quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O MERCADO É UM PROCESSO DINÂMICO, E NÃO APRESENTA "EQUILÍBRIO"

Um aspecto característico da abordagem austríaca da teoria econômica é sua ênfase de que o mercado é um processo, e não apenas uma configuração de preços, qualidades e quantidades que são consistentes entre si de modo a produzir uma situação de mercado em equilíbrio. Esse aspecto da economia austríaca está intimamente associado ao descontentamento com o uso generalizado do conceito de concorrência perfeita.

É interessante notar que, mesmo entre economistas de convicções bastante divergentes dentro da tradição austríaca, todos demonstram um desencanto característico com a ênfase ortodoxa dada tanto em relação ao equilíbrio como também em relação à concorrência perfeita. Assim, a bem conhecida posição de Joseph A. Schumpeter sobre essas questões é notavelmente próxima da de Ludwig von Mises. Oskar Morgenstern, em um importante artigo sobre teoria econômica contemporânea, expressou as mesmas críticas austríacas à moderna teoria econômica.

EQUILÍBRIO E PROCESSO

Ludwig. M. Lachmann revelou que sua insatisfação com a noção de equilíbrio envolve essencialmente o uso da construção do equilíbrio geral walrasiano em detrimento da utilização do simples equilíbrio parcial marshalliano. Mas é precisamente utilizando a construção de um mercado simples, com apenas um tipo de bem e no curto prazo, que demonstrarei algumas das deficiências da abordagem do equilíbrio.

Em nossas salas de aula, desenhamos a interseção marshalliana para descrever uma situação de oferta e demanda competitiva, e depois prosseguimos explicando como o mercado entra em equilíbrio apenas quando se atinge o preço correspondente à interseção das curvas.




Normalmente, a explicação sobre a determinação do preço de mercado pára por aí — praticamente concluindo que o único preço possível é o preço de equilíbrio de mercado. Algumas vezes tratamos da questão de como podemos estar certos de que há realmente uma tendência de que o preço de interseção será atingido. Nesse caso, a discussão prosseguirá em termos da versão walrasiana do processo de equilíbrio. Suponha — costumamos dizer — que o preço esteja acima do preço de interseção. Sendo assim, a quantidade do bem que as pessoas estão preparadas para ofertar é, no agregado, maior do que a quantidade total que as pessoas estão preparadas para comprar. Haverá estoques não vendidos, o que fará o preço diminuir. Por outro lado, se o preço estiver abaixo do preço de interseção, haverá um excesso de demanda, "forçando" o preço para cima. Assim — costumamos explicar — haverá uma tendência para que o preço gravite em direção ao ponto de equilíbrio no qual a quantidade demandada se iguala à quantidade ofertada.

Essa explicação tem um apelo simples, porém eficaz. Entretanto, quando o preço é descrito como estando acima ou abaixo do equilíbrio, entende-se que apenas um único preço prevalece no mercado. Uma pergunta incômoda, então, seria: como sabemos qual é esse preço único antes de termos atingido o equilíbrio? Pois certamente um preço único somente pode ser estipulado como resultado do processo de equilíbrio em si. Ao menos neste quesito, a explicação walrasiana sobre a determinação do preço de equilíbrio é nula.

Novamente: a explicação walrasiana normalmente pressupõe concorrência perfeita, onde todos os participantes do mercado são tomadores de preço. Mas se há apenas tomadores de preço participando do processo, não está claro como que os estoques não vendidos ou a demanda não atendida provocam mudanças no preço. Se ninguém pode influir no preço, como os preços sobem ou descem?

A explicação marshalliana do processo de equilíbrio — normalmente não apresentada nas discussões em sala de aula — é similar à walrasiana, porém utiliza quantidade em vez de preço como a principal variável de decisão. Em vez de desenhar linhas horizontais de preços no diagrama de oferta e demanda para mostrar um excesso de oferta ou uma demanda não atendida, o procedimento marshalliano utiliza linhas verticais para delimitar os preços de demanda e os preços de oferta para determinadas quantidades. Nesse procedimento, a ordenada de um ponto sobre a curva de demanda indica o preço máximo em que uma quantidade (representada pela abscissa do ponto) será vendida. Se esse preço for maior do que o correspondente preço de oferta (o preço ao qual a mesma quantidade será oferecida para venda), quantidades maiores serão colocadas à venda. O contrário ocorre quando o preço de oferta excede o preço de demanda. E assim, a existência de uma tendência em direção ao equilíbrio foi supostamente demonstrada.

Esse procedimento também faz muitas pressuposições. Ele toma como certo que o mercado já sabe quando o preço de demanda da quantidade disponível está excedendo seu preço de oferta. Ora, mas o desequilíbrio ocorre precisamente porque os participantes de mercado não sabem qual é o preço de equilíbrio. Em uma situação de desequilíbrio, normalmente não se sabe qual é "a" quantidade e nem qual é o preço mais alto (mais baixo) pelo qual essa quantidade pode ser vendida (pechinchada dos ofertantes). Assim, não está claro como que o fato de a quantidade de bens no mercado ser menor do que a quantidade de equilíbrio irá garantir que as decisões dos participantes de mercado sejam modificadas de modo a aumentar essa quantidade.

Claramente nenhuma dessas explicações sobre como se dá o alcance do equilíbrio é satisfatória. Pela perspectiva austríaca, que enfatiza o papel do conhecimento e das expectativas, as explicações acima pressupõem tacitamente muitas coisas. O que precisamos é de uma teoria sobre o processo de mercado que leve explicitamente em conta as alterações sistemáticas nas informações e nas expectativas sobre as quais os participantes de mercado atuam, e que explique como essas alterações irão levar os participantes em direção à "solução" de equilíbrio. E, de fato, o ponto de vista austríaco nos ajuda a conceber tal teoria.

ALOCAÇÃO ROBBINSIANA E A AÇÃO MISESIANA

Ao desenvolver uma teoria viável para o processo de mercado devemos levar em conta o papel — muito negligenciado — do empreendedorismo. A omissão do empreendedorismo na análise econômica moderna é uma consequência direta de preocupação geral com a situação final de equilíbrio. Para podermos entender a distinção entre uma teoria baseada no processo de mercado — a qual faz referência ao empreendedorismo — e uma teoria baseada no equilíbrio de mercado — a qual ignora o empreendedorismo —, será útil compararmos o conceito misesiano de ação humana com o conceito econômico utilizado por Lord Robbins, a saber, o processo de decisão de alocações.

Devemo-nos recordar que Lord Robbins definiu a economia como a ciência que lida com o aspecto alocativo das relações humanas, isto é, as consequências advindas do fato de que os homens direcionam e alocam seus limitados recursos para fins múltiplos e concorrenciais Mises, por outro lado, enfatizou a noção mais ampla da ação humana intencional, abrangendo os esforços deliberados por meio dos quais os homens tentam melhorar sua situação. Ambos os conceitos, é válido notar, são consistentes com o individualismo metodológico e incorporam a constatação de que os fenômenos de mercado são gerados pela interação de decisões individuais. Porém, ambas as construções diferem significativamente.

O método robbinsiano afirma que os indivíduos irão utilizar os recursos disponíveis e conhecidos da maneira mais eficiente possível, de modo a atingir certos propósitos. Isso requer a implementação do princípio equimarginal, isto é, a criação de um arranjo alocativo no qual é impossível transferir uma unidade de recurso de um uso para outro uso e, com isso, ganhar um benefício líquido. Para Robbins, o processo econômico consiste apenas em rearranjar os recursos disponíveis de modo a garantir a utilização mais eficiente de insumos conhecidos considerando-se uma dada hierarquia de objetivos. É a interação no mercado dos esforços alocativos de vários indivíduos que gera todos os fenômenos que a economia moderna procura explicar.

A dificuldade com uma teoria de mercado baseada exclusivamente em termos robbinsianos é que, no desequilíbrio, vários dos planos dos agentes robbinsianos estão fadados a não se realizar. O desequilíbrio é uma situação na qual nem todos os planos podem ser realizados conjuntamente; ele reflete erros na informação de preços sobre os quais os planos do indivíduo são feitos. Uma experiência de mercado malsucedida — que gerará escassez ou excedente de bens a serem vendidos — revela que as expectativas em relação ao preço original estavam incorretas. Embora a estrutura robbinsiana sugira que os planos malsucedidos serão descartados ou revisados, não é possível ir muito além disso. A ideia de um plano robbinsiano assume que a informação não só é dada como também é conhecida pelos indivíduos atuantes no mercado. Na ausência dessa informação, os participantes de mercado ficam bloqueados de toda a atividade robbinsiana. 

Sem qualquer pista sobre quais serão as novas expectativas que virão após as frustrações no mercado, somos incapazes de postular qualquer sequência de decisões. Tudo o que podemos dizer é: se todas as decisões robbinsianas forem harmônicas, teremos um equilíbrio; se não forem harmônicas, teremos um desequilíbrio. Dentro desse arranjo, não temos justificativas para afirmar, por exemplo, que estoques não vendidos irão deprimir os preços; podemos apenas dizer que, se houver uma errada expectativa de que os preços são mais altos do que de fato são, os tomadores de decisão robbinsianos irão gerar estoques não vendidos. Como tomadores de decisão, eles não podem aumentar ou diminuir preços; eles são estritamente tomadores de preços, fazendo alocações de acordo com o ambiente em que os preços são dados. Se todos os participantes são tomadores de preços, como então os preços de mercado poderão aumentar ou diminuir? Por meio de qual processo isso irá ocorrer, se ocorrer?

Para que os estoques não vendidos comprimam os preços, aqueles participantes de mercado que possuem bens não vendidos precisariam entender que os preços anteriormente praticados estavam muito altos. Os participantes precisariam modificar suas expectativas referentes ao entusiasmo dos outros participantes em comprar seus produtos. Mas para fazermos essas afirmações precisamos transcender os limites estreitos da estrutura robbinsiana. Precisamos de um conceito de tomadas de decisão que seja abrangente o suficiente para abarcar o elemento empreendedorismo, de modo a considerar a maneira como os participantes de mercadoalteram seus planos. É aqui que a noção misesiana acerca da ação humana vem ao nosso socorro.

