terça-feira, 22 de outubro de 2013

A IMPORTÂNCIA DOS PÓS-ESCOLÁSTICOS PARA A ESCOLA AUSTRÍACA

1. Introdução

O primeiro capítulo do excelente livro editado por Randall G. Holcombe, "The Great Austrian Economists" (Ludwig von Mises Institute, 1999, iBooks), escrito por Jesús Huerta de Soto, começa com a seguinte frase: 

A pré-história da escola austríaca de economia pode ser encontrada nas obras dos escolásticos espanhóis, mais especificamente em seus escritos no período conhecido como o "Século de Ouro espanhol", que decorreu de meados do século XVI até o século XVII.

E prossegue:
Quem eram estes precursores intelectuais espanhóis da Escola Austríaca de Economia? A maioria deles era formada por escolásticos que ensinavam moral e teologia na Universidade de Salamanca, cidade espanhola medieval localizada a 150 km a noroeste de Madri, perto da fronteira da Espanha com Portugal. Esses escolásticos, principalmente dominicanos e jesuítas, articularam a tradição subjetivista, dinâmica e libertária a que, duzentos e cinquenta anos depois, Carl Menger e seus seguidores iriam dedicar tanta importância. Talvez o mais libertário de todos os escolásticos, especialmente em seus últimos trabalhos, tenha sido o padre jesuíta Juan de Mariana. [pp. 41-73]

Soto tem razão: de fato, Juan de Mariana, para os padrões de seu tempo e levando em conta que era um padre, um jesuíta, foi um autêntico revolucionário. Neste artigo, farei um pequeno resumo das contribuições dos chamados pós-escolásticos para a teoria econômica e enfatizarei as ideias de Mariana. Não tenho nem longinquamente a pretensão de ser original ao escrevê-lo. Trata-se, na verdade, de um survey de alguns dos melhores e mais conhecidos trabalhos sobre o tema da Escolástica Tardia, acrescido de algum material que encontrei na Internet e que julguei confiável e de algumas reflexões pessoais oriundas do interesse pela tradição e os desenvolvimentos mais recentes da Escola Austríaca, que tem direcionado meus trabalhos, pesquisas, aulas e palestras ao longo das últimas duas décadas.

2. Aspectos históricos

Infelizmente, é um lugar comum, sempre que alguém se refere à Idade Média, se ouvir falar em trevas e barbárie, quase sempre com uma expressão de escárnio e desprezo. Mas, ao contrário do mau odor que exala este preconceito herdado dos iluministas, tanto a Filosofia quanto a ciência moderna devem muito — muito mais do que se pode imaginar! — à Idade Média e à sua monumental Escolástica.

Ao final do século V, o que restava do outrora poderoso Império Romano era uma multidão dispersa de povos bárbaros e alguns fragmentos da cultura clássica, que só não desapareceram devido aos esforços dos monges copistas e de alguns grandes pensadores. Os primeiros e conturbados séculos da Idade Média europeia foram dominados pelo pensamento de Santo Agostinho de Hipona, responsável por solidificar a fé cristã, calcado em elementos platônicos. O Bispo de Hipona influenciou pensadores como Boécio, Dionísio, o Areopagita e Escoto Erigena.

Na verdade, Dionísio usava este pseudônimo em alusão à vicissitude narrada por São Lucas no capítulo 17 dos Atos dos Apóstolos, onde escreveu que Paulo pregou em Atenas, no Areópago, para uma elite do grande mundo intelectual grego, mas no final a maior parte dos ouvintes mostrou-se desinteressada e afastou-se, ridicularizando-o; todavia alguns, poucos, diz-nos São Lucas, aproximaram-se de Paulo, abrindo-se à fé e entre estes poucos Lucas oferece-nos dois nomes: Dionísio, membro do Areópago e uma mulher, Damaris.

No século V, Pseudo-Dionísio — como também ficou conhecido — escreveu o Corpus Areopagiticum, com o intuito de colocar a sabedoria grega ao serviço do Evangelho e ajudar no encontro entre a cultura e a inteligência gregas e o anúncio de Cristo, fazendo com que o pensamento grego se encontrasse com o anúncio da Boa Nova de São Paulo. Já Escoto Erígena, nasceu na Irlanda em 810 e foi um expoente do "renascimento carolíngio", bem como da tradição das artes liberais que fundamentaram o ensino medieval e também concentrou seus estudos nas relações entre a filosofia grega e os princípios do Cristianismo.

A palavra "escolástica" tem duplo significado. O primeiro, um tanto limitado, quando se refere apenas às disciplinas ministradas nas escolas medievais, a saber, o trívio, formado por gramática, retórica e dialética e oquadrívio, composto por aritmética, geometria, astronomia e música. E o segundo tem conotação mais ampla, reportando-se à linha filosófica adotada pela Igreja na Idade Média. Esta modalidade de pensamento era essencialmente cristã e procurava respostas que justificassem a fé na doutrina ensinada pelo clero, o depositário das verdades espirituais e o orientador das ações humanas virtuosas.

O dicionário Aurélio on line apresenta três acepções:

1. Fil. Doutrina e filosofia cristã da Idade Média, que procurou combinar a razão platônica e aristotélica com a fé e a revelação dos Evangelhos, alcançando seu auge com Santo Tomás de Aquino; ESCOLASTICISMO.: "Cria... uma Universidade de ciências maiores, pedindo ao Pe. Francisco de Borja que lhe mande bons mestres para as cadeiras de teologia, escolástica, positiva, moral..." (Antero de Figueiredo, D. Sebastião)

2. P.ext. Teol. Qualquer doutrina ou filosofia fundamentadas a partir de uma crença religiosa

3. P.ext. Pej. Qualquer doutrina que pregue o tradicionalismo ou o pensamento ortodoxo.

[F.: Do lat. scholastica.]

É difícil delimitar a origem da Escolástica porque ela nunca se estabeleceu como uma doutrina filosófica restrita. Havia no ambiente católico uma divergência muito viva em questões teológicas e foi esse espírito de debate que acabou dando origem à corrente de atividades intelectuais, artísticas e filosóficas a que se convencionou chamar de Escolástica.

No século XII, essa valorização do saber refletiu-se na criação das universidades e na ascensão de uma classe letrada e o monge agostiniano Santo Anselmo é apontado como tendo sido o primeiro escolástico, seguido por Pedro Abelardo, Pedro Lombardo e Hugo de São Vítor.

Na segunda metade do século XII chegaram às universidades as traduções hispânicas de versões árabes das obras de Aristóteles, um grande choque cultural que mudou o rumo do Ocidente e que conduziu a Escolástica para a sua "Era de Ouro", no século XIII, quando Santo Agostinho deixou de ser o eixo do pensamento cristão e a Filosofia Natural aristotélica cresceu diante da Teologia.

Os professores universitários passaram a ter fama e importância, os livros — sempre escritos em latim — se multiplicaram e com isso o modelo de ciência antiga começou a ser questionado e a desabar. Robert Grosseteste e seu discípulo Roger Bacon lançaram as primeiras sementes da pesquisa científica, idealizando experimentos. As universidades de Paris, Oxford e Colônia testemunharam os grandes debates e o surgimento de obras gigantescas. É o século do grande São Tomás de Aquino, de Alberto Magno, de São Boaventura e de Duns Scotus.

A grande contribuição da Escolástica à Filosofia foi sua preocupação com o rigor metodológico e dialético. Os estudantes das principais universidades precisavam passar por exames que envolviam disputas orais de argumentos, sempre regidas pela aplicação da lógica formal e a supervisão rigorosa de um mestre.

Como sugere Renan Santos, 

Pedro Abelardo se inspirou nesse método dialético e o aprofundou em sua obra Sic et Non, que virou referência para a resolução de problemas a partir da sucessão de afirmações e negações sobre um mesmo tópico. Para isso, era imprescindível uma definição satisfatória dos termos, que evitasse ambiguidades. Tiveram muito sucesso nesse sentido os escolásticos, chegando a criar palavras totalmente novas a partir das raízes do grego e do latim, o que acabou resultando no latim escolástico. A própria evolução das ciências se deve em grande parte ao desenvolvimento desse rigor terminológico.

Entre os renascentistas e iluministas, criou-se a ideia de que a Escolástica havia se submetido a Aristóteles como um servo feudal se curva ao seu mestre, o que os estudos do século XX mostraram ser uma afirmação absurda. A verdade é que, com a chegada da imensa obra de Aristóteles, foram surgindo naturalmente dois partidos nas universidades: os tradicionais, agostinianos e platônicos, que não admitiam a ideia de ciências autônomas em relação à teologia, e os "modernos" aristotelistas, fascinados a tal ponto com a investigação da Filosofia Natural que buscaram tornar as ciências independentes da Teologia.

Essa discussão levou a grandes e memoráveis contendas acerca da relação entre fé e razão, cuja ruptura definitiva ficaria a cargo do franciscano inglês Guilherme de Ockam, no século XIV.

Na assim denominada "querela dos universais", na esteira das traduções que abalaram o Ocidente, encontrou-se a Isagoga, obra do filósofo antigo Porfírio, expondo o problema dos universais em Aristóteles. Iniciava-se assim um dos mais longos debates da história da Filosofia. Recorrendo ainda a Santos: 

Quando olhamos para duas maçãs, vemos algo de comum entre elas? Ou elas são completamente diferentes? Há uma substância "maçã" separada delas, ou ela está em cada uma das maçãs? Ou a substância "maçã" não existe de forma alguma? Perguntas desse tipo é que dirigiram o debate dos universais.

Os ultrarrealistas, de índole platônica, como Santo Anselmo, Odo de Tournai e Bernard de Chartres, diziam que sim, que há uma substância, um universal "maçã" separado de todas as maçãs e que lhes serve de modelo. Os realistas, moderados e mais aristotélicos, como Pedro Abelardo, João de Salisbury e o grande Aquinate, afirmavam que o universal "maçã" existe somente nas maçãs e nunca fora delas. Já os nominalistas, como Roscelin e Guilherme de Ockham, negariam que houvesse qualquer universal, já que "maçã" não seria nada mais que um simples nome. Esta discussão ecoaria no confronto entre empiristas e racionalistas modernos.

