sexta-feira, 26 de abril de 2013

O STF CORRE PERIGO

No julgamento do mensalão o Supremo Tribunal Federal (STF) está decidindo a sua sorte. Mas não só: estará decidindo também a sorte da democracia brasileira. A Corte deve servir de exemplo não só para o restante do Poder Judiciário, mas para todo cidadão. O que estamos assistindo, contudo, é a um triste espetáculo marcado pela desorganização, pelo desrespeito entre seus membros, pela prolixidade das intervenções dos juízes e por manobras jurídicas.


Diferentemente do que ocorreu em 2007, quando do recebimento do Inquérito 2.245 – que se transformou na Ação Penal 470 -, o presidente Carlos Ayres Britto deixou de organizar reuniões administrativas preparatórias, que facilitariam o bom andamento dos trabalhos. Assim, tudo passou a ser decidido no calor da hora, sem que tenha havido um planejamento minimamente aceitável. Essa insegurança transformou o processo numa arena de disputa política e aumentou, desnecessariamente, a temperatura dos debates.

Desde o primeiro dia, quando toda uma sessão do Supremo foi ocupada por uma simples questão de ordem, já se sinalizou que o julgamento seria tumultuado. Isso porque não interessava aos petistas que fosse tomada uma decisão sobre o processo ainda neste ano. Tudo porque haverá eleições municipais e o PT teme que a condenação dos mensaleiros possa ter algum tipo de influência no eleitorado mais politizado, principalmente nas grandes cidades. São conhecidas as pressões contra os ministros do STF lideradas por Luiz Inácio Lula da Silva. O ex-presidente agiu de forma indigna. Se estivesse no exercício do cargo, como bem disse o ministro Celso de Mello, seria caso de abertura de um processo de impeachment.

A lentidão do julgamento reforça ainda mais a péssima imagem do Judiciário. Quando o juiz não consegue apresentar brevemente um simples voto, está sinalizando para o grande público que é melhor evitar procurar aquela instância de poder. O desprezo pela Justiça enfraquece a consolidação da democracia. Quando não se entende a linguagem dos juízes, também é um mau sinal. No momento em que observa que um processo acaba se estendendo por anos e anos – sempre havendo algum recurso postergando a decisão final – a descrença toma conta do cidadão.

Os ministros mais antigos deveriam dar o exemplo. Teriam de tomar a iniciativa de ordenar o julgamento, diminuir a tensão entre os pares, possibilitar a apreciação serena dos argumentos da acusação e da defesa, garantindo que a Corte possa apreciar o processo e julgá-lo sem delongas. Afinal, se a Ação Penal 470 tem enorme importância, o STF julga por ano 130 mil processos. E no ritmo em que está indo o julgamento é possível estimar – fazendo uma média desde a apresentação de uma pequena parcela do voto do ministro Joaquim Barbosa -, sendo otimista, que deverá terminar no final de outubro.

Esse julgamento pode abrir uma nova era na jovem democracia brasileira, tão enfraquecida pelos sucessivos escândalos de corrupção. A punição exemplar dos mensaleiros serviria como um sinal de alerta de que a impunidade está com os dias contados. Não é possível considerarmos absolutamente natural que a corrupção chegue até a antessala presidencial. Que malotes de dinheiro público sejam instrumento de “convencimento” político. Que uma campanha presidencial – como a de Lula, em 2002 – seja paga com dinheiro de origem desconhecida e no exterior, como foi revelado na CPMI dos Correios e reafirmado na Ação Penal 470.

A estratégia do PT é tentar emparedar o tribunal. Basta observar a ofensiva na internet montada para pressionar os ministros. O PT tem uma vertente que o aproxima dos regimes ditatoriais e, consequentemente, tem enorme dificuldade de conviver com qualquer discurso que se oponha às suas práticas. Considera o equilíbrio e o respeito entre os três Poderes um resquício do que chama de democracia burguesa. Se o STF não condenar o núcleo político da “sofisticada organização criminosa”, como bem definiu a Procuradoria-Geral da República, e desviar as punições para os réus considerados politicamente pouco relevantes, estará reforçando essa linha política.

Porém, como no Brasil o que é ruim sempre pode piorar, com as duas aposentadorias previstas – dos ministros Cezar Peluso, em setembro, e Ayres Britto, em novembro – o STF vai caminhar para ser uma Corte petista. Mais ainda porque pode ocorrer, por sua própria iniciativa, a aposentadoria do ministro Celso de Mello. Haverá, portanto, mais três ministros de extrema confiança do partido – em sã consciência, ninguém imagina que serão designados ministros que tenham um percurso profissional distante do lulopetismo. Porque desta vez a liderança petista deve escolher com muito cuidado os indicados para a Suprema Corte. Quer evitar “traição”, que é a forma como denomina o juiz que deseja votar segundo a sua consciência, e não como delegado do partido.

Em outras palavras, o STF corre perigo. E isso é inaceitável. Precisamos de uma Suprema Corte absolutamente independente. Se, como é sabido, cabe ao presidente da República a escolha dos ministros, sua aprovação é prerrogativa do Senado. E aí mora um dos problemas. Os senadores não sabatinam os indicados. A aprovação é considerada automática. A sessão acaba se transformando numa homenagem aos escolhidos, que antes da sabatina já são considerados nomeados.

Poderemos ter nas duas próximas décadas, independentemente de que partido detenha o Poder Executivo, um controle petista do Estado brasileiro por intermédio do STF, que poderá agir engessando as ações do presidente da República. Dessa forma – e estamos trabalhando no terreno das hipóteses – o petismo poderá assegurar o controle do Estado, independentemente da vontade dos eleitores. E como estamos na América Latina, é bom não duvidar. Por: MARCO ANTONIO VILLA, HISTORIADOR E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS (UFSCAR) – O Estado de S.Paulo

IRRESPONSABILIDADE

Sempre há um trauma passado que "explica" e serve para evitar a responsabilidade


A coluna da semana passada tratava da maioridade penal. Eu disse que sou a favor de considerar que, nos crimes mais graves (sobretudo contra a pessoa), os jovens sejam responsáveis pelos seus atos.

A partir de que idade? Talvez um juiz ou uma corte especial possam decidir, em cada circunstância, quando um jovem deve ser julgado como adulto ou não.

A coluna suscitou um grande número de comentários, pelos quais agradeço e aos quais não terei como responder individualmente. Tento resumir algumas objeções, organizando-as em quatro eixos:

1) A redução da maioridade penal não vai resolver o problema da violência.

Concordo: em geral, a severidade das penas não produz o efeito mágico de estancar a violência e o crime. Em compensação, a impunidade, ela sim, autoriza o crime e seu crescimento. Mas tanto faz: o que importa é que a violência criminosa baixa quando sobem não tanto as penas quanto a inclusão social e o sentimento de pertencermos todos a uma mesma comunidade de destino.

Desse ponto de vista, no máximo, a redução da maioridade penal faria que menos adolescentes fossem arregimentados pelo tráfico --mas nem isso é uma certeza.

2) Então, para que serve a proposta de reduzir a maioridade penal?

A Justiça e o sistema penitenciário sonham em amedrontar e dissuadir do crime. Também eles sonham com a reabilitação dos criminosos condenados. Agora, mais prosaicamente, eles têm a tarefa (menos gloriosa) de punir os criminosos de forma que a sociedade se sinta vingada e que, portanto, as vítimas não inaugurem ciclos de vendetas privadas.

A questão da maioridade penal se coloca relativamente a essa última tarefa da Justiça: podemos e devemos punir os jovens da mesma forma que os adultos?

3) Sobretudo, no caso dos jovens, não deveríamos querer que eles sejam reabilitados em vez de punidos? Para que encarcerar os jovens se sabemos que a detenção será uma escola do crime e não um lugar onde seria preparada sua reinserção social?

O sistema penitenciário moderno é paradoxal: nele, tanto para os jovens quanto para os adultos, a vontade de punir coexiste e rivaliza com a vontade de reeducar. Esse conflito de intenções talvez não seja uma falha, mas a propriedade essencial do sistema.

Nota: à vista do fracasso crônico de reabilitação e reinserção é possível pensar que a intenção de reeducar seja sobretudo o álibi necessário de uma punição que se envergonha de si mesma. Ou seja, queremos reeducar (e nunca conseguimos) porque nos envergonhamos de estarmos "ainda" punindo os criminosos. Gostaria de ter o tempo de reler "Vigiar e Punir", de Michel Foucault, pensando nisso.

4) A redução da maioridade penal significaria encher as cadeias de crianças pobres.

Em Brasília, 16 anos atrás, cinco jovens de classe média assassinaram barbaramente um índio, colocando fogo em seu corpo. Eles se desculparam dizendo, aliás, que não sabiam que era um índio, achavam que fosse um mendigo.

Graças a seu privilégio social, quatro desses jovens, condenados, cumpriram sua pena estudando e trabalhando fora da prisão. O quinto, que tinha 17 anos na época, ficou três meses num centro de reabilitação e só. Eu acho que ele deveria ter sido julgado como adulto.

Mais uma coisa. A coluna da semana passada queria abordar um problema mais amplo do que a simples maioridade penal. Explico.

Uma das grandes novidades de nossa cultura é que ela promove a obrigação de cada um responder por suas ações. Talvez por isso mesmo, para descansarmos um pouco de tamanho encargo, um dos grandes sonhos contemporâneos seja a irresponsabilidade.

É assim que nos tornamos mestres nas explicações que valem como desculpas.

Os assassinos de Brasília passearam demais pelos shoppings da capital e foram mimados pelos pais, e o assassino de Victor Hugo Deppman talvez tenha crescido em algum tipo de favela. Sempre há um trauma, um abuso passado, que "explica" e que serve para transferir a culpa.

Ao mesmo tempo, somos uma cultura "infantólatra", ou seja, que idealiza e venera as crianças como crianças. Ou seja, amamos vê-las sem nenhum dos pesos que castigam a vida adulta.

