sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O ESFACELAMENTO DO REAL E AS PERSPECTIVAS DA ECONOMIA BRASILEIRA

"A estabilidade pode não ser tudo; porém, sem estabilidade, tudo vira um nada." 



Foi com estas palavras que o social-democrata Karl Schiller, ministro das finanças da Alemanha Ocidental de 1966 a 1972, definiu o quão importante era para a Alemanha ter uma moeda forte.



Durante a segunda metade do século XX, nenhum povo levou tão a sério a importância de se ter uma moeda forte e estável quanto os alemães. Tendo sofrido duas hiperinflações em um espaço de apenas 24 anos (uma em 1922-1923 e a outra logo após o fim da Segunda Guerra Mundial), o que aniquilou toda a sua poupança, a população alemã entendeu, e de uma maneira extremamente dolorosa, que a moeda de um país não pode ser aviltada. Foi o primeiro-ministro alemão Konrad Adenauer quem disse que "defender a moeda é a condição precípua para se manter uma economia de mercado e, em última instância, uma sociedade livre." Já o ministro das finanças de Adenauer, Ludwig Erhard — o "pai" do milagre econômico alemão —, foi ainda mais longe e proclamou que a estabilidade monetária era um direito humano básico.

O compromisso com uma moeda forte e estável se tornou tão inegociável, que foi criada uma lei em 1957 — a Lei Bundesbank — que incorporava essa visão alemã sobre a moeda: a lei declarava especificamente que o Banco Central alemão seria completamente independente de pressões políticas e de instruções do governo federal. Sua única função seria a de "proteger a moeda", controlando a quantidade de dinheiro em circulação na economia com o objetivo de manter a robustez da moeda. Esta lei deu ao Bundesbank uma autonomia de poder que nunca foi vista em nenhum outro país desde então, e contava com o apoio de social-democratas e conservadores.

A aprovação e implementação desta lei, em conjunto com a genuína determinação mostrada por seus vários presidentes, fez do Bundesbank o Banco Central mais respeitado e confiado do mundo. De 1957 até imediatamente antes da introdução do euro, em 2002, a Alemanha apresentou a menor inflação de preços do mundo, menor até mesmo que a da Suíça. 

O gráfico abaixo mostra a evolução do índice de preços da Alemanha (linha preta), da Suíça (linha vermelha) e dos EUA (linha azul, apenas a título de comparação). Observe que, embora Alemanha e Suíça comecem com aproximadamente o mesmo índice, já na década de 1970 a inflação de preços acumulada na Alemanha se torna visivelmente menor que a da Suíça, permanecendo assim por toda a década de 1980 e 1990. Foi só em 2004, já sob o euro, que a situação se inverteu e a Suíça passou a apresentar uma menor inflação de preços acumulada. 



Esse gráfico explicita por que os alemães não são muito simpáticos ao euro, e mostra por que foi tão difícilconvencê-los a abrir mão do marco alemão em prol de uma moeda única europeia. (E ajuda também a entender por que as desigualdades de renda nos EUA são muito maiores que as da Suíça, não obstante toda a generosidade das políticas assistencialistas americanas).

Com efeito, a admiração dos alemães pelo marco alemão era tamanha, que uma pesquisa feita em 1995 relatou que 80% dos alemães identificavam sua "germanicidade" com a estabilidade, a força e o prestígio internacional do marco. Eles haviam vivenciado os "milagres" que uma moeda forte é capaz de fazer. Uma economia que estava destruída em decorrência de uma guerra mundial, e cuja população havia perdido toda a sua poupança em decorrência de duas hiperinflações, conseguiu se reerguer, enriquecer e se tornar a mais poderosa da Europa no espaço de apenas uma geração, tudo isso possibilitado por uma moeda forte e estável, que dava a seus cidadãos um poder de compra sem par. Os alemães perceberam na prática que uma moeda forte é uma condição indispensável — embora não seja suficiente — para a prosperidade econômica, e que uma moeda fraca e instável cria baderna e inquietações sociais.

Os alemães creditavam à robustez do marco o fato de estarem entre os trabalhadores mais bem pagos do mundo e de poderem fazer várias viagens internacionais a preços extremamente baixos.

Por que este longo prólogo dedicado à Alemanha? Porque a Alemanha — em conjunto com a Suíça e com o Japão — é um perfeito exemplo prático de como uma moeda forte só traz vantagens para uma população. Aqui no Brasil, economistas pós-keynesianos e progressistas diariamente afirmam que uma moeda desvalorizada é uma condição indispensável para a robustez e competitividade da indústria nacional, e que uma moeda forte levaria à extinção de nosso parque industrial e geraria fortes desequilíbrios no balanço de pagamentos, pois os brasileiros iriam "importar e viajar muito". Aparentemente, eles ignoram o fato de que Alemanha, Suíça e Japão possuem moedas fortes há décadas e, não obstante, um setor industrial e exportador extremamente robusto e competitivo, além de uma população bastante viajada. Não foi necessário desvalorizar suas moedas para que suas indústrias se tornassem competitivas, e até hoje nunca houve qualquer indicativo de "crise no balanço de pagamentos".

Abaixo, a evolução das taxas de câmbio da Alemanha (linha preta), da Suíça (linha vermelha) e do Japão (linha amarela, eixo da direita) em relação ao dólar. A série termina em dezembro de 1998 porque em janeiro de 1999 a Alemanha teve de alterar seu regime cambial para se preparar para a introdução do euro.



A súbita, porém passageira, depreciação observada na primeira metade da década de 1980 não se deve a nenhuma política inflacionista destes Bancos Centrais, mas sim à acentuada valorização do dólar neste período, que foi quando o Fed estava sob o comando de Paul Volcker, que havia elevado a taxa básica de juros americana para 20%.

A situação no Brasil

Para entender o atual momento da economia brasileira e de sua moeda, um rápido exercício de imaginação será de grande valia. Imagine o leitor estes dois cenários completamente opostos:

1) No primeiro cenário, os bancos passam a aumentar a oferta de crédito, o que faz com que a quantidade de dinheiro na economia aumente continuamente. Isso, por conseguinte, faz com que os salários nominais da população também cresçam continuamente. No entanto, não obstante toda essa inflação monetária, o poder de compra da moeda mensurado em dólares, em vez de cair, também aumenta continuamente.

2) Já no segundo cenário, com a população mais endividada e com os indicadores de inadimplência em alta, os bancos se tornam mais comedidos e passam a restringir o crédito. Consequentemente, a quantidade de dinheiro na economia passa a crescer moderadamente, e isso faz com que o crescimento dos salários nominais da população arrefeça. No entanto, não obstante esta contenção da inflação monetária, o poder de compra da moeda mensurado em dólares, em vez de subir, passa a cair continuamente.

O primeiro cenário vigorou no Brasil de 2003 até meados de 2011. A oferta monetária se expandiu vigorosamente e, não obstante tal inflação, o valor do real mensurado em dólares também aumentou continuamente. No primeiro semestre de 2003, por exemplo, o dólar chegou a custar R$3,60. A partir dali, o real começou a se valorizar perante o dólar, chegando ao ápice em julho de 2008, quando o dólar valia apenas R$1,56. Houve um ligeiro soluço no final de 2008 e início de 2009 por conta da crise financeira mundial, mas nada que abalasse o fortalecimento do real, que rapidamente voltou a se valorizar continuamente até chegar novamente ao valor de R$1,54 em julho de 2011.

Este fenômeno — e isso deve ser muito enfatizado — foi totalmente inédito na história do Brasil. Nunca antes havíamos vivenciado um período que conjugasse forte expansão monetária, aumento nominal dos salários e contínua apreciação da moeda nacional. Nem mesmo na primeira fase do Plano Real, de 1994 a 1998, isso ocorreu. 

Para se ter uma ideia do que isso representou, uma pessoa que ganhava um salário mínimo no início de 2003 — R$200 — tinha um poder de compra de aproximadamente US$60. Já uma pessoa que ganhava salário mínimo em meados de 2008 — R$415 — passou a ter um poder de compra de aproximadamente US$259. E em meados de 2011, com o salário mínimo a R$545, tal pessoa passou a ter um poder de compra de aproximadamente US$340. Ou seja, em dólares, o poder de compra de um trabalhador que recebe salário mínimo cresceu 332% em 5 anos e 466% em 8 anos.

Isso, e apenas isso, já ilustra a importância de se ter uma moeda forte. E você ainda se surpreende que Lula tenha tido recordes de aprovação, principalmente entre os mais pobres? Fernando Henrique Cardoso também usufruiu altos índices de popularidade entre os mais pobres durante seu primeiro mandato, quando o real estavaatrelado ao dólar. E foram os mais pobres que o reelegeram em 1998. Novamente, apenas uma consequência natural de se ter uma moeda forte.

Esta valorização do real perante o dólar entre 2003-2011, a qual ocorreu durante um longo processo de expansão do crédito, foi crucial em fazer com que a inflação de preços no Brasil não aumentasse tanto quanto poderia ter aumentado em decorrência de toda a inflação monetária ocorrida. Tal fenômeno — que representou um grande aumento na renda real das pessoas — não pode ser descartado quando se quer entender o motivo da alta popularidade de Lula. As pessoas tinham cada vez mais dinheiro no bolso, e esse dinheiro valia cada vez mais em termos de dólares.

O gráfico a seguir ilustra como foi esse movimento. A linha vermelha representa a evolução do câmbio (coluna da esquerda). A linha azul representa a evolução da oferta monetária (coluna da direita). O período analisado é de janeiro de 2002 a julho de 2011.



Vale observar que, após a forte alta do dólar no final de 2002 — temores com a eleição de Lula —, o real volta a se fortalecer em 2003, e firmando sua tendência de valorização a partir de 2004.

Embora este mesmo fenômeno tenha ocorrido com praticamente todas as outras moedas ao redor do mundo — pois este foi um período de grande desvalorização do dólar —, a apreciação do real foi particularmente mais intensa. E isso pode ser creditado à percepção positiva que os investidores estrangeiros, os especuladores e todos os traders que atuam no mercado financeiro tinham em relação à equipe econômica. A boa equipe montada por Antônio Palocci no primeiro mandato de Lula, com Joaquim Levy, Marcos Lisboa e Murilo Portugal na Fazenda, além de Henrique Meirelles, Ilan Goldfajn e Alexandre Schwartsman no Banco Central, foi essencial para gerar esta confiança. E ela foi mantida inabalada mesmo durante períodos conturbados, como por exemplo durante o escândalo do mensalão em 2005, em que não houve fuga de dólares e o câmbio não foi afetado.