Porém, historicamente, podemos dividir a Escolástica em três períodos: Escolástica Primitiva (sécs. IX ao XII); Escolástica Média (sécs. XII e XIII) e Escolástica Tardia (sécs. XIV e XV e início do séc. XVI).

A Escolástica Primitiva teve início com o renascimento carolíngio e com o ressurgimento da escola que então se verificou e que desenvolveu um método de ensino que posteriormente foi elaborado pormenorizadamente, formado pelas quaestiones (problemas sujeitos a exame) e disputationes (exposição de argumentos a favor ou contra). As grandes disputas centravam-se em torno de dois problemas fundamentais: o problema da relação entre a fé e razão, ou seja, entre dialéticos partidários da razão e antidialéticos, defensores da fé e o problema da polêmica dos universais.

Na Escolástica Média surgiram diversos tipos de escolas, incluindo as primeiras universidades e iniciou-se um intenso trabalho de tradução, especialmente na Península Ibérica, que possibilitou o conhecimento dos clássicos gregos e latinos, a Filosofia Natural e a Metafísica de Aristóteles, bem como as obras de seus estudiosos gregos e árabes. 

No século XIII, com a introdução, em Paris, da filosofia árabe, representada pela contribuição de Averróis, um especialista em Aristóteles, iniciou-se uma tendência denominada averroísmo latino, que preconizava a defesa da tese da dupla verdade, isto é, de que fé e razão são verdades independentes e igualmente legítimas. Com a criação das ordens franciscana e dominicana, a Escolástica alcançou o seu ponto culminante com a obra de São Tomás de Aquino, da escola dominicana, que adaptou, seguindo de perto Averróis, a filosofia de Aristóteles ao pensamento cristão. De outra parte, a escola franciscana, de que São Boaventura é o expoente maior, inspirou-se no neoplatonismo e na filosofia de Santo Agostinho. 

A Escolástica Tardia (o período dos pós-escolásticos) começou no séc. XIV e se caracterizou pela separação definitiva entre a Filosofia e a Teologia. A Teologia manteve-se em vigor na escola franciscana, representada por Escoto e Occam e a Filosofia concentrou-se no empírico, no particular e no sensível. A Escolástica conheceu então um notável florescimento na Espanha e em Portugal, comandado pelas ordens dominicana e jesuíta, orientadas para a nova interpretação que se fez da teoria de São Tomás na Itália, especialmente por Santo Antonino de Florença e São Bernardino de Siena. O dominicano Francisco de Vitoria fundou uma escola em Salamanca, em que se formaram notáveis teólogos tomistas que, juntamente com os jesuítas de Coimbra e Francisco Suárez, em polêmica com o escotismo e o nominalismo, defenderam uma síntese escolástica tradicional, porém de acordo com as novas tendências de pensamento da época. 

No final desta série de artigos, você encontrará um apêndice mostrando o quadro evolutivo da Filosofia Moral e Política da Idade Média, desde São Justino de Cesareia, o Mártir (100-165) até nosso "herói" Juan de Mariana. O quadro foi elaborado cuidadosamente por Alex Catharino para o II Ciclo sobre Pensamento Ético, Político e Econômico, módulo I: Antiguidade e Idade Média, A Filosofia Moral e a Teoria Política de Santo Tomás de Aquino, curso promovido pelo Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista - Cieep, em parceria com a Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro.

3. A Escola de Salamanca e os pós-escolásticos (ou escolásticos tardios)

Feita essa pequena digressão histórica, imprescindível para os fins a que me proponho neste artigo, posso agora ir ao em tema principal, a Escolástica Tardia, os pós-escolásticos com destaque para Juan de Mariana e sua importância para a Escola Austríaca de Economia.

Murray Rothbard, em seu excepcional tratado de História do Pensamento Econômico, "Economic Thought Before Adam Smith - An Austrian Perspective on the History of Economic Thought", dedica o capítulo 4 do volume I a uma minuciosa descrição da importância daqueles pensadores dos séculos XIV, XV e XVI. Inicia mostrando que agrande depressão de longo prazo do século XIV e da primeira metade do século XV começou a dar lugar para a recuperação econômica na segunda metade do século XV. Espanha e Portugal, os exploradores líderes dos novos continentes, tornaram-se estados nações dominantes e impérios no século XVI.

Lentamente, porém inexoravelmente, as cidades-estados italianas, que representavam a vanguarda do progresso econômico e da cultura no período do Renascimento, começaram a ser deixadas para trás frente ao avanço do poder econômico e político ibérico derivado da era dos grandes descobrimentos.

Mas, junto com a expansão comercial veio a inflação, alimentada pelo aumento imenso de ouro e prata levados para a Europa pelos espanhóis das minas recém-descobertas do hemisfério ocidental. Uma triplicação aproximada do estoque da espécie na Europa resultou em um século de inflação, com os preços também triplicando durante o século XVI. O novo dinheiro fluiu pela primeira vez no Velho Continente no principal porto espanhol de Sevilha e, em seguida, espalhou-se para os outros países da Europa, e a geografia dos aumentos de preços seguiu, naturalmente, em conformidade com essa expansão.

Inglaterra e França cresceram em força junto com as outras nações atlânticas da Europa ocidental, o que foi bastante facilitado pelo fim da Guerra dos Cem Anos entre os dois países, que na verdade teve a duração de 116 anos, de 1337 a 1453. As doutrinas do estado absoluto, anteriormente limitadas em grande parte aos teóricos e governantes das cidades estados italianas, agora se espalhavam por todos os estados e nações da Europa. O absolutismo triunfou em toda a Europa no início do século XVII e Rothbard mostra que essa vitória foi alimentada pela ascensão do protestantismo e, um pouco mais tarde, pelo secularismo, a partir do século XVI.

Para compreendermos mais precisamente o ethos dos pós-escolásticos, é conveniente visualizarmos, na tabela seguinte, como evoluiu o pensamento econômico desde os escolásticos medievais até os nossos dias.


O nominalismo, derivado da Escolástica Medieval, consistia em uma abordagem reducionista de problemas sobre a existência e natureza de entidades abstratas e opunha-se ao platonismo e ao realismo. Enquanto o platônico defende um enquadramento ontológico em que coisas como propriedades, gêneros, relações, proposições, conjuntos e estados de coisas são assumidos como primitivos e irredutíveis, o nominalista, por definição e maneira de enxergar o mundo, nega a existência de entidades abstratas e procura mostrar que o discurso sobre essas entidades é analisável em termos do discurso sobre concretos particulares da experiência comum. Seus autores mais expressivos foram Guilherme de Ockam (1290-1350), Jean Buridan de Bethune (1300-1358), Nicole Oresme (1325-1382) e Heinrich von Langenstein (1325-1397).

Apesar de influenciarem também o positivismo e François Quesnay (o fundador do fisiocratismo) e de se oporem ao tomismo, os nominalistas contribuíram para o desenvolvimento da Escolástica Tardia ao abordarem, principalmente, três temas: a teoria do valor (dando a ela enfoque subjetivista); a defesa do livre comércio e a defesa da propriedade privada (a defesa franciscana de que se deve abrir mão das riquezas exige que se possuam essas riquezas, o que conduz à defesa do direito de propriedade). Oresme defendeu também a conhecida "Lei de Gresham", segundo a qual "a moeda má expulsa a moeda boa", bem como o padrão-metálico.

Vejamos agora o quadro sinóptico que mostra as origens a as influências dos escolásticos tardios, com alguns aspectos das ideias defendidas por seus principais nomes. Trata-se de um quadro semelhante ao elaborado por Alejandro Chafuen, em seu celebrado livro Economia y Etica: Raices Cristianas de La Economia de Libre Mercado, de 1991.


Escolástica Tardia na Itália

São Bernardino de Siena (1380-1444), franciscano, sistematizou, na Toscana, a herança intelectual econômica de São Tomás, sendo o primeiro teólogo, depois de Olivi, a escrever um livro inteiro dedicado à teoria econômica escolástica. Os pontos principais de sua doutrina foram a defesa da propriedade privada (embora a considerasse artificial e não natural), a defesa do empreendedorismo, a defesa do livre comércio, a legitimação dos lucros, a teoria do valor, em que o "preço justo" é definido como sendo o preço de mercado e os perigos da tributação excessiva.

Santo Antonino de Florença (1389-1459), um discípulo de S. Bernardino, seguiu a mesma análise de seu preceptor, mas enfatizou um ponto crucial da filosofia do Aquinate, o de que qualquer transação no mercado traz benefícios mútuos para ambas as partes, pois estas resultam melhores do que antes, em termos de ficarem mais satisfeitas.

Ambos foram contra a usura, contudo, o que contribuiu para manter esse aspecto da teoria econômica obscuro, cercado de mistérios e quase que proibido.

Escolástica Tardia na Espanha

Especialmente em Salamanca, a partir dos sécs. XV e XVI, diversos autores, inicialmente dominicanos e mais tarde jesuítas, abordaram temas ligados à teoria monetária, propriedade privada, juros, inflação e tributação. Vejamos sucintamente (já que nosso personagem principal neste artigo é Juan de Mariana) como avançaram.

Surge a Escolástica Tardia em Espanha com Francisco de Vitoria (1495-1560), em Salamanca, com seus escritos sobre Direito Internacional e suas explicações morais e econômicas da Summa. Os principais pontos de Vitoria são:o "preço justo" é o preço de mercado e a propriedade privada, a justiça e a paz resultam de trocas voluntárias realizadas entre os agentes.