No sonho de irresponsabilidade que mencionei antes, esses dois traços de nossa cultura se combinam assim: 1) as crianças são todas querubins irresponsáveis e 2) a história da nossa infância nos torna irresponsáveis quando adultos. Que maravilha. Por: Contardo Calligaris Folha de SP

quinta-feira, 25 de abril de 2013

EIKE, EMBLEMA E INDÍCIO

O resgate em curso solicitaria investigações de outra ordem e de amplas implicações — que, por isso mesmo, não serão feitas

Eike Batista valia US$ 1,5 bilhão em 2005, US$ 6,6 bi em 2008, US$ 30 bi em 2011 e US$ 9,5 bilhões em março passado, depois de 12 meses nos quais seu patrimônio encolheu num ritmo médio de US$ 50 milhões por dia. Desconfie das publicações de negócios quando se trata do perfil dos investimentos de grandes empresários. Apenas cinco anos atrás, uma influente revista de negócios narrou a saga de Eike sem conectá-la uma única vez à sigla BNDES. Mas o ciclo de destruição implacável de valor das ações do Grupo X acendeu uma faísca de jornalismo investigativo. Hoje, o nome do empresário anda regularmente junto às cinco letrinhas providenciais — e emergem até mesmo reportagens que o conectam a outras quatro letrinhas milagrosas: Lula.

A história de Eike é, antes de tudo, um emblema do capitalismo de estado brasileiro. Durante o regime militar, Eliezer Batista circulou pelos portões giratórios que interligavam as empresas mineradoras internacionais à estatal Vale do Rio Doce. Duas décadas depois, seu filho converteu-se no ícone de uma estratégia de modernização do capitalismo de estado que almeja produzir uma elite de megaempresários associados à nova elite política lulista.

“O BNDES é o melhor banco do mundo”, proclamou Eike em 2010, no lançamento das obras do Superporto Sudeste, da MMX. O projeto, orçado em R$ 1,8 bilhão, acabava de receber financiamento de R$ 1,2 bilhão do banco público de desenvolvimento, que também é sócio das empresas LLX, de logística, e MPX, de energia. No ano seguinte, o banco negociou com o empresário duas operações de injeção de capital no valor de R$ 3,2 bilhões, aumentando em R$ 600 milhões sua participação na MPX e abrindo uma linha de crédito de R$ 2,7 bilhões para as obras do estaleiro da OSX, orçadas em pouco mais de R$ 3 bilhões, no Porto do Açu, da LLX. Hoje, o endividamento do Grupo X com o banco mais generoso do mundo gira em torno de R$ 4,5 bilhões — algo como 23% do seu valor total de mercado. Por: Demétrio Magnoli

“A natureza sempre foi generosa comigo”, explicou Eike. “As pessoas ricas foram as que mais ganharam dinheiro no meu governo”, explicou Lula. A política, não a economia, a “natureza” ou a sorte, inflou o balão do Grupo X. Dez anos atrás, o BNDES não era “o melhor banco do mundo”. Ele alcançou essa condição por meio de uma expansão assombrosa de seu capital deflagrada no fim do primeiro mandato de Lula da Silva. A mágica sustentou-se sobre o truque prosaico da transferência de recursos do Tesouro Nacional para o BNDES. O dinheiro ilimitado que irrigou o Grupo X e impulsionou uma bolha de expectativas desmesuradas no mercado acionário é, num sentido brutalmente literal, seu, meu, nosso, dos filhos de todos nós e das crianças que ainda não nasceram, mas pagarão a conta da dívida pública gerada pela aventura do empresário emblemático.

Eike é emblema, mas também indício. A saga da célere ascensão e do ainda mais rápido declínio do Grupo X contém uma profusão de pistas, ainda não exploradas, das relações perigosas entre o círculo interno do lulismo e o mundo dos altos negócios.

Na condição de “consultor privado”, em julho de 2006, o ex-ministro José Dirceu viajou à Bolívia, num jatinho da MMX, exatamente quando o governo de Evo Morales recusava licença de operação à siderúrgica de Eike. Nos anos seguintes, impulsionado por um fluxo torrencial de dinheiro do BNDES, o Grupo X atravessou as corredeiras da fortuna. Durante a travessia, em 2009, o empresário contou com o beneplácito de Lula para uma tentativa frustrada de adquirir o controle da Vale, pela compra a preço de oportunidade da participação acionária dos fundos de pensão, do BNDES e do Bradesco na antiga estatal. Naquele mesmo ano, o fracasso de bilheteria “Lula, o filho do Brasil”, produzido com orçamento recordista, contou com o aporte de um milhão de reais do empreendedor X.

A parceria entre os dois “filhos do Brasil” não foi abalada pela reversão do movimento da roda da fortuna. Em janeiro passado, a bordo do jato do virtuoso empresário, Eike e o ex-presidente visitaram o Porto do Açu. O tema do encontro teria sido um plano de transferência para o Açu de um investimento de R$ 500 milhões de um estaleiro que uma empresa de Cingapura ergue no Espírito Santo. Em março, depois que Lula recomendou-lhe prestar maior atenção às demandas dos empresários, Dilma Rousseff reuniu-se com 28 megaempresários, entre eles o inefável X. Dias depois, numa reunião menor, a presidente e um representante do BNDES teriam se sentado à mesa com Eike e seus credores privados do Itaú, Bradesco e BTG-Pactual.

Equilibrando-se à beira do abismo, o Grupo X explora diferentes hipóteses de resgate. O BNDES, opção preferencial, concedeu um novo financiamento de R$ 935 milhões para a MMX e analisa uma solicitação da OSX, de créditos para a construção de uma plataforma de petróleo. Entrementes, diante da deterioração financeira do “melhor banco do mundo”, emergem opções alternativas. No cenário mais provável, o Porto do Açu seria resgatado por uma série de iniciativas da Petrobras e da Empresa de Planejamento e Logística. A primeira converteria a imensa estrutura portuária sem demanda em base para a produção de petróleo na Bacia de Campos. A segunda esculpiria um pacote de licitações de modo a ligar o porto fincado no meio do nada à malha ferroviária nacional, assumindo os riscos financeiros da operação.

No registro do emblema, a vasta mobilização de empresas estatais e recursos públicos para salvar o Grupo X pode ser justificada em nome da “imagem do país no exterior”, como sugere candidamente o governo, ou da proteção da imagem do próprio governo e de seu modelo de capitalismo de estado, como interpretam as raras vozes críticas. No registro do indício, porém, o resgate em curso solicitaria investigações de outra ordem e de amplas implicações — que, por isso mesmo, não serão feitas. Por: Demétrio Magnoli O Globo

SOBRE A ATUAL INFLAÇÃO DE PREÇOS NO BRASIL E O PROBLEMA DA SELIC

Como atualmente só se fala em tomate, era inevitável tratarmos da crônica inflação de preços por que passa o Brasil. Qual a sua causa? Como resolvê-la? 

Em episódios passados — por exemplo, entre outubro de 2010 e setembro de 2011, quando o IPCA acumulado em 12 meses pulou de 5% para 7,31% —, o governo ainda se safava dizendo que a alta inflação de preços era culpa do nosso atordoante "crescimento econômico" e da nossa mundialmente invejável "economia superaquecida", e que tal inflação era um aceitável efeito colateral do inegável fato de que o Brasil estava se transformando em uma potência capaz de fazer a China tremelicar... 

Agora, no entanto, tal desculpa deixou de surtir o mesmo efeito de antes. Não somos mais capa da The Economist. Afinal, como culpar um PIB de 0,9% por um IPCA de 6,59% (acumulado em 12 meses em março de 2013)? Ainda pior é saber que o INPC, que mensura a inflação de preços para as famílias de baixa renda, está acumulado em 7,22%. 

Foi nesse embalo, que um leitor me mandou um email pedindo para comentar o seguinte trecho escrito por Reinaldo Azevedo em seu blog: 

Os alimentos continuam a pressionar a inflação, como informa reportagem da VEJA Online. Fosse só isso, tudo certo. Mesmo uma economia em deflação, como a do Japão, pode sofrer um choque de oferta — se não de tomate, daquela raiz-forte insuportável que se deve comer junto com outras coisas insuportáveis… Passa. Caso a inflação "tomatística" persista, o jeito é parar de comer tomate. O preço vai cair. 

O problema é que a elevação de preços se espalhou em alguns setores da economia. É só o tomate ou a cebola? Não! O índice de 12 meses, em março, chegou a 6,59%, acima, portanto, da banda superior da meta. Nove desses 12 meses referem-se ao ano de 2012, quando o PIB brasileiro cresceu modestíssimos 0,9%. Tem-se, portanto, uma situação indesejável de baixo crescimento com inflação alta. Ou não se tem? 

Agora eu volto lá aos economistas. Desafio os especialistas da Casa das Garças (que reúne muita gente boa e intelectualmente honesta), da Casa dos Tucanos, da Casa dos Falcões, da Casa dos Canarinhos a me demonstrar que a receita para baixar a inflação que está aí é a elevação de juros. 

Notem bem: eu não estou contestando que elevação de juros concorra para baixar a inflação, como não contesto que um dos efeitos do antibiótico é baixar febre quando o paciente contraiu uma infecção bacteriana 

O desafio é interessante, mas inócuo. Por quê? Porque movimentos da SELIC, por si sós, não indicam nada. Uma elevação da SELIC não é garantia alguma de que o Banco Central está querendo conter a inflação de preços, e por um simples motivo: a elevação da SELIC nem sempre significa um aperto monetário. E, da mesma forma, uma redução da SELIC nem sempre significa um afrouxamento monetário. Mais ainda: é perfeitamente possível acontecer o oposto, isto é, a SELIC subir ao mesmo tempo em que está havendo uma forte expansão monetária e a SELIC cair ao mesmo tempo em que está havendo uma redução na expansão monetária. 

Em suma, alterações da SELIC, se não analisadas corretamente, podem ser altamente enganosas, pois elas nem sempre indicam corretamente a real postura do Banco Central. 

O que é a SELIC e por que seu aumento não necessariamente significa uma restrição à inflação 

Para entender por que alterações da SELIC podem ser enganosas, é necessário antes entender o que ela é. 

A taxa SELIC nada mais é do que a taxa de juros que os bancos cobram entre si no mercado interbancário para emprestar (ou tomar emprestado) dinheiro que possuem em suas reservas. Os bancos recorrem a essas operações interbancárias diariamente porque, ao final de cada dia, precisam manter um determinado volume de dinheiro em suas reservas. (Esse volume de reservas é o equivalente a uma determinada porcentagem do total de seus depósitos, e é determinado pelo Banco Central; chama-se compulsório). 

Quando o Banco Central cria dinheiro eletronicamente e utiliza esse dinheiro criado do nada para comprar títulos públicos que estão em posse do sistema bancário, as reservas bancárias aumentam. Este aumento nas reservas bancárias tende a gerar uma diminuição na taxa de juros que os bancos cobram entre si no mercado interbancário. Ou seja, tende a gerar uma diminuição na SELIC. Afinal, com mais dinheiro nas reservas, menos bancos se veem na necessidade de pedir dinheiro emprestado no interbancário, e mais bancos se veem com reservas acima do nível estipulado pelo Banco Central. Ato contínuo, os bancos podem agora criar mais empréstimos para indivíduos e empresas. 

