domingo, 9 de março de 2014

FASCISMO, RÚSSIA E UCRÂNICA

Putin quer a Ucrânia em sua União Eurasiana, o que quer dizer que a Ucrânia tem de ser autoritária, e isto significa que a Maidan deve ser destruída.


O eurasianismo não é somente a fonte ideológica da União Eurasiana, é também o credo de muitas pessoas na administração Putin.

N.T.: Este artigo será publicado na edição de 20 de Março de 2014 da The New York Review referente ao atual conflito na Ucrânia. A exposição do cenário político e cultural desse conflito feita pelo autor é importante no entendimento do cenário latino-americano atual e, particularmente, no conflito que hoje ocorre na Venezuela, como pode ser visto pela leitura dos debates entre o professor Olavo de Carvalho e o teórico russo Aleksandr Dugin.

Os estudantes foram os primeiros a protestar contra o regime do presidente Viktor Yanukovych na Maidan, a praça central de Kiev, novembro passado. Esses eram os ucranianos que mais tinham a perder, os jovens que sem dúvidas se vêem como europeus e que desejam ter uma vida e uma pátria ucraniana européia. Muitos deles eram alinhados politicamente à esquerda, alguns deles radicalmente à esquerda. Após anos de negociações e meses de promessas, o seu governo, sob a administração do presidente Yanukovych, no último momento deixou de assinar um importante acordo com a União Européia. 

Quando a polícia de choque entrou em cena e reprimiu os estudantes novembro passado, um novo grupo, dos veteranos do Afeganistão, foi para a Maidan. Esses homens de meia idade, soldados da reserva e oficiais do Exército Vermelho, muitos deles carregando as cicatrizes dos ferimentos em campo de batalha, foi para a Maidan, como eles diziam, para proteger “seus filhos”. Eles não se referiam diretamente aos seus filhos e filhas: eles se referiam ao melhor da juventude, o orgulho e o futuro do país. Depois dos veteranos do Afeganistão vieram muitos outros, dezenas de milhares seguidos por centenas de milhares, agora nem tanto a favor da Europa mas em defesa da decência. 

O que quer dizer ir para a Maidan? A praça está localizada perto de alguns dos maiores prédios do governo e é agora um local tradicional para protestar. É importante ressaltar que a palavra maidan existe em ucraniano mas não em russo, e que mesmo as pessoas que falam russo usam essa palavra devido ao seu significado especial. Na sua origem, é a palavra arábica para "praça", um espaço público. Porém, maidan hoje quer dizer em ucraniano o mesmo que a palavra grega agora: não simplesmente um mercado público onde as pessoas podem se encontrar, mas um local onde as pessoas se encontram deliberadamente, precisamente para deliberar, para conversar e para criar uma sociedade política. Durante os protestos a palavra maidan veio a se referir ao ato público da política em si. Assim, por exemplo, as pessoas que usam seus carros para organizar a atenção pública e proteger os outros protestantes são chamados automaidan. 

Os protestantes representam todos os grupos de cidadãos ucranianos: Os que falam russo e os que falam ucraniano (mesmo que a maior parte dos ucranianos sejam bilíngues), pessoas das cidades e do campo, as pessoas de todas as regiões do país, os membros de todos os partidos políticos, os jovens e os idosos, os cristãos, os muçulmanos e os judeus. Todas das maiores vertentes do cristianismo estão representadas por fiéis e a maior parte delas pelo clero. Os Tártaros da Criméia marcharam em número impressionante e as lideranças judaicas fizeram questão de apoiar o movimento. A diversidade da Maidan impressiona: o grupo que monitora os hospitais para que o regime não possa sequestrar os feridos é organizado por jovens feministas. Um telefone de emergência que os protestantes ligam quando necessitam de ajuda é mantido por ativistas LGBT.

Em 16 de janeiro, o governo ucraniano, encabeçado pelo presidente Yanukovych, tentou colocar um fim na sociedade civil ucraniana. Uma série de leis passadas as pressas e sem seguir os procedimentos normais restringiram a liberdade de expressão e de comício, e removeram os poucos entraves que restavam a autoridade do executivo. Isso foi feito com o intento de levar a Ucrânia a uma ditadura e tornar todos os participantes na Maidan, que naquela altura provavelmente já somavam alguns poucos milhões, criminosos. O resultado foi que os protestos, até então pacíficos, se tornaram violentos. Yanukovych perdeu o apoio mesmo na sua base política no sudeste, próxima da fronteira com a Rússia. 

Após semanas respondendo pacificamente as prisões e as agressões da polícia de choque, muitos ucranianos concluíram que tinham chegado ao limite. Uma parte dos protestantes, longe de serem a maioria dos alinhados à direita e à direita extrema, decidiram entrar em confronto com a polícia. Entre eles estavam membros do partido de extrema direita Svoboda e um novo conglomerado de nacionalistas que se intitulam Setor Direito (Pravyi Sektor). Jovens, alguns de grupos da direita e outros não, tentaram tomar a força os espaços públicos disputados pela polícia de choque. Jovens judeus formaram seu próprio grupo de combate, ou sotnia, para lutar contra as autoridades. 