Martin de Azpilcueta, o "Doutor Navarro" (1493-1586), também dominicano, professor em Salamanca e Coimbra, desenvolveu as bases do conceito de "preferência intertemporal" e da "Teoria Quantitativa da Moeda", defendeu preços livres da interferência dos governos, alertou que emissões de moeda sem lastro provocam distorções na economia e na sociedade e criticou o sistema de reservas fracionárias dos bancos.

Diego de Covarrubias y Leiva (1512-1577), Bispo de Segóvia, alertou para os efeitos nocivos de diminuições no teor metálico das moedas, criticou o sistema de reservas fracionárias dos bancos e chegou a esboçar uma teoria subjetiva do valor.

Luís Saravia de la Calle (século XVI) defendeu, em seu Instrucción de Mercaderes, publicado em 1544, as ações dos comerciantes como legítimas e antecipou o que Menger escreveu em 1871, que não são os custos que determinam os preços, mas os preços que determinam os custos:

Los que miden el justo precio de la cosa según el trabajo, costas y peligros del que trata o hace la mercadería yerran mucho; porque el justo precio nace de la abundancia o falta de mercaderías, de mercaderes y dineros, y no de las costas, trabajos y peligros.

Francisco de García, em Tratado Utilíssimo de Todos los Contractos, Quantos en los Negocios Humanos se Pueden Ofrecer, publicado em Valência em 1583, sustentou que a utilidade marginal dos bens, inclusive a da moeda, é decrescente.

Luís de Molina (1531-1601) advogou a liberdade de preços, criticou as regulações excessivas e as distorções provocadas pelas políticas de preços máximos e mínimos, desenvolveu o conceito de lucros cessantes (lucros perdidos de investimentos) e foi o primeiro a perceber, em 1597, que os depósitos bancários fazem parte da oferta monetária.

Genónimo Castillo de Bobadilla, em Politica para Corregidores y Señores de Vassallos (Madri, 1597), defendeu a competição dinâmica como um processo e não como o estudo de casos de equilíbrio, antecipando Menger, Mises, Lachmann e Kirzner em 400/500 anos!

Juan de Mariana (1535-1624), sobre o qual vamos escrever pormenorizadamente no próximo artigo, jesuíta, "politicamente incorreto" e considerado por alguns estudiosos como o mais importante dos escolásticos tardios, destacou que: a propriedade privada é muito importante para o desenvolvimento econômico e social; monopólios são como que impostos cobrados sem autorização, pois distorcem os preços e empobrecem o povo; o orçamento público deve ser equilibrado, já que os déficits orçamentários resultam em mais impostos ou em emissão de moeda, com a consequente inflação; escreveu um tratado sobre a inflação (atualíssimo), mostrando o que é, sua causa e suas consequências; criticou o poder monopolístico de emitir moeda detido pelos governos; criticou também as regulamentações de preços; argumentou que o intervencionismo viola a lei natural e prejudica a coordenação do corpo social; antecipou Hayek em 400 anos, ao sustentar que a informação é dispersa e subjetiva e que não se deve centralizá-la, sob pena de perda da solidez da ordem social; e mostrou que o valor da moeda depende de sua quantidade e de sua qualidade

Francisco Suarez (1548-1617) e Juan de Salas (1553-1612) argumentaram sobre a impossibilidade de modelos de equilíbrio: "el precio que habrá mañana nel mercado solo Dios lo conosce".

E Juan de Lugo (1583-1660) defendeu a natureza dinâmica dos mercados como processos, criticando a visão teórica que os enxergava como algo estático e em equilíbrio.

As ideias desses e de outros autores espalharam-se pela Europa, especialmente, no início, na Itália e em Portugal. Leonardo Léssio (1554-1623) recompilou os escritos econômicos de Salamanca e os difundiu nos Países Baixos e Antonio de Escobar y Mendoza (1589-1669) os difundiu em França.

A Escolástica Tardia gerou dois ramos:

1. Ramo Norte (anglo-saxão)

2. Ramo Continental (menos conhecido)

Leonardo Léssio (na Bélgica), Grocio e Pufendorf influenciaram John Locke, bem como Hutchinson e, portanto, Adam Smith (este, com uma mescla de subjetivismo e objetivismo) e, daí, a "mainstream economics".

Posteriormente, a partir do século XVIII, foram publicados trabalhos muito importantes para a genealogia da Escola Austríaca, dos quais podemos destacar os de:

Jacques Turgot (1727-1781), teólogo, político e ministro, um subjetivista que defendeu o livre comércio e mostrou que o papel do estado não deve ser o de controlar as atividades econômicas; debuxou o princípio da utilidade marginal decrescente; elaborou uma crítica aos modelos de equilíbrio e formulou uma Teoria do Capital que antecipou o austríaco Eugene von Böhm-Bawerk em quase 200 anos.

Ferdinando Galiani (1728-1787), que escreveu, aos 22 anos, o tratado Della Moneta e resolveu o famoso "paradoxo da água e dos diamantes", explicando-o com o conceito de escassez relativa.

Etienne Bonnot, o Abade de Condillac (1714-1780), publicou La Commerce et le Gouvernment - Considerés relativement l´Un à l´Autre, em 1776 (mesmo ano de publicação de A Riqueza das Nações, de Adam Smith), sob os auspícios de Turgot, que era então ministro. Condillac antecedeu o que Bastiat escreveu na primeira metade do século seguinte, ao analisar as diferenças entre os efeitos "que se veem" e os efeitos "que se devem prever"

Esses três autores possuem diversos pontos comuns: o indivíduo como eixo central; o subjetivismo metodológico; o estudo da Teologia; a defesa do livre comércio e a crítica aos "agregados econômicos" (que dois séculos depois ficariam conhecidos como Macroeconomia).

Por sua vez, Turgot, Galiani e Condillac influenciaram Jean Baptiste Say, Bastiat e Molinari em França, bem como os autores alemães da Escola de Valor de Uso, como Wilhelm Roscher, da Universidade de Leipzig, mestre de Carl Menger (que dedicou o seu Princípios de Economia Política a ele e o cita 17 vezes elogiosamente ao longo da obra, que sustentava que os preços é que determinavam os custos (e não o oposto)

Parece interessante, à guisa de parêntesis, observarmos as citações sobre diversos autores de Menger, o fundador da Escola Austríaca de Economia: Hermann (outro pensador alemão, 12 vezes, todas elogiosamente); Adam Smith (12 vezes, 11 para criticá-lo); Say (11 vezes, 10 para criticá-lo), bem como, sempre elogiando, Condillac, Galeani e Covarrubia que, como vimos, eram escolásticos tardios.

Observando como evoluiu o pensamento econômico desde São Tomás e principalmente com os escolásticos tardios, vemos claramente praticamente todas as características da Escola Austríaca de Economia:

- subjetivismo

- individualismo

- inflação e dos ciclos econômicos como fenômenos causados por distúrbios monetários

- propriedade privada

- mercados como processos

- princípio da ação humana

- interdisciplinaridade

- preferências intertemporais

- união entre Ética, Política e Economia (interdisciplinaridade)

- ordens espontâneas

- liberdade de preços

- livre comércio

- informações insuficientes, dispersas e interpretadas subjetivamente

- tempo real (não newtoniano)

Como vemos, São Tomás é a origem de tudo e o mundo latino e católico não tem por que padecer de qualquer complexo de inferioridade quando se trata de Teoria Econômica.

No próximo artigo: Juan de Mariana, um austríaco politicamente incorreto

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Visite seu website.

O MÍNIMO QUE VOCÊ PRECISA SABER PARA NÃO SER UM IDIOTA


Olavo de Carvalho

Folha - O título do livro é um tanto provocativo, até mesmo para atrair o leitor. Mas não seria pouco filosófico chamar de "idiota" quem não compartilha certas ideias?

Olavo de Carvalho - Ninguém é ali chamado de idiota por "não compartilhar certas ideias", e sim por pretender julgar o que não conhece, por ignorar informações elementares indispensáveis e obrigatórias na sua própria área de estudo ou de atuação intelectual. Nesse sentido, creio ter demonstrado meticulosamente, neste e em outros livros, que alguns dos principais líderes intelectuais da esquerda brasileira, assim como uns quantos da direita nascente, são realmente idiotas e fabricantes de idiotas.

O sr. comenta que a normalidade democrática é a concorrência "efetiva, livre, aberta, legal e ordenada" entre direita e esquerda. Mas também que todo esquerdista é "mau, sem exceção". Como é possível equilibrar esses dois aspectos?

Depende do que você chama de esquerda. Há uma esquerda que aceita concorrer democraticamente com a direita, sair do poder quando perde as eleições e continuar disputando cargos normalmente sem quebrar as regras do jogo. O Partido Trabalhista inglês é assim. Nosso antigo PTB era assim. Disputavam o poder, mas sabiam que, sem uma oposição de direita, perderiam sua razão de ser. Há uma segunda esquerda que deseja suprimir a direita pela matança dos seus representantes reais ou imaginários. Esta governa Cuba, a China, a Coreia do Norte etc., assim como governou a URSS e os países satélites.
Há uma terceira esquerda que, aliada da segunda, diverge dela em estratégia: pretende conquistar primeiro a hegemonia, de modo que, nos termos de Antonio Gramsci, o seu partido se torne "um poder onipresente e invisível, como um mandamento divino ou um imperativo categórico"; e, em seguida, tendo controlado a sociedade por completo, apossar-se do Estado quando já não haja nem mesmo a possibilidade remota de uma oposição de direita. Só aí virá um toque de violência, para dar acabamento à obra-prima.
A existência da primeira esquerda é essencial ao processo democrático. A segunda e a terceira devem ser expulsas da política e dos canais de cultura porque sua essência mesma é a supressão de todas as oposições pela violência ou pela fraude e porque se infiltram na primeira esquerda, corrompendo-a e prostituindo-a.
Ninguém pode apoiar esse tipo de esquerda por "boa intenção". Você já viu algum militante dessa esquerda sonhar em implantar o socialismo e depois ir para casa e viver como um humilde operário do paraíso socialista? Eu nunca vi.
Cada militante se imagina um futuro primeiro-ministro ou chefe da polícia política. Quando matam, é para conquistar o direito de matar mais, de matar legalmente. São porcos selvagens --sem ofensa aos mimosos animais.