Ao estipular um valor para SELIC, o Banco Central manipula o mercado interbancário — injetando dinheiro nele — de modo a fazer com que a taxa de juros neste mercado se mantenha próxima do valor estipulado. 

No entanto, essa manipulação monetária do Banco Central não é o fator decisivo na expansão monetária que ocorre na economia. Quem realmente vai conduzir a expansão monetária é o sistema bancário. No arranjo financeiro e monetário em que vivemos, são os bancos que jogam dinheiro na economia, e não o Banco Central. O Banco Central não pode jogar dinheiro diretamente na economia (podia até o ano 2000, quando a Lei de Responsabilidade Fiscal finalmente proibiu esta prática); apenas os bancos podem fazer isso. 

Se os bancos sentirem que o momento econômico é bom, eles irão conceder empréstimos. E bancos, ao concederem empréstimos, criam dinheiro do nada e jogam este dinheiro na economia (para entender todo este processo em detalhes, recomendo este artigo). Portanto, se os bancos quiserem emprestar dinheiro, a oferta monetária irá aumentar. Por outro lado, se eles sentirem que o momento econômico não é muito favorável, eles reduzirão o ritmo de concessão de empréstimos, e a quantidade de dinheiro na economia crescerá a um ritmo bem mais vagaroso. 

Outra maneira de os bancos jogarem dinheiro na economia é comprando títulos do Tesouro. Quando o governo incorre em déficits orçamentários — e o governo brasileiro sempre incorre em déficits orçamentários (chamado de "déficit nominal") —, o Tesouro vende títulos para arrecadar dinheiro. Esses títulos são adquiridos pelo sistema bancário, sendo que, para comprar estes títulos do Tesouro, os bancos também criam dinheiro do nada. O Tesouro recebe esse dinheiro e o utiliza para custear suas despesas. O dinheiro entra na economia. 

Tendo entendido esse mecanismo, algumas extrapolações se tornam mais claras. Por exemplo, se a economia estiver indo bem e os bancos estiverem otimistas, eles concederão mais empréstimos (tanto para o setor privado quanto para o governo). Isso, por si só, fará com que os juros do interbancário, a SELIC, subam — afinal, como estão concedendo muitos empréstimos, os bancos continuamente terão de recorrer ao mercado interbancário para manter suas reservas naquele nível estipulado pelo Banco Central. 

Ato contínuo, o Banco Central — que trabalha com uma meta SELIC definida — terá de injetar dinheiro no mercado interbancário para conter esta subida na SELIC. Se ele injetar uma quantia suficiente, a SELIC permanecerá no mesmo nível. Se ele injetar uma quantidade insuficiente, a SELIC subirá. 

E essa conclusão é extremamente importante: sempre que os bancos expandem o crédito, ocorre uma maior atividade no mercado interbancário. Logo, sempre que os bancos expandem o crédito, a SELIC irá disparar caso o Banco Central nada faça. No entanto, dado que o Banco Central existe justamente para harmonizar esse processo de expansão monetária, ele irá intervir injetando dinheiro no interbancário a um ritmo que faça com que esta subida da SELIC seja mais branda e suave. Em outras palavras, o Banco Central irá injetar dinheiro no interbancário a um ritmo suficiente para fazer com que a SELIC suba suavemente. Neste cenário, temos um aumento da SELIC, mas o Banco Central não está genuinamente restringindo a expansão do crédito bancário. A quantidade de dinheiro na economia continuará crescendo vigorosamente. Estará havendo, portanto, um "aumento acomodatício" da SELIC. 

Logo, é plenamente possível vivenciarmos um aumento na SELIC e os empréstimos bancários seguirem crescendo a um ritmo forte. Ou seja: é perfeitamente possível que um aumento na SELIC não seja de forma alguma uma medida anti-inflacionária. 

Inversamente, caso os bancos, por algum motivo específico, se tornem mais pessimistas em relação ao futuro da economia e reduzam a concessão de crédito, a atividade deles no mercado interbancário será bem menos volumosa. Isso significa que, caso o Banco Central continue no mesmo ritmo de injeções monetárias, a SELIC cairá. E ela cairá sem que isso gere um aumento da expansão do crédito. Ou seja, é perfeitamente possível que a SELIC caia e que o volume de concessão de empréstimos bancários caia junto. Ou, para ser mais direto, é perfeitamente possível haver uma situação em que uma queda na SELIC seja acompanhada por uma postura anti-inflacionária dos bancos. 

Um exemplo extremo deste último fenômeno está ocorrendo nos EUA e na Europa neste momento: a SELIC deles está abaixo de 1%, e não está havendo nenhuma explosão na concessão de crédito. Ou, articulando mais corretamente, a SELIC deles está em níveis historicamente baixos justamente porque não está ocorrendo nenhuma explosão na concessão de crédito. Como os bancos estão pessimistas, eles não saem concedendo empréstimos a torto e a direito (como fizeram até 2008). Consequentemente, a atividade no interbancário é menos intensa e os juros ficam baixos. As injeções monetárias feitas pelo Fed e pelo Banco Central Europeu nos bancos não se traduziram em acentuadas expansões do crédito. 

E o Brasil? Ao nosso modo, estamos também passando por este fenômeno, mas com menos intensidade. 

Onde estamos e como chegamos aqui 

O gráfico abaixo mostra a evolução do agregado monetário M2. O M2 mensura a quantidade total de cédulas e moedas metálicas em poder do público mais depósitos em conta-corrente mais depósitos em poupança mais depósitos a prazo e outros depósitos no sistema bancário. 

Analisar o M2 é interessante porque ele mostra exatamente como os bancos estão se comportando. Da mesma forma que os bancos jogam dinheiro na economia quando concedem crédito, eles também retiram dinheiro da economia quando vendem algum papel para se recapitalizar, ou quando vendem dólares ou quando pegam algum empréstimo junto a corretoras e fundos de investimento. É bom ter isso em mente porque é o resultado destas duas medidas opostas (expansão monetária e contração monetária) que determinará a quantidade total de dinheiro na economia 

Se o M2 cresce aceleradamente — sempre que a linha do M2 se torna mais inclinada em relação ao ano anterior —, isso significa que os bancos estão otimistas e expandindo o crédito. Se o M2 desacelera, isso significa que os bancos estão mais contidos em sua concessão de crédito. Estão criando empréstimos mas também estão retirando dinheiro da economia em um volume maior em relação ao ano anterior. 

Veja a evolução do M2 no Brasil desde 2002. 



Gráfico 1: evolução do M2 (01/2002 — 02/2013) 

Agora, observe a evolução da SELIC. 


Gráfico 2: evolução da SELIC (01/2002 — 03/2013) 

No início de 2003, as alterações na SELIC realmente geraram os efeitos esperados pelos senso comum. A inflação de preços havia disparado em 2002 (ver gráfico 3) tanto por causa da forte expansão do M2 quanto por causa da acentuada desvalorização cambial (por causa da eleição e Lula), e o Banco Central teve de deixar os juros do interbancário subir de 18 para 26,5%. A subida dos juros no interbancário tende a ocorrer automaticamente, pois os bancos naturalmente elevarão os juros de seus empréstimos para se protegerem da inflação de preços. Nesta situação, o Banco Central simplesmente reduz suas injeções monetárias no mercado interbancário — ou, no extremo, ele simplesmente pára de injetar dinheiro. 

Tal elevação súbita e acentuada dos juros no final de 2002 e no início de 2003 fez com que ninguém se interessasse em pegar empréstimos, pois estavam muito caros. Como consequência, o M2 parou de crescer abruptamente, e o país entrou em recessão. 

A partir de meados de 2003, ocorre uma forte redução na SELIC, de 26,25% para 16,25%. Dado que esta redução não gerou nenhuma explosão no M2 até o final daquele ano, isso significa que a SELIC caiu justamente porque os bancos estavam contidos. Ou seja, primeiro os juros subiram porque a inflação de preços se manifestou de maneira súbita. Depois, voltaram a cair porque a concessão de crédito estava extremamente baixa, diminuindo a demanda no mercado interbancário. 

A inflação de preços acumulada em 12 meses cairia de 17% em maio de 2003 para 5,15% em maio de 2004 (gráfico 3). 

Em 2004, com a inflação de preços contida, o otimismo voltou e houve uma forte aceleração na concessão de crédito (daí o robusto PIB daquele ano). É possível dizer que a explosão do M2 em 2004 ocorreu por causa da forte redução da SELIC em 2003, sendo que tal redução foi possível porque os bancos praticamente não expandiram o crédito naquele ano. Após terem se contido por um ano, o que permitiu a redução na SELIC e a acentuada redução na inflação de preços, os bancos voltaram a expandir o crédito. 

Ou seja, até aqui, a relação entre SELIC e expansão monetária está indo de acordo com o senso comum. Um aumento na SELIC gerou contenção monetária, e uma redução na SELIC gerou expansão monetária. 

Já a partir de 2004, essa relação assume um comportamento errático. Por exemplo, de 2004 até o final de 2007, não se nota nenhuma correlação entre aceleração do M2 e alterações na SELIC. A SELIC sobe e desce, e o M2 continua subindo em velocidade constante. 

Mas em 2008 ocorre um fenômeno inverso ao de 2003: a SELIC aumenta porque os bancos estavam extremamente animados. A SELIC começou a se elevar em abril (de 11,25 para 11,75%) e foi até 13,75% em setembro. E o M2 foi junto. A elevação da SELIC não conteve o M2 naquele ano simplesmente porque, como explicado no início do artigo, ela foi uma consequência da forte aceleração da expansão de crédito naquele ano, o que gerou uma enorme demanda no mercado interbancário. Caso o Banco Central interrompesse suas injeções monetárias no mercado interbancário, a SELIC dispararia e toda essa expansão monetária seria interrompida. Porém, ele não fez isso. Ele optou por acomodar essa expansão do crédito com contínuas injeções monetárias, fazendo com que a SELIC subisse apenas suavemente. Esse foi o primeiro exemplo de "aumento acomodatício" da SELIC, isto é, um aumento que visa a possibilitar a continuidade da expansão do crédito. 

