuro, em uma trajetória correspondente de decisões de investimento? Hayek argumentou que a construção teórica de Keynes, de que não há um mecanismo de mercado para coordenar as decisões de investimento com decisões de consumo, contém uma deficiência fundamental: as forças inerentes ao mercado, que os coordenam intertemporalmente, foram negligenciadas por causa da agregação (macroeconomia) que caracterizou a formulação keynesiana. Nas próprias palavras de Hayek, "Os agregados do sr. Keynes escondem os mecanismos mais fundamentais das mudanças que ocorrem [no processo de mercado]".

Hayek chama também a atenção para o fato de que o setor de investimentos precisa ser desagregado mediante o conceito de estrutura de capital. Bens de consumo são produzidos por um processo de mercado que envolve uma sequência temporal de fases de produção. A alocação de bens de investimento individuais entre as várias fases de produção afeta o padrão de composição e tempo de saída final. A análise com base nessa teoria do capital vai além da distinção entre a procura de pneus e da demanda por veículos: por considerar a sequência de decisões individuais que dá origem à criação de uma montadora de automóveis, ele atribui um papel muito importante às expectativas. Cada investidor individual em cada etapa de produção deve tomar decisões de investimento com base em suas próprias expectativas.

O sucesso dos investimentos ao longo do tempo exige que as decisões dos investidores sejam coerentes tanto com as decisões subsequentes de outros investidores como com as demandas dos consumidores finais. Os modelos teóricos baseados na estrutura hayekiana de produção (derivada, como sabemos, de Eugen von Böhm Bawerk) são capazes de identificar qual sequência de decisões de investimentos são consistentes com uma determinada trajetória de consumo desejada. Mas isto é apenas uma primícia para a questão mais fundamental: temos razão para acreditar que os investidores, tomando essas decisões, tendem a ser exatamente aqueles cujas expectativas sejam corretas?

Tal como Hayek e Kirzner, a posição de Mises situa-se entre as de Lachmann e Lucas. A formulação misesiana não nos permite prever em uma dada situação como as expectativas de um investidor serão afetadas por alguma mudança particular nas condições de mercado. Nem tampouco sua formulação exige a suposição de que as expectativas sejam racionais, no sentido de Lucas. A alegação de que há uma tendência geral ao equilíbrio repousa sobre o entendimento austríaco de um processo de mercado, no qual cada investidor está investindo com base em suas próprias expectativas. Investidores cujas expectativas sobre as condições futuras do mercado acabam se revelando corretas vão ser premiados com uma acumulação de recursos, enquanto os investidores cujas expectativas terminam se mostrando erradas vão experimentar uma perda de recursos. As decisões de investimento do que obteve sucesso tornam-se cada vez mais influentes nos mercados ao longo do tempo, assim como as dos últimos perdem significância progressivamente. 

Ao enfatizar a importância de se enxergar o processo de mercado no mundo dos investimentos, a teoria de Mises e Hayek, bem como a de Kirzner, pode prever que expectativas em equilíbrio tendem a prevalecer, mesmo que não se possa prever o que em particular irá reger a formulação dessas expectativas. Reconhecendo a subjetividade e a imprevisibilidade das expectativas em qualquer dada circunstância, então, não implica a inexistência ou ineficácia de tendências equilibradoras, no que divergem de Lachmann. A existência e eficácia de tendências equilibrantes pressupõe que as expectativas corretas são recompensadas e expectativas incorretas são penalizados. E a realização de tais recompensas e penalidades depende da natureza das instituições em que as decisões de investimentos são feitas.

Para o Prof. Israel Kirzner, a coordenação intertemporal está ligada ao conceito de função empresarial, que nada mais é do que aquele atributo individual de perceber as possibilidades de lucros ou ganhos eventualmente existentes. Ora, como isso se constitui em uma categoria de ação, esta pode ser encarada como um fenômenoempresarial, que põe em destaque as capacidades perceptiva, criativa e de coordenação de cada agente. Como em qualquer ação humana, a ação empresarial se processa em ambiente de surpresa e de incerteza genuína e requer criatividade, uma vez que o futuro é sempre incerto e está sempre aberto ao desenvolvimento do potencial criativo dos agentes.