Mesmo tendo Yanukovych revogado a maior parte das leis ditatoriais, a violência ilegal do regime, que havia começado em novembro continuou em fevereiro. Membros da oposição foram alvejados e assassinados, ou molhados pelos carros de água usados para dispersar manifestações em temperaturas abaixo de zero para que morressem de hipotermia. Outros foram torturados e deixados para morrer no mato. 

Durante as duas primeiras semanas de fevereiro, o regime de Yanukovich buscou restaurar algumas das leis ditatoriais por decretos, atalhos burocráticos e novas legislações. Em 18 de fevereiro, um debate parlamentar que estava anunciado para tratar de uma reforma constitucional foi cancelado. Ao invés desse debate, o governo colocou milhares de policiais do batalhão de choque contra os manifestantes de Kiev. Centenas de pessoas foram feridas por balas de borracha, gás lacrimogêneo e cassetetes. Dezenas foram mortas. 

* * *
O futuro desse movimento de protestos será decidido pelos ucranianos. Ainda assim, os protestos haviam começado na esperança de que a Ucrânia pudesse entrar para a União Européia, uma aspiração que para muitos ucranianos representa algo como uma combinação de estado de direito, ausência do medo, fim da corrupção, estado de bem estar social e livre mercado sem a intimidação dos sindicatos controlados pelo presidente. 

O curso dos protestos foi muito influenciado pela presença de um projeto rival para a Ucrânia, apoiado por Moscou e chamado de União Eurasiana. Trata-se de uma união internacional política e comercial que ainda não existe mas que deve passar a existir em janeiro de 2015. A União Eurasiana, ao contrário da União Européia, não está baseada nos princípios da igualdade e da democracia nos seus países membros, nem no estado de direito, nem nos direitos humanos.

Ao contrário, é uma organização hierárquica, que por sua natureza parece improvável que admita qualquer membro que seja democrático, com estado de direito e direitos humanos. Qualquer democracia na União Eurasiana seria uma ameaça ao poder de Putin na Rússia. Putin quer a Ucrânia em sua União Eurasiana, o que quer dizer que a Ucrânia tem de ser autoritária, e isto significa que a Maidan deve ser destruída.

As leis ditatoriais de 16 de janeiro eram obviamente baseadas nos modelos russos, e foram propostas por legisladores ucranianos com laços fortes com Moscou. Essas leis parecem ter sido a condição imposta pela Rússia para o apoio financeiro ao regime de Yanukovych. Antes de serem anunciadas, Putin ofereceu a Ucrânia um grande empréstimo e prometeu reduzir o preço do gás natural Russo. Todavia, em janeiro o resultado não foi o alinhamento à Rússia. As pessoas da Maidan se defenderam, e os protestos continuaram. Onde isso tudo vai levar ninguém pode adivinhar; somente o Kremlin expressa certeza em relação ao que tudo isso significa.

Os protestos na Maidan, nos foi dito diversas vezes pela propaganda russa e pelos amigos do Kremlin na Ucrânia, significavam o retorno do nacional-socialismo à Europa. O ministro de relações exteriores russo palestrou aos alemães em Munique sobre o apoio dos protestantes a pessoas que saúdam Hitler. Naturalmente, é importante que se esteja atento à extrema direita na política e história ucraniana. Essa ala política ainda é uma presença séria nos dias de hoje, ainda que menos importante que a extrema direita na França, na Áustria ou na Holanda. Ainda assim, é o regime ucraniano, não seus opositores, que está retomando o anti-semitismo, instruindo sua polícia de choque de que a oposição é liderada por judeus. Em outras palavras, o governo ucraniano está dizendo para seus policiais que o oponente é judeu e dizendo para nós que o oponente é nazista. 

O mais estranho em relação às aspirações de Moscou é a ideologia política dos seus teóricos. A União Eurasiana é a inimiga da União Européia, não só na estratégia mas também na ideologia. A União Européia se baseia em uma lição histórica: de que as guerras do século XX se basearam em idéias falsas e perigosas, o nacional-socialismo e o stalinismo, que devem ser rejeitadas e de fato superadas em um sistema que garanta livres mercados, livre fluxo de pessoas e estado de bem estar social. O Eurasianismo, ao contrário, se apresenta com seus defensores como o oposto da democracia liberal. 