Já em 2009, o M2 se desacelera abruptamente (daí a recessão daquele ano), e junto com ele vem a SELIC, que cai de 13,75% para 8,75%. A desaceleração do M2 em 2009 está muito mais correlacionada ao clima de incerteza gerado pela crise financeira de outubro de 2008 do que pela elevação da SELIC ao longo de 2008, tanto é que a forte redução da SELIC ao longo de 2009 não estimula o M2. Ou seja, o M2 cresceu pouco em 2009, e a SELIC caiu acentuadamente, justamente por causa da postura mais comedida dos bancos, que não apenas se recuperavam dos excessos de 2008, como ainda estavam assustados com a crise de 2009. 

Já de abril de 2010 a agosto 2011, a SELIC pula de 8,75 para 12,50%. Mas o M2 dispara. Tem-se uma repetição de cenário de 2008. Os bancos estavam extremamente animados com as perspectivas econômicas do país, e seu crescente volume de empréstimos concedidos gerou grande demanda no mercado interbancário, o que elevou a SELIC. Novamente, se o Banco Central houvesse interrompido suas injeções monetárias, a SELIC dispararia, e essa expansão creditícia seria interrompida. Mas como a SELIC aumentou apenas vagarosamente ao passo que o M2 cresceu fortemente, isso significa que o Banco Central injetou de forma contínua dinheiro no mercado interbancário, apenas a um ritmo um pouco menor. Ou seja, o Banco Central na realidade estimulou essa expansão creditícia. Se ele quisesse, ele poderia ter interrompido suas injeções monetárias no sistema bancário. Mas isso não seria popular. Mais um exemplo de "aumento acomodatício" da SELIC, um aumento que não configurou nenhuma restrição à expansão monetária. 

A partir de agosto de 2011, a SELIC começa a cair. Cai de 12,50% para seus atuais 7,25%. E o M2 perceptivelmente desacelera junto: o crescimento do M2 em 2012 foi sensivelmente menor que o de 2011 — daí o baixo PIB do ano passado —, não obstante a SELIC tenha caído quase pela metade. Tudo indica que a SELIC caiu porque os bancos diminuíram seu ritmo de concessão de crédito, não obstante o Banco Central tenha continuado injetando dinheiro no mercado interbancário. 

Conclusão: um aumento da SELIC nem sempre significa contenção monetária (vide 2008, 2010 e 2011) e uma diminuição da SELIC nem sempre significa aceleração da expansão monetária (vide 2009 e 2012). Uma SELIC baixa, ou em queda, pode ser consequência de uma postura mais cautelosa dos bancos, que estão mais contidos em conceder empréstimos e, por conseguinte, estão demandando menos empréstimos no mercado interbancário. 

O que efetivamente aniquila uma inflação de preços 

Tendo entendido que a relação entre SELIC e inflação monetária nem sempre é explícita — aumento da SELIC não necessariamente significa contenção monetária e redução não necessariamente se reverte em expansão monetária —, façamos agora uma análise direta das medidas corretas e comprovadamente eficazes para se combater uma inflação de preços. 

Apenas duas medidas comprovadamente aniquilam uma inflação de preços de maneira efetiva: a quantidade de dinheiro na economia tem de parar de aumentar e a taxa de câmbio tem de se apreciar. Mais ainda: essas duas têm de ocorrer simultaneamente. 

Se a interrupção da expansão da quantidade de dinheiro na economia for acompanhada de uma depreciação cambial — arranjo esse que é incomum —, a inflação de preços não será debelada. Isso aconteceu no Brasil em 2003. Naquele ano, a quantidade de dinheiro na economia cresceu a uma das menores taxas de história do real, mas como o câmbio havia se desvalorizado fortemente no final de 2002 (por causa dos temores com a eleição de Lula), indo de R$2,25 para quase R$4 por dólar, o IPCA de 2003 chegou a um pico de 17% em maio de 2003. 

Observe os três gráficos a seguir. O primeiro gráfico mostra a variação do IPCA acumulado em 12 meses. O segundo gráfico mostra a variação do câmbio. E o terceiro gráfico mostra novamente a variação do M2. 


Gráfico 3: IPCA acumulado em 12 meses (01/2002 — 03/2013) 


Gráfico 4: evolução da taxa de câmbio (01/2002 — 03/2013) 


Gráfico 5: evolução do M2 (01/2002 — 02/2013) 

Logo de início, é possível observar que uma aceleração no M2 — a qual ocorre sempre que a linha do M2 se torna mais inclinada em relação ao ano anterior — é preponderante em determinar a variação do IPCA. Mas o efeito de uma forte alteração na taxa de câmbio não pode ser ignorado. 

Além do já citado exemplo de 2003 — quando o M2 ficou parado, mas o câmbio havia se desvalorizado —, são notáveis também os exemplos de 2005 e 2006. O M2 cresceu moderadamente nestes 2 anos (não houve nenhuma aceleração no crescimento, dado que a inclinação da linha não se altera), e a taxa de câmbio se valorizou continuamente. Como consequência, o IPCA acumulado em 12 meses caiu de 8% para 3% (e a SELIC também caiu continuamente, como mostra o gráfico 2). 

Já em 2007, embora a taxa de câmbio continuasse caindo, o M2 apresenta uma ligeira aceleração, o que altera o IPCA de 3% para 4,5%. Em 2008, a coisa degringola: o M2 dispara ao longo do ano, e o câmbio se desvaloriza fortemente nos quatro últimos meses. O IPCA atinge picos de 6,5%. 

Em 2009, há a súbita interrupção no crescimento do M2. A taxa de câmbio se aprecia. O IPCA chega a um mínimo de 4,17% naquele ano (ano em que a SELIC apresentou o menor valor de sua história até então). 

Em 2010, a variação cambial é relativamente pequena, mas o M2 apresenta uma aceleração vertiginosa. O IPCA sai de 4,17% para quase 6%. 

Em 2011, o M2 continua em forte expansão, e o IPCA atinge um pico de 7,31% em setembro, muito embora o câmbio tenha chegado à sua menor cotação (R$1,54 em julho) desde 2008. E com um detalhe adicional: a SELIC já havia subido de 8,75% para 12,50%, mostrando-se totalmente ineficaz para controlar a escalada da inflação de preços. 

Em 2012, há uma desaceleração substantiva do M2, mas tal desaceleração — que deveria ajudar a conter a inflação de preços — é contrabalançada pela desvalorização do câmbio, de R$1,70 no início de 2012 para um pico de R$ 2,11 em dezembro daquele ano. 

É neste ponto em que estamos atualmente. 

Primeira conclusão: a variação da oferta monetária é o fator preponderante para a inflação de preços. Se a oferta monetária estiver apresentando aceleração (a linha estiver mais inclinada em relação ao ano anterior), os preços subirão. 

E um aumento da SELIC nesta situação — algo que inevitavelmente ocorrerá, por causa da maior demanda no mercado interbancário —, não necessariamente significará uma política contracionista do Banco Central, e pelo seguinte motivo: para realmente conter uma expansão monetária que está em aceleração, o Banco Central tem de interromper por completo suas injeções no mercado interbancário. Isso faria com que os juros deste mercado — a SELIC — disparassem. Porém, ao continuar injetando dinheiro, o Banco Central evita esta disparada dos juros, e acaba por acomodar a expansão monetária. Isso ocorreu em 2008, 2010 e 2011. 

Segunda conclusão: apenas uma redução da expansão monetária não é garantia de redução da inflação de preços. É preciso que o câmbio também se aprecie. Caso isso não ocorra, pode haver uma estagflação (de certa forma, estamos atualmente neste cenário). 

Terceira conclusão: uma SELIC em queda não necessariamente significa aceleração da expansão monetária. A SELIC pode estar caindo porque, além de o Banco Central estar injetando dinheiro no mercado interbancário, os bancos estão reduzindo seus empréstimos, o que faz com que a atividade no interbancário seja menor. E como são os bancos que jogam dinheiro na economia, são eles que, em última instância, definem a intensidade da expansão monetária, à revelia do Banco Central. 

E agora? 

Observe que, de janeiro de 2008 a janeiro de 2013, a quantidade de dinheiro na economia mais do que duplicou. Isso permite uma explicação para vários fenômenos. 

Por exemplo, o baixo desemprego. Essa duplicação da quantidade de dinheiro na economia estimulou o aumento do emprego, pois a maior quantidade de dinheiro reduz o custo real dos encargos sociais e trabalhistas — ao menos temporariamente, enquanto os preços e custos estiverem crescendo bem abaixo da inflação monetária. Se a quantidade de dinheiro aumenta bem mais do que o aumento de preços, o volume de gastos tende a aumentar, o que significa que o desemprego tende a cair. 

Outro fenômeno também explicado por essa duplicação na quantidade de dinheiro é o contínuo aumento do salário mínimo sem o subsequente aumento do desemprego. Um comparativo entre a evolução do salário mínimo e a evolução do emprego estará totalmente incompleto se você não levar em conta a evolução da quantidade de dinheiro na economia. A análise que diz que aumento do salário mínimo gera desemprego pressupõe uma oferta monetária razoavelmente constante. Porém, se por uma conjunção de circunstâncias, a oferta monetária crescer muito e os preços crescerem bem menos, não há nenhum motivo para um aumento do salário mínimo gerar desemprego. 

No momento, como dito, o M2 está em clara tendência de desaceleração. Após ter crescido 18,7% em 2011, cresceu apenas 9% em 2012. Essa redução na sua taxa de crescimento foi suficiente para derrubar o PIB, mas, por causa da desvalorização cambial (o dólar foi de R$1,70 para R$2,11) e de todo esse robusto crescimento do M2 desde 2008, a inflação de preços praticamente não foi afetada. Dado que há uma defasagem entre expansão monetária e aumento dos preços, ainda há "gordura" para os preços subirem, mesmo que o M2 porventura mantenha a atual tendência de desaceleração. 

A conclusão, por ora, é que toda a propaganda governamental sobre "forçar" os bancos a conceder mais empréstimos felizmente não surtiu o efeito esperado. Sim, a carteira de empréstimos continuou se expandindo, mas a um ritmo mais contido, principalmente nos bancos privados, que aumentaram suas carteiras em apenas 7,4% nos últimos 12 meses. O principal risco, como sempre, vem dos bancos públicos, que aumentaram suas carteiras em 28,9% neste mesmo período. 

Bancos privados não são bobos. Eles sabem que emprestar dinheiro para uma população cujo endividamento está em níveis recordes nunca é uma boa política. É mais sensato e prudente expandir sua carteira de empréstimos de forma comedida, selecionando bem as pessoas para quem conceder empréstimo, a sair desvairadamente emprestando para qualquer um, como quer o governo. Sofrer calotes não é algo que nenhum banco privado quer vivenciar, especialmente no mundo pós-2008. 