Outra característica da ação empresarial é que, em se tratando de escolhas ao longo do tempo e em condições de incerteza, há sempre outras ações a que se deve renunciar. O valor subjetivo dessas ações a que se renuncia é denominado de custo. Logicamente, os agentes agem porque acreditam subjetivamente que os fins escolhidos possuem um valor maior ao dos custos decorrentes da escolha por determinada ação e a diferença constitui o lucro, que é o elemento motivador da ação. Se as ações não acarretassem custos, os valores subjetivos dos fins coincidiriam com o lucro. Kirzner enfatiza que toda ação embute um componente empresarial puro e criativo em sua essência, que não requer qualquer custo e que é exatamente o que permite aproximar o conceito de ação do conceito de função empresarial.

Toda ação — e, portanto, toda atuação empresarial — tem a capacidade de gerar novas informações de cunho implícito, de natureza ao mesmo tempo prática e subjetiva e que muitas vezes não podem ser expressas. Sendo assim, o conjunto de ações ou atos empresariais induz cada agente a ajustar ou coordenar suas próprias atuações levando em consideração as necessidades, desejos e circunstâncias dos demais agentes, transmitidas pelo processo de mercado por meio de suas atuações. Essa dinâmica, no final das contas, é que torna possível e interessante, de maneira inteiramente espontânea e inconsciente, a própria vida em sociedade. Uma sociedade que abre mão da função empresarial está condenada à ausência de coordenação social e de cálculo econômico e, portanto, está abrindo todas as portas para a coerção institucional. Sem mercados livres e liberdade para agir, não pode haver ação empresarial; sem esta, não há como se falar em preços de mercado; e sem estes, é impossível existir coordenação e cálculo econômico.

Cabe mencionar que o conceito de incerteza genuína é corolário da aceitação das hipóteses de ignorância e de tempo real. As implicações mais importantes da ideia de incerteza genuína são: (1ª) a impossibilidade de listagem de todos os possíveis resultados provocados por um determinado curso de ação; e (2ª) a passagem da incerteza - que na teoria econômica convencional costuma ser tratada como uma variável exógena - para a categoria de variável endógena.

Essa característica importante da incerteza genuína, que é a endogeneidade, leva-nos a visualizar os mercados como processos dinâmicos ininterruptos, processos por si só geradores de mudanças às quais o sistema econômico deve adaptar-se. Isto significa que um estado de completa adaptação, ou um estado de equilíbrio, é algo incompatível com os conceitos de incerteza genuína e de tempo real.

Para Mises, uma ciência econômica que enfatize apenas os estados de equilíbrio deixa de ser uma ciência da ação humana, para ser uma ciência da inação, isto é, a própria negação da economia. Essa característica importante da incerteza genuína, que é a endogeneidade, leva-nos a visualizar os mercados como processos dinâmicos ininterruptos, processos por si só geradores de mudanças às quais o sistema econômico deve adaptar-se. Isto significa que um estado de completa adaptação, ou um estado de equilíbrio, é algo incompatível com os conceitos de incerteza genuína e de tempo real.

Como sublinham com brilhantismo O'Driscoll e Rizzo [ver referências bibliográficas no final], subjetivismo e ação humana dinâmica em condições de incerteza não bayesiana são ideias absolutamente inseparáveis sob a ótica da Escola Austríaca de Economia. Quando um agente econômico escolhe um determinado curso de ação, as consequências de sua escolha irão depender, pelo menos parcialmente, dos cursos de ação que outros indivíduos escolheram, estão escolhendo ou ainda vão escolher. Se considerarmos um mundo em que impere a autonomia das decisões individuais, isto significa que o futuro não apenas é eventualmente desconhecido, o que permitiria que ele fosse aprendido de maneira gradual, mas que ele simplesmente não pode ser conhecido e nem aprendido. Tal como em Lachmann, o futuro é incognoscível.

Por sua vez, a ignorância, entendida como imperfeição do conhecimento, não é um estado que possa ser totalmente evitado ou simplesmente ignorado, ou assintoticamente eliminado por algum processo. Por isso, os expedientes analíticos que costumam transformar a ignorância em uma mera variante do conhecimento, não refletem a ação humana no mundo real.