O conceito de Mises acerca da ação humana envolve um insight, um discernimento, sobre a natureza humana que está completamente ausente em um mundo de agentes robbinsianos. Esse discernimento reconhece que os homens não apenas são agentes calculistas, como também são atentos às oportunidades. A teoria robbinsiana somente é válida após uma pessoa já ter sido confrontada por certas oportunidades; ela não explica como aquela pessoa aprende sobre essas oportunidades. Já a teoria misesiana sobre a ação humana concebe o indivíduo como um agente que tem seus olhos e ouvidos abertos para oportunidades que estão "logo ali". Ele está alerta, esperando, continuamente receptivo a alguma coisa que possa surgir. E quando o preço vigente não equilibra o mercado, os participantes de mercado percebem que eles precisam revisar suas estimativas de preços a fim de evitar novos desapontamentos. 

Esse estado de alerta e prontidão é o elemento empreendedorial da ação humana, um conceito ausente nas análises feitas em termos exclusivamente robbinsianos. Ao mesmo tempo em que transforma o ato de decisão em uma visão realista da ação humana, o empreendedorismo transforma a teoria de equilíbrio de mercado em uma teoria de processo de mercado.

O PAPEL DO EMPREENDEDORISMO

É verdade que há outras definições da função empreendedorial. As principais visões sobre o assunto têm sido aquelas de Schumpeter, Frank H. Knight e Mises. Entretanto, como já argumentei, todas essas definições alternativas têm em comum o elemento do alerta às oportunidades. Este alerta deve ser cuidadosamente distinguido da mera possessão do conhecimento. E é a distinção entre estar alerta e possuir conhecimento que nos ajuda a entender como o processo empreendedorial de mercado sistematicamente detecta e ajuda a eliminar erros.

Uma pessoa que possui conhecimento não é — apenas por esse critério — um empreendedor. Mesmo quando um empregador contrata um especialista por causa do conhecimento deste, é o empregador — e não o empregado — quem é o empreendedor. O empregador pode não ter toda a informação que o empregado possui; no entanto, o empregador está mais bem "informado" do que todos os outros concorrentes — ele sabe onde o conhecimento pode ser obtido e como ele pode ser proveitosamente empregado. 

O especialista contratado aparentemente não sabe como seu conhecimento pode ser proveitosamente empregado, uma vez que ele não está preparado para agir como seu próprio empregador. Ele não percebe a oportunidade fornecida pela posse de tal informação. O empregador, por outro lado, percebe. O conhecimento empreendedorial é um tipo de conhecimento refinado e abstrato — o conhecimento sobre onde obter informação (ou outros recursos) e como colocá-lo em prática.

Esse alerta empreendedorial é crucial para o processo de mercado. O desequilíbrio representa uma situação de ampla ignorância sobre as reais condições do mercado. Essa ignorância é responsável pelo surgimento de oportunidades lucrativas. O alerta empreendedorial explora estas oportunidades enquanto outros a ignoram. 

Lachmann e G.L.S. Shackle enfatizaram a imprevisibilidade do conhecimento humano, e de fato não entendemos claramente como os empreendedores obtêm esse lampejo de presciência superior à dos concorrentes. Não sabemos explicar como alguns homens descobrem determinadas oportunidades antes de outros. Podemos certamente explicar por que os homens exploram petróleo de modo a estarem sempre ponderando maneiras alternativas de gastar uma quantia limitada de recursos; porém, somos incapazes de explicar como um empreendedor presciente percebe antes dos outros que uma busca por petróleo pode ser recompensadora. 

Em termos empíricos, entretanto, sabemos que as oportunidades tendem a ser percebidas e exploradas. E é sobre essa tendência observada que se assenta nossa crença na existência de um determinado processo de mercado.

A PUBLICIDADE COMO UM ASPECTO DO PROCESSO COMPETITIVO

A caracterização do processo de mercado como um processo de descoberta empreendedorial clarifica várias ambiguidades sobre o mercado e dissipa vários mal-entendidos sobre como ele funciona. A propaganda fornece um excelente exemplo sobre o qual podemos basear nossa discussão.

A publicidade, uma característica dominante da economia de mercado, é amplamente incompreendida e frequentemente condenada como dispendiosa, desperdiçadora, ineficiente, inimiga da concorrência e geralmente destruidora da soberania do consumidor. Houve, nos anos recentes, alguma reabilitação do assunto na literatura econômica, dentro do modelo da economia da informação. De acordo com essa visão, mensagens publicitárias voltadas para potenciais consumidores representam quantidades de conhecimento necessárias, pelas quais eles estão dispostos a pagar um preço. A quantidade certa de informação é produzida e entregue pela indústria publicitária em resposta aos desejos do consumidor. 

Por razões ligadas a custos, é mais eficiente que essa informação seja produzida por aqueles que possuem mais facilidade para tal, a saber, os produtores dos produtos sobre os quais são desejadas informações. Essa abordagem tem seu valor e explica muito da economia da propaganda, porém não explica tudo. A abordagem sob a ótica da economia da informação tenta explicar os fenômenos da publicidade totalmente em termos da oferta e demanda de conhecimento não empreendedorial, informações que podem ser compradas, vendidas e até mesmo empacotadas. Porém tal abordagem não vai além de um mundo de maximizadores robbinsianos, e é incapaz de compreender a real função da publicidade no processo de mercado.

Consideremos o produtor do bem anunciado. Em sua função empreendedorial, o produtor antecipa os desejos dos consumidores e observa a disponibilidade dos recursos necessários para um produto satisfazer os desejos dos consumidores. Essa função pode parecer cumprida assim que o produtor produzir o produto e torná-lo disponível para a compra. Em outras palavras, pode parecer que a função do empreendedor foi cumprida assim que ele transformou uma oportunidade de produzir um determinado produto em uma oportunidade para que o consumidor compre o produto finalizado. Os próprios consumidores não estavam cientes das oportunidades que esse processo de produção representa; foi o alerta mais arguto do empreendedor que o possibilitou cumprir essa tarefa. 

Não é suficiente, entretanto, apenas disponibilizar o produto; os consumidores precisam saber de sua existência. Se a oportunidade de comprá-lo não for percebida pelo consumidor, será como se a oportunidade de produzi-lo não tivesse sido notada pelo empreendedor.

Não basta apenas cultivar alimentos os quais o consumidor não sabe obter; os consumidores precisam saber que o alimento foi de fato cultivado. Fornecer informações aos consumidores não é o suficiente. É essencial que as oportunidades disponíveis ao consumidor atraiam sua atenção, não importa qual seja o seu grau de alerta. Não basta ao empreendedor-produtor canalizar recursos para atender os desejos do consumidor; ele também deve garantir que o consumidor não deixe passar despercebido o que já foi produzido. Para esse propósito, a publicidade é um instrumento claramente indispensável.

Ao vermos a publicidade como um instrumento empreendedorial, podemos entender por que a distinção feita por Edward Chamberlin entre custos de fabricação e custos de venda é inválida. Os custos de fabricação (ou produção) supostamente ocorrem durante a produção do produto, em contraposição aos custos de venda, que ocorrem quando se tenta convencer os consumidores a comprar o produto. Os custos de venda supostamente deslocam a curva de demanda pelo produto, ao passo que os custos de fabricação (produção) afetam apenas a curva de oferta. A distinção feita por Chamberlim foi criticada com base no fato de que os custos de venda são na verdade custos de fabricação disfarçados, de um tipo ou de outro.

Nossa abordagem nos possibilita ver essa questão através de um contexto mais geral, que incorpora a percepção de que todos os custos de fabricação são, ao mesmo tempo, custos de venda. Por exemplo, se o produtor tivesse um mercado garantido no qual pudesse vender todos os seus produtos a um determinado preço, então seu custo de fabricação total seria apenas os próprios custos de fabricação. Ele não teria de incorrer em gastos adicionais para tentar convencer o consumidor a comprar o produto. Mas a realidade é que nunca há um mercado garantido. As decisões do produtor sobre qual produto produzir e com que qualidade serão, invariavelmente, um reflexo daquilo que ele acredita ser capaz de vender a um preço vantajoso. Trata-se de uma escolha puramente empreendedorial. Os custos nos quais ele incorre são aqueles que, em suas estimativas, são necessários para que ele possa vender seu produto ao preço que ele anteviu. Cada melhora no produto é feita para torná-lo mais atraente para os consumidores, e certamente o produto em si foi produzido exatamente com esse intuito. Todos os custos são, em última análise, custos de venda.

LUCROS E O PROCESSO COMPETITIVO

O conceito austríaco da função empreendedorial enfatiza o lucro como sendo o objetivo fundamental do processo de mercado. Como tal, o lucro tem implicações importantes para a análise do empreendedorismo em contextos que não sejam de mercado (tais como dentro de empresas, ou em um regime socialista ou em burocracias em geral). Como já observei, não sabemos precisamente como ocorre a presciência superior de alguns empreendedores em relação a outros, porém sabemos que, ao menos de modo geral, o alerta empreendedorial é estimulado pela existência de lucros potenciais. O alerta a uma oportunidade depende da atratividade desta oportunidade e, obviamente, do fato de ela ter sido percebida e agarrada.