Se os bancos privados mantiverem esta prudência e este comedimento, e os bancos públicos não desvairarem, não há por que esperar que haja grandes elevações na SELIC. 

Aliás, na atual situação, dado que a expansão monetária está em desaceleração — o que significa uma menor atividade no interbancário, e consequentemente uma SELIC baixa —, um aumento na SELIC seria algo inédito. Ainda não vivenciamos uma situação em que a SELIC foi elevada quando o M2 já estava em perceptível desaceleração e o PIB estava perto de zero. Para isso acontecer, o Banco Central teria de reduzir sobremaneira suas injeções monetárias no mercado interbancário, ou até mesmo retirar reservas do sistema bancário. Isso seria bastante atípico. 

O Banco Central tem sim o poder de elevar a SELIC quando quiser e até o nível que quiser. Basta ele anunciar que estará vendendo títulos do Tesouro a preços menores que seus valores atuais. Quanto mais baixos os preços a que ele estiver vendendo (e ele pode reduzir o preço o tanto que quiser), maiores serão os juros, maior será a quantidade de dinheiro que os bancos direcionarão para a compra destes títulos e consequentemente maior será o volume de reservas retiradas dos bancos, o que afetaria diretamente a expansão do crédito. Mas tal medida é politicamente inviável — ela afetaria todo o leilão de venda de títulos do Tesouro, que agora conseguiria apenas um valor muito pequeno por leilão, dado que todos os investidores prefeririam comprar mais barato do Banco Central. Consequentemente, o governo teria enormes dificuldades em financiar seus déficits e em rolar sua dívida. Impensável. 

Caso o Banco Central opte por deixar tudo como está, que é o que ele vem fazendo já há algum tempo, a única maneira de a inflação de preços cair é se os bancos voluntariamente decidirem conter seus empréstimos — o que também significa que o governo tem de reduzir seus déficits orçamentários — e o dólar se desvalorizar perante o real. 

Eis, portanto, o resumo da situação: por causa de um Banco Central totalmente inoperante e submisso ao governo, temos de ficar na torcida para que os bancos, contra seus próprios interesses lucrativos e contra os interesses do governo, se contenham e evitem a expansão de sua carteira de crédito. E temos de fazer figa para que aquele aloprado que está no comando da Fazenda demonstre algum bom senso e equilibre o orçamento. E temos de esperar alguma manifestação sobrenatural que faça com que os desenvolvimentistas que ocupam Brasília fiquem repentinamente sãos, abandonem a histeria e permitam uma eventual apreciação do câmbio. 

Ou seja, quando foi que você imaginou que chegaria o dia em que o preço do seu almoço seria totalmente dependente do bom senso e da frugalidade de banqueiros? 

Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

A NOVA GEOPOLÍTICA DO PETRÓLEO

Relatórios recentes da Agência Internacional de Energia sobre a situação do petróleo no mundo, da Exxon sobre as perspectivas para o setor, além de estudo da Harvard Kennedy School sobre as perspectivas de crescimento da capacidade de produção e o que isso significa para o mundo, ensejam algumas reflexões acerca das profundas modificações que devem ocorrer na geopolítica internacional nos próximos anos. Dois fatos novos deverão trazer significativas implicações políticas, econômicas e estratégicas no cenário internacional: as fontes de produção do petróleo sofrerão profundas mudanças e a demanda global, em especial da China, da Índia e do Oriente Médio, deverá crescer de 35% a 46% entre 2010 e 2035.


Em 2015 os EUA deverão superar a Rússia e se transformar no maior produtor mundial de gás natural. Até 2017 os mesmos EUA devem superar a Arábia Saudita e se tornar assim um dos maiores produtores de petróleo do mundo. De importadores passarão, até 2025, a ser exportadores de líquido de combustível, graças a um significativo aumento na produção de gás (20% de 2008 a 2012) e de petróleo (37% nesse período). Isso como resultado de uma nova tecnologia na exploração de depósitos profundos em formações de xisto (fraturamento hidráulico e perfuração horizontal) e da rápida melhoria na eficiência do consumo de combustível.

O novo cenário deverá propiciar um movimento de reindustrialização nos EUA, que atrairá de volta empresas instaladas na China e no México. Esse fato reforçará a tendência de crescimento do país e da redução das emissões de gás carbônico. Com isso poderá ocorrer o enfraquecimento das resistências domésticas às decisões internacionais na área de meio ambiente. Na medida em que são construídas usinas a gás natural, mais eficientes, haverá declínio nos EUA do uso no carvão mineral, substituído por usinas térmicas, o que pode significar aumento de sua exportação para os mercados europeu e chinês.

O crescimento na produção global é resultado do grande volume de investimentos feitos nos EUA desde 2003, com seu ponto mais elevado em 2010, em reservas não convencionais no país (xisto betuminoso), no Canadá, na Venezuela (óleo superpesado) e no Brasil (pré-sal). Por outro lado, Noruega, Reino Unido, México e Irã enfrentarão até 2020 queda na capacidade produtiva. O maior potencial de produção deve concentrar-se no Iraque, nos EUA, no Canadá e no Brasil. A continuação do crescimento da produção, contudo, dependerá, segundo os relatórios, de o custo desta se manter acima de US$ 70, a preços correntes.

Esse cenário otimista do crescimento da indústria petrolífera poderá ser afetado ou por uma recessão econômica global, que engendraria a redução do consumo na China, ou por uma crise no Oriente Médio, incluindo o Irã. Com a queda da demanda, o excesso de produção poderá trazer o preço para abaixo dos US$ 50, ameaçando a produção global. Mesmo nesse cenário pouco provável, o desenvolvimento de projetos de maior custo marginal, como o pré-sal brasileiro, segundo os relatórios, não ficaria afetado.

A partir desses fatos e projeções, surgem algumas consequências geopolíticas da revolução petrolífera. O Oriente Médio poderá deixar de ser o foco das preocupações para os principais mercados consumidores, especialmente para os EUA e a Europa. E a Ásia se tornará o principal mercado para a maior parte do petróleo do Oriente Médio, com a transformação da China em novo protagonista no cenário político dessa região.

Ao mesmo tempo, o Hemisfério Ocidental poderá recuperar a situação que tinha antes da 2.ª Guerra Mundial, voltando a ser autossuficiente em petróleo. Os EUA reduziram, desde 2006, em 40% a importação do produto. Não parece provável, porém, que os EUA se isolem do resto do mundo petrolífero e não tenham influência sobre a formação dos preços do produto, nem que, no contexto da política externa, as questões do Oriente Médio percam sua importância. A Rússia, nesse contexto, deverá reduzir suas exportações de petróleo e, sobretudo, diante da concorrência dos EUA, de gás natural para a Europa. A importância política relativa russa na Europa tenderá a diminuir, o que pode explicar o interesse de Moscou em se associar à OCDE.

Quanto às implicações desse novo cenário sobre a América Latina, o país mais afetado deverá ser a Venezuela. Em consequência da situação interna e das atitudes de Hugo Chávez, os EUA iniciaram nos últimos anos um processo de redução das aquisições de petróleo, hoje situadas ao redor de 10% da demanda norte-americana. As refinarias da costa do Golfo estão substituindo o petróleo venezuelano pelo xisto betuminoso, de produção local. O México, com produção cadente a partir de 2020, poderá tornar-se importador de petróleo, revertendo uma posição de tranquilidade nas suas contas externas. Essa situação poderá agravar-se caso ocorra a volta de maquilas norte-americanas, estimuladas pela reindustrialização favorecida pelos baixos preços do gás natural.

Argentina, por suas reservas importantes de xisto betuminoso, e Brasil, pelas reservas do pré-sal, estarão em posição privilegiada caso consigam superar as dificuldades internas que impedem a exploração das referidas reservas em sua plenitude. Nos dois países, a instabilidade jurídica, derivada da modificação das normas regulatórias, as limitações de financiamento das empresas e as dificuldades por que passam as estatais petrolíferas mostram um retrocesso em suas capacidades produtivas, justamente quando ocorre essa grande transformação na indústria de petróleo no mundo. No caso do Brasil, o petróleo do pré-sal não mais será absorvido pelo mercado americano, como inicialmente esperado. Outros destinos deverão ser buscados, em especial China e Índia. 

Por: Rubens Barbosa Fonte: O Globo

COMPLEXO DE VIRA-LATA

Nelson Rodrigues criou a expressão "complexo de vira-lata" após a derrota sofrida na final da Copa do Mundo de 1950, traduzindo um sentimento crônico de inferioridade nacional, inicialmente restrito ao campo do futebol e mais tarde abrangendo uma vasta gama de atividades (não mais o futebol!).

Muito embora o governo faça questão de afirmar a superação do "complexo de vira-lata", é visível o papel dessa síndrome na mais recente onda de desculpas sobre o desempenho lamentável no campo da inflação.

Tanto membros da equipe econômica como colunistas automaticamente alinhados com o governo têm destacado que as taxas de inflação observadas atualmente não diferem muito da média registrada desde o início do regime de metas para a inflação. Nesse período, a inflação média atingiu 6,3% ao ano, apenas ligeiramente abaixo dos níveis recentes.

Assim, segue o argumento, não haveria nada de errado com a inflação atual. De forma mais sutil (mas que parece impregnar o pensamento inclusive do Banco Central), esse tipo de colocação tenta ressuscitar a tese de que a inflação brasileira seria naturalmente elevada em razão de "problemas estruturais" que tornariam mais difícil sua redução sem enorme custo do ponto de vista de atividade.

Daí a noção de que a inflação só cairia com o uso de outros instrumentos (reformas, mudança no perfil da dívida pública etc.), terminando por concluir pela postergação constante do momento de atacar o problema de frente.

Nada mais falso. A começar pelo argumento da média que, parafraseando expressão algo sexista (desculpem!) atribuída, como tantas outras, a Roberto Campos, a média é como o biquíni: revela o interessante, mas oculta o essencial.

Em primeiro lugar, a média simples deixa de lado as mudanças da meta de inflação no período: começou com 8% em 1999 e é hoje de 4,5%, passando por até 8,5% (meta ajustada) em 2003. O correto, portanto, não é analisar o nível da inflação, mas seu desvio relativamente à meta: 1,5% ao ano no período.

Mais importante, porém, é a distribuição desse desvio, quase todo concentrado em dois anos: 2001 (ano do "apagão" e da crise argentina) e 2002 (a transição política). De fato, logo no primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva, a média do desvio da inflação foi 0,5% ao ano, aumentando levemente para 0,6% ao ano no segundo governo (ante crescimento médio do PIB, diga-se, de 3,5% e 4,5% ao ano, respectivamente).