Resumo final

Sobre a questão fundamental de tendências equilibrantes, há teóricos da economia que ou são propensos a tomar uma posição que nega qualquer problema (Lucas) ou que descreem em sua solução (Lachmann), bem como os que acreditam que os governos os podem solucionar (keynesianos e afins). E os argumentos para uma posição intermediária devem colocar muita ênfase sobre o papel das expectativas. Apesar de reconhecerem a impossibilidade de especificar como as expectativas corretas podem ser formadas, os teóricos middlegrounddevem, contudo, utilizar suas hipóteses de que elas tendem a se equilibrar de acordo com a evolução temporal do processo de mercado, que se baseia em expectativas predominantemente corretas.

É verdade, como sugeriram Lachmann e Shakcle, que os economistas devem estudar tanto as tendências "equilibrantes" dos mercados como as "desequilibrantes", mas, enquanto o primeiro, mesmo vendo os mercados como um caleidoscópio, jamais propôs como solução para essa inexistência de uma convergência ao equilíbrio que os governos interferissem nos mercados, Shackle, que preferiu seguir Keynes (embora tenha recebido influências austríacas em seu subjetivismo), preferiu acreditar. Cabem, então, as perguntas: se os mercados sãocaleidoscópios, como poderão os homens do governo melhorar isso, a não ser que possuam um super-conhecimento? Não serão os governos, dada a experiência que o mundo vem vivendo, elementos ainda mais desestabilizadores, que terminam "quebrando" ou estilhaçando as peças do caleidoscópio? Deixo ao leitor a reflexão e a resposta, ambas óbvias.

No entanto, sob o ponto de vista da Escola Austríaca, com seu subjetivismo, sua ênfase na praxeologia, seu individualismo metodológico e sua metodologia hipotético-dedutiva, dois trabalhos muito difundidos no século passado causaram males enormes à ciência econômica, porque as afirmativas e propostas de seus dois autores passaram a ser tomadas como verdades indiscutíveis que, infelizmente, desde o final dos anos 40, vêm sendo transmitidas a gerações sucessivas de economistas, que mais parecem "engenheiros sociais".

O primeiro desses trabalhos é um livro de Paul A. Samuelson publicado em 1947, "Foundations of Economic Analysis". Nessa obra, que obteve enorme repercussão no mundo acadêmico já então dominado pelokeynesianismo e pelo positivismo, Samuelson apresentou uma estrutura matemática comum aos vários ramos da economia, a partir de dois princípios: (a) o comportamento maximizador dos agentes (como o de maximizar utilidades por parte dos consumidores, maximizar lucros por parte das empresas, maximizar retornos através dos investidores, etc.) e; (b) a estabilidade do equilíbrio nos sistemas econômicos, tanto de mercados particulares quanto da economia como um todo. Samuelson também aperfeiçoou a teoria dos números índices e generalizou a welfare economics. Ele é especialmente conhecido por estabelecer e formalizar definitivamente versões qualitativas e quantitativas de "estática comparativa" Uma de suas idéias sobre estática comparativa, o chamadoprincípio da correspondência, afirma que a estabilidade do equilíbrio implica previsões testáveis sobre como se dão as mudanças de equilíbrio quando os parâmetros são alterados. Para termos uma ideia da influência de Samuelson, basta lermos a seguinte frase extraída aleatoriamente da Wikipedia: "Finalmente, pode-se dizer que a partir de Samuelson passou a existir não somente a economia, como também o livro Economics. O livroEconomics ensinou os fundamentos desta ciência à maioria dos estudantes de economia da segunda metade do século XX". [negritos nossos]. Ao que acrescento: infelizmente!

E o segundo é o também famoso Essays in Positive Economics (1953), de Milton Friedman, uma coletânea de artigos anteriores do autor, com um ensaio original - "A Metodologia da Economia Positiva" -, cujo conselho básico é respeitar a distinção de John Neville Keynes (pai de John Maynard Keynes) entre economia "positiva" e "normativa", sugerindo que a última não seria adequada para lidar com assuntos econômicos. O ensaio apresenta um programa epistemológico para a pesquisa econômica e sustenta que esta deve ser livre de julgamentos normativos, para que possa ser respeitada como algo objetivo e informar e economia normativa (por exemplo, as discussões sobre salário mínimo). Julgamentos normativos, para Friedman, freqüentemente envolvem previsões implícitas sobre as conseqüências de diferentes políticas. Sua sugestão é que essas diferenças poderiam ser minimizadas pelo progresso na economia positiva (1953, p. 5).