E, mesmo com mudanças significativas feitas na equipe econômica a partir de 2006, com a saída de Palocci e a nomeação de Guido Mantega para Ministro da Fazenda, a confiança se manteve. Após um forte soluço ocorrido no final de 2008, a economia se recuperou rapidamente durante o ano de 2009, pois o governo não saiu baixando pacotes, não tentou desvalorizar o câmbio, não recorreu a políticas protecionistas e, principalmente, permitiu que preços e salários se ajustassem para baixo. Esta célere recuperação, em conjunto com as fartas matériaselogiosas publicadas pela imprensa internacional sobre a economia do país, manteve o ânimo dos investidores estrangeiros, dos especuladores e de todos os traders que atuam no mercado financeiro, e o real voltou a se valorizar perante o dólar. 

Todos os bons resultados financeiros apresentados pelas filiais de empresas estrangeiras instaladas no Brasil podem ser creditados à valorização do real, que fez com que os lucros remetidos em dólares e euros para suas matrizes fossem substanciais. O mesmo pode ser dito sobre o espetacular momento vivenciado pelas companhias aéreas neste período, uma vez que dólar baixo significa mais pessoas viajando e querosene mais barato.

Mas tudo começou a degringolar em 2012, que foi o ano em que o governo mais exacerbou suas intervenções na economia, o que deu origem ao segundo cenário descrito no início desta seção. 

Toda a expansão creditícia iniciada em 2004 gerou dois inevitáveis resultados: endividamento recorde da população e inadimplência em alta. O gráfico abaixo ilustra a evolução destes dois indicadores. A linha azul mostra endividamento das famílias em relação à sua renda acumulada nos últimos doze meses (coluna da direita) e a linha vermelha mostra a evolução da inadimplência (coluna da esquerda).



Esta situação fez com que os bancos adotassem uma postura mais comedida e aumentassem suas exigências antes de conceder novos empréstimos. Tal postura mais restritiva dos bancos gerou um arrefecimento na até então frenética expansão do crédito, algo que, por conseguinte, reduziu a taxa de crescimento da oferta monetária.

Essa redução da taxa de crescimento da oferta monetária afetou os números do PIB, bem como a demanda por bens industriais (veja aqui o gráfico da produção industrial). O governo então se desesperou e, confundindo causa com consequência, passou a adotar uma profusão de medidas intervencionistas para "proteger a indústria". 

Primeiro ele fechou os portos aumentando as alíquotas de importação de praticamente todos os produtos estrangeiros (está tudo aqui e aqui). Depois, obrigou todas as grandes empresas do país a produzir utilizando uma determinada porcentagem de insumos fabricados no Brasil. Ato contínuo, os privilegiados fabricantes destes insumos obviamente se aproveitaram deste monopólio para aumentar seus preços. Para ajudar as grandes empresas a adquirir estes agora mais caros insumos, e simultaneamente para ajudá-las em seus projetos de investimento, o BNDES foi liberado para lhes emprestar dinheiro público a rodo, tudo a juros subsidiados. Como o BNDES não tem todo esse dinheiro, o Tesouro começou a emitir títulos apenas para arrecadar este dinheiro, o que fez com que a dívida bruta do país chegasse a R$ 2,823 trilhões. Em simultâneo, naquelas poucas áreas com potencial para receber fartos investimentos estrangeiros — o setor de infraestrutura rodoviária, portuária, aeroportuária e ferroviária —, o governo estipulou taxas de retorno, de estilo bolivariano. No final, para não assustar de vez os investidores estrangeiros e os organismos internacionais, o governo passou a maquiar suas contas públicas, transformando 'recebíveis a longo prazo' em 'receita imediata', e déficit em superávit.

Paralelamente a tudo isso, a presidente e seus dois ministros favoritos (Mantega e Pimentel) se esmeraram em açoitar com gosto o "tsunami" de dólares que entrava no Brasil e apreciava o câmbio, sem se dar conta de que eram justamente esses dólares os principais responsáveis pela satisfação da população.

Resultado de tudo isso: estagnação, insegurança, alto grau de incerteza do empresariado, desconfiança dos investidores estrangeiros, saída de dólares, e acentuada desvalorização cambial. O dólar, que em julho de 2011 chegou a valer R$1,56, disparou para R$2,44.



Neste mesmo período, o euro foi de R$2,26 para R$3,26. Isso significa que o dólar se valorizou 56% perante o real, e o euro, 44%. 

Ou seja, quem hoje recebe salário mínimo — de R$678 — está recebendo US$278, um valor 18% menor que os US$340 de julho de 2011. E ainda há quem acredite que os progressistas que defendem câmbio desvalorizado são a favor do aumento da renda dos mais pobres...

São três os fatores que determinam as oscilações da taxa de câmbio de uma moeda:

1) O primeiro é a inflação monetária e sua inevitável consequência, que é a inflação de preços. A taxa de câmbio é, no longo prazo, definida pelo poder de compra da moeda. Como o poder de compra do real foi dizimado pela inflação monetária ocorrida do período 2008-2011, é natural que esteja agora havendo esse ajuste na taxa de câmbio.

2) Além da inflação monetária, a taxa de câmbio de curto prazo também é afetada pelo crescimento da economia. Quanto maior o crescimento da economia, maior a demanda por moeda nacional — logo, mais apreciada tende a ser a moeda. Isso explica a valorização cambial que inevitavelmente ocorre quando o PIB está crescendo. 

3) Mas é o terceiro fator que está se sobressaindo atualmente. Quando uma economia ainda em desenvolvimento — como a brasileira — adota uma taxa de câmbio flutuante, sua moeda estará diariamente sujeita aos humores dos especuladores, dos investidores internacionais e de todos os traders que atuam no mercado financeiro. Se eles perderem a confiança no governo, a taxa de câmbio poderá se desvalorizar acentuadamente, e permanecer assim por um bom tempo. É isso que está acontecendo no Brasil atual: a inflação monetária não está mais crescendo em níveis acentuados, mas a taxa de câmbio segue se desvalorizando por causa da atuação de especuladores, dos investidores internacionais e de todos os traders que já perceberam que as autoridades monetárias e econômicas do Brasil não são muito sérias.[1]

Essa abrupta desvalorização do real perante o dólar alarmou toda a equipe econômica. Desde maio último, o Banco Central já gastou quase US$ 40 bilhões em leilões de swap cambial, mas o preço do dólar continua em ascensão. Para piorar, a percepção de que a situação está degringolando cresceu na mesma proporção. Veja um trecho desta notícia retirada do blog do jornalista Vicente Nunes:


Nenhum dos diretores do Banco Central fala claramente, mas há um desconforto generalizado entre eles com o que consideram traição por parte do restante do governo. Acreditam que a autoridade monetária seguiu à risca tudo o que foi combinado com o Planalto nos últimos três anos, sobretudo a missão de levar a taxa básica de juros (Selic) para o menor patamar da história, de 7,25% ao ano, em outubro de 2012.

A expectativa era de que todo o governo se engajasse nesse processo, especialmente o Ministério da Fazenda, ao fazer um ajuste fiscal consistente, com transparência, sem truques, para mostrar uma saúde que as contas públicas não têm. O que o BC viu foi exatamente o contrário. 

De início, porém, os integrantes da diretoria comandada por Alexandre Tombini preferiram o silêncio ante o descompromisso com o ajuste fiscal. Mas, diante da disparada da inflação e do derretimento do que ainda restava de credibilidade em relação à instituição, houve uma rebelião no BC e passou-se a explicitar a contrariedade com a gastança e a maquiagem das contas públicas tanto nas atas do Comitê de Política Monetária (Copom) quanto no Relatório Trimestral de Inflação.

Os diretores também cobraram uma postura mais clara de Tombini em público, pois o risco de as expectativas dos agentes econômicos degringolar era enorme. O presidente do BC passou, então, a ressaltar a importância de um ajuste fiscal consistente para ajudar o Copom a reconstruir a confiança que o país tanto precisa para retomar o crescimento consistente. 

Os diretores do BC sabem que não será uma tarefa fácil, especialmente porque o maior símbolo da desconfiança, o maquiador da Esplanada, o secretário do Tesouro Nacional, Arno Augustin, permanece firme e forte no cargo, simplesmente porque é amigo da presidente Dilma Rousseff.

Tombini sentiu na pele o quanto a sua credibilidade e a de toda a diretoria do BC está no chão. Na semana passada, ele se reuniu, a portas fechadas, em São Paulo, com mais de uma centena de empresários e tomou uma sova. Começou com um discurso positivo, de que tudo está bem, que a inflação está sob controle (mesmo tendo ficado acima de 6% ao longo deste ano, no acumulado de 12 meses), mas acabou sendo atropelado por uma onda de críticas em relação ao governo. Muitos presentes no encontro foram claros ao afirmar que não vão retomar os investimentos produtivos até o fim das eleições de 2014. Tombini deixou o local quase mudo.

O Banco Central, como esperado, soltou uma nota negando a veracidade destas informações, o que significa que elas de fato são verdadeiras.

O que fazer

Durante toda a expansão do crédito anterior, os indivíduos intensificaram seu endividamento para poder consumir, na crença de que a expansão do crédito continuaria farta e que sua renda futura continuaria aumentando, o que facilitaria a quitação destas dívidas. Já as empresas embarcaram em investimentos de longo prazo estimuladas tanto pela expansão monetária coordenada pelo Banco Central (o que fez com que os investimentos se tornassem mais financeiramente viáveis) quanto pela expectativa de que o aumento futuro da renda possibilitaria o consumo dos produtos criados pelos seus investimentos. 

Este arranjo, no entanto, já foi revertido. A renda nominal se estagnou, mas os preços continuam em ascensão, em grande parte por causa da desvalorização do câmbio. É esta combinação entre renda nominal estagnada e preços em ascensão que vem gerando esta sensação real de aperto financeiro nos brasileiros. 

Toda a mecânica deste ciclo econômico da economia brasileira já foi explicada inúmeras vezes neste site, de modo que ela não é o escopo deste artigo (veja aqui, aqui e aqui). Basta apenas dizer que, quando uma economia entra em uma fase de rearranjo pós-expansão do crédito, é essencial que seus preços possam cair para fazer com que a oferta entre em sintonia com a demanda. Uma acentuada desvalorização do câmbio vai totalmente contra este propósito. E, considerando-se que a inflação de preços acumulada em 12 meses está acima de 6%, e que a economia está estagnada, a situação é compreensivelmente ruim.