Não foi o ideal, mas bem melhor do que temos observado até agora (desvio médio de 1,7% nos dois primeiros anos do atual governo e expectativas de 1,2% ao ano em 2013 e 2014).

Já no que se refere à comparação do desempenho com os demais países da América Latina que adotam metas para a inflação, o Brasil não fazia feio, registrando desvio pouco superior à média (e mediana) entre 2004 e 2010. Hoje, pelo contrário, o país lidera sozinho o campeonato inflacionário entre os países latino-americanos com regime monetário semelhante.

Esses números sugerem não haver nada de "estrutural" na incapacidade de entregar a inflação mais próxima da meta, além do recém-redescoberto "complexo de vira-lata".

Não apenas tínhamos desempenho alinhado ao de países sujeitos a choques similares mas, principalmente, nossa história mostra que um Banco Central mais decidido foi capaz de entregar a inflação bem mais próxima à meta do que parece ser possível hoje, sem prejuízo ao crescimento de médio e longo prazo.

A inflação alta não se deve a "choques externos" nem à incapacidade congênita do país; resulta, sim, da adoção de políticas incompatíveis com a convergência à meta, característica, aliás, que não vai se alterar com o arremedo de aperto monetário prometido pelo Copom.

A diferença essencial entre o Brasil de hoje e o de pouco tempo atrás se resume ao cabresto imposto ao BC e docilmente aceito pela instituição, também vítima do "complexo de vira-lata".
Por:Alexandre Schwartzman Folha de SP

UM "AUSTRÍACO HÍBRIDO" E POUCO CONHECIDO: WICKSTEED


Este artigo não pretende ser original. Minha principal motivação para escrevê-lo é tornar mais conhecido o nome de um economista que muito provavelmente só nos remete vagamente a uma ou outra nota de rodapé esquecida na implacabilidade do tempo e na imensidade de livros já lidos e que repousam em alguma estante. Não realizei pesquisa profunda para esse intento, apenas tomei como principal referência um artigo de Israel Kirzner que vou mencionar mais adiante, bem como informações que colhi durante poucos dias na Internet. Alguns confundem seu sobrenome com o de Knut Wicksell (1851-1926), considerado o pai da Escola Sueca de Economia e famoso por sua obra no campo da teoria monetária.

Mas de quem vamos tratar aqui é de Philip Henry Wicksteed (1844-1927), filho de um clérigo da igreja unitária, que foi ministro dessa mesma denominação (que, como sabemos, acredita em um Deus uno, rejeitando a Santíssima Trindade), classicista, medievalista (ficou famoso por seus trabalhos sobre a obra do poeta florentino Dante Alighieri), crítico literário e, a partir da meia idade, economista. Foi influenciado por Henry George e William Stanley Jevons e exerceu alguma influência sobre o pensamento de Joseph Schumpeter, Ludwig von Mises e, mais tarde, Henry Hazlitt e Murray Rothbard.

Seu interesse em Dante serviu para consagrá-lo como um dos maiores medievalistas de sua época e suas motivações teológicas, bem como sua preocupação com a ética da sociedade comercial moderna despertaram seu interesse pela economia. Talvez essas preocupações o tenham levado a ser membro da Sociedade Fabiana, uma organização britânica cujo objetivo era propagar os princípios socialistas de maneira gradual, mediante reformas e não por revoluções, algo como o que tentou fazer Antonio Gramsci posteriormente. Essa sociedade deu origem a uma reformulação política da qual acabou surgindo, em 1900, o Partido Trabalhista britânico.

Mas como? Um socialista da Escola Austríaca? Bem, não nos assustemos com isso, porque Joseph Schumpeter chegou a escrever que Wicksteed "estava um pouco fora da profissão de economista"...

No entanto, sua teoria econômica é anti-marxista por excelência. Como escreveu Alceu Garcia em 2002,

"Quando a doutrina econômica marxista emergiu de sua obscuridade inicial em fins do século XIX e reclamou um lugar de honra no panorama teórico da disciplina, já encontrou um novo e firme edifício científico erigido a partir das descobertas dos pioneiros do marginalismo, na década de 1870. Descartada a teoria clássica do valor-trabalho, o marxismo, que dela deduzia todo o seu sistema, também soçobrou. Autores treinados na nova técnica, como Eugene von Böhm-Bawerk, Philip Wicksteed e Vilfredo Pareto, analisaram e refutaram as teses marxistas com a maior facilidade. O marxismo foi portanto barrado na porta de entrada do templo da respeitabilidade científica no campo da economia, e ficou confinado a guetos ortodoxos estagnados que não eram levados a sério fora de seu círculo".

Portanto, ele poderia ser enquadrado atualmente como um social-democrata moderado e não como um socialista e muito menos como um comunista. Wicksteed manteve uma postura subjetivista no pensamento econômico, colocando a medida de valor na mente do consumidor e não apenas no próprio bem. Mesmo não tendo sido reconhecido em vida como um grande economista, influenciou, embora indiretamente e nem sempre claramente, a segunda geração de austríacos notáveis, ??entre eles Ludwig von Mises, em cuja obra alguns insights de Wicksteed são perceptíveis às mentes mais atentas.

Além disso, devemos notar que sua preocupação sempre manteve natureza teológica e que foram aquelas questões de forte apelo no que hoje os politicamente corretos chamam de "social" que contribuíram para despertar seu interesse pela ciência econômica.

Lecionou economia durante muitos anos em Londres e, em 1894, publicou seu célebre An Essay on the Co-ordination of the Laws of Distribution, em que tentou provar matematicamente que um sistema distributivo que recompensasse os proprietários das fábricas de acordo com a produtividade marginal esgotaria o produto total produzido. Mas foi em 1910, com The Common Sense of Political Economy, que surgiu mais claramente sua maneira peculiar de enxergar a teoria econômica.

Como observou o Prof. Israel Kirzner no capítulo 7 do excelente The Great Austrian Economists (Randall G. Holcombe, Mises Institute, 1999. iBooks), sob o título Philip Wicksteed: the British Austrian, Wicksteed ocupa na História do Pensamento Econômico uma posição situada entre a de Jevons e a dos austríacos.

A opinião de Kirzner é que, do ponto de vista doutrinário, Wicksteed tem alguma identificação com a tradição iniciada por Carl Menger, embora não possamos classificá-lo como um austríaco puro, no senso que essa expressão significa. Embora tenha sido contemporâneo de Menger, Wieser e Böhm-Bawerk, tudo leva a crer que ele não teve contacto direto e nem por cartas com nenhum deles e nem tampouco esteve em Viena. Mas, em The Common Sense, obra com quase novecentas páginas distribuídas em dois volumes, ele citou Menger duas vezes, Wieser três, Böhm-Bawerk duas e Mises uma vez, ainda que não tenha revelado qualquer influência forte dessa primeira geração de economistas austríacos. Quem teve maior influência sobre ele foi William Stanley Jevons, citado diversas vezes no livro mencionado e que de certa forma também possuía algo de "austríaco". Sua obra influenciou em alguns pontos a segunda geração dos seguidores da tradição de Menger, mas, embora Mises, no final de sua vida, tenha se referido ao The Common Sense como um "grande tratado" de Wicksteed, ninguém pode afirmar que tenha sido fortemente influenciado por ele. Em Ação Humana, Mises o cita apenas uma vez, em uma nota de rodapé.

Em que sentido, então, o Prof. Kirzner, um austríaco de quatro costados, refere-se a Wicksteed como um "austríaco britânico"? A resposta é que existe uma afinidade não desprezível entre ele e os austríacos em relação ao âmbito, caráter e conteúdo da análise econômica. Sob o ponto de vista ideológico, no entanto, Wicksteed não foi um austríaco, pois era um tanto simpático ao socialismo, como observamos anteriormente, o que se explica pelo fato de que em sua época, as ideias socialistas tinham apelo mais forte em Londres do que em Viena. É importante, para que o entendamos melhor, atentarmos para o fato de que sua abordagem não seguiu a tendência marshalliana dominante naquele tempo, nem tampouco a de Leon Walras que, como sabemos, juntamente com Menger e Jevons, foram os "descobridores" da doutrina da utilidade marginal, em 1871, embora trabalhando independentemente. Foi por desconfiar ou rejeitar o pensamento clássico sobre o funcionamento dos mercados e por rejeitar as ideias de Marx que Wicksteed aproximou-se dos austríacos, especialmente de Mises.

Naqueles anos, a maior influência sobre a mainstream economics era a de Alfred Marshall, que a herdara dos clássicos. Marshall não procurou destruir essa tradição, mas limitou-se a preencher algumas lacunas que julgava haver encontrado nas obras dos economistas clássicos. Já Wicksteed, assim como Menger e Jevons, acreditavam que era preciso fazer uma reconstrução completa na teoria econômica. Marshall foi um revisionista, enquanto Wicksteed foi um revolucionário em termos de teoria econômica.

Kirzner, no artigo citado, escreve que podemos identificar fortes componentes austríacos nesse intento revolucionário de Wicksteed, que seriam decorrentes de sua postura subjetivista e destaca três deles, a saber, sua forte ênfase no componente subjetivista dos custos; sua rejeição à visão clássica da teoria econômica com seu modelo do homo oeconomicus; e sua preocupação com o processo de mercado, em contraposição à visão clássica de equilíbrio de mercado. A esses três componentes analisados pelo Prof. Kirzner, acrescento um quarto, que pode revelar alguma influência na obra de Hayek, especialmente a partir dos anos quarenta, o da imperfeição do conhecimento.

Nas palavras de Kirzner,

Podemos aventar a hipótese de que, em relação a estes três aspectos do 'austrianismo' de Wicksteed, o primeiro parece ter sido o que mais impressionou o Robbins, o segundo talvez seja o que mais tenha impressionado Mises, e o terceiro talvez seja o de maior interesse para os austríacos modernos, os discípulos de Mises e Hayek.

Vamos resumir em seguida cada um desses três componentes austríacos seguindo o excelente artigo de Kirzner.

1o. O subjetivismo

Wicksteed se rebelou contra a visão clássica da atividade econômica, especialmente a de produção, que a estuda a partir de relações estritamente técnicas, totalmente distintas das considerações de utilidade marginal que regem as decisões de consumo. Para ele, em nenhum caso o custo de produção pode ter influência direta sobre o preço de uma mercadoria, pois, em todos os casos em que os custos de produção ainda não foram incorridos, o fabricante faz uma estimativa das alternativas ainda em aberto para ele antes de determinar se, e em que quantidades, a mercadoria deve ser produzida, e o fluxo de produção assim determinado estabelece o valor marginal e o preço.