A partir dessas obras, a ciência econômica, então, já impregnada pelos agregados de Keynes e despida de uma teoria do capital, passou a ser tratada pelos economistas como se fosse algo que nunca foi, não é e nunca poderá ser: uma ciência exata, em que os agentes maximizam tudo o que lhes interessa maximizar e, no caso dos keynesianos em todas as suas vertentes, como os agentes individuais não o fazem, o governo pode e deve fazer, "cientificamente". E os mercados, dentro desse positivismo açodado, passaram a ser representados por equações e sistemas de equações. Não foi por acaso que a econometria se desenvolveu especialmente a partir do início dos anos 50.

Assim, Friedman e Lucas, de quem discutimos algumas ideias sobre expectativas e sobre equilíbrio, foram produtos naturais — talentosos, digamos de passagem — desse afastamento da ciência econômica daquilo que realmente é, de acordo com a tradição de Carl Menger: uma ciência que estuda a ação humana ao longo do tempo real e sob condições de incerteza genuína. Essa visão nunca foi abandonada pelos economistas austríacos, o que explica a decadência de sua popularidade já a partir dos anos 40 do século XX. Mas, por outro lado, o fracasso retumbante de keynesianos, monetaristas e novos clássicos, frente à crise que vem abalando o mundo desde que a bolha hipotecária estourou nos Estados Unidos — malogro este que se estende aos "remédios" que receitam e que vêm sendo aplicados em larga escala — abre novas perspectivas para a economia da ação humana, sua metodologia, seu individualismo metodológico, sua negação da possibilidade de se fazer previsões em ciências sociais, sua ênfase nas características dessas ciências e seu subjetivismo. Não tenho dúvidas em afirmar categoricamente que a Escola Austríaca está renascendo em todo o mundo com maior força, porque suas rivais fracassaram e continuam a fracassar rotundamente.

Definitivamente, keynesianos, monetaristas e novos clássicos trabalham com modelos sofisticados que descrevem um mundo do faz de conta. Mas o mundo real, que os austríacos sempre procuraram explicar desde Menger, não é este e está longe de ser como imaginam.