E é exatamente por isso que é de suma importância ter uma equipe econômica — tanto na Fazenda quanto no Banco Central — que inspire confiança nos investidores estrangeiros, nos traders e nos especuladores. Havia esta equipe no Banco Central em 2008. Como consequência, a desvalorização do real perante o dólar foi efêmera. 

Sendo assim, caso a atual equipe do Banco Central não reconquiste a confiança dos investidores, especuladores e traders, o câmbio continuará se desvalorizando e impedindo que a inflação de preços diminua como deveria. Esta contínua desvalorização cambial, geradora de grandes incertezas, continuará fazendo com que a economia permaneça nesta quase-estagflação que estamos vivenciando, com uma crescente redução na renda real das pessoas. 

Para resolver este imbróglio, uma medida já testada em vários países emergentes e de resultados imediatos e extremamente eficazes seria a transformação do Banco Central em um Currency Board (veja o que tal sistemarealizou na Bulgária). Dado que o BACEN possui hoje mais de US$370 bilhões em reservas internacionais, adquiridas ao longo de 20 anos, tal valor é mais do que suficiente para a imediata criação de um Currency Board. Não apenas o câmbio se estabilizaria, como também a confiança dos investidores na economia seria restabelecida. Adicionalmente, as taxas de juros cairiam, o que traria um extremamente necessário alívio nos gastos do governo com o serviço da dívida. 

Porém, e infelizmente, o apoio a tal medida seria nulo. Um Currency Board, justamente por retirar do governo o controle sobre a oferta monetária, obriga-o a adotar um orçamento austero, não deixando espaço para gastos com 41 ministérios e secretarias, aumentos para o funcionalismo, e subsídios para artistas, grupos de interesse e movimentos sociais. Não haveria apoio nenhum.

Sendo assim, uma segunda opção seria copiar descaradamente o estatuto do Bundesbank, adotando todos os seus métodos operacionais (cancelando as operações de mercado aberto e utilizando apenas a janela de redesconto, justamente o inverso de como opera hoje o BACEN). Seria necessária a aprovação de uma lei que de fato impingisse a obediência desse estatuto. Funcionou com a Lei de Responsabilidade Fiscal — pelo menos até agora —, então também pode funcionar para o BACEN. 

Adicionalmente, a plena conversibilidade do real deve ser promulgada. Isso significa que reais poderão ser trocados por moeda estrangeira sem restrições. Uma moeda plenamente conversível é aquela que pode ser usada para adquirir quaisquer tipos de bens ou serviços estrangeiros, incluindo imóveis, títulos, ações e contas bancárias em outros países. A promulgação da conversibilidade seria um passo adicional na conquista da confiança dos investidores estrangeiros, podendo inclusive levar a um desdobramento natural: fazer com que moedas estrangeiras passem a ser aceitas como moeda corrente para as transações domésticas (hoje, o governo proíbe).

O problema é que não há hoje nenhum político com a testosterona necessária para criar esses dois projetos de lei.

O fato é que o Banco Central tem de reconquistar a confiança do mercado para que a taxa de câmbio possa cair, o que irá ajudar a conter a inflação de preços e, por conseguinte, ajudar na recuperação dos investimentos e da economia. A recuperação só virá se os preços caírem, e isso não ocorrerá com o câmbio se desvalorizando em decorrência da falta de confiança.

Nomes como Gustavo Franco para a presidência do BACEN e Pérsio Arida para a Fazenda seriam um bom começo, mas serão inócuos se não vierem acompanhados destas reformas.

Conclusão

Uma moeda sólida, forte e estável é necessária — embora apenas isso não seja suficiente — para a prosperidade econômica. Os alemães entenderam isso ainda em 1957. A consequência foi uma estrondosa elevação em seu padrão de vida. Os brasileiros vivenciaram algo vagamente semelhante a uma moeda forte nos períodos 1994-1998 e 2007-2011. Embora a alegria tenha durado pouco, este curto período já foi suficiente para melhorar as condições de vida de milhões de brasileiros, especialmente dos mais pobres.

Os grandes economistas sempre enfatizaram a importância de se ter uma moeda forte. Em 1876, Carl Menger, o fundador da Escola Austríaca, tornou-se o tutor econômico do príncipe-herdeiro da Áustria, Rodolfo de Habsburgo. Algumas das anotações econômicas de Rodolfo foram publicadas na década de 1990. Dentre as lições que o príncipe absorveu de Menger, vale observar o seguinte trecho:

Em grande parte, as transações comerciais e todo o comércio internacional, que são os pilares que dão sustentação ao desenvolvimento econômico, dependem de um sistema monetário ordeiro e bem-estabelecido. Por conseguinte, flutuações na taxa de câmbio e a incerteza que tais flutuações geram em todos os cálculos econômicos irão abalar a prosperidade da economia em suas bases mais fundamentais. Em toda e qualquer atividade doméstica ou internacional, cidadãos e empreendedores irão encontrar desconfianças e obstáculos por todos os lugares... Sendo assim, é sensato afirmar que uma moeda fraca e instável representa uma deficiência vital para uma nação, pois ela se faz sentir profundamente em todos os aspectos da vida econômica e de seu progresso.

Sim, uma moeda forte é uma bênção para qualquer população. Ela gera um aumento do poder de compra do trabalhador e, consequente, um aumento em seu padrão de vida. Uma moeda em constante fortalecimento equivale a um aumento salarial contínuo. Ela permite acesso barato a uma farta quantia de bens e serviços estrangeiros, aumentando enormemente o padrão de vida de seus usuários. Trata-se de uma instituição que não deve jamais ser colocada em risco, muito menos em épocas de recessão. E quem discorda disso que vá ensinar aos suíços e alemães o que eles realmente devem fazer.

 É por isso que há grandes economistas que defendem Currency Boards para economias em desenvolvimento. Segundo eles, deixar a moeda de um país ainda em desenvolvimento flutuar de acordo com a percepção que os agentes externos têm em relação à solidez do governo nacional é loucura. 
Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

A TRAGÉDIA DO ISOLAMENTO


No século XX, dentre todas as explicações inventadas pelos intelectuais ocidentais para explicar as disparidades econômicas, educacionais e empreendedoriais dos indivíduos, duas se sobressaíram: nas primeiras décadas do século, dizia-se que a explicação estava no fato de haver diferenças raciais e inatas de destreza, talento e aptidão; já nas últimas décadas, dizia-se que a explicação estava na discriminação racial.

A maioria de nós consideraria ambas estas duas explicações ridículas. No entanto, genes e discriminação eram as explicações predominantes para as diferenças entre brancos e negros oferecidas pelos intelectuais no século XX.

Em nenhuma dessas duas épocas a intelligentsia aceitava qualquer outra explicação. Tais explicações não foram oferecidas como sendo apenas uma possibilidade dentre várias outras. Não. Elas foram fornecidas como sendo a verdade predominante, quando não exclusiva. Em cada uma dessas épocas, os intelectuais estavam plenamente convencidos de que tinham a resposta correta, e rejeitavam e menosprezavam qualquer um que tentasse oferecer outras respostas. Qualquer indivíduo que dissesse algo em contrário se arriscava a ser visto como um "sentimentalista", no início do século, ou como um "racista", no final do século. 

Desta dogmática insistência em uma teoria generalista surgiram aberrações como as quotas raciais e toda essa infinidade de processos judiciais por racismo que superlotam os tribunais atualmente. Tudo se baseia na presunção de que diferenças nos êxitos pessoais entre pessoas de cores distintas é uma prova de que alguém prejudicou outra pessoa.

No início do século, a teoria de que o determinismo genético explicaria as diferenças nos êxitos pessoais e seria uma prova de que algumas raças são inferiores às outras levou à defesa de coisas como a segregação racial, a eugenia e, mais tarde, culminaria no Holocausto. A teoria atualmente predominante — a de que algum tipo de maldade explica as diferenças nos níveis de realizações entre os vários grupos étnicos e raciais — nos trouxe a era dos privilégios e do vitimismo.

Em ambas as eras, as teorias predominantes amaciaram e lisonjearam os egos dos intelectuais — no primeiro caso, eles foram vistos como salvadores da raça humana; no segundo caso, como libertadores das vítimas do racismo.

Dentre as ignoradas explicações alternativas para os diferentes níveis de êxito pessoal e grupal estavam a geografia, a demografia e a cultura.

Por exemplo, pessoas com a desvantagem geográfica de viverem isoladas em vales montanhosos raramente — para não dizer nunca — produziram façanhas de nível internacional. Elas raramente geraram algum avanço para a ciência, para a tecnologia ou até mesmo para a filosofia. Muito pelo contrário: as pessoas de tais localidades invariavelmente ficaram para trás em termos de progresso em relação ao resto mundo — inclusive em relação às pessoas da mesma raça que viviam nas planícies logo abaixo. Montanheses sempre foram conhecidos por sua pobreza e atraso em todos os países ao redor do mundo, especialmente no milênio anterior à criação dos modernos meios de transporte e de comunicação, os quais aliviaram seu isolamento.

Essas comunidades montanhesas não apenas eram isoladas do resto do mundo, como também eram isoladas umas das outras. Mesmo quando, em uma linha reta, a distância entre elas não era significativa, elas eram separadas por terrenos extremamente acidentados e escarpados.

Como bem observou o ilustre historiador francês Fernand Braudel, "a vida na montanha era persistentemente mais atrasada em relação à vida da planície". Um padrão de pobreza e atraso podia ser percebido das Montanhas Apalaches nos EUA às Montanhas Rife no Marrocos; dos Montes Pindo na Grécia às montanhas e planaltos do Sri-Lanka, de Taiwan, da Albânia e da Escócia.

Da mesma maneira, pessoas geograficamente isoladas em ilhas distantes ou pessoas isoladas por desertos ou por outras características geográficas raramente apresentaram — ou ao menos conseguiram imitar — os progressos da população continental. Novamente, isso era especialmente notável antes de os modernos sistemas de transporte e comunicação terem-nas colocado em contato com o resto do mundo.

O atraso em relação às pessoas com um universo cultural mais amplo ocorria independentemente da raça das pessoas que viviam em localidades isoladas. Por exemplo, quando os espanhóis descobriram as Ilhas Canárias no século XV, encontraram pessoas de raça caucasiana vivendo um nível de vida da idade da pedra.