O sr. argumenta que o brasileiro é maciçamente conservador, mas desprovido de representação política. Por que não temos políticos e partidos que tomem tal bandeira?

Já está respondido na pergunta anterior. O método da "ocupação de espaços" realizou no Brasil o ideal gramsciano de fazer com que todo mundo nas classes falantes seja de esquerda mesmo sem sabê-lo, de modo que toda ideia que pareça "de direita" já seja vista, instintivamente, sob uma ótica deformante e caluniosa, com chances mínimas ou nulas de argumentar em defesa própria.
Suas próprias perguntas ilustram o sucesso dessa operação no Brasil. Você pode não ser um militante de esquerda, mas raciocina como se fosse, porque na atmosfera mental criada pela hegemonia esquerdista isso é a única maneira "normal" de pensar, às vezes a única maneira conhecida.
Por isso, você, ao formular as perguntas, fala em nome dos meus críticos de esquerda, como se eles, e não o público que gosta do que escrevo, fossem os juízes abalizados aos quais devo satisfações.

Suas ideias podem ser consideradas de direita?

Algumas sim, outras não. Nem tudo no mundo cabe numa dessas categorias. Você não viu a turma da direita enfezada cair de paus e pedras em cima de mim quando afirmei que homossexualismo não é doença nem "antinatural"? É ridículo tomar uma posição ideológica primeiro e depois julgar tudo com base nela por mero automatismo, embora no Brasil de hoje isso seja obrigatório.

Em quais pontos suas ideias podem ser classificadas de direita e em quais não?

Não tenho a menor ideia, nem me interessa. O coeficiente de esquerdismo ou direitismo está antes nos olhos do observador e varia conforme as épocas e os lugares.
Só gente muito estúpida --isto é, a esquerda brasileira praticamente inteira-- imagina que direita e esquerda são categorias metafísicas imutáveis, a chave suprema para a catalogação de todos os pensamentos.
Outros, principalmente na direita, dizem que direita e esquerda não existem mais, o que é também uma bobagem, porque basta uma corrente se autodefinir como "de esquerda" para que todos os que se opõem a ela passem a ser julgados como se fossem a "direita", querendo ou não. A esquerda define-se a si mesma e define seu adversário, por menos que este se encaixe objetivamente na definição.
Nos EUA, alinho-me nitidamente à direita, porque ela existe como agente histórico, é definida e é autoconsciente, mas no Brasil essas coisas são uma confusão dos diabos na qual prefiro não me meter. O sr. Lula não foi, na mesma semana, homenageado no Fórum Econômico de Davos por sua adesão ao capitalismo e no Foro de São Paulo por sua fidelidade ao comunismo?
A última moda na esquerda nacional é cultuar o russo Alexandre Duguin, que é o suprassumo do reacionarismo, enquanto na "direita liberal" muitos adoram abortismo e casamento gay, pontos essenciais da estratégia esquerdista. Prefiro manter distância da direita brasileira, seja isso lá o que for.

No capítulo sobre o golpe de 64, o senhor diz que Castelo Branco foi "um grande presidente", e Médici, "o melhor administrador que já tivemos". Comenta ainda que está na hora de repensar o governo militar. Qual é sua opinião hoje?

No Brasil de hoje não se pode louvar um mérito específico e limitado sem que imediatamente a plateia idiota transforme isso numa adesão completa e incondicional. Neste país, as pessoas, mesmo com algo que chamam de "formação universitária", só sabem louvar ou condenar em bloco, perderam totalmente o senso das comparações, das proporções e das nuances. Isso é efeito de 30 anos de deseducação.
Os méritos dos governos militares no campo econômico, administrativo e das obras públicas são óbvios e, comparativamente, bem superiores a tudo o que veio depois. Ao mesmo tempo, esses governos destruíram a classe política, infantilizaram os eleitores e, por timidez caipira de entrar na guerra ideológica ostensiva, preferiram matar comunistas no porão (embora em doses incomparavelmente menores do que os próprios comunistas matavam em Cuba ou no Camboja) em vez de mover uma campanha de esclarecimento popular sobre os horrores do comunismo. Tudo isso foi uma miséria.
Foi o que eu sempre disse, mas, hoje em dia, se você reconhece uma pontinha de mérito em alguém, já o transformam em devoto partidário dele. Não distinguem nem mesmo entre aplaudir um governo enquanto ele está no poder e tentar avaliá-lo com algum senso de objetividade histórica depois de extinto, mesmo se você, como foi o meu caso, o combateu enquanto durou. O fanatismo idiota tornou-se obrigatório. É disso que o meu livro fala.

O sr. é bastante crítico ao movimento gay. Não acredita que ele foi o responsável por conquistas importantes?

No começo, quando lutava apenas contra a discriminação e a violência anti-homossexual, esse movimento parecia bom e necessário. Mas isso foi só a fachada, a camuflagem do que viria depois: um projeto de dominação total que proíbe críticas e não descansará enquanto não banir a religião da face da Terra ou criar em lugar dela uma pseudorreligião biônica, dócil às suas exigências.

O que o sr. pensa sobre o projeto da cura gay?

Ninguém pede ajuda a um psicólogo para livrar-se de uma conduta indesejada se é capaz de controlá-la pessoalmente ou se não quer abandoná-la de maneira alguma. Quando alguém vai a uma terapia com o propósito de livrar-se do homossexualismo, é porque não o vivencia como uma tendência natural da sua pessoa, e sim como uma compulsão neurótica que o escraviza.
É bem diferente de alguém que é homossexual porque quer, ou de alguém que deixou de ser homossexual porque quis e teve forças para isso. Proibir o tratamento de uma compulsão é torná-la obrigatória, é fazer de um sintoma neurótico um valor protegido pelo Estado. É uma ideia criada por psicopatas e aplaudida por histéricos.

O sr. apoiou a invasão do Iraque em 2003. Nos anos seguintes, vários abusos e atrocidades dos soldados americanos foram divulgados. Acredita que, no saldo geral, a guerra foi positiva?

Não apoiei a invasão do Iraque. De início fui contra. Foi só depois, quando os americanos começaram a exumar os cadáveres das vítimas de Saddam Hussein e viram que eram mais de 300 mil, que comecei a achar que a guerra era moralmente justificável.
Das tais "atrocidades americanas", a maioria é pura invencionice, e as genuínas, inevitáveis em qualquer guerra, nem de longe se comparam ao que Saddam Hussein fez contra o seu próprio povo em tempo de paz.
A guerra, em si, foi positiva do ponto de vista moral, mas a tentativa de forçar o Iraque a adotar uma democracia de tipo ocidental foi ridícula e suicida. A primeira Guerra do Golfo foi bem-sucedida porque se limitou às metas militares, sem sonhos "neocons" de reformar o mundo.

E como o sr. avalia as recentes manifestações em cidades do Brasil?

Tudo começou como uma tentativa de golpe, planejada pelo Foro de São Paulo [coalizão de partidos de esquerda latino-americanos] e pelo governo federal para fazer um "upgrade" no processo revolucionário nacional, passando da fase de "transição" para a da implantação do socialismo "stricto sensu".
Isso incluía, como foi bem provado, o uso de gente treinada em guerrilha urbana para espalhar a violência e o medo e lançar as culpas na "direita". Aconteceu que os planejadores perderam o controle da coisa quando toda uma massa alheia à esquerda saiu às ruas, e eles decidiram voltar atrás e esperar por uma chance melhor. Isso foi tudo. Não há um só líder da esquerda que não saiba que foi exatamente isso.

'DE HIPÓCRATES À HIPOCRISIA'

O mais famoso médico da Grécia antiga, Hipócrates, considerado o pai da Medicina, dizia: “Para os males extremos, só são eficazes os remédios intensos.” A frase é oportuna quando se observa que a Saúde no Brasil encontra-se em colapso. Do Sistema Único de Saúde (SUS) aos planos privados, alguns verdadeiras arapucas.

Apesar da crise, políticos permanecem enaltecendo o SUS, muito embora só utilizem o Sírio (Hospital Sírio Libanês), onde são recebidos à porta pelos professores-doutores de plantão. Enquanto isso, menos da metade dos cidadãos confia nos hospitais aos quais têm direito como simples mortais.

Pesquisa da ONU, divulgada no primeiro trimestre deste ano, com base em dados coletados entre 2007 e 2009, revelou que entre 126 países o Brasil ficou em 108° lugar no que diz respeito à satisfação com a qualidade dos serviços prestados. Apenas 44% dos brasileiros sentem-se satisfeitos com os padrões aqui oferecidos. Em nenhum país da América Latina, à exceção do Haiti (35%), foi identificado índice tão baixo quanto o que os brasileiros revelaram. Nesse campeonato, perdemos, por exemplo, para o Uruguai (77%), Bolívia (59%), Afeganistão (46%) e Camarões (54%), onde a população considera os serviços de saúde melhores do que a percepção que temos sobre os nossos.

Aparentemente, o dinheiro não é o fator que mais contribui para o caos. Conforme dados da OMS de 2011, somando-se todas as principais formas de financiamento (impostos/contribuições sociais, sistemas privados de pré-pagamento e desembolsos diretos dos pacientes), o Brasil gasta anualmente com saúde 8,9% do Produto Interno Bruto (PIB). O percentual é semelhante ao da Espanha (9,4%) e não muito inferior às aplicações da França (11,6%). No entanto, na maioria dos países desenvolvidos a maior parcela do financiamento provém de fontes públicas que respondem, em média, por 70% do gasto global. Em nosso país, o setor público ─ que atende 150 milhões de pessoas ─ contribui com apenas 45,7% do total das despesas integrais com Saúde.