Referências bibliográficas
Garrison, R., From Lachmann to Lucas: on Institutions, Expectations and Equilibrating Tendencies, in: Israel M. Kirzner, ed., Subjectivism, Intelligibility and Economic Understanding: Essays in Honor of Ludwig M. Lachmann on his Eightieth Birthday, New York: New York University Press; London: Macmillan and Co., 1986, pp. 87-101.
Hayek, F. A., in: Reflections on the Pure Theory of Money,Econometricavol. 33 (August), 1931, p. 277]
Hayek, F. A., Prices and Production2nd ed. (New York: Augustus M. Kelley, [1935] 1967
Hayek, F. A., Profits, Interest, and Investmentedited by Friedrich A. Hayek (New York: Augustus M. Kelley, [1939] 1975)
Hayek, F.A., "The Use of Knowledge in Society", in: "Individualism and Economic Order", The University of Chicago Press, Chicago, 1948, págs. 77/91
Hayek, F.A. (ed), "Price Expectations, Monetary Disturbances, and Malinvestments," in: Profits, Interest, and Investment, edited by Friedrich A. Hayek (New York: Augustus M. Kelley, [1939] 1975)].
Iorio, Ubiratan J., Ação, Tempo e Conhecimento: a Escola Austríaca de Economia, IMB, São Paulo, 2011, cap. 2
Kirzner, I., Perception, Opportunity and Cost — Studies in the Theory of Entrepreneurship, The University of Chicago Press, Chicago, 1979
Kirzner, I. (ed),Subjectivism, Intelligibility and Economic Understanding, NYU Press,New York, 1986
Lachmann, L.M., "The Market as an Economic Process", Basil Blackwell, Nova York, 1986, pág. X.
Lachmann, L.M., "Austrian Economics in the Present Crisis of Economic Thought", in: "Capital, Expectations and the Market Process", Institute for Humane Studies, Menlo Park, 1977, pág.39.
Langlois, R.N., "Knowledge and Rationality in the Austrian School: an Analytical Survey", Eastern Economic Journal, IX, nº 4, out./dez. de 1985.
Lavoie, Don (ed), Expectatios and the Meaning of Institutions — Essays in Economics by Ludwig Lachmann, Routedlege, London,1994
Lucas, Robert E.. & Sargent, Thomas J., (eds), Rational Expectatios and Econometric Practice, The University of Minnesota Press, Minneapolis, 1981
 Kirzner, I., The Meaning of Market Process: Essays in the  Development of Modern Austrian Economics (Routledge, 1991)
Menger, Carl, Princípios de Economia olítica, Coleção Os Economistas, Nova Cultural, 1988
Miller, Preston J., The Rational Expectations Revolution — Readings from the Front Line, MIT Press, Cambridge, 1994
Mises, L. von, "Notes and Recollections", South Holland, Libertarian Press, 1978, págs. 36/37.
Mises, L., Ação Humana — Um Tratado de Economia,  Instituto Liberal, 1990
Murrell, Peter, "Did the Theory of Market socialism Answer the Challenge of Ludwig von Mises? A Reinterpretation of the Socialist Controversy," History of Political Economy, vol. 15, no. 1 (Winter), 1983, p. 95].
O'Driscoll, Gerald P. & Rizzo, Mario J., The Economics of Time and Ignorance, Basil Blackwell, Oxford, 1995
Sarjanovic, Ivo A., "El Mercado como Proceso: Dos Visiones Alternativas", in: Libertas, nº 11, ano VI, outubro de 1989, ed. pela Eseade, Buenos Aires, pág. 172.
Shackle, George L. S., Business, Time and Tought, edited by Stephen F. Frowen, MacMillan, 1988
Shackle, G.L.S., "Epistémica y Economía", Fondo de Cultura Economica, México, 1972.

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).  Visite seu website.

sexta-feira, 1 de março de 2013

LULA, ALIÁS LINCOLN

Lula deu agora para se comparar com Abraham Lincoln. A maior afinidade com o presidente responsável pela abolição da escravatura nos Estados Unidos, Lula a vê diretamente relacionada com a postura crítica da imprensa em relação a ambos: "Esses dias eu estava lendo o livro do Lincoln. E fiquei impressionado como a imprensa batia no Lincoln em 1860, igualzinho bate em mim". Com seu habitual descompromisso com a seriedade, Lula pretendeu ombrear-se com um dos maiores vultos da História e, ao mesmo tempo, mais uma vez desqualificar o trabalho da imprensa, a quem acusa do imperdoável crime de frequentemente contrariar suas opiniões e interesses. Foi um dos melhores momentos de seu show de meia hora durante as comemorações dos 30 anos da CUT, na última quarta-feira em São Paulo.

Essa nova bravata do Grande Chefe do Partido dos Trabalhadores (PT) não chega a ser novidade. É apenas mais uma a enriquecer a já alentada antologia das melhores pérolas de seu sofisticado pensamento político-filosófico. Novidade é a revelação de que Lula anda lendo livros. Confessou-o explicitamente, em tom de blague, dirigindo-se ao ministro Gilberto Carvalho, que fazia parte da mesa. "Estou lendo muito agora, viu Gilberto? Só do Ricardo Kotscho e do Frei Betto, li mais de 300", exagerou, em simpática referência a dois ex-colaboradores com quem já manteve relações mais estreitas.

Depois de falar mal da imprensa, Lula sugeriu que, diante da "falta de espaço" para as questões de interesse dos assalariados na mídia "conservadora", os sindicatos de trabalhadores se articulem para ampliar e tomar mais eficazes seus próprios meios de comunicação. Uma recomendação um tanto ociosa, pelo menos do que diz respeito à CUT, que dispõe de uma ampla rede de comunicação integrada por uma emissora de televisão, três de rádio, dois sites de notícias, dois jornais e uma revista mensal. Mas o verdadeiro problema não é exatamente a existência ou não de veículos de comunicação abertos às questões de interesse das organizações sindicais, mas o nível de credibilidade e, consequentemente, de audiência e leitura desses veículos.