Inversamente, pessoas urbanizadas quase sempre se mostraram na vanguarda do progresso, contribuindo muito mais para os avanços históricos da raça humana do que um número similar de pessoas dispersas pelas terras do interior — mesmo quando ambos os grupos eram da mesma raça.

Tão importante quanto o isolamento cultural, especificidades geográficas e geológicas são um fator igualmente importante, uma vez que nem todas as áreas geográficas são igualmente aptas à construção de grandes cidades. Por exemplo, a esmagadora maioria das cidades foi construída sobre cursos d'água navegáveis — e não são todas as regiões do globo que possuem cursos d'água navegáveis. Até mesmo a ausência de transporte animal fazia diferença. Esta era a situação do hemisfério ocidental quando os europeus chegaram e trouxeram cavalos, animais desconhecidos pelos nativos da região.

Assim como é criado pela natureza, o isolamento também pode ser criado artificialmente pelo homem. No século XV, quando a China era a nação mais avançada do mundo, seus líderes decidiram isolar o país em relação aos outros povos, todos eles considerados meros bárbaros. Após alguns séculos de isolamento, a China se surpreendeu negativamente ao ver sua liderança ser sobrepujada por outros povos, chegando em alguns casos a ficar à mercê deles. O Japão cometeu o mesmo erro no século XVII.

Em alguns casos, o isolamento se deve a uma cultura que resiste obstinadamente a absorver traços de outras culturas. O Oriente Médio, por exemplo, já foi mais avançado que a Europa. Porém, ao passo que os europeus aprenderam bastante com o Oriente Médio, os árabes não tiveram o mesmo interesse em aprender com os europeus. A quantidade de livros que a Espanha traduzia do arábico em apenas um ano era maior do que a quantidade de livros que os árabes verteram para o arábico em mil anos.

A demografia também é outra característica crucial. Dentre os vários motivos para os diferentes níveis de avanços e conquistas está algo tão simples quanto a idade. A média de idade na Alemanha e no Japão é de mais de 40 anos, ao passo que a média de idade no Afeganistão e no Iêmen é de menos de 20 anos. Mesmo que as pessoas destes quatro países tivessem absolutamente o mesmo potencial intelectual, o mesmo histórico, a mesma cultura — e os países apresentassem rigorosamente as mesmas características geográficas —, o fato de que as pessoas de determinados países possuem 20 anos a mais de experiência do que as pessoas de outros países ainda seria o suficiente para fazer com que resultados econômicos e pessoais idênticos sejam virtualmente impossíveis.

Ao se analisar os êxitos econômicos dos diferentes povos e das diferentes raças, é possível constatar várias diferenças que não têm nada a ver com genes ou com discriminação, mas sim com questões culturais, geográficas e demográficas. No entanto, é muito mais trabalhoso examinar estes fatores e suas complexas interações do que simplesmente ser um oportunista e se agarrar à teoria predominante da época, e então se auto-congratular por ser um protetor dos oprimidos.
Por: Thomas Sowell , um dos mais influentes economistas americanos, é membro sênior da Hoover Institution da Universidade de Stanford. Seu website: www.tsowell.com.

Tradução de Leandro Roque


quinta-feira, 22 de agosto de 2013

FORMIGAS NA RAPADURA

No cada vez mais fugidio setor de grandes realizações, a complexa coreografia governamental se tem exibido em torno do trem-bala

Acho que todo mundo lembra o que disse num discurso o presidente Kennedy: “Não pergunte o que seu país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer por seu país.” Eu estava lendo os jornais e aí me ocorreu, como já deve ter ocorrido a muitos de vocês, que nossa prática política se orienta por uma atitude oposta a essa exortação. Ou seja, queremos saber o que o Brasil pode fazer por nós, mas não alimentamos muita curiosidade sobre o que podemos fazer pelo Brasil. Isso se expressa no comportamento de nossos governantes, que não disputam nada pensando no país, mas em abocanhar ou manter o poder, aqui tão hipertrofiado, abarrotado de privilégios e odiosamente infenso ao controle dos governados.

Para que mais, a não ser desfrutar desses privilégios, não se sabe, porque não existe projeto, além da cantilena sobre justiça social, saúde para todos, educação de qualidade e outras generalidades com as quais todos concordam. Que modelo de estrutura socioeconômica queremos, que Estado queremos, que país queremos, como chegaremos lá? Que propostas concretas são oferecidas? Ninguém diz — e os programas partidários, como os próprios partidos, causam constrangimento, pela ausência de ideias e compromissos sérios. O negócio é se eleger e se abancar, depois se vê o que se pode fazer, conforme a necessidade e a serventia para a permanência no poder. Na pátria, como se falava antigamente, ninguém se mostra muito interessado.

Tudo o que se faz hoje é visando às eleições, ou seja, a continuação no poder ou ascensão a ele. Descobriram agora essa lambança das concorrências em São Paulo, que não é propriamente inédita na história nacional, e grande parte da reação parece do tipo “viu, viu? nós rouba, mas cês também rouba!” Todo mundo na vida pública rouba, o que pode não ser uma afirmação justa, mas já virou axioma na descrição de nossa realidade e um dado importante em qualquer equação política. Invoca-se o princípio da falcatrua consuetudinária. Ou seja, se é ilegal, mas costumeiro, prevalece o costume e é considerado sacanagem e falta de coleguismo fazer denúncias ou querer punições. Que outras novidades têm para nos segredar? Quem não aposta que nada vai dar em nada?

O Estado às vezes parece ter as pernas bambas. Recomeçou o dramalhão do julgamento do mensalão e muita gente não entende mais nada, a começar por esse singular minueto processual, através do qual o Supremo Tribunal Federal vira penúltima instância, dia sim, dia não. Todo mundo quer saber se as sentenças emanadas do Supremo eram à vera ou não eram, devia ser simples de responder. Essa novela vai por aí, se arrastando já há não se sabe quanto tempo, todo dia aparece uma notícia inesperada e creio que nenhum de nós se surpreenderá se, esta semana, for noticiado que a decisão final do Supremo estará condicionada à resposta a uma consulta feita pela Câmara de Deputados, ou coisa assim, o que, com a gripe que atacou um ministro, o impedimento de outro, e o atraso de outro, leva o caso, para que tenhamos certeza de uma decisão justa, para depois do recesso do Judiciário, no próximo ano.

Vimos também a cena envaidecedora em que nosso ministro das Relações Exteriores se manifestou, conforme ouvi num noticiário, “com dureza”, sobre a espionagem cibernética americana, numa fala dirigida em pessoa ao secretário de Estado John Kerry. Disse umas verdades na cara do gringo, que o escutou com atenção, cortesia e respeito, para logo após retrucar que nos devotava desmesurado amor e descomedida amizade, mas continuaria a espionar e, acreditássemos, era para o nosso próprio bem. Se não gostarmos, claro, temos todo o direito de nos queixar ao bispo, ele compreende.

Esse mesmo ministério, aliás, deve estar às voltas com o perdão de dívidas milionárias que alguns países africanos têm com o Brasil. Comenta-se que isso é por causa do esquerdismo do atual governo, notadamente em sua política externa. Comenta-se também que o perdão dessas dívidas possibilita que os governos beneficiados fechem novos contratos com empreiteiras brasileiras. É o que dá o envolvimento com setores notoriamente de esquerda, como nossas empreiteiras, essa linha avançada do socialismo. Há apenas um ligeiro embaraço na coisa, pois se sabe que as empreiteiras, com toda a certeza, vão receber o dela, mas os financiadores, ou seja, nós, vamos contribuir mais uma vez para os crimes e as contas bancárias de déspotas, genocidas e saqueadores de riquezas nacionais

No cada vez mais fugidio setor de grandes realizações, a complexa coreografia governamental se tem exibido em torno do trem-bala, que o pessoal lá do boteco deu para chamar “trem-bala perdida”. O trem-bala é um exemplo notável de aumento de custos recordista, talvez sem precedentes em todo o mundo, porque já perdemos a conta de quantas vezes esses custos foram revisados para cima. E agora li não sei onde, maravilhado com os nossos mecanismos de distribuição de renda, que, mesmo que se venha a desistir do trem-bala, o custo dele já terá sido mais ou menos um bilhão de reais. Não entendi direito, mas não se pode deixar de manifestar admiração.

Diante dessa sarabanda agitada e da luta para não largar o osso, lembro-me de quando eu era menino em Itaparica, punha um pedaço de rapadura no chão e ficava esperando formigas brotarem do nada, várias espécies que só tinham em comum gostar de açúcar. Umas ruças, grandalhonas, eram minhas favoritas, porque ficavam frenéticas e não paravam um segundo, para lá e para cá, em cima da rapadura, apesar de que, volta e meia, uma parecia se saciar e caía imóvel — dura para trás, dir-se-ia. Eu não sabia, mas estava vendo o Brasil, só que as formigas não se saciam e quem cai para trás somos nós.
Por: João Ubaldo Ribeiro  escritor  O Globo


quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O QUE REALMENTE É O MERCADO

As características da economia de mercado.

A economia de mercado é o sistema social baseado na divisão do trabalho e na propriedade privada dos meios de produção. Todos agem por conta própria; mas as ações de cada um procuram satisfazer tanto as suas próprias necessidades como também as necessidades de outras pessoas. Ao agir, todos servem seus concidadãos. Por outro lado, todos são por eles servidos. Cada um é ao mesmo tempo um meio e um fim; um fim último em si mesmo e um meio para que outras pessoas possam atingir seus próprios fins.

Este sistema é guiado pelo mercado. O mercado orienta as atividades dos indivíduos por caminhos que possibilitam melhor servir as necessidades de seus semelhantes. Não há, no funcionamento do mercado, nem compulsão nem coerção. O estado, o aparato social de coerção e compulsão, não interfere nas atividades dos cidadãos, as quais são dirigidas pelo mercado. O estado utiliza o seu poder exclusivamente com o propósito de evitar que as pessoas empreendam ações lesivas à preservação e ao funcionamento da economia de mercado. Protege a vida, a saúde e a propriedade do indivíduo contra a agressão violenta ou fraudulenta por parte de malfeitores internos e de inimigos externos. Assim, o estado se limita a criar e a preservar o ambiente onde a economia de mercado pode funcionar em segurança.