Nesse cenário, será que nos últimos anos a Saúde tem sido considerada como prioridade entre as políticas públicas? O programa Mais Médicos irá salvar a saúde da pátria? Infelizmente, ambas as respostas são negativas.

Ainda que os recursos globais do Ministério da Saúde tenham aumentado nos últimos anos, as despesas realizadas mantiveram praticamente a mesma relação com o PIB. Em 2002, o total pago representou 1,87%, percentual que subiu para 1,88% em 2012. Em suma, de FHC a Dilma, com ou sem CPMF, trocamos seis por meia dúzia.

Quanto aos investimentos em Saúde (construção de hospitais, UPAs, aquisições de equipamentos etc.), nos últimos 12 anos foram autorizados nos orçamentos da União R$ 67 bilhões, mas apenas R$ 27,5 bilhões (41%) foram pagos. A título de comparação, o Ministério da Defesa investiu no mesmo período R$ 56,2 bilhões, literalmente o dobro das aplicações da Pasta da Saúde. Estamos comprando blindados, aviões de caça e construindo submarinos nucleares para enfrentar imagináveis inimigos externos enquanto, por aqui, mais de um milhão de brasileiros protestam por serviços públicos de melhor qualidade.

Em 2013, a situação é semelhante. A dotação prevista para os investimentos do Ministério da Saúde é de R$ 10 bilhões. Até setembro apenas R$ 2,9 bilhões foram pagos, incluindo os restos a pagar. O valor investido coloca o Ministério da Saúde em 5° lugar comparativamente aos outros ministérios.

Na verdade, há muito por fazer. Para começar, é difícil imaginar um país saudável em que quase a metade dos domicílios não tem rede de esgotos. Por opção, vamos gastar R$ 7,1 bilhões nos estádios de futebol padrão Fifa, enquanto em dez anos aplicamos somente R$ 4,2 bilhões em saneamento. O Mais Médicos ─ mesmo sem o Revalida e com certificados distribuídos a esmo ─ vai gerar o primeiro atendimento em cidades até então desprovidas, o que é bom. Mas por trás das “boas intenções” está a reeleição de Dilma, o fortalecimento da candidatura de Padilha ao governo de São Paulo, além do financiamento da ditadura cubana.

Dessa forma, o programa passa ao largo de questões cruciais como a necessidade de mais investimentos públicos, melhor gestão, atualização das tabelas de ressarcimento do SUS, aumento das vagas nos cursos de Medicina, nas UTIs e nas residências médicas, entre outros problemas a serem enfrentados. Tal como dizia Hipócrates, urgem remédios intensos. A reconstrução da saúde no Brasil exige mais ações e menos hipocrisia.

Por: Gil Castelo Branco O Globo

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

RUAS SEM NOME

Amarildo foi executado e seu corpo desapareceu porque ele residia num lugar não cartografado pelos Correios

Procure no Google Maps. Na vasta faixa da Rocinha, apenas duas vias têm nome: a Estrada da Gávea, na superfície, e o Túnel Zuzu Angel, no subterrâneo. Os Correios não dispõem de um mapa de ruas da Rocinha. Na favela, só recebem cartas em casa os assinantes dos serviços do Carteiro Amigo, empresa formada por antigos recenseadores do IBGE que cartografaram a área e criaram um cadastro informal de CEP. Amarildo de Souza morreu sob tortura, executado por policiais da UPP da Rocinha, porque não era reconhecido como indivíduo e cidadão, mas apenas como integrante de uma “comunidade”. José Mariano Beltrame narra a tragédia como um evento singular: o produto da ação de um bando de “maçãs podres” da PM. A narrativa verdadeira é outra: o destino de Amarildo evidencia o fracasso da política das UPPs.

O conceito das UPPs não foi elaborado no governo de Sérgio Cabral, mas no de Anthony Garotinho, pelo então secretário de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares, que tentou substituir a política de invasões de favelas pela implantação de unidades policiais permanentes. Garotinho interrompeu as iniciativas embrionárias, mas a ideia estava semeada: a presença policial deveria funcionar como passo inicial para a plena integração das favelas à cidade. Pacificadas as favelas, o Estado não mais teria desculpas para deixar de prover os serviços públicos universais a seus residentes. Cabral disseminou UPPs, mas pouco avançou na etapa seguinte. As ruas sem nomes oficiais são atestados eloquentes da recusa do poder público de cumprir suas obrigações.

Favela é a “outra cidade”, a cidade formada por ocupações, que carece de títulos de propriedade de terrenos e imóveis. Na novilíngua empregada por autoridades (e artistas), a palavra precisa caiu em desuso, cedendo lugar a “comunidade”, um termo que, tanto na Biologia quanto na Sociologia, não designa um espaço geográfico, mas uma coletividade distinta e singular. Involuntariamente, os inventores da nova palavra estão dizendo aquilo que, de fato, pensam: os moradores de favelas vivem (e devem viver) segundo normas particulares, diferentes daquelas vigentes na “cidade legal”. A causa mortis de Amarildo encontra-se exatamente nessa persistente rejeição do Estado a reconhecer os direitos de cidadania dos habitantes da “outra cidade”.

Para que as UPPs tenham futuro, explicou Soares numa entrevista concedida quase dois anos atrás, seria preciso “refundar” as polícias. “Enquanto uma UPP é criada, a PM continua incursionando em favelas de forma irresponsável, policiais militares criam novas milícias e promovem mais execuções extrajudiciais”, alertou o ex-secretário. Cabral soube converter o programa das UPPs em sedutor ativo eleitoral, mas recuou diante do imperativo de refundar as polícias, um passo que demandaria ousadas rupturas políticas. Beltrame aceitou conduzir uma política amputada, que ruma previsivelmente para o abismo. Como consequência disso, condenou-se ao papel deplorável que cumpre hoje, quando tenta enquadrar o assassinato de Amarildo na moldura da fatalidade.


Os registros estatísticos indicam que, somente em 2010, 854 pessoas — entre as quais, 463 menores — foram mortas em ações policiais no Estado do Rio de Janeiro. “Há duas mortes que precisam ser mais bem investigadas: a morte da pessoa e a morte do inquérito”, enfatizou o sociólogo Michel Misse, que participa da campanha Desaparecidos da Democracia. A corajosa juíza Patrícia Acioli foi executada em agosto de 2011 por policiais decididos a matar os inquéritos sobre a guerra suja nas favelas, que não foi interrompida pelas UPPs. Ela se tornou um cadáver ilustre sobre o pano de fundo do cortejo de mortos sem nome e, não poucas vezes, até mesmo sem corpo. Amarildo seria apenas um número adicional nas estatísticas macabras, não fosse a circunstância fortuita de que seu “desaparecimento” coincidiu com a onda de manifestações populares iniciadas em junho. Não, Beltrame: Amarildo não é uma mancha acidental no tecido limpo da política de segurança pública de Cabral.Na Zona Oeste, longe do foco das câmeras de TV, as milícias articulam-se à sombra das UPPs e disputam poder com o tráfico. Na Favela do Jacarezinho, que tem uma UPP desde janeiro, o comércio fechou as portas em 19 de abril, cumprindo ordens de traficantes que decretaram luto coletivo devido à morte de dois dos seus. Na Cidade de Deus, onde inaugurou-se uma UPP em 2009, crianças continuam a vender drogas no varejo. A casa de um sargento da PM na Praça Seca, no centro da Favela da Chacrinha, que serve como base da milícia local, foi pintada com o padrão de cores e a inscrição “UPP”. A mensagem, dirigida aos residentes, não exige esforço de tradução: os chefes da área avisavam que a “polícia do B” é uma costela da polícia oficial. A causa mortis de Amarildo está aí, na teia de relações que borra as fronteiras entre a polícia e o crime organizado.

“O importante agora é manter a integridade da UPP da Rocinha, que tem a aprovação da grande maioria dos moradores”, declarou Beltrame na hora da prisão dos dez policiais acusados de tortura, execução e ocultação de cadáver. A UPP da Rocinha foi inaugurada, com direito a discurso de Cabral, em setembro do ano passado. O comandante da UPP, agora afastado, está entre os indiciados. Ao longo dos últimos seis meses, segundo o inquérito da Polícia Civil, pelo menos 22 moradores sofreram torturas infligidas por policiais da unidade. O que significa, nesse contexto, “manter a integridade” da UPP da Rocinha? A linguagem orwelliana de Beltrame deve ser classificada com os adjetivos apropriados: acinte e desaforo. É essa “integridade” a causa mortis de Amarildo.

Amarildo foi executado e seu corpo desapareceu porque ele residia numa rua sem nome, num lugar não cartografado pelos Correios. O inquérito policial não basta. Precisamos de um inquérito político.

Por: Demétrio Magnoli Fonte: O Globo, 10/10/2013

RETRATO DE UM GIGANTE

A esquerda luta contra as desigualdades; a direita pretende apenas perpetuá-las. Podem passar milênios sobre a história humana. Mas esse é o clichê que fica.

Injusto. Nos últimos tempos, por motivos acadêmicos, tenho passado os dias com o conservador Benjamin Disraeli (1804-1881).

Sim, na longa galeria de primeiros-ministros britânicos, Disraeli perde em popularidade para gigantes como Churchill ou até para o contemporâneo Gladstone. Quando muito, Disraeli é lembrado como romancista (mediano) e um dos principais confidentes da rainha Vitória.

Mas Disraeli foi mais que tudo isso: ele simplesmente evitou que a Inglaterra cumprisse a revolução profetizada por Marx. A forma como o fez desafia todos os clichês ideológicos.

Aliás, a referência a Marx não é por acaso. Porque ambos, habitando a mesma cidade, contemplaram o mesmo problema: o fosso crescente entre ricos e pobres; a concentração de riqueza (e de poder) na mão de uns poucos --e depois uma longa legião de miseráveis que a Revolução Industrial produzia nas cidades.

Mas existe uma diferença: para Marx, o proletariado estava pronto para a revolução porque nada tinha a perder. Para Disraeli, o proletariado só não estaria pronto para a revolução se tivesse alguma coisa a ganhar.