Esse incentivo é diferente dos incentivos presentes em um mundo robbinsiano. No contexto não empreendedorial, o incentivo é constituído pelas satisfações alcançáveis à custa de sacrifícios relevantes. Os incentivos robbinsianos são transmitidos aos agentes quando o arranjo do sistema demonstra que as satisfações oferecidas são mais significantes (do ponto de vista deles) do que os sacrifícios demandados deles. O incentivo é, portanto, fornecido pela comparação entre alternativas conhecidas. No entanto, no contexto empreendedorial, o incentivo a estar alerta a uma oportunidade empreendedorial é bem diferente do incentivo a se fazer uma troca entre oportunidades já conhecidas; com efeito, não tem nada a ver com a comparação de alternativas. Para se perceber uma oportunidade à espera de ser descoberta, não é preciso ter feito alguma escolha anterior. O incentivo é tentar obter alguma coisa em troca de nada — caso o empreendedor ao menos seja capaz de saber o que pode ser feito.

Incentivos robbinsianos podem ser oferecidos em contextos que não sejam de mercado. Por exemplo, um burocrata ou um empregador oferecer um bônus pelo maior esforço. Por outro lado, para que incentivos empreendedoriais funcionem, é necessário que aqueles que percebam oportunidades de fato ganhem algo por descobri-las. Uma característica notável do sistema de mercado é que ele fornece esse tipo de incentivo. É somente pela análise do processo de mercado que esse aspecto empreendedorial extremamente importante da economia de mercado é percebido. 

Os reais problemas econômicos de qualquer sociedade surgem do fenômeno das oportunidades não-percebidas. A maneira como uma sociedade de mercado lida com esse fenômeno não pode ser compreendida utilizando-se exclusivamente uma teoria de equilíbrio de mercado. Os arranjos institucionais mais propícios para a descoberta de oportunidades devem ser estudados e respeitados. 


[1] Para uma melhor elaboração sobre as várias questões abordadas nesse artigo, ver Israel M. Kirzner, Competição e Atividade Empresarial.

[2] Joseph A. Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia (New York: Harper & Row, 1942), pp. 81-106.

[3] Oskar Morgenstern, "Thirteen Critical Points in Contemporary Economic Theory: An Interpretation," Journal of Economic Literature 10 (Dezembro de 1972): 1163-89.

[4] Ludwig M. Lachmann, "Methodological Individualism and the Market Economy," in Roads to Freedom: Essays in Honour of Friedrich A. von Hayek, ed. Erich Streissler et al. (London: Routledge & Kegan Paul, 1969), p. 89.

[5] Alfred Marshall, Princípios de Economia Política, ed. C. W. Guillebaud, 2 vols. (London: Macmillan & Co., 1961), 1:345-48; Marshall algumas vezes utilizava a abordagem walrasiana (ibid., pp. 333-36).

[6] Lionel Robbins, An Essay on the Nature and Significance of Economic Science (London: Macmillan & Co., 1962), pp. 1-23.

[7] Ludwig von Mises, Ação Humana (New Haven: Yale University Press, 1949), pp. 11-142; para uma comparação entre as noções misesianas e robbinsianas, ver Israel M. Kirzner, The Economic Point of View (Princeton: D. Van Nostrand, 1960), pp. 108-85.

[8] No prefácio da primeira edição deste livro, Robbins reconhece sua dívida para com Mises (On the Nature, pp. xv-xvi).

[9] Kirzner, Competição, pp. 75-87.

[10] Edward Hastings Chamberlin, The Theory of Monopolistic Competition, 7ª ed. (Cambridge: Harvard University Press, 1962), pp. 123-29.

[11] Ver a literatura citada em Kirzner, Competição, pp. 141-69.

Israel M. Kirzner é professor emérito de economia da New York University, um líder da geração de austríacos após Mises e Hayek, e um scholar adjunto do Mises Institute. Ele escreveu sua tese de doutoramento sob a orientação de Mises, mais tarde publicada como o livro The Economic Point of View (1960). Depois, abriu novos caminhos teóricos com seu livroCompetição e Atividade Empresarial (1973). Kirzner também é o autor de mais sete livros e dúzias artigos, incluindo vários na Austrian Economics Newsletter e também na The Review of Austrian Economics. Ele atualmente é um dos mais notáveis acadêmicos a se dedicar ao contínuo desenvolvimento da teoria econômica da Escola Austríaca.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

GUINADA À DIREITA

Há uma década, escrevi um texto em que me definia como "meio intelectual, meio de esquerda". Não me arrependo. Era jovem e ignorante, vivia ainda enclausurado na primeira parte da célebre frase atribuída a Clemenceau, a Shaw e a Churchill, mas na verdade cunhada pelo próprio Senhor: "Um homem que não seja socialista aos 20 anos não tem coração; um homem que permaneça socialista aos 40 não tem cabeça". Agora que me aproximo dos 40, os cabelos rareiam e arejam-se as ideias, percebo que é chegado o momento de trocar as sístoles pelas sinapses.

Como todos sabem, vivemos num totalitarismo de esquerda. A rubra súcia domina o governo, as universidades, a mídia, a cúpula da CBF e a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, na Câmara. O pensamento que se queira libertário não pode ser outra coisa, portanto, senão reacionário. E quem há de negar que é preciso reagir? Quando terroristas, gays, índios, quilombolas, vândalos, maconheiros e aborteiros tentam levar a nação para o abismo, ou os cidadãos de bem se unem, como na saudosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que nos salvou do comunismo e nos garantiu 20 anos de paz, ou nos preparemos para a barbárie.

Se é que a barbárie já não começou... Veja as cotas, por exemplo. Após anos dessa boquinha descolada pelos negros nas universidades, o que aconteceu? O branco encontra-se escanteado. Para todo lado que se olhe, da direção das empresas aos volantes dos SUVs, das mesas do Fasano à primeira classe dos aviões, o que encontramos? Negros ricos e despreparados caçoando da meritocracia que reinava por estes costados desde a chegada de Cabral.

Antes que me acusem de racista, digo que meu problema não é com os negros, mas com os privilégios das "minorias". Vejam os índios, por exemplo. Não fosse por eles, seríamos uma potência agrícola. O Centro-Oeste produziria soja suficiente para a China fazer tofus do tamanho da Groenlândia, encheríamos nossos cofres e financiaríamos inúmeros estádios padrão Fifa, mas, como você sabe, esses ágrafos, apoiados pelo poderosíssimo lobby dos antropólogos, transformaram toda nossa área cultivável numa enorme taba. Lá estão, agora, improdutivos e nus, catando piolho e tomando 51.

Contra o poder desmesurado dado a negros, índios, gays e mulheres (as feias, inclusive), sem falar nos ex-pobres, que agora possuem dinheiro para avacalhar, com sua ignorância, a cultura reconhecidamente letrada de nossas elites, nós, da direita, temos uma arma: o humor. A esquerda, contudo, sabe do poder libertário de uma piada de preto, de gorda, de baiano, por isso tenta nos calar com o cabresto do politicamente correto. Só não jogo a toalha e mudo de vez pro Texas por acreditar que neste espaço, pelo menos, eu ainda posso lutar contra esses absurdos.

Peço perdão aos antigos leitores, desde já, se minha nova persona não lhes agradar, mas no pé que as coisas estão é preciso não apenas ser reacionário, mas sê-lo de modo grosseiro, raivoso e estridente. Do contrário, seguiremos dominados pelo crioléu, pelas bichas, pelas feministas rançosas e por velhos intelectuais da USP, essa gentalha que, finalmente compreendi, é a culpada por sermos um dos países mais desiguais, mais injustos e violentos sobre a Terra. Me aguardem.

Por: Antonio Prata Folha de SP

A ECONOMIA DO INTERVENCIONISMO

Não existe nada mais empolgante do que aquelas leituras, feitas aos vinte anos de idade, que mudam o nosso modo de pensar para sempre. Essas leituras cruciais fornecem o material que une o nosso conhecimento até então fragmentado em uma visão de mundo coerente e ao mesmo tempo estimulam o senso crítico necessário para o exame dos fragmentos incompatíveis com essa visão. Para o aluno, o aspecto mais fascinante da educação universitária deveria ser a construção, como uma espécie de "Lego intelectual", da própria visão de mundo, a partir do encaixe ou rejeição crítica de cada um dos tijolos sugeridos pelos textos.

Em especial, o início do processo de construção de um edifício explanatório deve ser recompensador, pois toda teoria apresenta algo como retornos decrescentes: no início, somos expostos a vasto território inexplorado, ao passo que o intelectual maduro é condenado a se repetir. O estudo da Economia, em particular, deveria proporcionar essa sensação de descoberta, pois ele nos fornece a chave para a compreensão da maioria dos erros que povoam o núcleo do discurso dos políticos e fornece fascinantes teorias que abrem nossos olhos para os reais fatores que geram prosperidade, sem a qual não seriam possíveis todas as conquistas de nossa civilização.

O estudante contemporâneo da teoria econômica, no entanto, raramente passa pela experiência de abertura de olhos proporcionada pelo contato com o modo de pensar dos economistas. Depois de aprender que preferências convexas são garantidas pelo uso de funções utilidade estritamente quase côncavas, o estudante raramente folheia um jornal e fica revoltado com a quantidade de falácias econômicas que povoam suas páginas. O formalismo que domina o ensino da economia moderna privilegia a solução de quebra-cabeças matemáticos em modelos de brinquedo (toy models), em detrimento do exame das consequências e aplicações mais amplas das teorias. Mas, por mais árido e pausterizado que possa parecer um moderno manual de microeconomia, a teoria dos preços lá exposta possui consequências cruciais para a discussão de questões políticas fundamentais, que quase sempre escapam ao estudante.

Mesmo nos cursos de Introdução à Economia, cujo propósito deveria ser exatamente expor o núcleo da visão de mundo do economista, os alunos geralmente sabem muito bem calcular elasticidades-preço da demanda, mas ignoram as implicações dos conceitos de escassez e custo de oportunidade. Assim, não é à toa que os cursos de economia não são muito populares nas universidades.