O slogan marxista "produção anárquica" retrata corretamente essa estrutura social como um sistema econômico que não é dirigido por um ditador, um czar da produção que pode atribuir a cada um uma tarefa e obrigá-lo a obedecer a esse comando. Todos os homens são livres; ninguém tem de se submeter a um déspota. O indivíduo, por vontade própria, se integra num sistema de cooperação. O mercado o orienta e lhe indica a melhor maneira de promover o seu próprio bem estar, bem como o das demais pessoas. O mercado comanda tudo; por si só coloca em ordem todo o sistema social, dando-lhe sentido e significado.

O mercado não é um local, uma coisa, uma entidade coletiva. O mercado é um processo, impulsionado pela interação das ações dos vários indivíduos que cooperam sob o regime da divisão do trabalho. As forças que determinam a — sempre variável — situação do mercado são os julgamentos de valor dos indivíduos e suas ações baseadas nesses julgamentos de valor. A situação do mercado em um determinado momento é a estrutura de preços, isto é, o conjunto de relações de troca estabelecido pela interação daqueles que estão desejosos de vender com aqueles que estão desejosos de comprar. Não há nada, em relação ao mercado, que não seja humano, que seja místico. O processo de mercado resulta exclusivamente das ações humanas. Todo fenômeno de mercado pode ser rastreado até as escolhas específicas feitas pelos membros da sociedade de mercado.

O processo de mercado é o ajustamento das ações individuais dos vários membros da sociedade aos requisitos da cooperação mútua. Os preços de mercado informam aos produtores o que produzir como produzir e em que quantidade. O mercado é o ponto focal para onde convergem e de onde se irradiam as atividades dos indivíduos.

A economia de mercado deve ser estritamente diferenciada do segundo sistema imaginável — embora não realizável — de cooperação social sob um regime de divisão de trabalho: o sistema de propriedade governamental ou social dos meios de produção. Esse segundo sistema é comumente chamado de socialismo, comunismo, economia planificada ou capitalismo de estado. A economia de mercado e a economia socialista (ou o capitalismo de estado) são mutuamente excludentes. Não há mistura possível ou imaginável dos dois sistemas; não há algo que se possa chamar de economia mista, um sistema que seria parcialmente socialista. A produção ou é dirigida pelo mercado, ou o é por decretos de um czar da produção, ou de um comitê de czares da produção.

Nada que seja, de alguma forma, relacionado com o funcionamento do mercado pode, no sentido praxeológico ou econômico do termo, ser chamado de socialismo. A noção de socialismo, tal como é concebida e definida por todos os socialistas, implica a ausência de um mercado para os fatores de produção e a ausência de preços para esses fatores. A "socialização" de instalações industriais, comerciais e agrícolas — isto é, a transferência de sua propriedade de privada para pública — é um método de conduzir pouco a pouco ao socialismo. 

É um passo na direção do socialismo, mas não é em si mesmo o socialismo. (Marx e os marxistas ortodoxos negaram claramente a possibilidade dessa aproximação gradual para o socialismo. Segundo suas doutrinas, a evolução do capitalismo atingirá inevitavelmente um estágio no qual, de um só golpe, ele se transformaria em socialismo).

As empresas públicas operadas pelo governo, bem como a economia da Rússia Soviética, pelo simples fato de comprarem e venderem em mercados, estão conectadas ao sistema capitalista. Dão testemunho dessa conexão ao utilizarem a moeda em seus cálculos. Assim, fazem uso dos métodos intelectuais do sistema capitalista que fanaticamente condenam.

Isto porque o cálculo econômico é a base intelectual da economia de mercado. Os objetivos perseguidos pela ação em qualquer sistema baseado na divisão do trabalho não podem ser alcançados sem o cálculo econômico. A economia de mercado calcula em termos de preços em moeda. Ser capaz de efetuar tal cálculo foi determinante na sua evolução e condiciona seu funcionamento nos dias de hoje. A economia de mercado é uma realidade porque é capaz de calcular.

Capitalismo

Todas as civilizações, até os dias de hoje, foram baseadas na propriedade privada dos meios de produção. No passado, civilização e propriedade privada sempre andaram juntas.

Aqueles que sustentam que a economia é uma ciência experimental, e apesar disso recomendam o controle estatal dos meios de produção, se contradizem lamentavelmente. Se pudéssemos extrair algum ensinamento da experiência histórica, este seria o de que a propriedade privada está inextricavelmente ligada à civilização. Não há nenhuma experiência que mostre que o socialismo poderia proporcionar um padrão de vida tão elevado quanto o que é proporcionado pelo capitalismo.

O sistema de economia de mercado nunca chegou a ser tentado de forma completa e pura. Mas, na civilização ocidental, desde a Idade Média, de um modo geral, prevaleceu uma tendência no sentido de abolir as instituições que obstruíam o funcionamento da economia de mercado. O constante progresso dessa tendência permitiu o crescimento populacional e a elevação do padrão de vida das massas a um nível sem precedente e até então inimaginável. O cidadão médio desfruta hoje de comodidades que fariam inveja a Cresus, Crasso, aos Médici e a Luís XIV.

Os problemas suscitados pela crítica socialista e intervencionista à economia de mercado são puramente de ordem econômica e só podem ser tratados por uma análise profunda da ação humana e de todos os sistemas imagináveis de cooperação social. O problema psicológico, em decorrência do qual as pessoas desprezam e menoscabam o capitalismo e chamam de "capitalista" tudo o que lhes desagrada, e de "socialista" tudo o que lhes agrada, é um problema que diz respeito à história e deve ser deixado a cargo dos historiadores. 

Os defensores do totalitarismo consideram o "capitalismo" um mal tenebroso, uma doença terrível que se abateu sobre a humanidade. Aos olhos de Marx, o capitalismo era um estágio inevitável da evolução do gênero humano, mas, ainda assim, o pior dos males; felizmente a salvação estava iminente e livraria o homem definitivamente deste desastre. Na opinião de outras pessoas, teria sido possível evitar o capitalismo se ao menos os homens fossem mais virtuosos ou mais habilidosos na escolha de políticas econômicas.

Todas essas lucubrações têm um traço comum. Consideram o capitalismo como um fenômeno ocidental que poderia ser eliminado sem alterar condições que são essenciais ao pensamento e à ação do homem civilizado. Como elas não se preocupam com o problema do cálculo econômico, não chegam a perceber as consequências que seriam produzidas pela abolição desse cálculo. Não chegam a se dar conta de que o homem socialista, para cujo planejamento a aritmética não terá nenhuma utilidade, seria, na sua mentalidade e no seu modo de pensar, inteiramente diferente dos nossos contemporâneos. Ao lidar com o socialismo, não devemos subestimar essa transformação mental, mesmo se estivéssemos dispostos a suportar silenciosamente as desastrosas consequências que adviriam para o bem estar material da humanidade.

A economia de mercado é um modo de agir, fruto da ação do homem sob a divisão do trabalho. Todavia, isto não significa que seja algo acidental ou artificial, algo que possa ser substituído por outro modo de agir qualquer. A economia de mercado é o produto de um longo processo evolucionário. É o resultado dos esforços do homem para ajustar sua ação, da melhor maneira possível, às condições dadas de um meio ambiente que ele não pode modificar. É, por assim dizer, a estratégia cuja aplicação permitiu ao homem progredir triunfalmente do estado selvagem à civilização.

Muitos autores raciocinam da seguinte forma: o capitalismo foi o sistema econômico que possibilitou as realizações maravilhosas dos últimos duzentos anos; portanto, está liquidado porque o que foi benéfico no passado não pode continuar sendo benéfico nos nosso tempo nem no futuro. Tal raciocínio está em contradição flagrante com os princípios do conhecimento experimental. Não é necessário, a essa altura, retornar novamente à questão de saber se a ciência da ação humana pode ou não adotar os métodos experimentais das ciências naturais. Mesmo se fosse possível responder afirmativamente a esta questão, seria absurdo questionar como esses experimentalistas o fazem ao inverso. A ciência experimental argumenta que, se a foi válido no passado, será válido também no futuro. Não tem cabimento afirmar o contrário: se a foi válido no passado, não o será no futuro.

A economia não é, evidentemente, um ramo da história ou de qualquer outra ciência histórica. É a teoria de toda ação humana, a ciência geral das imutáveis categorias da ação e do seu funcionamento em quaisquer condições imagináveis sob as quais o homem age. Por assim ser, constitui a ferramenta mental indispensável para lidar com os problemas históricos e etnográficos. Um historiador ou um etnógrafo que, no seu trabalho, não aproveita da melhor maneira possível todos os ensinamentos da economia, está trabalhando mal. Na realidade, ele não aborda o objeto de sua pesquisa sem estar influenciado por aquilo que despreza como teoria. Está, em cada instante de sua coleta de fatos pretensamente puros, quando os ordena e deles extrai conclusões, guiado por remanescentes confusos e deturpados de doutrinas econômicas perfunctórias, construídas desleixadamente ao longo dos séculos que precederam a elaboração de uma ciência econômica; ciência econômica esta que refutou de forma definitiva aquelas doutrinas superficiais.

Não são os economistas, e sim os seus críticos, que carecem de "senso histórico" e ignoram o fator evolução. Os economistas sempre tiveram consciência do fato de que a economia de mercado é o produto de um longo processo histórico que começou quando a raça humana emergiu dos grupos de outros primatas. Os defensores do que erroneamente é chamado de "historicismo" pretendem desfazer os efeitos das mudanças evolucionárias. A seu ver, tudo aquilo cuja existência não possa ser rastreada até um passado remoto, ou não possa ter sua origem identificada nos costumes de alguma tribo primitiva da Polinésia, é artificial, ou mesmo decadente. Consideram como prova de inutilidade e podridão de uma instituição o fato de ela ser desconhecida para os selvagens. Marx e Engels, e os professores alemães da Escola Historicista, exultaram quando tomaram conhecimento de que a propriedade privada é "apenas" um fenômeno histórico. Para eles, esta era a prova de que os seus planos socialistas eram realizáveis.