Um pouco de história: em 1832, quando o Parlamento aprovou uma importante reforma eleitoral (a Reform Bill, promovida pelo partido Whig), foi concedido à classe média o direito de voto.

Disraeli reagiu. Por temer que o direito de voto à classe média pusesse em causa os sucessos eleitorais futuros do seu próprio partido conservador, aliado tradicional da aristocracia terratenente?

Sem dúvida --o calculismo partidário não nasceu hoje. Mas o problema, para Disraeli, não era apenas partidário, era nacional. Ou, dito de outra forma, o que seria da Inglaterra se as classes trabalhadoras fossem deixadas para trás? Não seria preferível conceder também o direito de voto às classes trabalhadoras?

Uma pergunta dessas, entre os conservadores, era simplesmente blasfêmia: imaginar que um trabalhador braçal pudesse votar só poderia ser piada.

Pior ainda: como o sr. Karl Marx ensinava, alargar os direitos políticos ao proletariado era convidar para dentro de casa quem a desejava destruir.

A resposta de Disraeli foi simples e crucial: ninguém deseja destruir uma casa que também sente como sua.

Dito e feito: em 1867, Disraeli aprovou o Reform Act, que concedeu o direito de voto aos trabalhadores urbanos. A historiadora Gertrude Himmelfarb explica a importância do gesto em uma única frase: foi nesse ano que a democracia plena nasceu no Reino Unido.

Mas Disraeli não ficou por aqui: como lembra Peter Viereck em estudo que também lhe é dedicado ("Conservative Thinkers", um primor de concisão e erudição), Disraeli acabaria mais tarde por legalizar também os sindicatos; e o direito à greve; e o direito à constituição de piquetes pacíficos; para além de ter aprovado mil outras leis laborais que extinguiram, um por um, todos os focos potencialmente revolucionários no país.

Como explicar tudo isso? Como explicar, no fundo, que tivesse sido um conservador a depositar uma fé tão otimista nos marginais do sistema?

Opinião pessoal: porque Disraeli, apesar de todos os sucessos literários e políticos, sempre se sentiu um marginal na sociedade inglesa do século 19. Aos olhos dos seus pares, ele era o eterno "estrangeiro", o eterno "exótico", o eterno "judeu", apesar do batismo na fé cristã.

E não existe nada mais insultuoso para um "outsider" do que a ideia paternalista, seja de esquerda ou de direita, de que todos os "outsiders" são por definição selvagens e revolucionários.

Não são, disse Disraeli: eles também podem ser cavalheiros se forem tratados como cavalheiros. E só assim, tratados como cavalheiros, eles estarão dispostos a preservar, e não a destruir, a constituição de que fazem parte.

Foi essa a lição magistral que salvou a Inglaterra da revolução --e, claro, o partido conservador do esquecimento.

Que essa lição seja ignorada pela esquerda, não admira. Que ela seja ignorada pela direita, eis uma fatalidade que já causa maior espanto.
Por: João Pereira Coutinho  Folha de SP

domingo, 20 de outubro de 2013

NEGÓCIOS DA CHINA "LOUCAMENTE RUINS"

A falsificação não se deve a erros de cálculo, mas a um desígnio de hegemonia mundial que os chefes chineses herdaram do patriarca marxista Mao Tsé Tung.

Se os números de Balding estiverem certos, a China está à beira de uma monumental crise. 


Christopher Balding, professor na HSBC Business School da Universidade de Pequim, denunciou que mais de um trilhão de dólares contabilizados no PIB oficial chinês pura e simplesmente não existem.

Ele argumenta com dados convincentes: o PIB chinês está distorcido e cálculos prudentes apontam um número bem menor, noticiou o 'World Affairs'.

Balding se apoia no trabalho de Stephen Green, do Standard Chartered Bank, um dos primeiros a denunciar que a China superdimensiona o seu PIB ao manipular os dados da inflação, e que a economia chinesa só cresceu 5,5% no último ano e não 7,8% como reza a vulgata oficial.

Para Green, caso houvesse um índice para medir o grau de suspeita que paira sobre as estatísticas oficiais da China ele se utilizaria do termo técnico americano: ‘crazy bad’ (loucamente ruim)”.

Antes de se transformar no czar da economia chinesa, Li Keqiang confiou a representantes americanos que suas estatísticas não são confiáveis, ou “feitas a mão”.

Os estatísticos chineses podem ficar mal à vontade com os dados incontestáveis de Balding, mas de fato nada acontecerá.

Afinal de contas, a falsificação não se deve a erros de cálculo, mas a um desígnio de hegemonia mundial que os chefes chineses herdaram do patriarca marxista Mao Tsé Tung.

Os estudos de Green e Balding revelam um estado crítico de fraqueza da economia chinesa. Há enorme desacordo sobre a proporção dívida–PIB, e não se sabe bem qual é o volume real da dívida, uma vez que o governo central está “criando” PIB com gastos estatais massivos. As cidades fantasmas são um exemplo claro disso.

Li Keqiang tenta convencer a comunidade financeira mundial do contrário, mas ele anunciou um “estímulo econômico não-oficial” que obriga os bancos a emprestarem dinheiro às províncias para preencher metas do governo.

Mas o truque de Li infla os números do PIB e levanta sérias dúvidas sobre o futuro pagamento das obrigações governamentais.

Pequim defende que sua dívida pública em 2012 equivalia a 40% do PIB, e, portanto gerenciável. Mas, sem dúvida a proporção é muito maior. Alguns sugerem até 200% (nos EUA em crise, a proporção atingiu 102,9% na mesma data).

Se os números de Balding estiverem certos, a China está à beira de uma monumental crise. Exageros aparecem nos números relativos à produção industrial.

Se os temores forem confirmados, o país comunista vai entrar numa crise da qual não conseguirá sair nesta década, concluiu o 'World Affairs'.
Por: Luis Dufaur edita o blog Pesadelo Chinês.

OS 25 ANOS DA CARTA QUE ESTÁ TRANSFORMANDO A IMPUNIDADE EM CLÁUSULA PÉTREA


Batizada de “Constituição Cidadã” por Ulysses Guimarães, a Constituição de 88, que completa um quarto de século, corre o risco de se tornar a “Constituição da Barbárie”, caso continue transformando direitos fundamentais em salvo-conduto.

A Constituição da Re­pú­blica Federativa do Brasil está completando 25 anos. Às 15h50 do dia 5 de outubro de 1988, o presidente da Assembleia Na­cional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães (PMDB), em pé, erguendo na mão esquerda um exemplar da nova Constituição, afirmou em meio aos aplausos dos parlamentares e populares que lotavam o Congresso Na­cional transformado em Cons­tituinte: “Declaro promulgada!... O documento da liberdade, da dignidade, da democracia e da justiça social do Brasil. Que Deus nos ajude que isso se cumpra!” Um ano, oito meses e quatro dias antes, em 1º de fevereiro de 1987, havia sido instalada a Assembleia Nacional Consti­tuinte, que, depois de 612 dias de pressões, debates, negociações e, sobretudo, expectativa, conseguiu finalmente consolidar o texto da nova Constituição do País.

Ulysses Guimarães fez questão de dizer em seu discurso de promulgação da Carta que o Brasil contava, em 1988, com 30,4 milhões de analfabetos, ou “afrontosos 25% da população” sem saber ler e escrever. Com bases nesses dados, o presidente da Constituinte advertiu: “A cidadania começa com o alfabeto”. Mas aquela estatística de Ulysses Gui­marães não era precisa. Na verdade, era quase fraudulenta. Fazia de conta que a taxa de analfabetismo permaneceu no mesmo patamar de 25,9% do Censo de 1980, quando, na verdade, ela foi reduzida para 19,7% no Censo de 1991, quando o Brasil tinha 18,6 milhões de analfabetos. Como no Censo de 1980 o Brasil tinha 19,3% de analfabetos, os 30 mi­lhões de analfabetos do “Dr. Uly­sses” em 1988 eram puro chute. A não ser que se contassem os analfabetos funcionais, que continuam sendo bem mais do que um quarto da população ainda hoje.

Naquele tempo, todos os indicadores sociais negativos do Brasil eram inflados pelos formadores de opinião e pela ONU, fazendo o País disputar a copa mundial da miséria com os piores países africanos, banhados pelo sangue de guerras étnicas. Até 2002, a Fundação Getúlio Vargas estimava haver 50 milhões de miseráveis no Brasil. E, na imprensa, só se falava da fome etíope que assolava esses miseráveis. Mas eles só existiam nessas estatísticas lunáticas dos acadêmicos, ensandecidos pela ideologia marxista. Na vida real, os supostos miseráveis estavam virando obesos.

Essa tendência niilista só mudou a partir de 2003, com a eleição do santificado Luiz Inácio Lula a Silva. Então, do dia para a noite, esses mesmos formadores de opinião e burocratas da ONU tornaram-se mais otimistas do que o Pangloss de Voltaire e passaram a enxergar no Brasil um país de primeiríssimo mundo. Numa só canetada, tiraram 40 milhões de pessoas da miséria e criaram uma nova classe média de fazer inveja aos países escandinavos. Mas, quando a Constituição de 88 foi promulgada, no ano de 15 a.L. (“antes de Lula”), o Brasil ainda era a Etiópia e se jogou nos ombros da nova Carta toda a responsabilidade de transformá-lo numa Suécia.

Casamento da demagogia com o sonho
Provêm daí os grandes males da Constituição de 88. Ela nasceu do casamento da demagogia com o sonho. E nesse encontro entre o demagogo e o sonhador, nem é preciso dizer qual vontade prevalece. A demagogia era tanta que a Cons­ti­tuição de 88 chegou a estabelecer, em seu artigo 192, inciso VII, parágrafo 3º, que as taxas de juros reais não poderiam ser superiores a 12% ao ano.