Na verdade, o que o lulopetismo ambiciona para a consolidação de seu projeto de poder é dispor de mecanismos de controle da grande mídia, dos jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão que atingem o grande público e por essa razão têm maior peso na formação de opinião. Por entenderem que a maior parte da grande mídia está comprometida com interesses das "elites" e, por essa razão, é "antidemocrática", o PT e seus aliados à esquerda defendem a criação de mecanismos que permitam a "democratização dos meios de comunicação". Trata-se de um argumento absolutamente falacioso, pela razão óbvia de que, se a grande mídia tivesse realmente o viés que lhe é atribuído pela companheirada, o petismo, que se diz discriminado e perseguido por ela, não venceria três eleições presidenciais consecutivas e não estaria comemorando 10 anos de hegemonia política no plano federal.

Ocorre que o pouco que existe de pensamento político em Lula e seus companheiros está hoje quase todo vinculado estritamente à garantia das vantagens materiais que o poder proporciona. O que vai além disso se deixou impregnar pelo autoritarismo que sustenta regimes como os do Irã, Coreia do Norte e China, no Oriente, e Cuba e as repúblicas "bolivarianas" da Venezuela, Equador, Bolívia e Nicarágua, no Ocidente. Ou seja, as autocracias às quais a diplomacia do governo petista se aliou.

Lula, a bem da verdade, não tem formação marxista - ou qualquer outra. Foi sempre um pragmático, avesso a dogmatismos. Forjado na luta sindical, seu pensamento se resume ao confronto de interesses entre empregados e patrões. O resultado desse pragmatismo é a indigência de valores que, como nunca antes na história deste país, predomina hoje na vida política nacional e tem seu melhor exemplo no nosso desmoralizado Parlamento.

Mas Lula é líder popular consagrado, glória que lhe subiu à cabeça e lhe permite acreditar no que quiser, inclusive que se parece com Abraham Lincoln. Editorial O Estadão

LINCOLN, LULA E A "COMPRA DE VOTOS"

Por que episódios semelhantes levam a resultados díspares?


Motivado pela última obra de Spielberg, voltamos a refletir sobre o episódio da aprovação da 13ª emenda à Constituição americana como um exemplo paradigmático de um líder político que foi capaz de aproveitar uma janela de oportunidade para mudar dramaticamente a história do seu país. Embora o Partido Republicano, do presidente Abraham Lincoln, desfrutasse da maioria de cadeiras nas duas Casas Legislativas, não reunia votos suficientes para aprovar no Senado a reforma que acabaria com a escravidão. O cenário politico era de Guerra Civil e, mesmo assim, Lincoln conseguiu unificar as mais variadas facções do Partido Republicano com o argumento de que o fim da escravidão seria condição necessária para que a guerra acabasse. Lincoln sabia que, com a rendição do sul, seria praticamente impossível manter seu partido unido em favor da aprovação da emenda.

Presumindo que todos os republicanos votariam a favor, ainda seria necessário convencer 20 senadores democratas que não haviam sido reeleitos. Esse foi o contexto em que Lincoln enxergou uma janela de oportunidade ao oferecer empregos públicos aos senadores democratas em troca de apoio. No jargão da ciência política, Lincoln fez uso de patronagem. O presidente cogitou comprar apoio com dinheiro vivo, mas tendo sido desencorajado por assessores, decidiu então enviar intermediários de sua confiança para negociar a adesão dos senadores em troca de empregos. Não tendo sido plenamente bem sucedido, Lincoln foi obrigado a "sujar" as próprias mãos, negociando diretamente o apoio de alguns senadores relutantes. Após a aprovação da emenda, Lincoln se reúne com a comissão de confederados do sul e negocia os termos de rendição, que levou ao fim da Guerra Civil e o fez entrar para a história.