O gênio criador está em contradição com os seus contemporâneos. Enquanto pioneiro das coisas novas e das quais nunca se ouviu falar, ele está em conflito com a aceitação cega de critérios e valores tradicionais. A seu ver, a rotina de um cidadão normal, do homem médio e comum, não passa de uma estupidez. Para ele, "burguês" é sinônimo de imbecilidade. Os artistas frustrados que se satisfazem em imitar os maneirismos do gênio, a fim de esquecer e de dissimular sua própria impotência, adotam essa terminologia. Esses boêmios chamam tudo o que lhes desagrada de "burguês". Desde que Marx tornou o termo "capitalista" equivalente a "burguês", estas palavras são empregadas como sinônimas. Nos vocabulários de todas as línguas as palavras "capitalistas" e "burgueses" significam hoje tudo o que há de vergonhoso, degradante e infame. Por outro lado, chamam tudo aquilo de que gostam ou que prezam de "socialista". O esquema de raciocínio é o seguinte: um homem, arbitrariamente, chama de "capitalista" tudo o que lhe desagrada e depois deduz dessa designação que aquilo que lhe desagrada é mau.

Esta confusão semântica vai ainda mais longe. Sismondi, os apologistas românticos da Idade Média, todos os autores socialistas, a Escola Historicista prussiana e os Institucionalistas americanos ensinaram que o capitalismo é um sistema injusto de exploração que sacrifica os interesses vitais da maioria da população em benefício exclusivo de um pequeno grupo de aproveitadores. Nenhum homem decente pode defender esse sistema "insensato". Os economistas que sustentam que o capitalismo é benéfico não apenas a um pequeno grupo, mas a todas as pessoas, são "sicofantas da burguesia". Ou são obtusos demais para perceber a realidade, ou então são apologistas vendidos aos interesses egoístas da classe dos exploradores.

O capitalismo, no entender desses inimigos da liberdade e da economia de mercado, significa a política econômica defendida pelas grandes empresas e pelos milionários. Diante do fato de que alguns — certamente não todos — capitalistas e empresários ricos, nos dias de hoje, são favoráveis a medidas que restringem o livre comércio e a livre concorrência, e que resultam em monopólio, os críticos dizem: o capitalismo contemporâneo defende o protecionismo, os cartéis e a abolição da competição. E ainda acrescentam que, em um certo período do passado, o capitalismo inglês era favorável ao comércio livre, tanto no mercado interno como nas relações internacionais. Isto ocorria porque, naquela época, os interesses de classe da burguesia inglesa eram mais bem atendidos por essa política. Entretanto, as condições mudaram e, hoje, o capitalismo, isto é, a doutrina defendida pelos exploradores, é favorável a outra política.

Essa tese deforma grosseiramente tanto a teoria econômica como os fatos históricos. Houve e sempre haverá pessoas cujos interesses próprios exigem proteção para situações já estabelecidas, e que esperam obter vantagens de medidas que restringem a concorrência. Empresários envelhecidos e cansados, bem como os herdeiros decadentes de pessoas que foram bem sucedidas no passado, não gostam de empreendedores novos e ágeis que ameaçam a sua riqueza e posição social eminente. Seu desejo de tornar rígidas as condições econômicas e de impedir o progresso pode ou não ser realizado, dependendo do clima da opinião pública.

A estrutura ideológica do século XIX, influenciada pelo prestígio dos ensinamentos dos economistas liberais, tornava inúteis esses desejos. Quando os melhoramentos tecnológicos da era do liberalismo revolucionaram os métodos tradicionais de produção, transporte e comércio, aqueles cujos interesses estabelecidos foram atingidos não pediram proteção porque teria sido inútil. Mas, hoje, impedir um homem eficiente de competir com um menos eficiente é considerada uma tarefa legítima do governo. A opinião pública simpatiza com as solicitações de grupos poderosos para impedir o progresso. Não é de estranhar que, em tal ambiente, empresários menos eficientes busquem proteção contra concorrentes mais eficientes.

Seria correto descrever este estado de coisas da seguinte forma: hoje, muitos ou alguns setores empresariais não são mais liberais; não defendem uma autêntica economia de mercado, mas, ao contrário, solicitam ao governo medidas intervencionistas. Mas é inteiramente errado dizer que o significado do conceito de capitalismo mudou e que o atual capitalismo ou "capitalismo tardio" — como é chamado pelos marxistas — seja caracterizado por políticas restritivas que visem a proteger interesses constituídos de assalariados, agricultores, lojistas, artesãos e também, às vezes, de capitalistas e empresários. O conceito de capitalismo, como conceito econômico, é imutável; se tem algum significado, significa economia de mercado.

Se aquiescermos em usar uma terminologia diferente, ficaremos privados das ferramentas semânticas próprias para lidar adequadamente com os problemas da história contemporânea e das políticas econômicas. Essa nomenclatura defeituosa só se torna compreensível quando percebemos que os pseudoeconomistas e os políticos que a utilizam querem evitar que as pessoas saibam o que é realmente a economia de mercado. Querem que as pessoas acreditem que todas as medidas repulsivas de intervenção estatal são provocadas pelo "capitalismo".

Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".

terça-feira, 20 de agosto de 2013

DETROIT, A CIDADE QUEBRADA


As lições a serem aprendidas com a falência de Detroit, uma cidade que já foi o exemplo cintilante do poderio industrial americano, estão sendo ignoradas pela mídia e por políticos mundo a fora. Embora a espiral de morte da cidade do automóvel possa parecer extrema em relação às condições de outros governos, a diferença é apenas de grau, e não de organização. A falência de Detroit é produto de uma combinação entre decadência produtiva, governos incompetentes, sindicatos agressivos e endividamento incontrolável. 

Como que para comprovar que políticos só pensam em contar mentiras reconfortantes para eleitores, o atual candidato a prefeito de Detroit, Tom Barrow, garantiu de maneira vigorosa que a crise fiscal da cidade não passa de pura ficção. Em uma recente entrevista, ele descreveu uma conspiração de longo prazo entre forças do Partido Republicano e do setor privado para roubar os ativos dos cidadãos de Detroit, destruir os sindicatos e acabar com os direitos civis dos eleitores. Detalhe: a cidade está sob inteiro controle do Partido Democrata desde o início da década de 1960.

Graças a anos de excessivos e generosos gastos governamentais, a cidade não possui hoje recursos para financiar nem mesmo os serviços mais básicos para sua população. Não são poucos os que afirmam que Detroit é tão digna de socorro federal quanto aquelas cidades devastadas por desastres naturais, como furacões e terremotos. A questão é que não há nada de "natural" no desastre fiscal de Detroit.

A verdadeira história de Detroit é que seus problemas, em vez de naturais, foram totalmente 'criados pelo homem', e podem ser resumidos em sete palavras: o setor privado construiu, o governo destruiu. Essa é a manchete percuciente que infelizmente está ausente da cobertura midiática.

Na primeira metade do século XX, Detroit oferecia empregos industriais para aproximadamente 200.000 trabalhadores. O efervescente mercado de trabalho fez com que a população da cidade crescesse para 1,8 milhão de pessoas até a década de 1950. E os empregos não vieram de programas governamentais ou de "investimentos" públicos em educação e programas de treinamento; eles foram criados pela vitalidade do capitalismo americano, pela visão estratégica e voltada para o longo prazo de industrialistas, pela forte ética do trabalho da população, e pela relativa ausência de interferência do governo e dos sindicatos. (As três grandes fabricantes de automóveis — GM, Ford e Chrysler — só começariam a lidar com o poderoso sindicato United Auto Workers em 1941).

Qualquer um que já teve o prazer de encontrar um carro americano clássico, como um Oldsmobile 8 Convesível de 1934 ou um Chrysler Town & Country de 1941, é capaz de entender por que Detroit prosperou da forma como prosperou. Não apenas estes carros eram impressionantes obras de engenharia e de perícia profissional, como também eram surpreendentemente acessíveis para vários americanos de classe média. A riqueza gerada pelos grandes fabricantes destes automóveis, bem como pela variedade de pequenos fabricantes que lhes forneciam peças e serviços, fluía para todas as classes de pessoas em Detroit, permitindo à cidade construir imponentes prédios e espaços cívicos, estabelecer instituições artísticas de nível internacional, e contribuir enormemente para as realizações culturais do país.

Porém, quando a cidade atingiu seu apogeu, toda a sua riqueza se tornou tentadora demais para as organizações sindicais e para todas as esferas de governo (federal, estadual, municipal). Embora Detroit continuasse a produzir e a prosperar durante toda a década de 1950, foi na década de 1960, mais especificamente após a guerra do Vietnã, que ocorreu a inflexão da indústria automotiva e da cidade que a representava. Não obstante a própria indústria automotiva ter a sua parcela de culpa — sua estrutura burocrática e sua arrogância míope a deixaram despreparadas para a concorrência estrangeira, o que certamente contribuiu para seu próprio declínio nos anos pós-guerra —, a real culpa deve ser atribuída diretamente aos sindicatos e ao governo. Tendo de enfrentar o inabalável poder de uma força de trabalho monopolizada e protegida pela poderosa máquina política controlada pelo Partido Democrata, que comanda a cidade desde a década de 1960, as fabricantes de automóveis tiveram de aquiescer com seguidos aumentos salariais, com leis trabalhistas restritivas, e com generosas e crescentes pensões, o que inviabilizou totalmente sua capacidade de investimento. Era simplesmente impossível sobreviver a esse conjunto de demandas.

Politicamente, a própria dinâmica eleitoral de uma cidade fortemente sindicalizada criou uma tempestade perfeita para Detroit. Prefeitos e vereadores passaram a ser eleitos exclusivamente de acordo com sua capacidade de prometer cada vez mais benesses para os sindicatos e seus membros, os quais, obviamente, irrigavam seus políticos preferidos com nababescas doações de campanha. E, embora as fabricantes fossem livres para apoiar os candidatos que quisessem, não havia como concorrer em número com os reais eleitores, que eram os sindicatos, os operários e suas famílias. Como resultado, desde a década de 1960, Detroit passou a sofrer com gerações de governos corruptos e incompetentes financiados por sindicatos corruptos e incompetentes. Ambos os lados não possuem a mais mínima compreensão de como sua cidade foi construída e de como as promessas que estavam fazendo para as gerações futuras jamais poderiam ser mantidas tão logo as indústrias sucumbissem sob a pesada mão da tributação, das regulações e da coerção sindical.