A única hipótese em que o custo de produção pode afetar o valor de um bem é no sentido de que ele próprio é o valor de outro bem. Assim, os custos de produção possuem uma natureza claramente subjetiva. Para Wicksteed, então, o custo desempenha um papel na explicação do preço de mercado apenas quando equivale ao valor previsto de uma alternativa em perspectiva, que é, no momento da decisão de produção, rejeitada em favor do que se decidiu produzir.

Como observou o Prof. James Buchanan, "o trabalho de Wicksteed exerceu uma influência muito importante na teoria dos custos que surgiu no final dos anos 1920 e início dos anos 1930 na London School of Economics".

2o. O objeto de estudo da teoria econômica

Em Common Sense, Wicksteed manifesta grande interesse sobre o que realmente significa o adjetivo economics(em português, o melhor significado para esta palavra é teoria econômica). E ele manifesta essa sua busca tentando desenvolver as implicações revolucionárias da obra de Jevons, tentando demonstrar a incoerência da visão clássica da teoria econômica, sustentando que é arbitrário o procedimento analítico de enxergar a busca de riqueza material como um campo exclusivamente distinto da pesquisa econômica. E vai mais além, argumentando que, além de arbitrário, esse expediente é inútil, do ponto de vista analítico, para sequer dizer o mínimo, para enxergar as conclusões da ciência econômica como dependentes do domínio dos motivos egoístas — empregados não com o sentido de individualistas -, que são característicos do homo oeconomicus.

Nesse aspecto, as semelhanças com os insights de Mises são bastante visíveis. Ambos insistiram no aspecto da aplicação universal das conclusões deduzidas de nossa compreensão dos propósitos e racionalidade dos agentes econômicos ao tomarem suas decisões. Então, um preço, no sentido mais restrito do "dinheiro usado para adquirir um bem material, um serviço ou um privilégio", é para ele apenas um caso especial de um conceito mais amplo, aquele das condições sob as quais diversas alternativas são oferecidas aos agentes.

Para Mises, a exclusão de motivos altruístas da teoria econômica é arbitrária, porque é baseada em uma compreensão equivocada dos fins da ação humana, já que o que movimenta o comportamento dos agentes nos mercados são simplesmente suas intenções. Wiksteed caminhou dentro dessa perspectiva, ao insistir que o "propósito de excluir de consideração os motivos benevolentes ou altruísticos no estudo da teoria econômica é algo completamente irrelevante e inadequado".

Então, vemos com clareza que aquilo que Wicksteed e os austríacos estavam fazendo era consistentemente e subjetivamente redirecionar o foco da análise econômica dos objetos puramente materiais do método clássico para as implicações das escolhas individuais. Aqui, encontramos um componente do individualismo metodológico comum a Wicksteed e aos austríacos.

3o. O mercado como um processo

Na concepção de Wicksteed, um mercado "é o mecanismo pelo qual os que possuem escalas de preferências elevadas para um determinado bem são colocados em comunicação com os que, relativamente ao mesmo bem, possuem escalas de preferências baixas, de modo que as trocas podem oferecer satisfação mútua até que o equilíbrio seja estabelecido. Mas esse processo sempre e necessariamente exige tempo". [negritos nossos]

Sem qualquer dúvida podemos achar aspectos dessa definição consistentes com os postulados da Escola Austríaca sobre o processo de mercado. Alguns poderão argumentar que a afirmativa de Wicksteed de que os mercados tendem para o equilíbrio seria "não austríaca", mas por outro lado — e aí é que reside sua importância — ele também reconhece explicitamente que o mercado é um processo em que há uma tendência demorada, ou seja, que demanda tempo, no sentido do equilíbrio, durante a qual os agentes estão em comunicação uns com os outros e não como uma instituição social em que se assume no instante seminal a hipótese de conhecimento perfeito mútuo, que é instantaneamente transplantado em uma matriz de preços e quantidades de equilíbrio.

Aqui, é bastante clara a semelhança de Wicksteed com Mises, Rothbard e o próprio Kirzner, bem como com Hayek, este último no que se refere à imperfeição e dispersão do conhecimento. Lionel Robbins, na longa introdução que escreveu para The Common Sense, já chamava a atenção para esse aspecto austríaco da obra de Wicksteed, muitos anos antes de Hazlitt, Rothbard e Kirzner sequer pensarem em estudar economia, como também bem antes de Hayek desenvolver sua teoria do conhecimento.

A abordagem de Wicksteed é diferente das de Jevons e Marshall e é bem diferente da de Pareto que, como sabemos, na linha de Leon Walras, se transformou no principal teórico do "equilíbrio geral". Sua análise do equilíbrio não o vê como um fim por si próprio, mas como uma ferramenta analítica para tentar explicar as tendências de uma determinada situação do mundo real. Sua preocupação com a evolução ao longo do tempo dos fenômenos econômicos era muito maior do que com os resultados finais momentâneos. Então, vemos que Wicksteed, dentro da tradição austríaca, vê as decisões dos agentes nos mercados não como implicações de condições de equilíbrio que de alguma forma foram aceitas como existentes, mas como as causas iniciais, bem como as fases características do processo de mercado em seu caminhar no sentido do equilíbrio.

4o. A questão do conhecimento

Ao rejeitar o equilíbrio dos mercados como paradigma da ciência econômica e ao analisar os mercados como processos dinâmicos, Wicksteed, implicitamente, estava querendo chamar a atenção para o fato de que o conhecimento dos agentes econômicos das circunstâncias de tempo e de espaço não é perfeito e ao definir os mercados como mecanismos em que os indivíduos com escalas de preferências elevadas para um determinado bem se comunicam com os que, relativamente ao mesmo bem, têm escalas de preferências baixas, de modo que as trocas podem oferecer satisfação mútua até que o equilíbrio seja estabelecido, ele estava antecipando os rudimentos da teoria do conhecimento que Hayek desenvolveria a partir dos anos quarenta.

Nesse sentido, Wicksteed também foi um austríaco. Não tenho informações sobre se Hayek conhecia com profundidade a obra de Wicksteed, mas a probabilidade de que a conhecesse é quase de 100%, o que me permite incluir este quarto elemento que não foi enfatizado por Kirzner em seu brilhante artigo. Portanto, creio que podemos admitir que Hayek, conhecedor profundo da obra de Mises, que, por sua vez, conhecia bem a de Wicksteed, também foi de certa forma influenciado por este último.

Kirzner conclui seu artigo escrevendo que

"Em conclusão, talvez o sentido em que Wicksteed pode ser visto como um austríaco possa ser encontrado nas observações de Mises acerca das características distintivas do economista".

E encerra citando Mises,

"O economista trata de assuntos presentes e operantes em cada homem. O que distingue [o economista] de outras pessoas não é nenhuma oportunidade esotérica para lidar com algum assunto não acessível aos outros, mas a maneira como ele olha para as coisas e descobre nelas os aspectos que as outras pessoas não conseguem perceber. Foi isso que Philip Wicksteed tinha em mente quando escolheu para seu grande tratado [The Common Sense] um lema do Fausto, de Goethe: A vida humana todos a vivem, mas apenas poucos a conhecem". [Em alemão: Eins jeder lebt's, nicht vielen ist's bekannt e em inglês; We are all doing it; very few of us understand what we are doing"]

Esta frase de Goethe também pode ser aplicada, claramente, à questão hayekiana da limitação do conhecimento: se quase todos vivem sua própria vida, porém sem conhecê-la, é porque o conhecimento de quase todos é limitado e contém imperfeições.

Philip Henry Wicksteed foi sem dúvida um homem multitalentoso, uma personalidade singular e um modelo de erudição: classicista, medievalista crítico literário e economista, sendo que quando se interessou pela ciência econômica já tinha mais de quarenta anos. Juntamente com John Aitken traduziu do italiano para o inglês aDivina Comédia, de Dante Alighieri. Em 1903 escreveu um livro, The Convivio of Dante Alighieri e também publicou Dante and Aquinas, The Early Lives of Dante e From Vita Nova to Paradiso, que o consagraram como profundo conhecedor do maior dos poetas italianos.

Construiu reputação como um dos maiores medievalistas de seu tempo. Escreveu estudos teológicos e sobre ética desde 1867, ano em que se formou, com medalha de ouro, em Classicismo no Manchester New College e continuou a escrever sobre Teologia mesmo depois que deixou o púlpito, em 1897. Além disso, suas críticas literárias eram reconhecidas pelo público como excelentes. Foi, sem dúvida, um humanista e universalista de mão cheia, o que também o aproxima dos economistas austríacos que como todos sabem não se restringem nem se limitam a estudar apenas a teoria econômica. Isso é particularmente importante na atualidade, em que a maioria dos economistas limita-se à técnica de maximizar funções, às regressões econométricas, aos modelos dinâmicos de equilíbrio geral e aos gráficos.

Em The Common Sense, um volume bastante extenso, encontramos pouquíssimos gráficos e uma ou outra equação algébrica que qualquer estudante mediano do ensino básico entende com facilidade. No entanto, a teoria econômica exposta na obra é densa e profunda, tal como nos livros dos economistas austríacos, a começar por Human Action.

Outro fato que chama a atenção e que impressiona, sobretudo no mundo de hoje, em que a especialização em campos restritos é a tônica, é que ele foi competente em todas essas múltiplas facetas de sua vida profissional. O segredo para tal sucesso só pode ser explicado por três determinantes: inteligência bem dotada, busca de conhecimentos e dedicação exemplar ao trabalho.

Finalizo explicando por que classifiquei Wicksteed, no título deste artigo, como um austríaco híbrido. Evidentemente, sua simpatia pelo socialismo e seu envolvimento com os fabianos o afastam da tradição de Menger. Mas não se pode negar que ele foi, sem dúvida, quase que um autêntico austríaco na ênfase ao subjetivismo, na discussão sobre o objeto de estudo da ciência econômica, na abordagem dinâmica dos mercados como processos que convergem para o equilíbrio (mas que, contudo, não chegam a atingi-lo) e na aceitação de que o conhecimento dos agentes econômicos está longe de ser perfeito.

Se pudéssemos retirar de sua biografia seu lado fabiano, seria — é claro! — muito bom, mas de qualquer forma acredito que ele tenha sido uma personalidade a ser exaltada e respeitada por todos os que se interessam pela tradição de Carl Menger.