No caso brasileiro, o presidente Lula percebeu, logo no início do seu primeiro mandato, que seria necessário encontrar formas de cortar custos e aumentar receitas. A opção foi reformar os sistemas tributário e previdenciário, agenda que criaria controvérsias inclusive no seu próprio partido. Dada a condição de minoria, o governo Lula optou por uma via rápida para a realização de sua agenda, "comprando" o apoio de partidos (não apenas de dentro, mas também de fora da coalizão).

Essas reformas só seriam aprovadas com os votos dos dois principais partidos de oposição. A reforma da Previdência, por exemplo, foi aprovada com 357 votos na Câmara dos Deputados em dois turnos. Porém, o governo recebeu apenas 213 votos dos membros de sua coalizão, um número muito menor do que os 308 necessários. O próprio PT enfrentou 4 defecções e 7 abstenções. O PSDB e PFL, além de compartilharem dessa agenda de reformas, foram fartamente recompensados com a execução de mais de 75% das emendas individuais ao Orçamento da União em 2003. Como a grande maioria de ministérios (60%) foi monopolizada pelo PT e os recursos de emendas ao Orçamento foram direcionados para os partidos de oposição, restou ao governo Lula montar um esquema paralelo e ilegal de compensação para os membros de sua própria coalizão, mantendo-os com isso unidos e disciplinados.

Os principais envolvidos no esquema, apelidado de mensalão, foram julgados culpados e exemplarmente condenados pelo Supremo Tribunal Federal. Além disso, o procurador-geral da República acaba de encaminhar para a primeira instância do Ministério Público Federal de Minas Gerais o depoimento do principal articulador financeiro do mensalão, Marcos Valério, que acusa o ex-presidente Lula de ter recebido recursos do mesmo esquema. Se as investigações prosseguirem e mais evidências da participação do ex-presidente forem encontradas, Lula corre o risco de enfrentar ainda mais custos reputacionais e/ou judiciais, além de 'sair' da história pelo seu legado de envolvimento em corrupção.

Por que episódios de compra de votos, aparentemente semelhantes, podem apresentar resultados tão díspares para o legado de seus governantes?

Uma possível resposta atribui as ações desviantes a uma eventual nobreza dos fins perseguidos. Ou seja, enquanto Lincoln foi capaz de acabar com a escravidão e colocar um ponto final na Guerra Civil, trocando apoio político por cargos públicos, o governo Lula conseguiu basicamente aprovar poucas reformas e governabilidade junto ao Legislativo fazendo uso do mensalão. Tal receita é perigosa, pois relativiza os malfeitos. Lincoln fez uso de patronagem, mas o governo Lula extrapolou, além da patronagem também fez uso de dinheiro público em quantias vultosas.

Outra resposta estaria relacionada à capacidade das instituições de freios e contrapesos de fiscalizarem e punirem desvios de governantes. Lincoln recorreu a ferramentas questionáveis de governo há 150 anos, quando o acesso à informação era restrita, a qualidade da burocracia pública embrionária, a independência das instituições de controle débil, enfim, em um momento histórico de construção do estado de direito muito diferente e incipiente. Nas democracias atuais, tanto a opinião pública quanto as instituições de controle são mais vigilantes a violações da moralidade pública. A barganha política sem princípios gera mais custos.

Uma terceira explicação estaria diretamente relacionada à diferença de instrumentos de governo e poderes constitucionais e de agenda do presidente. O presidente Lula dispunha de fortes ferramentas para implementação de sua agenda política no Legislativo (tais como medida provisória, poder de urgência, poderes orçamentários etc). Portanto, o uso de ferramentas não legais ou meios desviantes para a implementação de sua agenda se torna ainda menos escusável.

O sistema presidencialista americano, desde Lincoln até hoje, caracteriza-se por ter um Executivo com parcos poderes unilaterais de governo. Além do mais, Lincoln teve que lidar com um Congresso poderoso, especialmente no século XIX, e sob Guerra Civil que ameaçava o projeto unificado de república. É surpreendente que o governo Lula não considerasse suficientes os meios constitucionais de imposição de seu projeto de governo e ferisse, com isso, a imagem histórica de ética que seu partido político apregoou desde sua fundação. Por: Carlos Pereira Valor Econômico