No final da década de 1950, a população caucasiana começou a sair da cidade, mudando-se para a região norte, acima da mítica 8 Mile (veja o filme homônimo com o rapper Eminem). Os violentos distúrbios de 1967 intensificaram ainda mais este êxodo, o qual a mídia rotulou de "fuga dos brancos". Em 1974, foi eleito o prefeito Coleman A. Young, com um forte discurso anti-brancos, que ficaria no poder por incríveis 20 anos e intensificaria ainda mais a "fuga dos brancos". O legado de Young foi desastroso. Durante seu reinado, a cidade foi imersa em inúmeros escândalos de corrupção ao mesmo tempo em que a administração, com sua retórica fortemente racial, foi criando um verdadeiro e profundo apartheid urbano. Dentre os principais "feitos" de Young estão a adoção de políticas de ação afirmativa como critério padrão para se preencher empregos municipais; um departamento de polícia chafurdado em escândalos e ligado ao narcotráfico, o que culminou com o chefe de polícia indo para a cadeia; a terceirização de obras públicas exclusivamente para empresas formadas por minorias, independentemente de sua qualificação; e a imposição de que todas as empreiteiras que fizessem obras com dinheiro da prefeitura contratassem nativos de Detroit.

Tudo isso gerou um enorme êxodo populacional, o que encolheu ainda mais a base tributária. Atualmente, a população de Detroit é de apenas 40% do que era em seu auge, e o número de empregos na indústria caiu 90%, para menos de 20.000. Enquanto isso, a dívida municipal é de mais de US$18 bilhões, o que equivale a aproximadamente de US$25.000 por cidadão. E isso em uma cidade em que menos da metade da população adulta está empregada e praticamente metade é formada por analfabetos funcionais. 

A cidade prometeu mais de US$3 bilhões para 20.000 pensionistas municipais (US$150.000 para cada um), um dinheiro que simplesmente não existe. Kevin Orr, escolhido para administrar o processo de falência de Detroit, recentemente veio a público mostrar que a cidade gasta 38 cents de cada dólar de imposto com estes "custos herdados", e a previsão é que tal cifra irá crescer para 65 cents. Isso significa simplesmente que não sobrou nenhum dinheiro para administrar a cidade. E em vez de reconhecer estes problemas, os políticos de Detroit, bem como o atual candidato a prefeito, preferem apenas fingir que eles não existem.

A boa notícia é que as mesmas forças que construíram Detroit podem ajudar a reerguer a cidade, desde que deixadas livres para atuar. Em primeiro lugar, Detroit tem de declarar moratória em sua dívida. Isso significa que aqueles indivíduos que contavam com suas pensões nababescas, investidores que compraram títulos municipais e demais cidadãos comuns irão sofrer. O governo municipal, por sua vez, se tornará totalmente indigno de crédito, o que significa que investidores não mais irão retirar dinheiro do setor produtivo para emprestar para a burocracia municipal. Tão logo esse processo doloroso esteja completo, Detroit passará a apresentar várias vantagens. Seus imóveis estarão inacreditavelmente baratos e a cidade terá uma mão-de-obra desesperada por trabalho. Se o governo relaxar as regulamentações e as leis trabalhistas, cortar impostos, adotar uma linha dura com relação às táticas de intimidação dos sindicatos, e abolir o salário mínimo, empreendedores poderão vislumbrar ali uma oportunidade e voltar para a cidade.

Muito embora a indústria não possa oferecer os altos salários que oferecia no passado, Detroit ao menos voltaria a fornecer empregos. E embora a cidade fosse retroceder gerações, ela ao menos estaria apresentando algum dinamismo. Mas a verdade é que a esquerda entraria em erupção e irromperia em fúria. Estamos programados para interpretar tais medidas de mercado como sendo apenas um exemplo cruel de 'exploração gananciosa' em vez de entendê-las como sendo a maneira natural como o capitalismo cura os excessos do intervencionismo e recomeça o jogo. A esquerda prefere ver os desempregados em sua situação atual a permitir que eles voltem a trabalhar mais horas e recebendo salários menores. 

Portanto, em vez de uma cura honesta, é de se esperar que Detroit tente sair da crise aumentando seu endividamento, reforçando suas promessas irrealistas e suplicando por socorros do governo federal, ao mesmo tempo em que seus políticos fingem estar atacando os problemas crônicos. 

No final, Detroit é apenas mais um exemplo do que ocorre quando governo e sindicatos se unem e impõem pensões dadivosas, legislações trabalhistas draconianas, regulamentações irrealistas e privilégios dignos de realeza. Acrescente a isso uma forte dose de discurso racial anti-brancos, ações afirmativas, medidas que afastam empreendedores e endividamento crescente, e você entenderá a situação atual. Embora as contas públicas de Detroit não tenham correspondentes, a cidade do automóvel é apenas um exemplo mais avançado de uma tendência que pode vir a afetar governos de todo o mundo caso eles não controlem seus gastos e seu endividamento, e não restrinjam as demandas de seus funcionários públicos e de seus sindicatos favoritos.
Por: Peter Schiff  presidente da Euro Pacific Capital e autor dos livros The Little Book of Bull Moves in Bear Markets, Crash Proof: How to Profit from the Coming Economic Collapse e How an Economy Grows and Why It Crashes. Ficou famoso por ter previsto com grande acurácia o atual cataclisma econômico. Veja o vídeo. Veja também sua palestra definitiva sobre a crise americana -- com legendas em português 
Tradução de Leandro Roque

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O PARADOXO LIBERTÁRIO - AQUILO QUE QUALQUER CRIANÇA ENTENDE, MENOS ALGUNS ADULTOS

Sempre que os libertários tentam persuadir outras pessoas, explicando a eles o que defendem, eles se deparam com um interessante paradoxo. De um lado, a mensagem libertária é simples. Ela envolve premissas morais e intuições que, em princípio, são compartilhadas por praticamente todo mundo, inclusive crianças. Não agrida ninguém. Não roube ninguém. Cuide de sua própria vida.

Uma criança diria: "Eu peguei primeiro; é meu!". Há uma noção intuitiva segundo a qual o primeiro usuário de um bem que até então não tinha proprietário adquire uma prioridade moral em relação aos retardatários. Este, também, é um aspecto central da teoria libertária.

Seguindo a tradição iniciada por Locke, Murray Rothbard e outros filósofos libertários procuraram estabelecer um relato que fosse filosófica e moralmente defensável sobre como surge a propriedade, isto é, como um bem se torna propriedade de um indivíduo. Locke afirmava que, no início dos tempos, os bens existentes na terra eram propriedade comunal, ao passo que Rothbard, mais plausivelmente, afirmava que, no início, todos os bens simplesmente não possuíam donos. Mas essa diferença não afeta a análise de ambos. Locke estava tentando justificar como alguém pode retirar um bem de sua até então propriedade comunal e passar a utilizá-lo exclusivamente, e Rothbard estava interessado em explicar como alguém pode se apropriar de um bem até então sem dono e reivindicar exclusividade sobre seu uso individual.

A resposta de Locke nos é familiar. Ele observou que, antes de tudo, cada indivíduo é o dono de seu próprio corpo. Por conseguinte, cada indivíduo se torna o proprietário de direito daqueles bens aos quais ele 'misturou' seu trabalho. Cultivar uma terra, apanhar uma maçã — qualquer que seja o exemplo, dizemos que a primeira pessoa a se apropriar de algo até então sem dono, algo que estava inerte na natureza sem nenhum proprietário e sem ter recebido nenhum tipo de trabalho, pode se autoproclamar seu proprietário legítimo. Esta é a teoria da 'apropriação original'.

Tão logo um bem que até então estava em seu estado natural é apropriado originalmente por um indivíduo, seu proprietário não mais precisa continuar trabalhando nele ou fazendo transformações para manter seu título de propriedade. Uma vez que o processo de apropriação original já ocorreu, futuros proprietários não mais poderão adquirir esta propriedade específica ao simplesmente 'misturar' seu trabalho nela — isso seria uma transgressão. As únicas maneiras, portanto, de futuros proprietários adquirirem esta propriedade específica são por meio de uma transação comercial voluntária (compra e venda) ou por meio de doação por parte de seu proprietário legítimo.

Como dito no início, todos nós intuitivamente percebemos a justiça e a moralidade imbuídas no cerne desta regra. Se o indivíduo não é o dono de si mesmo, então qual outro ser humano seria o proprietário? Se o indivíduo que transforma algum bem que até então não era propriedade de ninguém não possui um direito sobre este bem, então qual outra pessoa possui?

Além de ser justa, esta regra também serve para minimizar os conflitos. Trata-se de uma regra que todos são capazes de entender, pois é baseada em um princípio que se aplica igualmente a todas as pessoas. Ela não diz que apenas os membros de uma determinada raça ou de um determinado nível de inteligência podem ser proprietários. Trata-se de uma regra que definitivamente demarca títulos de propriedade de uma forma lógica e compreensível para todos, a qual reduz as contendas a um mínimo.

Alternativas a esse princípio do 'primeiro apropriador, primeiro usuário' são poucas e inócuas. Se não for o primeiro usuário, então quem? O quarto usuário? O décimo segundo? Mas se apenas o quarto ou o décimo segundo usuário for o proprietário de direito, então somente o quarto ou o décimo segundo usuário tem o direito de fazer alguma coisa com o bem. É isso o que significa propriedade: capacidade de fazer o que quiser com um bem, desde que, ao agir assim, o proprietário não cause danos a nenhum outro indivíduo. Atribuir títulos de propriedade por meio de algum outro método — como, por exemplo, declaração verbal — não teria efeito algum em minimizar conflitos; as pessoas simplesmente iriam gritar em vão umas com as outras, cada qual reivindicando a propriedade do bem em questão, de modo que a resolução pacífica do conflito resultante seria impossível.

Estes princípios são fáceis de entender, e, como dito, envolvem constatações de cunho moral com as quais praticamente todas as pessoas afirmam concordar e ser adeptas.

E é justamente aí que surge o paradoxo libertário. Libertários partem destes princípios básicos e universalmente entendidos e aceitos por todas as pessoas, e procuram apenas aplicá-los de forma consistente e de maneira uniforme a todas as pessoas. Porém, mesmo que as pessoas aleguem apoiar estes princípios, e mesmo que a maioria alegue acreditar na igualdade — que é o que o libertário está defendendo ao aplicar princípios morais a todas as pessoas, de maneira uniforme e sem exceção —, a mensagem libertária repentinamente se torna extremada, desarrazoada e inaceitável.

Por que é tão difícil persuadir as pessoas daquilo em que elas implicitamente já acreditam?

Não é difícil descobrir o motivo. As pessoas herdaram uma esquizofrenia intelectual do sistema educacional controlado pelo estado, da mídia que diligentemente cria entretenimentos para aliená-las, e dos intelectuais que despejam propaganda em sua cabeça.