A paixão (ou ódio) pelas teorias econômicas surge com toda a sua força, porém, quando tais teorias são explicitamente associadas aos problemas políticos que motivaram sua elaboração. No presente volume, efetuamos uma análise das economias modernas a partir de um referencial explanatório fortemente calcado na teoria econômica, mas que contempla também ideias filosóficas e políticas. Essas ideias são combinadas em uma visão de mundo institucional: perguntaremos quais conjuntos de regras resultam em prosperidade ou estagnação e investigaremos quais regras são responsáveis pelos problemas econômicos atuais. Em especial, examinaremos os papéis desempenhados pela liberdade econômica e pela intervenção do estado na economia.

Para que essa análise comparativa seja feita a contento, será antes necessário nos livrarmos de noções que atrapalham essa tarefa. Em primeiro lugar, precisamos abandonar a noção marxista de "capitalismo". Além de pertencer a uma visão de mundo ultrapassada, associada a uma teoria econômica que foi ultrapassada ainda no século XIX, a identificação automática da realidade com a noção de capitalismo impede a comparação institucional que pretendemos, pois todas as instituições vigentes, segundo essa visão, seriam capitalistas e todos os males são atribuídos por definição a esse sistema, tornando impossível discutir de forma útil o papel do estado na economia.

Em segundo lugar, precisamos superar os defeitos inerentes ao formalismo que marca a teoria econômica moderna. Ao valorizar apenas aquilo que pode ser quantificado, a teoria econômica moderna tende a deixar de lado as características institucionais que são as causas últimas das diferenças de desempenho econômico dos países. Além disso, a recusa em abandonar a visão romântica do estado como entidade incorpórea, preocupada apenas com o bem estar coletivo, em favor de uma teoria que estude a ação estatal como algo exercido por pessoas de carne e osso, impede que se faça uma análise da lógica das intervenções na economia.

Rejeitadas as teorias clássica, marxista e estritamente neoclássica como referencial teórico, escolhemos a economia austríaca como base para nossa análise. Esse referencial nos convidará a substituir a noção marxista de capitalismo pela noção de sistema econômico intervencionista. Com isso, não mais será possível comparar o capitalismo, identificado automaticamente com os males do mundo real, com o socialismo, ideal abstrato e correto por definição. Do mesmo modo, não será mais possível avaliar os mercados segundo o ideal inalcançável de eficiência alocativa sem que ao mesmo tempo eles sejam comparados com a ação estatal. Eliminados os conceitos que tornam a liberdade inferior por definição, podemos efetuar uma análise econômica do sistema econômico intervencionista no qual vivemos.

Essa análise terá como base o pensamento dos dois economistas austríacos mais conhecidos, Mises e Hayek. Do primeiro, extraímos os fundamentos da análise austríaca dos mercados e o referencial básico de análise do socialismo e intervencionismo. Do segundo, tomamos emprestada a crítica ao mau uso da noção de equilíbrio, que fundamenta a análise austríaca moderna, a noção de ordem espontânea e suas teses metodológicas. O leitor perceberá que, de fato, o referencial teórico utilizado no presente volume é em larga medida hayekiano. Além desses autores, a nossa leitura da realidade toma emprestadas teses de diversos autores, como Popper, M. Polanyi, Bartley III, A. Smith, Bastiat, Buchanan, Coase, Kirzner, entre outros.

Os capítulos contidos em cada parte são textos originalmente escritos como artigos independentes uns dos outros. Três anos atrás, fui convidado para escrever artigos mensais para o sítio do Ordem Livre. Nesse espaço, tive a liberdade para me dedicar a artigos mais acadêmicos e gerais, em vez dos usuais textos sobre conjuntura de curto prazo normalmente demandados dos economistas. Naquela ocasião, imaginei a estrutura do presente livro, aceitando a oportunidade de escrevê-lo em 30 "prestações".

Aproveitei essa liberdade para escrever artigos mais acadêmicos do que se espera desse tipo de texto, utilizando extensivamente notas de rodapé com referências bibliográficas, mas menos formais do que se espera de artigos acadêmicos. Com a crescente especialização da academia, sobra cada vez menos espaço nessas revistas para análises interdisciplinares, como a empreendida neste livro, que trata de relações entre economia, filosofia e política. Menos espaço ainda existe, sobretudo nas revistas brasileiras, para abordagens teóricas minoritárias, como a austríaca. Porém, boa parte das teses aqui apresentadas tem origem no trabalho acadêmico do autor, sujeito ao tipo de restrição mencionada acima. Mas, com a liberdade proporcionada pela minha coluna, o resultado que pode ser visto nas próximas páginas foi um conjunto de artigos mais informal, que não foge de polêmicas ideológicas, mas que pretende levar a sério o debate entre visões de mundo concorrentes.

Agradeço ao Ordem Livre pela oportunidade de utilizar material publicado originalmente no sítio daquela instituição e ao Instituto Mises Brasil (www.mises.org.br), pelo mesmo motivo, no que diz respeito ao mais extenso ensaio aqui publicado, sobre os irmãos von Mises. Agradeço também a essas duas instituições pelos convites para proferir palestras sobre economia austríaca e poder participar do extraordinário movimento, em curso nos últimos anos, de divulgação das ideias austríacas no Brasil.

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O livro é dividido em três partes. Na primeira, reunimos artigos que discutem o referencial teórico básico empregado no mesmo. Esse referencial utiliza elementos da teoria econômica moderna, com ênfase no pensamento austríaco, em especial no que diz respeito aos mercados vistos como ordens espontâneas auto-organizadas. A liberdade, nessa visão hayekiana, é a única maneira de contornar a limitação do conhecimento dos agentes diante da tarefa cada vez mais complexa de coordenar as ações individuais. Depois de tratar da defesa da liberdade e sistemas descentralizados, na segunda parte o mesmo referencial teórico é empregado no exame dos sistemas econômicos comparados. Expomos a tese austríaca sobre a impossibilidade do socialismo e apresentamos a tese misesiana sobre a instabilidade do sistema econômico intervencionista. Na terceira parte, essa mesma análise do intervencionismo é empregada como base para a crítica de algumas políticas e tendências encontradas nas sociedades contemporâneas.

A primeira parte inicia com um capítulo que expõe os principais fatores institucionais relacionados ao crescimento econômico, fatores esses expostos por economistas cujas ideias aparecerão incontáveis vezes no restante do livro. No segundo capítulo, utilizamos o pensamento de Bastiat para mostrar que as falácias econômicas são fruto da compreensão parcial do funcionamento das ordens espontâneas. Praticamente toda falácia econômica tem origem em análises que focam sua atenção em alguns mercados apenas, ignorando os custos de oportunidade das políticas econômicas nos demais. O terceiro, o mais extenso, utiliza a rivalidade entre os irmãos Mises para contrastar a metodologia da economia dos austríacos e da teoria tradicional. Acreditamos que as diferenças entre austríacos e neoclássicos repousa em última análise em diferenças metodológicas: o positivismo que informa a última impede que se perceba a importância dos fenômenos complexos enfatizados pela primeira escola, como a noção de auto-organização.

Os demais capítulos da primeira parte tratam da visão hayekiana da economia como uma ordem complexa auto-organizada e dos aspectos metodológicos de uma teoria que trata desse tipo de fenômeno. No quarto capítulo tratamos do problema da coordenação das atividades individuais em uma economia com divisão do trabalho cada vez mais detalhada. Nesse contexto, mostra-se como a liberdade é essencial para que o conhecimento disperso dos agentes seja utilizado e corrigido ao longo do tempo. No quinto e sexto capítulo, voltamos ao tema do terceiro capítulo e exploramos os aspectos metodológicos do estudo de fenômenos complexos. As teorias sobre esses fenômenos representam apenas certos princípios de funcionamento da ordem espontânea, nunca fornecendo previsões exatas sobre detalhes desses sistemas. Nos capítulos sete e oito, ilustramos essas ideias metodológicas através do exame de teorias sobre ordens espontâneas nos mercados e na natureza.

A primeira parte conclui com um ensaio que compara Hayek com Marx no que diz respeito ao papel do conhecimento limitado em ordens espontâneas e hierárquicas.

Na segunda parte, passamos ao exame crítico de sistemas econômicos mais hierarquizados. Nos capítulos dez e onze, visitamos a tese misesiana sobre a impossibilidade do cálculo econômico no socialismo. O primeiro expõe a tese em si e o segundo o debate entre austríacos e neoclássicos sobre o tema. Esse debate clarifica as diferenças entre as duas abordagens, que transparecerão ao longo de todo o livro. Os capítulos restantes dessa segunda parte tratam do intervencionismo, visto como o sistema econômico vigente no mundo atual.

O capítulo doze ilustra historicamente a análise do intervencionismo através do exame da recaída autoritária na última década na América Latina e o seguinte expõe a teoria austríaca sobre o intervencionismo. Para essa teoria, as "contradições internas" dos sistemas intervencionistas põem em marcha um processo que resulta em ciclos de expansão e contração do estado.

Os capítulos seguintes tratam de objeções a essa abordagem, oferecendo uma defesa metodológica do núcleo comum da teoria compartilhada entre austríacos e neoclássicos. O décimo quarto capítulo critica a tese historicista, defendida pelos marxistas, segundo a qual a teoria econômica só seria válida no capitalismo. O artigo mostra que, pelo contrário, qualquer sistema econômico tem que lidar com o problema alocativo. Os dois capítulos seguintes desmontam a crítica à teoria moderna segundo a qual esta dependeria da hipótese de agentes egoístas. Esses capítulos mostram que a teoria requer apenas agentes que tenham algum propósito, não importando a natureza dos mesmos e analisam o papel do pressuposto de autointeresse empregado na teoria econômica.