Na época, o economista Delfim Neto, então constituinte, apesar de ter tabelado os juros várias vezes quando ministro do regime militar, ironizou esse dispositivo constitucional, dizendo que seus defensores só tinham dois exemplos de constituições que tabelaram juros: a da Nica­rágua e a de Guiné-Bissau, o que mostrava, segundo ele, de que era feito o progressismo dos constituintes de esquerda.

Como foi solenemente ignorado por todas as políticas econômicas que se sucederam entre Sarney e Lula, o artigo 192 acabou sendo am­putado da Carta pela Emenda Constitucional nº 40, de 29 de maio de 2003, restando dele so­mente três linhas, que, sensatamente, remetem para leis complementares a regulamentação do sistema financeiro nacional. Convém salientar que o tresloucado tabelamento dos juros e outras diatribes anticapitalistas do artigo 192 tinham sido impostos por pressão das esquerdas, especialmente o PT de Lula. E coube justamente a Luiz Inácio Lula da Silva, como presidente da Re­pú­blica, repudiar o discurso demagógico que o levou a ser eleito em 2002 e a orientar sua maioria no Congresso Nacional para amputar o referido artigo. O que não impede o ex-presidente de continuar posando de “Pai dos Pobres” e arauto do socialismo.

A Constituição de 88 foi movida pelo espírito das barricadas de Paris e quis levar a imaginação ao poder. Prova disso é que os constituintes preferiram não trabalhar sobre um anteprojeto estabelecido, para orgulho de Ulysses Guimarães. Em seu discurso de promulgação da “Constituição Cidadã”, ele assim descreveu seus bastidores: “Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna. O enorme esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas, no longo trajeto das subcomissões à redação final. A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam, livremente, as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parla­mento, na procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões”.

Xenofobia econômica dos empresários
A obra aberta que foi a As­sembleia Nacional Constituinte tornou-se um terreno fértil para espertezas de todos os lados. O empresariado cartorial do País, acostumado a usar o Estado como escudo contra a concorrência estrangeira, juntou-se ao corporativismo dos sindicatos de trabalhadores para instituir na Constituição o máximo de protecionismo para a empresa nacional. O artigo 219 da Carta é um exemplo claro de xenofobia econômica, que só prejudica o consumidor-contribuinte. Eis o que o referido artigo diz: “O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal”.

Felizmente, com o advento da Era FHC, a partir da nomeação do sociólogo Fernando Henrique Car­doso para ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, em 21 de maio de 1993, esse artigo da Constituição se tornou letra morta. Caso contrário, não teria sido possível debelar a inflação. O sucesso do Plano Real só foi possível porque as medidas monetárias, como a implantação da URV em 1º de março de 1994, foram acompanhadas por reformas estruturais, especialmente a privatização das estatais, a reestruturação do sistema bancário e a abertura de mercado. A livre concorrência dos produtos importados abarrotou as prateleiras dos supermercados, impedindo que os preços subissem às alturas, como ocorreu durante o desabastecimento do fracassado Plano Cruzado.

Mas desde 2003, com o advento da Era Lula, o malfadado artigo 219 voltou a valer. E, com isso, revela toda a sua natureza. O mercado interno só é um patrimônio nacional na cabeça equivocada dos socialistas. Na prática, ele é patrimônio dos grandes empresários da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e de suas congêneres pelo País afora, aboletados nas associações comerciais e industriais de cada Estado, com suficiente poder político para eternizar seus incentivos fiscais. Da mesma forma, os trabalhadores sindicalizados, com o objetivo de proteger seus empregos, aliam-se a esse empresariado, muitas vezes com consequências funestas para a economia como um todo.

Exemplo recente dessa notória privatização do patrimônio nacional é a desastrada política desenvolvida pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A pretexto de criar um forte empresariado nacional, capaz de concorrer no mercado externo, o BNDES expolia toda a nação em benefício de alguns privilegiados. Em seu livro “Privatize Já” (Editora Leya, 2012), o economista Rodrigo Constantino observa que o BNDES tornou-se uma verdadeira “Bolsa-Empresário” durante o governo petista: “O BNDES já recebeu mais de 300 bilhões de reais em aporte de capital do Tesouro nos últimos anos, e cerca de 70% de seus desembolsos vão para grandes empresas, que pagam taxas de juros subsidiadas. Trata-se de um “orçamento paralelo” do governo, que transfere bilhões dos pagadores de impostos a esses poderosos grupos”.

Em nota na sua coluna “Ra­dar” de 13 de junho último, na re­vis­ta “Veja”, o jornalista Lauro Jardim contou que, desde o início do ano, “o governo Dilma resolveu dar uma ajudinha àqueles que desejam comprar ou trocar o seu avião particular”. Um programa do BNDES “passou a subsidiar com juros camaradas” as vendas de jatos executivos da Embraer. “São dez anos para pagar, com um juro camarada de 3% ao ano”, diz o jornalista. E, para efeitos de comparação, eu acrescento: os juros cobrados pela Caixa Eco­nô­mica Federal na compra de imóvel residencial pelo Sistema Finan­ceiro de Habitação giram em torno de 8,5% ao ano. Como se vê, trata-se de uma verdadeira extorsão dos mais pobres para beneficiar os mais ricos, mas se alguém, acertadamente, ousa chamar essa política do BNDES de criminosa, esbarra no artigo 219 da Constituição, que manda fortalecer o mercado interno.

Um inferno de boas intenções
Mas esse não é o pior crime que o inferno de boas intenções da Constituição de 88 patrocina. Talvez o aspecto mais nefasto da “Cons­tituição Cidadã” seja o seu festejado artigo 5º, uma verdadeira Cons­ti­tuição à parte, com 78 incisos e mais de 100 dispositivos. Esse artigo compõe, sozinho, um capítulo da Constituição, o Capítulo I do Título II, intitulado “Dos Deveres In­di­viduais e Coletivos”. Mas a palavra “deveres” no título desse capítulo só pode ser uma ironia. Como observa o historiador Marco Antonio Villa, no livro “A História das Cons­ti­tuições Brasileiras” (Editora Leya, 2011), a palavra “garantia” aparece 46 vezes no texto constitucional e “direitos” aparece 16 vezes, enquanto a palavra “deveres” aparece apenas 4 vezes.

Para piorar ainda mais, a Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, parida já pela maioria mensaleira de Lula, transformou o Brasil numa sucursal dos aloprados da Organiza­ção das Nações Unidas (ONU), a moderna Inter­na­cional Socia­lista, ao acrescentar ao artigo 5º o parágrafo 3º: “Os tratados e convenções internacionais so­bre direitos humanos que forem apro­vados, em cada Casa do Con­gresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Ou seja, o Brasil passou a se submeter à vergonhosa política de direitos humanos da ONU, que só serve para proteger criminosos comuns nos países democráticos, ao mesmo tempo em que faz vistas grossas diante da tortura de presos políticos em ditaduras comunistas como Cuba.

Com escolta, na contramão da lei
Agora mesmo, os doidivanas da ONU, em parceria com os ideólogos da USP, estão fazendo de tudo para aprovar a malfadada “Lei da Pal­ma­da”, que pretende criminalizar uma mãe de família comum por um tapinha qualquer no bumbum do filho, ao mesmo tempo em que presenteia drogados assassinos com regalias penais absurdas, que colocam em risco a segurança de toda a sociedade.

No interior de São Paulo, na semana passada, um usuário de drogas de 21 anos queria que o pai lhe desse dinheiro para comprar drogas. Como seu pai recusou o pedido, ele se armou com facas e se pôs a ameaçar a família. A polícia foi acionada e, ao chegar à residência, num bairro de Sorocaba, foi recebida pelo rapaz com duas facas nas mãos. Ele ameaçou furar os policiais, entrou no carro, travou as portas e saiu em disparada. Um dos policias teve que saltar para não ser atropelado.

A perseguição começou por volta das 22 horas do sábado, 28 de setembro. Depois de percorrer em altíssima velocidade algumas ruas residenciais, o jovem entrou – na contramão – na movimentada Rodovia Castelinho, que dá acesso à Rodovia Castello Branco, com destino à capital paulista. Ele lançava seu carro sobre os outros veículos e, segundo a imprensa local, na medida em que percorria a rodovia na contramão, aumentava o número de viaturas do Patrulhamento Tático Móvel e do Patrulhamento Tático Ostensivo da Polícia Rodoviária. Enquanto acompanhavam a trajetória furibunda do rapaz, os policiais tentavam alertar os outros motoristas para se desviarem dele.

Na cidade de Itu, o rapaz continuou acelerando seu veículo e quebrou a cancela da praça de pedágio. Na cidade de Salto, ele deu um cavalo de pau no Fiat Uno que dirigia e resolveu retornar – sempre em altíssima velocidade. Quebrou outra cancela da praça de pedágio, tentou abalroar um motociclista e entrou novamente no perímetro urbano da cidade de Sorocaba, sempre mantendo o excesso de velocidade. Quando o trânsito do centro da cidade o impediu de prosseguir, ele parou de uma vez, tentou manobrar o veículo e atingiu três viaturas da polícia. Então, desceu do carro com duas facas nas mãos e, novamente, ameaçou matar os policiais, que finalmente conseguiram imobilizá-lo.

Bem, o que isso tem a ver com o aniversário de 25 anos da Cons­tituição de 88? Tudo. O artigo 5º da Constituição é o responsável por essa barbárie que acabo de descrever. Prestem atenção: um rapaz de 21 anos, depois de tentar extorquir dinheiro da família para comprar drogas, corre desembestado por uma movimentada rodovia do maior Estado do País, na contramão, ao longo de 30 quilômetros, quebrando cancelas de pedágio e atirando seu veículo até sobre motociclistas. E consegue fazer o mesmo percurso de volta, oferecendo os mesmos danos e riscos para terceiros, até adentrar novamente a cidade de onde saiu. Tudo isso, escoltado por diversas viaturas policiais que se limitam a alertar os demais motoristas para se desvirem de seu caminho.