Foi a isso que Murray Rothbard se referiu quando descreveu a relação entre o estado e os intelectuais. "A elite dominante", escreveu ele, seja ela os monarcas de outrora ou os partidos comunistas de hoje, necessita desesperadamente de elites intelectuais que criem apologias para o poder estatal. O estado governa por decreto divino; o estado assegura o bem comum e o bem-estar geral; o estado nos protege dos malvados atrás das colinas; o estado garante o pleno emprego; o estado aciona o efeito multiplicador keynesiano; o estado garante a justiça social, e por aí vai. As apologias foram se diversificando com o passar dos séculos; o efeito sempre é o mesmo.

Por que, afinal, os intelectuais fornecem seus serviços ao estado? Por que eles são tão ávidos em defender, legitimar e criar desculpas para os corredores do poder?

Rothbard tinha uma resposta:

Podemos ver o que os soberanos do estado ganham com sua aliança com os intelectuais; mas o que os intelectuais ganham com essa aliança? Intelectuais são o tipo de pessoa que acredita que, no livre mercado, eles ganham muito menos do que sua sabedoria realmente vale. Já o estado está disposto a pagar a eles salários magnânimos, seja para fazer apologias ao poder estatal, seja para lotar a miríade de cargos no aparato regulatório e redistributivo.

Adicionalmente, a classe intelectual com a qual estamos lidando quer impor sua visão, seu padrão de moralidade, à sociedade. Frédéric Bastiat dedicou boa parte de seu clássico livro A Lei a este impulso: o intelectual e o político são vistos como escultores, e a raça humana é vista como uma argila.

O que todas as instituições oficiais nos ensinam, portanto, é algo mais ou menos assim: em nome do bem-estar e do progresso da humanidade, alguns indivíduos têm de exercer poder sobre os outros. Se deixados por nossa conta, não teríamos praticamente nenhum instinto filantrópico. Todos nós cometeríamos os mais abjetos tipos de crime. O comércio se estancaria por completo, não mais haveria quaisquer inovações, e as artes e a ciência seriam negligenciadas. A raça humana se afundaria e se degeneraria em condições inomináveis, impossíveis sequer de serem contempladas.

Sendo assim, é necessário haver uma única instituição que detenha o monopólio da iniciação de força física e do poder de expropriar indivíduos. Tal instituição irá garantir que a sociedade seja moldada de acordo com os padrões adequados, que a "justiça social" seja alcançada, e que as aspirações mais profundas da humanidade tenham alguma chance de ser concretizadas.

Tão arraigadas em nossa mente estão essas ideias, que dificilmente ocorreria a alguém pensar nelas como mera propaganda. Esta simplesmente é a verdade sobre o mundo, imaginam as pessoas. É assim que as coisas são. Não podem ser de outra forma.

Mas e se elas puderem? E se realmente houver uma outra maneira de se viver? E se afinal não houver nenhum motivo para a liberdade ser tão confinada? Mais ainda: e se ela puder se expandir sem limites? E se a aversão que as pessoas nutrem ao monopólio também for aplicável ao governo assim como se aplica a todo o resto? E se o livre mercado, o mais extraordinário criador de riqueza e inovação já concebido, e o mais confiável e eficiente mecanismo de alocação de recursos escassos, for também o melhor meio de fornecer aqueles serviços cuja oferta nos foi dita que deve ficar a cargo do governo? E se o estado, o maior homicida em massa da história humana, o maior fardo ao progresso econômico e a instituição que joga uns contra outros em um jogo de soma zero baseado na pilhagem mútua, estiver retardando em vez de estimulando o bem-estar humano?

É somente quando percebemos algumas das implicações desta filosofia política, que seu poder libertador se torna claro.

Ela significa que tributação é uma afronta moral, uma vez que envolve a expropriação violenta de indivíduos pacíficos. Significa que agências reguladoras e burocracia são proibições diretas à livre iniciativa e ao ato de se empreender em busca do próprio sustento. Significa que tarifas protecionistas existem apenas para proteger os incompetentes e proibir consumidores — especialmente os mais pobres — de obter bens mais baratos e de maior qualidade. Significa que o recrutamento militar obrigatório é apenas um termo elegante e nacionalista para sequestro estatal. Significa que guerras são exemplos de homicídio em massa. Significa que o estado não é o glorioso garantidor do bem comum, mas, ao contrário, um parasita que se alimenta dos indivíduos que ele governa. 

Os anarquistas de esquerda estavam grotescamente errados ao condenarem o estado como o protetor da propriedade privada. O fato é que o estado simplesmente não sobreviveria caso não agredisse a propriedade privada. O estado não produz nada, e só sobrevive por causa do trabalho produtivo daqueles que ele expropria.

O estado é o exato oposto do livre mercado em questão de ética e de comportamento. No entanto, ainda assim são poucos os defensores do mercado que se dão ao trabalho de examinar suas premissas. Eles continuam acreditando nas seguintes ideias:

(1) O melhor sistema social é aquele em que a propriedade privada é respeitada, as pessoas são livres para incorrer em transações comerciais entre si, e não há uso de coerção.

(2) Isto, no entanto, se aplica até que a produção de determinados bens esteja em questão. Aí então é necessário haver monopólio, coerção, expropriação e decisões burocráticas — em outras palavras, a mais egrégia contradição dos princípios que alegamos defender.

Para sermos honestos, pode não ser tão fácil imaginar, a princípio, como o livre mercado ofertaria determinados bens e serviços. Além do mais, não é verdade que sempre necessitamos de que haja alguém "no comando"?

No entanto, por esse mesmo raciocínio, deveria ser igualmente difícil imaginar o sucesso do próprio livre mercado: sem alguém dando ordens centralizadamente e comandando todas as decisões de produção, como podemos esperar que agentes privados produzam justamente aquilo que as pessoas querem, especialmente quando têm de lidar com um número virtualmente infinito de possíveis combinações de recursos, cada qual sendo demandado em variados graus de intensidade por um número inimaginável de possíveis processos de produção? E é exatamente isso o que o ocorre diariamente no mercado, sem nenhuma fanfarra.

Pensadores libertários apresentaram a mais radical crítica já feita ao estado. É verdade que os marxistas alegam defender o fim do estado, mas tal defesa dificilmente pode ser levada a sério. O poder coercivo do estado possui uma função central na transição marxista do capitalismo para o socialismo. Como disse Rothbard, "É completamente absurdo tentar alcançar um arranjo sem estado por meio da mais absoluta maximização do poder estatal, a qual ocorreria em um uma ditadura totalitária do proletariado (ou, de maneira mais realista, de uma seleta vanguarda do suposto proletariado). O resultado será apenas a estatização máxima e, por conseguinte, a escravidão máxima."

E, sem a propriedade privada, como seriam tomadas as decisões de produção? Por um estado, é claro. A diferença é que os marxistas não o rotulariam de estado. Segundo Rothbard:

Com a propriedade privada misteriosamente abolida, a eliminação do estado sob o comunismo seria necessariamente uma mera camuflagem para um novo estado que surgiria para controlar e tomar as decisões sobre os recursos que agora seriam de propriedade comunal. Exceto que o estado não mais seria chamado de 'estado', mas sim renomeado para algo como "departamento estatístico popular". ... Será de pouca consolação para as futuras vítimas, encarceradas ou assassinadas por cometerem "atos capitalistas entre adultos em comum acordo" (citando uma frase tornada popular por Robert Nozick), o fato de seus opressores não serem o estado, mas sim um departamento estatístico popular. O estado, sob qualquer outro nome, continuará exalando um odor igualmente fétido.

Já aqueles conservadores que defendem um "governo limitado" querem reformar o sistema. Se tentarmos isso ou aquilo, dizem eles, podemos transformar um monopólio da violência e da expropriação em um manancial de ordem e civilização.

Nós libertários estamos a milhões de léguas de ambas essas visões. Não vemos os empregados do governo como "servidores públicos". Como é deprimente ouvir conservadores ingênuos sonhar com um retorno àquela época "nostálgica" quando o governo respondia às pessoas, e os políticos eleitos buscavam o bem comum. A situação que vivenciamos hoje, ao contrário do que estes conservadores querem acreditar, não é nenhuma aberração lamentável. É apenas a deplorável norma de um ambiente em que há um ente com o monopólio da violência e da tomada de decisões supremas.

Existem duas, e somente duas, versões desta história sobre liberdade e poder. Uma olha para o poder oriundo do estado como a fonte do progresso, da prosperidade e da ordem. A outra credita a liberdade como a responsável por essas coisas boas, bem como pelo comércio, pelas invenções, pela prosperidade, pelas artes e pela ciência, pela subjugação das doenças e da miséria extrema, e por muito mais. Para nós, a liberdade é a mãe, e não a filha, da ordem.

Alguns irão contra-argumentar dizendo que há uma terceira opção: uma criteriosa combinação entre estado e liberdade seria necessária para o desenvolvimento humano. Mas isso nada mais é do que uma apologia ao estado, uma vez que tal postura aceita como fato consumado exatamente aquilo que nós libertários questionamos: que o estado é a indispensável fonte de ordem, dentro da qual a liberdade prospera. Ao contrário, a liberdade prospera apesar do estado, e seus frutos que observamos ao nosso redor seriam ainda mais abundantes não fosse a mão pesada e morta do estado.

E eis aí um outro lado do paradoxo libertário: embora nossa filosofia advenha de uma única proposição — o princípio da não-agressão —, todo o desenvolvimento e elaboração deste princípio fornece uma inexaurível fonte de prazer intelectual à medida que exploramos como as características inerentes à sociedade humana podem se entrelaçar para atuar de forma conjunta e harmoniosa na ausência de uma coerção.

A classe intelectual tem sua tarefa e nós temos a nossa. A deles é continuar confundindo e ofuscando a mente do público; a nossa é esclarecer e explicar. A deles é escurecer; a nossa é iluminar. A deles é subjugar o indivíduo à dominação daqueles que violam os princípios morais que todas as pessoas civilizadas alegam defender e seguir; a nossa é emancipá-lo desta submissão.

Termino aqui com o paradoxo libertário final: se, por um lado, somos professores da filosofia da liberdade, por outro, enquanto continuarmos estimando e apreciando estas grandes ideias, seremos para sempre alunos. Você, libertário, continue explorando e descobrindo, lendo e escrevendo, argumentando e persuadindo. A violência é a arma do estado e de indivíduos moralmente sórdidos. O conhecimento e a mente são as ferramentas dos indivíduos livres.

Por: Lew Rockwell  presidente do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State
Tradução de Leandro Roque