Os dois capítulos seguintes analisam os aspectos ideológicos da mentalidade estatista. O capítulo dezessete indaga se os instintos coletivistas seriam inerentes à natureza humana e o seguinte estuda as características da presente ideologia dos defensores do intervencionismo. Esse estudo é importante para o desenvolvimento da teoria no que diz respeito à fase do ciclo do intervencionismo na qual ocorrem reformas liberalizantes. Os capítulos dezenove e vinte tratam das dificuldades encontradas nessa fase de reformas. A expansão do estado faz com que reformas contrariem interesses e causem crises no curto prazo, que serão atribuídas não as distorções causadas pelas intervenções, mas as próprias reformas adotadas para aliviar o problema. Quanto mais se avança em direção ao controle central, por outro lado, mais difícil para as pessoas imaginarem instituições alternativas, compatíveis com a liberdade.

O penúltimo capítulo da segunda parte trata do final da fase de expansão do estado na teoria do intervencionismo, mostrando a diminuição da margem de manobras dos políticos nesse estágio. O capítulo final volta à ilustração da teoria, defendendo um revisionismo histórico que rejeite ideias marxistas e incorpore os resultados da teoria econômica moderna. Esse revisionismo traria inúmeras ilustrações da nossa teoria do intervencionismo.

Na terceira parte do livro discutimos aspectos políticos da batalha pela liberdade. Nos capítulos 23 e 24, discutimos como o pensamento liberal em economia é bloqueado respectivamente pela identificação da realidade com o conceito de capitalismo e pela identificação do status quo com situação desprovida de intervenções corretivas. Em nossa opinião, os grandes problemas econômicos são falhas de governo, não falhas de mercado. No capítulo 25, examinaremos como a expansão do conceito de externalidade como justificativa para intervenções estatais nos leva progressivamente ao abandono das liberdades individuais. No capítulo seguinte, efetuamos uma crítica austríaca de como o economista lida com os monopólios e na sequência mostramos como a atividade empresarial é tratada de forma inadequada na visão ortodoxa sobre o funcionamento da competição nos mercados.

No capítulo 29, criticamos aqueles que veem nos preços as causas dos problemas macroeconômicos: as análises corretas deveriam investigar os fundamentos que fazem os preços se moverem. No capítulo 30, utilizamos a história infantil dos três porquinhos para ilustrar a teoria austríaca dos ciclos econômicos, que afirma que a expansão do crédito orquestrada pelos bancos centrais é a causa principal das crises econômicas.

Nos três capítulos seguintes, analisamos o mercado das ideias. No primeiro examinamos as falsas analogias entre mercados e o sistema educacional. No segundo e terceiro, argumentamos que a tentativa de estimular a competição através de mecanismos de incentivos à produtividade acadêmica não funciona. O argumento é baseado na tese da impossibilidade do cálculo econômico no socialismo: preços artificiais são inerentemente diferentes de preços em mercados reais. Argumentamos que a liberdade acadêmica é a principal vítima do "produtivismo" acadêmico.

Nos capítulos 33 e 34, mostramos que, sob o intervencionismo, opera um mecanismo seletivo hayekiano segundo o qual os piores chegam ao poder e as alternativas liberais tendem a desaparecer. Por fim, no último capítulo analisamos o fenômeno do discurso politicamente correto, visto como uma das maiores ameaças à liberdade.

Eis, a seguir, os capítulos do livro. Basta clicar sobre cada um para lê-lo na íntegra e gratuitamente. 



Fabio Barbieri é mestre e doutor pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é professor da USP na FEA de Ribeirão Preto.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

"A ECOMONIA SEGUNDO O MODELO COSTA CONCÓRDIA"

Viciado em gastança, atolado em políticas erradas e desastrado na escolha de prioridades, o governo continua destruindo as finanças públicas e liquidando qualquer compromisso com a responsabilidade fiscal, como comprovaram mais uma vez dois relatórios divulgados na quinta-feira ─ o das operações do Tesouro e o das contas consolidadas do setor público, elaborado mensalmente pelo Banco Central (BC). Com essa informação, ficou em segundo plano, pelo menos por algumas horas, um desastre muito mais visível para a maior parte do público: o pedido de recuperação judicial de mais uma empresa, a OGX, festejada como campeã nacional e apontada como exemplo de audácia e de sucesso pela presidente Dilma Rousseff. Há muito em comum entre as duas notícias: a inconsequência, o voluntarismo e o baixo grau de discernimento revelados tanto no dia a dia da política econômica quanto no tratamento das questões de longo prazo. A mesma vocação para o erro é evidenciada na resistência a uma nova política de preços para a Petrobrás, mesmo depois do balanço muito ruim divulgado na semana anterior.


Voltando às contas públicas: segundo o Tesouro, o governo central teve déficit primário ─ sem contar os juros, portanto ─ de R$ 10,47 bilhões em setembro, o pior resultado da série histórica para o mês. O conjunto do setor público, formado por União, Estados, municípios e estatais, também foi deficitário e com esse tropeço ficou mais difícil atingir qualquer resultado fiscal razoável neste ano. O buraco registrado nas contas do governo central é explicável por “especificidades”, disse o secretário do Tesouro, Arno Augustin. O comandante do Costa Concordia, Francesco Schettino, poderia explicar com as mesmas palavras o desastre ocorrido no ano passado, quando o navio, desviado da rota, bateu num rochedo perto da Ilha de Giglio. Seu propósito pessoal ao ordenar o desvio foi uma “especificidade”, assim como a incômoda presença do rochedo num lugar tão impróprio. Talvez se pudesse atribuir este último detalhe à vontade do Criador, mas o comandante de um navio deve ter certa familiaridade com a geografia da criação.

Não há como deixar de lado as motivações e decisões equivocadas, no caso das contas públicas, na história dos apertos financeiros da Petrobrás, na escolha desastrosa de campeões nacionais ou no episódio do Costa Concordia. De janeiro a setembro a receita do governo central ─ Tesouro, Previdência e BC ─ foi 8% maior que a de um ano antes. A do Tesouro, isoladamente, foi 6,8% superior àquela obtida entre janeiro e setembro de 2012. Mas a despesa total ficou 13,5% acima da contabilizada no ano anterior. Não houve, de fato, nenhum esforço importante de contenção, embora alguns problemas fossem previstos, incluída a perda de receita causada pelas desonerações fiscais.

Apesar dessas desonerações, o crescimento da economia continuou pífio. Nem o governo projeta, neste momento, uma expansão maior que 2,5% neste ano. Os estímulos foram mal concebidos e alimentaram mais o consumo do que a produção. Os empresários da indústria, setor com crescimento de apenas 1,1% nos 12 meses até setembro, continuaram ressabiados e pouco dispostos a mais gastos para produzir. O BC continuou apontando em seus relatórios a estreita margem de capacidade da indústria, os efeitos inflacionários da demanda e os riscos associados às condições de um mercado de trabalho muito apertado.

Esse aperto ficou ainda mais evidente quando a Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgou seu último estudo sobre as dificuldades de obtenção de mão de obra qualificada. O problema foi apontado por 68% das empresas consultadas na pesquisa. Em outras palavras, para bem avaliar a escassez de oferta no mercado de trabalho é preciso levar em conta a qualidade do capital humano disponível.

Além disso, praticamente metade das empresas, 49%, tem dificuldade para treinar o trabalhador, por causa da baixa qualidade da educação básica. Este é um problema herdado. Durante os primeiros oito anos da administração petista, a política educacional concentrou-se em facilitar o acesso ao ensino “superior”, sem levar em conta os principais focos de problemas, localizados na educação básica e no ensino médio. Apesar de algum avanço, o Brasil continua ocupando posições vergonhosas nos testes internacionais de linguagem, matemática e ciências. O equívoco na escolha da prioridade foi muito mais que um inocente erro de avaliação. Foi também, obviamente, uma decisão ditada por interesses eleitorais.

Fiel ao padrão consolidado na gestão anterior, o governo da presidente Dilma Rousseff continuou gastando dinheiro e distribuindo benefícios de forma ineficiente, como se estivesse ao mesmo tempo realizando uma política anticrise e criando condições de crescimento de longo prazo. Queimou dinheiro inutilmente, como comprovam as contas públicas, o baixo ritmo da produção e os problemas consideráveis de competitividade internacional dos produtores instalados no Brasil. A crise externa é a causa menos importante da erosão da balança comercial.

Erros acumulados em dois governos deixaram a Petrobras com problemas de caixa e muito dinheiro encalhado em projetos mal concebidos, como o da Refinaria Abreu e Lima. Apesar disso, a empresa tem de ser operadora única de todos os campos do pré-sal, manter participação de pelo menos 30% em todos os consórcios e funcionar como instrumento de política industrial.

Como exercer esse papel sem elevar seus custos e sem prejudicar sua atividade básica, o chamado core business, é uma questão ainda sem resposta. Mas o governo parece desconhecer essa pergunta, assim como desconhece, ou menospreza, as principais causas da estagnação brasileira, a começar pelos erros da política fiscal.
Por: Rolf Kuntz  Publicado no Estadão

DOIS TIPOS DE INDIVIDUALISMO

Há dois tipos de individualismo: há o individualismo genuíno, que leva à liberdade e a uma ordem espontânea, e há o pseudo-individualismo, que leva ao coletivismo e às economias controladas e planejadas.

Antes de explicar o que seria o individualismo genuíno, seria útil fornecer algumas indicações da tradição intelectual à qual ele pertence. O individualismo genuíno começou a ser desenvolvido ainda no século XVII por John Locke. Posteriormente, no século XVIII, Bernard Mandeville e David Hume ampliaram o pensamento, o qual alcançou uma envergadura completa pela primeira vez com as obras de Josiah Tucker, Adam Ferguson, Adam Smith, e daquele que foi o maior contemporâneo de Smith, Edmund Burke — o homem que, segundo Smith, foi a única pessoa que ele conheceu que abordava questões econômicas exatamente como ele, embora ambos nunca houvessem se comunicado de absolutamente nenhuma maneira.