Meu Deus do Céu! Que desgraça de País é esse, cuja polícia – deixando de agir em nome da civilização, da humanidade e da vida de pessoas inocentes – não atira no veículo de um celerado desses para fazê-lo parar? Em qualquer nação civilizada e democrática do mundo, a polícia cumpriria seu dever: tão logo esse drogado entrasse numa rodovia em contramão, ainda por cima atirando seu carro sobre outros veículos, ele seria abatido como se abatem as feras. Sei que esse é o sentimento íntimo de todas as pessoas de bem e de bom senso que ainda não foram moralmente entorpecidas pela ideologia criminosa das universidades. E se elas se calam por medo de serem consideradas desumanas, eu não tenho medo de dizer o óbvio: polícia, se preciso for, deve matar – em legítima defesa da sociedade. Que saibam disso o Ministério Público, a OAB e as Defensorias Públicas.

Constituição faz de jovens crianças
Esse jovem de 21 anos que – escoltado pela própria polícia – colocou em risco a vida de dezenas de pessoas inocentes já é resultado da Emenda Constitu­cional nº 65, que acrescentou o termo “jovem” ao artigo 227 da Constituição. Essa emenda expandiu para marmanjos de até 29 anos os direitos absolutos de crianças e adolescentes, a partir de sua regulamentação pelo Estatuto da Juventude, aprovado pelo Congresso Nacional no início do ano passado. Procurem no dicionário todos os sinônimos de “famigerado”, “insano” e “irresponsável” e qualifiquem por mim tanto a Emenda Constitu­cional nº 65 quanto o Estatuto da Juventude. Não há outro modo de defini-los. A condescendência cada vez mais comum do Estado com os jovens adultos que enveredam pelo mundo das drogas e do crime já é fruto dessa mudança para pior na Constituição de 88.

Infelizmente, no Brasil, o artigo 5º da Constituição deixou de ser o capítulo “Dos Direitos e De­veres Individuais e Coletivos” para ser o capítulo “Da Im­punidade Indi­vidual e do Ônus Coletivo”. Se, para salvar os inocentes que trafegavam pela rodovia, um policial tivesse atirado no carro do celerado e ele saísse ferido ou morto, o pobre do policial iria padecer nas mãos do Mi­nistério Público e das ONGs de direitos humanos. E a Defensoria Pública, regiamente paga pelos contribuintes, ainda entraria com uma ação contra o Estado para indenizar o rapaz (se ferido) ou sua família (se morto).

Não se trata de um fato isolado. Eu poderia escrever um livro do tamanho do romance “Guerra e Paz” de Tolstói se fosse enumerar somente os casos recentes em que as “garantias individuais” do artigo 5º da Constituição de 88 foram interpretadas de modo equivocado pelas autoridades, que não cumpriram seu dever em defesa do cidadão de bem.

Nas cadeias, por exemplo, isso é recorrente. Em Goiás, os administradores do antigo Cepaigo demonstraram orgulho em abolir as revistas íntimas das visitas dos presos, sob o pretexto de que seria uma afronta aos direitos humanos fazê-las sem o detector de metal. Ocorre que, ao priorizar o bem-estar das visitas em detrimento da segurança pública, as autoridades penitenciárias contribuíram para que o antigo Cepaigo se tornasse um quartel-general do crime, à custa do sangue inocente da população, morta em latrocínios a mando de criminosos presos, que, nessa condição, não deveriam continuar sendo um enorme perigo, como, de fato, são.

Na semana passada, segundo noticiou a imprensa nacional, um homem acusado de estuprar e assassinar uma mulher de 53 anos, detido há um mês no presídio da cidade goiana de Planaltina, no entorno de Brasília, foi liberado pelo juiz Carlos Gustavo Fernan­des de Morais, sob a justificativa de que o presídio estava superlotado, tendo atingido sua capacidade máxima de 136 presos. Por acaso, quando um trabalhador vai entrar no ônibus e percebe que o mesmo atingiu sua lotação máxima, ele tem o direito de faltar ao trabalho e ter o dia abonado sob a alegação de que seus direitos humanos não lhe permitem andar feito sardinha em lata? Ora, se uma pessoa honesta, a caminho do trabalho, não tem esse direito, por que um criminoso – que usou seu livre arbítrio para delinquir – merece tanta regalia por parte da Justiça?

E a decisão do juiz goiano, convém lembrar, não significa apenas uma regalia indevida para o criminoso, travestida de garantia dos direitos humanos – ela também coloca em risco a vida de pessoas inocentes. O criminoso em questão não é um mero suspeito – além de estuprar e matar a senhora de 53 anos para roubar, ele tentou esganar a neta da vítima, uma criança de apenas 4 anos.

É incrível como muitos promotores, magistrados e defensores públicos, ao mesmo tempo em que são ferrenhos defensores do Estado laico, acreditam piamente em milagre. Só a fé cega em milagre para não se perceber que o latrocida e estuprador solto pela Justiça goiana fatalmente vai cometer outro crime de estupro ou assassinato. Agora, perguntem se a vítima anunciada de seu futuro crime hediondo terá promotor ou defensor público acionando o Estado para indenizar seus parentes, como têm os criminosos que posam de vítimas do Estado?

E a impunidade garantida pela Justiça com base no artigo 5º da Constituição é para todos. Pes­quisem na internet as fotos da mais recente invasão da reitoria da USP. Vão encontrar alunos mascarados, com marreta e pé-de-cabra, quebrando a porta da reitoria. Chegaram a usar até uma placa de sinalização arrancada de um estacionamento para pessoas com deficiência, num crime de dupla depredação – contra o patrimônio público e contra os direitos humanos das pessoas com deficiência física.

A despeito desse ato de barbárie praticado por estudantes que deviam servir de exemplo para o País, o juiz Marcos Pimentel Tamassia, da 12ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, considerou a conduta criminosa dos estudantes da USP apenas um “ato de manifestação”. Ele recusou o pedido de reintegração de posse feito pela reitoria da USP e determinado que seja realizada uma “audiência de conciliação” entre a reitoria e os estudantes. É a Justiça brasileira instaurando a barbárie através da abolição de todos os deveres, com base no artigo 5º da Constituição – que já é ruim por si mesmo e fica ainda pior na mão de juristas que trocam Ruy Barbosa por Michel Foucault.

Sombrio futuro do Brasil
Já é um absurdo que as instituições de ensino não possam expulsar sumariamente estudantes arruaceiros e criminosos, dependendo de lerdas e lenientes ações judiciais. Isso reserva para o País um futuro sombrio. Se a própria Justiça entende que até um estudante da USP pode usar marreta e pé-de-cabra como argumentos, o que se deve esperar de um bandido comum senão que esfole e queime viva a sua vítima? É por isso que abomino a ideia tão propalada de reforma política. O Brasil precisa é de uma reforma moral, mas para isso seria necessário fazer outra Constituição, já que o artigo 5º figura entre as cláusulas pétreas.

Aliás, o conceito de cláusula pétrea é uma bobagem tipicamente brasileira. Toda Constitui­ção, se feita com seriedade, busca ser perene; logo, almeja ser inteiramente pétrea. Mas, para ser longeva, precisa ser enxuta. Como a Cons­tituição de 88 mais parece um manifesto de grêmio livre, cheia de boas intenções inconsequentes, os próprios constituintes perceberam que ela não ficaria de pé por muito tempo e introduziram no texto constitucional a necessidade de sua revisão dentro de cinco anos.

A revisão de 93 não deu em nada, mas a Constituição de 88 já tem 74 emendas, o que dá uma média de 2,6 emendas constitucionais por ano. E, como observa o historiador Marco Antonio Villa, é o Congresso comum que re­forma o trabalho da Cons­tituinte: “Se um simples Con­gresso poderia revisar a Carta, nada garantia que isso pudesse se repetir ‘ad infinitum’, como vem ocorrendo até os dias atuais”.

Apesar de ser a terceira mais duradoura da história do Brasil, a Constituição de 88 ainda é uma criança. A Constituição do Im­pério, outorgada por Dom Pedro I, continua sendo a mais longeva – durou 67 anos, de 1824 a 1891. A segunda mais duradoura foi a primeira Constituição republicana, vigente durante 43 anos, de 1891 a 1934. Mas, durante um bom período, foi letra morta, pois os governos militares de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto não respeitavam nem habeas-corpus.
As demais constituições republicanas tiveram vida curta. A Cons­tituição de 1946, elaborada no pro­ces­so de redemocratização pós-Vargas, durou apenas 21 anos. Foi su­bstituída pela Constituição de 1967, promulgada durante o regime militar e profundamente emendada dois anos depois, sem contar as mutilações dos diversos atos institucionais. Já a Cons­tituição do Estado Novo durou apenas nove anos, enquanto a primeira Carta de Var­gas, a de 1934, morreu em três anos.

Em síntese, o constitucionalismo brasileiro nada tem de sólido, como se pensa. O Supremo e sua arrogância, não passa de um santo com pés de barro. Se tivemos seis constituições em apenas 122 anos de República (o que dá uma média de 20,3 anos de vida para cada uma delas), quem garante que a Cons­tituição de 88 será mesmo perene, como proclamou o Dr. Ulysses?

Tudo bem que a Constituição de 88 já conseguiu superar em cinco anos a idade média de nossas constituições. Mas perto da Carta Magna inglesa (1215), que completa 800 anos em 2015, ou da Constituição dos Estados Unidos (1787), que já soma 226 anos, ela não passa de uma criança. E duvido muito que alcance a modesta maturidade da Cons­tituição do Império, caso continue sendo interpretada à luz do relativismo de Michel Foucault, como vem ocorrendo. Cláusula pétrea é a sobrevivência da nação – e ela não suportará por muito tempo esse ritmo crescente de barbárie promovido à luz de sua Lei Maior. A “Constitui­ção Cidadã” está se tornando uma “Constituição Suicida”. 

Publicado no Jornal Opção.

Por: José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.