Por: Ubiratan Jorge Iorio  economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

terça-feira, 23 de abril de 2013

UM MUNDO ESCURO

Está cada vez mais difícil, em nosso mundo de hoje. encontrar inocentes. No exalo momento em que estiver lendo estas linhas, o leitor poderá muito bem estar sendo culpado pela prática de algum delito sério, mesmo que não saiba disso - e provavelmente não sabe. Como poderia saber? As noções de certo ou errado, de bem ou mal ou de justo e injusto, cada vez mais, são definidas por dezenas de "causas", em relação às quais é indispensável estar do lado correto. E que lado é esse? É o lado dos donos ou dos militantes dessas causas - tarefa complicada, considerando-se que elas se multiplicam sem parar, não têm conexão nenhuma entre si e sua própria existência, muitas vezes. é completamente desconhecida do público em geral. Com o desmanche cada vez mais rápido de qualquer valor ou princípio na atividade política, e o falecimento da ideia geral de "direita" e "esquerda", o campo do "bem" vai sendo ocupado por movimentos que defendem ou condenam todo tipo de coisa. Importa cada vez menos, também, o divisor de águas formado pelo conjunto de valores morais como integridade, decência, gratidão, generosidade, honradez, cortesia e tantos outros que marcavam a correção do indivíduo, do ponto de vista pessoal, na vida de todos os dias. O cidadão, hoje, pode ser tudo isso ao mesmo tempo, mas ainda assim não será inocente basta não concordar com as bandeiras em voga, ou ser indiferente a elas, ou não saber que existem.

Todas essas cruzadas se declaram proprietárias exclusivas do bem e têm, cada vez mais, a certeza de que a lógica, os argumentos baseados em fatos e o livre debate devem ceder lugar à fé - a fé dos dirigentes e militantes das "causas", que se julgam moralmente superiores e portanto, autorizados a exigir que todos abram mão do seu direito a raciocinar e simplesmente concordem com eles. O lado escuro disso tudo é que a defesa de tais bandeiras está se tornando cada vez mais fanática - e o resultado é a criação, pouco a pouco, de um novo totalitarismo. Nega-se as pessoas o direito de discordar de qualquer delas e, principalmente, de criticar seja lá o que proponham; não é permitida nem a simples neutralidade, pois quem é neutro é considerado cúmplice do mal.

Os efeitos práticos são muito parecidos com os que se produzem nas ditaduras - e sua primeira vítima é a liberdade de pensar e de exprimir o que se pensa.

Muito de todo esse ruído é simplesmente cômico; além disso, ao contrário do que acontece nas tiranias, os líderes das novas causas não têm a seu dispor a força armada para obrigar o público a obedecer a suas decisões. Mas. em ambos os casos, sua atividade está gerando cada vez mais consequências na vida real. Ainda há pouco, um anúncio da agência AlmapBBDO mostrava um gato preto subindo no capô de um Volkswagen, numa brincadeira 100% inocente a respeito de sorte e azar. Ideia proibida, hoje em dia. Grupos que defendem a causa dos gatos, de qualquer cor, decidiram que o comercial estimulava a "perseguição" e o "desrespeito" ao gato preto, e exigiram da empresa que o comercial fosse retirado do ar. Ganharam: a Volkswagen, uma das maiores companhias do mundo, com mais de noventa fábricas. 550.000 empregados e faturamento superior a 200 bilhões de dólares em 2012, ficou com medo do pró-gato e topou, sim, cancelar o anúncio. Há uma coisa muito parecida com isso - ela se chama censura. A AlmapBBDO, uma das agências de publicidade mais respeitadas do Brasil, queria levar o comercial ao público, como a imprensa queria publicar notícias durante a ditadura militar. Mas a cruzada dos gatos, como acontecia na época em que o governo cortava as notícias que lhe desagradavam, não quis. Nas duas situações uma pela força bruta, a outra pela pressão bruta - o resultado prático é o mesmo: aquilo que deveria ter sido publicado não o foi. Qual é a diferença?

Episódios como esse vão se tornando comuns e, para piorar as coisas, deixam atrás de si uma nuvem radioativa que contamina o ambiente do pensamento e faz com que as pessoas fujam das áreas de perigo. É muito pouco provável que a AlmapBBDO volte a criar comerciais com algum gato no enredo, ou qualquer outro animal. Para quê? Outras agências vão tomar, ou já tomaram, a decisão de cortar o reino animal do seu universo criativo e também, por via das dúvidas, o reino vegetal e o reino mineral, pois é possível que provoquem objeções dos movimentos que atribuem direitos civis às árvores, ou às pedras, ou sabe-se lá ao que mais. Os jornalistas e os órgãos de imprensa, com frequência, vão pegando uma alergia cada vez maior a tratar de certos assuntos. "Isso vai dar confusão", ouve-se todos os dias nas redações. "Melhor a gente ficar fora dessa." O mesmo se aplica a políticos, por seu natural pavor de perder votos, a artistas que não querem ficar mal "na classe" e a mais um caminhão de gente capaz de ter posições claras, mas incapaz de arrumar coragem para falar delas em público.

É apenas natural que a situação tenha ficado assim. Não vale a pena, para a maioria, dizer o que pensa e ser imediatamente amaldiçoado como racista, cruel com os animais, homofóbico, nazista, destruidor da natureza, inimigo da fauna e da flora, poluidor de rios, lagos e mares, vendido aos interesses das "grandes empresas", carrasco das "minorias", assassino de bagres e por aí afora. Ser um mero defensor da luz elétrica, e achar natural, para isso, que sejam construídas usinas geradoras de energia passou a ser, no código da "causa ambiental", um delito grave. Pior ainda é ser chamado de "agricultor" ou "pecuarista" - as duas palavras passaram a ser utilizadas pelos militantes como um puro e simples insulto. Eis aí. por trás de todo o seu verniz de atitude moderna, democrática e defensora da virtude, a essência do totalitarismo que vai sendo imposto pelas "causas" do bem. O alicerce central de sua postura é raso e estreito: "Ou você pensa como eu. ou você é um idiota; ou você pensa como eu. ou você está errado". Ou você é coisa ainda muito pior, dependendo do grau de ira que sua opinião despertou neste ou naquele movimento.

Se discordar, por exemplo, de uma mudança na lei trabalhista, vão acusá-lo de ser a favor da volta da escravatura. Se criticar a doação de latifúndios a tribos de índios, pode ser chamado de genocida. Se achar errado o Bolsa Família, vai ser condenado como defensor da miséria. Se sustentar que o sistema de cotas para negros nas universidades tem problemas sérios, vira um racista na hora. Se julgar que os governos do PT são um exemplo mundial de incompetência, ignorância e vigarice, será incluído na lista negra dos que são contra o povo, contra a pátria e contra as eleições. Falar mal do ex-presidente Lula, então, é um caso perdido. Como ele diz em seus discursos que o seu segundo objetivo na vida é governar para os pobres (o primeiro, segundo uma confissão que fez há pouco, é "viver o céu aqui mesmo na terra"), quem não gosta do ex-presidente só pode ser contra os pobres. A alternativa é ouvir que você, até hoje, não se conforma com o fato de que "um operário tenha chegado à Presidência" etc. etc., como o próprio Lula nos diz todo santo dia. há mais de dez anos.

Com certeza há pessoas boníssimas, e sinceramente interessadas no bem comum, na maioria das "causas" em cartaz hoje em dia não lhes passaria pela cabeça, também, imaginar que estão construindo um mundo totalitário. Mas sua recusa em raciocinar um pouco mais, e em agredir a lógica um pouco menos, acaba levando-as, mesmo que não percebam, a uma postura de autoritarismo aberto diante da vida. A modelo Gisele Bündchen, por exemplo, propõe nada menos que uma "lei internacional" obrigando todas as mulheres a amamentar seus filhos. Gisele pode ser mesmo uma devota dessa postura, mas, ao querer que sua opinião pessoal seja transformada em "lei", ela mostra uma outra devoção: o desejo de mandar no comportamento dos outros. E as mulheres que não querem amamentar - como ficam os seus direitos? Qualquer pessoa que quer nos impor uma escolha forçada, diz o psicanalista Contardo Calligaris, de São Paulo. provavelmente está interessada, acima de tudo, em "afirmar e consolidar seu poder sobre nós".

Um outro tóxico que alimenta essa marcha da insensatez é a ignorância. Somada à decisão de atirar primeiro nos fatos, e perguntar depois quais eram mesmo esses fatos, leva a episódios de circo como o movimento "Gota d'Água" - no qual um grupo de atores e atrizes tentou demonstrar, no fim de 2011, que a usina de Belo Monte seria uma catástrofe sem precedentes para o Rio Xingu e para a ecologia brasileira cm geral. No vídeo que gravaram com o propósito de provar suas razões, confundiram o Pará com Mato Grosso, colocaram a usina a mais de 1 000 quilômetros do lugar onde está sendo construída e denunciaram a inundação de terras ocupadas por índios quando não há um único índio na área a ser alagada. Foi um desempenho digno de entrar na lista das piores respostas do Enem. Mas os artistas continuam achando que estão certíssimos: sua "causa" é justa, dizem eles, e meros tatos como esses não têm a menor importância. pois o que interessa é o triunfo do bem.

"Não há expediente ao qual o homem deixará de recorrer para evitar o real trabalho de pensar", disse, no fim dos anos 1700. o grande mestre da arte inglesa do retrato, sir Joshua Reynolds. Hoje, mais de 200 anos depois, sua tirada é um resumo praticamente perfeito da turbina-mãe que faz girar a máquina das "causas" justas. Nada as incomoda tanto quanto o ato de pensar. Preferem receber insultos, porque podem responder com insultos - o que não toleram é a tarefa de raciocinar em cima de fatos, reconhecer realidades e convencer pelo uso da inteligência. Algum tempo atrás esta revista publicou, com a assinatura do autor do presente artigo, um conjunto de considerações sobre o que julgava serem exageros, equívocos ou distorções do chamado "movimento gay". Tudo o que foi escrito ali recebeu uma fenomenal descarga de ódio. histeria e ofensas, nas quais foram incluídas diversas maldições desejando uma morte rápida para o autor. Mas o que realmente deixou a liderança gay fora de si, acima de qualquer outra coisa, foi a afirmação de que casamento de homem com homem, ou de mulher com mulher, não gera filhos. É apenas um fato da natureza mas é exatamente isso, o fato, o pior inimigo das "causas". Não pode ser anulado por abaixo-assinados. redes sociais ou passeatas. A única saída é mantê-lo oculto pelo silêncio.

Por essa trilha, caminhamos para um mundo de escuridão. Por: J. R. Guzzo Revista Veja