No século XIX, tal pensamento foi representado à perfeição nas obras de dois de seus maiores historiadores e filósofos políticos: Alexis de Tocqueville e Lord Acton. Estes dois homens desenvolveram com o mais pleno êxito tudo aquilo que havia de melhor na filosofia política de Burke, dos filósofos escoceses e dos Whigs ingleses. 

Por outro lado, os economistas clássicos do século XIX — ou pelo menos os discípulos de Jeremy Bentham ou os radicais entre eles — se mostraram crescentemente sob a influência de outro tipo de individualismo, um individualismo de origem distinta.

Esta segunda e completamente distinta linha de pensamento, também conhecida como individualismo, é representada predominantemente por escritores franceses e por outros pensadores do continente europeu — um fato que, creio eu, se deve ao papel dominante que o racionalismo cartesiano tem em sua composição. Os principais representantes dessa tradição foram os enciclopedistas, Rousseau e os fisiocratas. E, devido a alguns motivos que iremos aqui analisar, este individualismo racionalista sempre tende a se degenerar e a se transformar no exato oposto do próprio conceito de individualismo: isto é, descamba para o socialismo e o coletivismo. 

É justamente pelo fato de apenas o primeiro tipo de individualismo ser consistente, que eu lhe atribuo a denominação de individualismo genuíno, ao passo que este segundo tipo de individualismo deve ser considerado como uma fonte para o socialismo moderno tão importante quanto as próprias teorias coletivistas.

Não há melhor ilustração da atual confusão a respeito do significado de 'individualismo' do que o fato de aquele homem tido como um dos maiores expoentes do individualismo genuíno, Edmund Burke, ser comumente (e corretamente) acusado de ser o principal oponente do "individualismo de Rousseau" — cujas teorias ele dizia que iriam rapidamente dissolver a sociedade "na poeira e no pó da individualidade" —, e que o próprio termo "individualismo" tenha sido apresentado pela primeira vez no idioma inglês por meio da tradução de uma das obras de outro grande representante do individualismo genuíno, Alexis de Tocqueville, que utilizou o termo em sua obra Democracia na América para descrever uma atitude que ele deplora e rejeita. No entanto, não há dúvidas de que tanto Burke quanto de Tocqueville estão, em toda a sua essência, próximos de Adam Smith — a quem ninguém negaria o título de individualista —, e que o "individualismo" ao qual eles se opõem é algo completamente diferente daquele de Smith.

O próximo passo na análise individualista da sociedade será dirigido àquele pseudo-individualismo racionalista que também leva ao coletivismo. Trata-se da controvérsia de que, ao se investigar os efeitos combinados das ações individuais, descobrimos que várias das instituições responsáveis pelas conquistas e façanhas humanas surgiram e seguem funcionando sem a existência de uma mente planejadora e criadora. Descobrimos que, como Adam Ferguson disse, "nações dependem de instituições, as quais realmente são resultado da ação humana, e não do planejamento humano"; e que a espontânea colaboração de indivíduos livres frequentemente leva a criações que são maiores do que suas mentes individuais são capazes de compreender. Este é o grande tema por trás das obras de Josiah Tucker, Adam Smith, Adam Ferguson e Edmund Burke.

A diferença entre esta visão — que diz que toda a ordem que percebemos nas relações humanas é o resultado não-premeditado de ações individuais —, e a visão que atribui toda essa ordem perceptível a um planejamento deliberado é o primeiro grande contraste entre o individualismo genuíno dos pensadores britânicos do século XVIII e o suposto individualismo da Escola Cartesiana. Mas essa diferença é apenas um aspecto de uma diferença ainda mais ampla entre as duas visões. De um lado, temos uma visão que, no geral, não endeusa o papel da razão nas relações humanas, afirma que o homem alcançou tudo o que já alcançou apesar do fato de ser guiado apenas parcialmente pela razão, e afirma que a razão individual é muito limitada e imperfeita. De outro, temos uma visão que pressupõe que a Razão, com R maiúsculo, está sempre disponível de maneira plena e igualitária para todos os seres humanos, e que tudo que o homem alcança é resultado direto de estar submetido ao controle da razão de uma mente planejadora.

A abordagem anti-racionalista, a qual considera o homem não como um ser altamente racional e inteligente, mas sim um ser extremamente irracional e falível, cujos erros individuais serão corrigidos apenas no decorrer de um processo social, e que tem como objetivo tirar o melhor proveito possível de um material altamente imperfeito, é provavelmente a característica mais notável do individualismo inglês.

Portanto, para concluir, volto ao que foi dito no início: a atitude fundamental do individualismo genuíno é de humildade em relação aos processos pelos quais a humanidade alcançou vários feitos que não haviam sido planejados ou compreendidos por nenhum indivíduo sozinho, e que são, com efeito, maiores do que as mentes individuais. A grande questão neste momento é se a mente humana poderá continuar crescendo como parte deste processo ou se ela deverá ser acorrentada aos grilhões que ela própria criou. O que o individualismo nos ensina é que a sociedade será maior do que o indivíduo apenas se ela for genuinamente livre. Se ela for controlada ou planejada, será totalmente limitada pelos poderes das mentes dos indivíduos que a controlam ou planejam. 

Se a presunção da mentalidade moderna — que não respeita nada que não seja conscientemente controlado por alguém — não entender a tempo suas limitações, poderemos, como nos alertou Edmund Burke, "estar seguros de que tudo a nosso respeito e à nossa volta irá definhar gradualmente, até que, no final, nossos objetivos serão encolhidos à insignificante dimensão de nossas mentes."

O artigo acima foi retirado de um trecho do livro Individualism and Economic Order.

Friedrich A. Hayek (1899-1992) foi um membro fundador do Mises Institute. Ele dividiu seu Prêmio Nobel de Economia, em 1974, com seu rival ideológico Gunnar Myrdal "pelos seus trabalhos pioneiros sobre a teoria da moeda e das flutuações econômicas e por suas análises perspicazes sobre a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais". Seus livros estão disponíveis na loja virtual do Mises Institute.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

"A FALTA QUE NOS FAZ UMA BOA ESPIONAGEM"

Essa história da espionagem americana está cada vez mais complicada, e vai ficar pior. A chamada comunidade de inteligência de Washington, que inclui políticos, formadores de opinião e funcionários do setor, saiu em defesa própria, dizendo que agências de outros governos também espionam líderes americanos. Algo assim: está todo mundo esculhambando a NSA (Agência Nacional de Segurança dos EUA), mas a verdade é todo mundo faz a mesma coisa e que eles (da NSA) sabem de tudo muito bem.

Uma ameaça, não é mesmo?

Vai piorar nessa direção — se os americanos resolverem vazar o que certamente sabem sobre a espionagem dos outros. Comentou James Clapper, diretor geral da Inteligência Nacional da administração Obama: “Tentar decifrar as intenções de líderes estrangeiros é a função básica das operações de inteligência de qualquer governo”.

Por outro lado, há aí um efeito positivo. Acusações e contra-acusações já conduzem a um bom debate, especialmente nos EUA, sobre a competência dos atuais órgãos de espionagem, a extensão de sua atuação e os limites que devem ser impostos.

O resumo do que aconteceu está na cara: depois da série de sangrentos atentados terroristas, que começou nas torres de Nova York, passou por estações de Londres e Madrid e diversos outros locais e nações, os governos dos países que eram alvos óbvios remontaram seus sistemas de segurança. E os ampliaram de tal modo que estes ganharam autonomia, uma dinâmica própria que os coloca fora do controle dos governantes eleitos.

O que Obama sabia ou sabe agora? Em algum momento ele vai ter que dizer algo e dificilmente encontrará uma boa saída. Se ele sabia de tudo, inclusive dos grampos, então claramente mentiu e exorbitou de suas funções. Se não sabia de nada, então quem é que manda lá?

Já no Brasil ─ falando fracamente ─ o que nos falta é uma boa espionagem. Esses grupos que estão quebrando e tocando fogo em várias cidades certamente não saíram do nada. Organizaram-se de algum modo no passado e hoje organizam suas ações do mesmo modo ─ que é pelos instrumentos da internet e dos celulares e suas vias, os e-mails, Google, Facebook e Twitter, para citar apenas os mais manjados.

Há muitas agências de inteligência no Brasil ─ federais, das Forças Armadas e das polícias estaduais. E não perceberam nada? Muitas investigações apanharam grossa corrupção com grampos legais, autorizados pela Justiça. Agentes federais foram colocados em Pernambuco para vigiar o governo de Eduardo Campos. Aliás, foram descobertos, o que sugere muita coisa sobre o grau de eficiência do sistema.

De todo modo, é obviamente uma falha das agências e do Ministério Público não terem percebido, monitorado e apanhado esses grupos terroristas que estão agindo nas cidades brasileiras. Continua sendo uma falha que não tenham conseguido até agora desativar esses grupos.

Agências de informações nunca foram lá essas coisas por aqui, nem mesmo durante o regime militar. A tortura era o método principal de obter informações.

Nos anos 70, período da distensão no governo Geisel, tive oportunidade de fazer reportagens, para a Veja, sobre ações do famoso Serviço Nacional de Informações (SNI). Era ridícula a coleta de informações: agentes se baseavam na imprensa e davam crédito aos boatos mais estúpidos. A análise dos grupos de esquerda estava totalmente errada.

Depois, na democratização, trabalhando no Ministério do Planejamento, na ocasião do Plano Cruzado (1986), tive acesso a relatórios que o SNI mandava ao presidente da República sobre as reações ao programa econômico. Tudo material de imprensa e ainda assim tendenciosamente favorável, mostrando sempre quadros positivos. (Conto isso em meu livro Aventura e agonia nos bastidores do cruzado, Companhia das Letras, 1987).

Parece que não mudou muita coisa. Vinte e oitos anos depois da queda do regime militar, ainda não aprendemos como se lida com a polícia, incluindo a política, na democracia. O combate à ditadura militar deixou um subproduto cultural e político, a tremenda desconfiança em relação a qualquer tipo de polícia. Com isso, não houve a formação de um novo sistema de informação e segurança, controlado pelos órgãos do Estado. A defesa da democracia precisa tanto de polícia como de forças armadas.

O resultado está na cara. A falta de segurança é uma das principais queixas dos cidadãos. Nas manifestações, as polícias militares ou não fazem nada ou baixam o cacete indiscriminadamente. As agências de informação não sabem de nada e, quando grampeiam, deve ser coisa do governo, não do estado.

Lá, informação de mais. Aqui, de menos. E erradas.

Por: CARLOS ALBERTO SARDENBERG Publicado no Globo 


"CRÊ OU MORRE"

E se de repente, um dia desses, ficasse demonstrado por A + B que o grande problema do Brasil, acima de qualquer outro, é a burrice? Ninguém está aqui para ficar fazendo comentários alarmistas, prática que esta revista desaconselha formalmente a seus colaboradores, mas chega uma hora em que certas realidades têm de ser discutidas cara a cara com os leitores, por mais desagradáveis que possam ser. É possível, perfeitamente. que estejamos diante de uma delas neste momento: achamos que a mãe de todos os males deste país é a boa e velha safadeza, que persegue cada brasileiro a partir do minuto em que sua certidão de nascimento é expedida pelo cartório de registro civil, e o acompanha até a entrega do atestado de óbito, mas a coisa pode ser bem pior que isso. Safadeza aleija, é claro, e sabemos perfeitamente quanto ela nos custa ─ basicamente, custa todo esse dinheiro que deveria estar sendo aplicado em nosso favor mas que acaba se transformando em fortunas privadas para os amigos do governo, ou é jogado no lixo por incompetência, preguiça e irresponsabilidade. Mas burrice mata, e para a morte, como também se sabe, não existe cura. Ela está presente pelos quatro cantos da vida nacional.


Um país que tem embargos infringentes, por exemplo, é um país burro ─ não pode existir vida inteligente num sistema em que, para cumprir a lei, é preciso admitir a possibilidade de processos que não acabam nunca. Também não há atividade cerebral mínima em sociedades que aceitam como fato normal trens que viajam a 2 quilômetros por hora, a exigência de firma reconhecida, o voto obrigatório e assim por diante. A variedade a ser tratada neste artigo é a burrice na vida política. Ela é especialmente malvada, pois age como um bloqueador para as funções vitais do organismo público — impede a melhora em qualquer coisa que precisa ser melhorada, e ajuda a piorar tudo o que pode ser piorado.

A manifestação mais maligna desse tipo de estupidez é a imposição, feita pelo governo, e a sua aceitação passiva, por parte de quase todos os participantes da atividade política brasileira, da seguinte ideia: no Brasil de hoje só existem dois campos. Um deles, o do governo, do PT, da presidente Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula, é o campo do “bem”; atribui a si próprio as virtudes de ser a favor da população pobre, da verdadeira democracia, da distribuição de renda, da independência nacional e tudo o mais que possa haver de positivo na existência de uma nação. É, em suma, a “esquerda”. O outro, formado automaticamente por quem discorda do governo e dos seus atuais proprietários, é o campo do “mal”. A ele a máquina de propaganda oficial atribui os vícios de ser a “elite”, defender a volta da escravidão, conspirar para dar golpes de Estado, brigar contra a redução da pobreza e apoiar tudo o mais que possa haver de horrível numa sociedade humana. É, em suma, a “direita”. O efeito mais visível dessa prática é que se interditou no Brasil a possibilidade de haver um centro na vida política. Ou você está com Lula-Dilma ou vai para o inferno: “crê ou morre”, como insistia a Inquisição da Santa Madre Igreja.

Essa postura é um insulto à capacidade humana de pensar em linha reta, que continua sendo a distância mais curta entre dois pontos. O Brasil não é feito de extremos; isso simplesmente não existe em nenhum país democrático do mundo. Abolir o espaço para um centro moderado é negar às pessoas o direito de pensar com aquilo que lhes parece ser apenas bom-senso, ou a lógica comum. Por que o cidadão não poderia ser, ao mesmo tempo, a favor do Bolsa Família e contra a conduta do PT no governo? É dinheiro de imposto; melhor dar algum aos pobres do que deixar que roubem tudo, (o programa, aliás, foi criado por Fernando Henrique; de Júlio César para cá, passando por Franklin Roosevelt, dar dinheiro ou comida direto ao povão é regra básica de qualquer manual de sobrevivência política.) Qual é o problema em defender a legislação trabalhista e, ao mesmo tempo, achar que quem rouba deve ir para a cadeia? O que impediria alguém de ser a favor do voto livre e contra o voto obrigatório? Nada, a não ser a burrice que obriga todos a se ajoelharem diante do que o PT quer hoje, para não serem condenados como hereges. É por isso que no Brasil 2013 Fernando Gabeira, Marina Silva e tantos outros que querem pensar com a própria cabeça são de “direita”, segundo os propagandistas do governo. Já Paulo Maluf, José Sarney etc. são de esquerda.
Vida inteligente?  
Por: J. R. Guzzo  Publicado na edição impressa de VEJA

domingo, 3 de novembro de 2013

HOMENS E ANIMAIS, REVISITADOS

Recebi centenas de e-mails na semana passada por causa de um texto sobre os "direitos dos animais" ("Homens e animais", 22/10). Escuso de esclarecer que a maioria não foi simpática.

Com verdadeiro espírito humanista, muitos dos defensores dos animais desejaram-me doenças que eu, um hipocondríaco confesso, nem sabia que existiam. Sem falar das inevitáveis ameaças de morte, sempre antecedidas de tortura (lenta).

Agradeço a gentileza e espero ansiosamente pelo dia em que o mundo será governado pelo espírito tolerante dessa gente. Para os restantes leitores, que insistiram em seis perguntas recorrentes (e civilizadas), aqui vão respostas civilizadas:

1 - Se é possível fazer pesquisa sem animais, como justificar o uso dos bichos?

Infelizmente, não é possível fazer todo o tipo de pesquisas sem usar animais. Verdade que a ciência evoluiu imenso e a pesquisa "in vitro" (usando células em laboratório, algumas das quais humanas) e "in silico" (com computadores) tem ocupado as pesquisas "in vivo". Mas, para certas patologias, e sobretudo para se obterem respostas precisas a farmacologias várias, é necessário o uso de organismos vivos com certo grau de complexidade (o que exclui, por exemplo, moscas ou lesmas). Não usar animais implicaria, em muitos casos, usar seres humanos --ou, em alternativa, frear o progresso científico.

2 - Os animais dos laboratórios são tratados cruelmente.

Uma absoluta falácia. Os animais domésticos são, muitas vezes, tratados cruelmente. Animais de laboratório são, como o nome indica, seres vivos criados em ambiente controlado (temperatura, som, conforto, comida etc.) de forma a infligir o menor sofrimento possível. É claro que algumas experiências implicam dor ou desconforto. Mas o uso de animais em laboratório está submetido a legislação rigorosa, na qual os "limites de severidade" são cada vez mais apertados.

Dissecar animais em praça pública, como aconteceu no passado para conhecer o sistema circulatório (um feito que fez a medicina avançar vários séculos), seria impensável nos dias de hoje. E ainda bem.

3 - É legítimo usar animais para testar cremes e batons?

Não é legítimo e deve ser severamente punido. Na Europa, já é desde março deste ano. Mas a discussão do artigo lidava com pesquisa médica, não estética. Confundir ambas revela ignorância ou má-fé.

4 - Todos os ativistas dos "direitos dos animais" estão errados?

Pelo contrário: a ciência deve muito aos ativistas razoáveis dos "direitos dos animais", que contribuíram para que a ciência "humanizasse" o seu trato com os bichos.
Os defensores razoáveis dos "direitos dos animais" legaram à ciência o desafio dos "três R's": "to reduce" (reduzir, sempre que possível, o número de animais em laboratório); "to replace" (substituir, sempre que possível, o uso de animais por outra alternativa --estudo de células ou simulação computacional, por exemplo); e "to refine" (refinar, sempre que possível, a forma como a pesquisa é feita --uso de anestésicos e analgésicos quando o desconforto é previsto; criação de um ambiente confortável e estimulante para os animais etc.). O diálogo entre cientistas e "eticistas" deve por isso continuar.

5 - Você não gosta de animais e por isso defende o uso deles pela ciência?

Não pretendo tornar a discussão pessoal. Mas gosto de animais, tenho animais e até já escrevi sobre todas as lições "filosóficas" que aprendi com o meu gato.

6 - Todas as vidas são sagradas e nenhum animal deve ser sacrificado para nosso benefício.

Quem parte dessa premissa encerra o debate mesmo antes dele começar. Infelizmente, não tenho essas certezas --e, como onívoro, é evidente que continuo a usar os animais como fonte principal de alimentação. Sobre a "sacralidade" da vida, confesso uma certa paralisia agônica com certos cálculos utilitaristas mesmo em relação à vida humana (para mim, a mais importante).

Se, por hipótese, fosse possível salvar 10 milhões de pessoas gravemente doentes pelo sacrifício em laboratório de dez indivíduos, valeria a pena matar esses dez inocentes?

Instintivamente, direi que não e ficarei feliz com as minhas vaidades deontológicas. Pensando friamente, não sei se diria não --e que Deus, ou o sr. Kant, me perdoe. Porém, se a vida de 10 milhões de pessoas dependesse da vida do meu gato, não haveria hesitação alguma.
Por: João pereira Coutinho  Folha de SP

O PENSADOR COLETIVO

O Pensador Coletivo é uma máquina regida pela lógica da eficiência, não pela ética do intercâmbio de ideias

Você sabe o que é MAV? Inventada no 4º Congresso do PT, em 2011, a sigla significa Militância em Ambientes Virtuais. São núcleos de militantes treinados para operar na internet, em publicações e redes sociais, segundo orientações partidárias. A ordem é fabricar correntes volumosas de opinião articuladas em torno dos assuntos do momento. Um centro político define pautas, escolhe alvos e escreve uma coleção de frases básicas. Os militantes as difundem, com variações pequenas, multiplicando suas vozes pela produção em massa de pseudônimos. No fim do arco-íris, um Pensador Coletivo fala a mesma coisa em todos os lugares, fazendo-se passar por multidões de indivíduos anônimos. Você pode não saber o que é MAV, mas ele conversa com você todos os dias.

O Pensador Coletivo se preocupa imensamente com a crítica ao governo. Os sistemas políticos pluralistas estão sustentados pelo elogio da dissonância: a crítica é benéfica para o governo porque descortina problemas que não seriam enxergados num regime monolítico. O Pensador Coletivo não concorda com esse princípio democrático: seu imperativo é rebater a crítica imediatamente, evitando que o vírus da dúvida se espalhe pelo tecido social. Uma tática preferencial é acusar o crítico de estar a serviço de interesses de malévolos terceiros: um partido adversário, "a mídia", "a burguesia", os EUA ou tudo isso junto. É que, por sua própria natureza, o Pensador Coletivo não crê na hipótese de existência da opinião individual.

O Pensador Coletivo abomina argumentos específicos. Seu centro político não tem tempo para refletir sobre textos críticos e formular réplicas substanciais. Os militantes difusores não têm a sofisticação intelectual indispensável para refrasear sentenças complexas. Você está diante do Pensador Coletivo quando se depara com fórmulas genéricas exibidas como refutações de argumentos específicos. O uso dos termos "elitista", "preconceituoso" e "privatizante", assim como suas variantes, é um forte indício de que seu interlocutor não é um indivíduo, mas o Pensador Coletivo.

O Pensador Coletivo interpreta o debate público como uma guerra. "A guerra de guerrilha na internet é a informação e a contrainformação", explica o deputado André Vargas, um chefe do MAV. No seu mundo ideal, os dissidentes seriam enxotados da praça pública. Como, no mundo real, eles circulam por aí, a alternativa é pregar-lhes o rótulo de "inimigos do povo". Você provavelmente conversa com o Pensador Coletivo quando, no lugar de uma resposta argumentada, encontra qualificativos desairosos dirigidos contra o autor de uma crítica cujo conteúdo é ignorado. "Direitista", "reacionário" e "racista" são as ofensas do manual, mas existem outras. Um expediente comum é adicionar ao impropério a acusação de que o crítico "dissemina o ódio".

O Pensador Coletivo é uma máquina política regida pela lógica da eficiência, não pela ética do intercâmbio de ideias. Por isso, ele nunca se deixa intimidar pela exigência de consistência argumentativa. Suzana Singer seguiu a cartilha do Pensador Coletivo ao rotular o colunista Reinaldo Azevedo como um "rottweiler feroz" para, na sequência, solicitar candidamente um "bom nível de conversa". Nesse passo, trocou a função de ombudsman da Folha pela de Censora de Opinião. Contudo, ela não pertence ao MAV. Os procedimentos do Pensador Coletivo estão disponíveis nas latas de lixo de nossa vida pública: mimetizá-los é, apenas, uma questão de gosto.

Existem similares ao MAV em outros partidos? O conceito do Pensador Coletivo ajusta-se melhor às correntes políticas que se acreditam possuidoras da chave da porta do Futuro. Mas, na era da internet, e na hora de uma campanha eleitoral, o invento será copiado. Pense nisso pelo lado bom: identificar robôs de opinião é um joguinho que tem a sua graça. Por: Demétrio Magnoli Folha de SP


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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

POR QUE O RETORNO AO MUNDO NATURAL TEM TANTO APELO, MAS NÃO LEVA A LOGAR NUNHUM

BOM PRA QUEM, CARA-PÁLIDA? Na raiz de todo ativismo violento está a noção utópica e errônea de que Thomas Hobbes pensou errado e, portanto, a vida selvagem é idílica, prazerosa e fraternal (Deagostini/Getty Images)

Por Eurípedes Alcântara, na VEJA:

“Sou homem. Nada do que é humano me é estranho”, já dizia o romano Terêncio, dramaturgo de apenas relativo sucesso do segundo século antes de Cristo. Mas temos de concordar com ele. Eta espécie complicada esta nossa. Depois de ralar durante milênios para construir uma civilização tecnológica com aviões, carros, internet, vacinas, antibióticos e anestesia, o bacana agora é lutar pela volta ao mundo natural. Depois de experimentar toda a sordidez da servidão humana aos mais sanguinários tiranos e de sofrer no lombo os mais odiosos arranjos coletivistas totalitários, ainda temos entre nós quem se encante com aiatolás-presidentes, mulás-chefes de po­lícia e caudilhos latino-americanos cobertos de adereços indígenas, medalhas no peito ou pancake no rosto. Depois de rios de sangue derramados para arrancar dos poderosos o compromisso inarredável com os direitos humanos, a justiça igualitária, o rodízio pacífico de poder, a organização econômica baseada no respeito à propriedade, aceitamos que mascarados aterrorizem as grandes cidades quebrando e queimando indiscriminadamente apenas porque estão incomodados com o estilo de vida da maioria. Depois do sacrifício dos mártires que deram a vida para impor o uso apenas legítimo da força pelos governantes, impedindo que o Estado use brucutus para impor a vontade dos ricos sobre os pobres, dos fortes sobre os fracos, ficamos contra os policiais que tentam impedir o triunfo do reino de terror nas ruas. Depois de tudo isso, esquecemos que o que nos trouxe ao atual estágio civilizatório foi o trabalho obstinado e austero de mentes brilhantes em ambientes monásticos e idolatramos os barulhentos ativistas. 


A ÚNICA CHANCE?de salvar os cães é nos salvar, ou seja, acelerar os avanços científicos e tecnológicos, e não colocar obstáculos intransponíveis a eles?






Esse é o dilema oculto do ativista, a pessoa que se cansou de esperar que as coisas ocorram naturalmente da maneira como ela imagina, e vai à luta para tentar embicar o mundo para o rumo que ela acha certo e com o uso das armas que ela própria acha conveniente usar. Os ativistas que libertam cães em São Paulo, que quebram vitrines em Londres e Paris, que se propõem a ocupar Wall Street, em Nova York, têm em comum a ideia de que a lei e a ordem existem apenas para garantir o modo de vida das pessoas das quais eles discordam – ou, frequentemente, que eles odeiam. Outro ponto comum, em geral inconsciente, para a maioria deles, é a negação do que em sociologia se chama “contrato social”, que nada mais é do que a aceitação da tese de que sua liberdade termina onde começa a do outro. Os filósofos da baderna sustentam que isso que denominamos civilização não passa de uma grande e castrante prisão, à qual somos moldados desde o nascimento, primeiro pelo amor materno e paterno, depois pela educação formal, mais tarde pela democracia representativa, pelo consumo, pela arte degenerada e pelos remédios antidepressivos.



A REVOLTA DA VACINA – No Rio Janeiro, em 1904, o medo da vacinação obrigatória contra a varíola gerou protestos violentos, como este na Praça da República





Para quem pensa assim, nós todos vivemos uma vida vicária, uma vida substituta, uma vida no lugar da verdadeira vida que está… que está… que está onde? Ora, na natureza, no mundo selvagem, nas selvas, florestas e savanas, na cova dos leões onde seremos recebidos com lambidas fraternas como aquelas que as feras ofereceram ao profeta Daniel. O que muito se discute atualmente é se a ideia de que o homem solto na natureza, fora do alcance das leis, das instituições, completamente alheio às convenções sociais, estaria mesmo condenado à perversão moral e ao sofrimento físico, vítima da “guerra de todos contra todos”, como o inglês Thomas Hobbes disse ser a vida humana “em estado natural”. É disso que se trata. A vontade de ser seu próprio juiz, único e absoluto, do que é certo ou errado é o traço filosófico que une os ativistas que desprezam as leis, que lutam contra moinhos de vento ditatoriais em pleno regime democrático, contra as injustiças sociais em um Brasil onde há pleno emprego, contra a violência policial quando são eles que mais agridem e vandalizam. Thomas Hobbes escreveu que, fora dos arranjos sociais em que as pessoas obedecem a regras em troca do direito à convivência em sociedade, a vida do homem é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”. Hoje, o bacana é apostar que Hobbes pensou errado e que a verdadeira conquista é escapar dos contratos sociais. O preço a pagar para testar aquela hipótese é muito alto. Como é impagável também o preço de um mundo sem ativismo, sem idealismo, sem sonhos.

O engajamento solidário em causas consideradas justas é uma das grandes conquistas da modernidade. Divisor de águas é o caso do jovem capitão Alfred Dreyfus, judeu falsamente acusado de espionagem e condenado no fim do século XIX em uma França antissemita. A injustiça contra ele foi tão flagrante que se mobilizaram em sua defesa cientistas, artistas, escritores e estudantes . “Meu dever é falar, não quero ser cúmplice. Minhas noites seriam atormentadas pelo espectro do inocente que paga, na mais horrível das torturas, por um crime que ele não cometeu”, dizia a famosa carta aberta ao presidente da República escrita por Émile Zola em um jornal sob o título: “Eu Acuso…!”. Por serem homens de letras e de ciências, os defensores de Dreyfus eram chamados de modo depreciativo de “intelectuais”. Logo o termo ganhou a conotação positiva de “sábio engajado”. Claro que havia idealismo, sacrifício e nobreza de espírito antes do caso Dreyfus, mas nunca antes tantas pessoas haviam se mobilizado por uma causa sem que tivessem interesse direto nela – seja partidário, religioso, nacionalista, patriótico ou étnico. Elas se mobilizaram contra uma injustiça flagrante. Contra isso sempre valerá a pena lutar.

Por Reinaldo Azevedo