A ideologia eurasiana pinta uma lição totalmente diferente do século XX. Fundada por volta de 2001 pelo cientista político russo Aleksandr Dugin, ela propõe a realização do nacional-bolchevismo. Ao invés de rejeitar ideologias totalitárias, o eurasianismo chama os políticos do século XXI a buscar o que é útil tanto no fascismo como no stalinismo. O principal trabalho de Dugin, Os Fundamentos da Geopolítica, publicado em 1997, segue de perto as idéias de Carl Schmitt, o líder dos teóricos nazistas. O eurasianismo não é somente a fonte ideológica da União Eurasiana, é também o credo de muitas pessoas na administração Putin e a força motriz de um movimento bastante ativo da juventude russa de extrema direita. Por anos Dugin defendeu abertamente a divisão e colonização da Ucrânia. 

O homem de referência para as políticas eurasianas e ucranianas no Kremlin é Sergei Glazyev, um economista que, como Dugin, tende a combinar nacionalismo radical com nostalgia pelo bolchevismo. Ele foi membro do Partido Comunista e deputado comunista no parlamento russo antes de se tornar um dos fundadores do partido de extrema direita chamado Rodina, ou Terra-mãe. Em 2005, alguns de seus deputados assinaram uma petição ao procurador geral russo pedindo que todas as organizações judaicas fossem banidas da Rússia. 

Mais tarde, naquele mesmo ano, o Rodina foi proibido de participar das futuras eleições depois de reclamações de que suas propagandas incitavam o ódio racial. A mais notória dessas propagandas mostrava pessoas negras comendo melancias e jogando as cascas no chão, para então chamar os russos para a limpeza de suas cidades. O livro de Glazyev Genocídio: Rússia e a Nova Ordem Mundial defende que as forças sinistras da “nova ordem mundial” conspiraram contra a Rússia nos anos 90 para impor políticas econômicas que levaram ao “genocídio”. Esse livro foi publicado em inglês pela revista de Lyndon LaRoucheExecutive Intelligence Review com prefácio de LaRouche. Hoje, a Executive Intelligence Review ecoa a propaganda do Kremlin, disseminando em língua inglesa que os protestantes ucranianos queriam um golpe de estado nazista e que iniciaram uma guerra civil.

* * *
A campanha populista na mídia pela União Eurasiana está agora nas mãos de Dmitry Kiselyov, o anfitrião do mais importante talk show da Rússia e, desde dezembro, também diretor da estatal de mídia russa designada a formar a opinião pública da nação. Mais conhecido por dizer que os gays que morrem em acidentes de carro devem ter seus corações cortados de seus corpos e incinerados, Kiselyov levou a campanha de Putin contra os direitos dos homossexuais e a transformou em uma arma contra a integração européia. Assim, quando o então ministro de relações exteriores alemão, que é gay, visitou Kiev em dezembro e se encontrou com Vitali Klitschko, o político campeão dos pesos-pesados e opositor ucraniano, Kiselyov diminuiu Klitschko como um ícone gay. De acordo com o ministro de relações exteriores russo, a exploração das políticas sexuais deve se tornar agora uma arma na luta contra a “decadência" que representa União Européia. 

Seguindo a mesma estratégia, o governo de Yanukovych alegou, falsamente, que o preço das relações mais próximas com a União Européia era o reconhecimento do casamento gay na Ucrânia. Kiselyov é bem aberto em relação a estratégia da mídia russa sobre a Maidan: “aplicar a tecnologia política correta”, e "levá-la ao ponto de super-aquecimento”, para então trazer para a “lente de aumento da televisão e da internet”.

Por qual motivo pessoas com tais visões pensam que podem chamar aos outros de fascistas? E por qual motivo ninguém na esquerda ocidental os leva a sério? Uma linha de raciocínio parece ser a seguinte: os russos ganharam a Segunda Guerra Mundial e por isso se pode ter certeza que eles reconhecem nazistas. Muita coisa está errada nisso. A Segunda Guerra Mundial, no front oriental, foi travada basicamente no que na época eram chamadas de Ucrânia Soviética e de Bielorrússia Soviética, não na Rússia Soviética. 5% da Rússia estava ocupada pelos alemães; toda a Ucrânia estava ocupada pelos alemães. Exceto pelos judeus, os quais sofreram de longe o pior, as principais vítimas das políticas nazistas não foram os russos, mas os ucranianos e os bielorrussos. Não existia nenhum exército russo lutando na Segunda Guerra Mundial, mas sim o Exército Vermelho Soviético. Os seus soldados eram de maneira desproporcional de origem ucraniana, já que o Exército Vermelho teve muitas perdas na Ucrânia e recrutou soldados entre população local. O grupo do exército que libertou Auschwitz era chamado de Primeira Frente Ucraniana.

A outra fonte da suposta legitimidade moral da Eurásia parece ser a seguinte: uma vez que os representantes do regime de Putin só de maneira seletiva se distanciam do stalinismo, eles são, portanto, herdeiros confiáveis da história soviética, e devem ser vistos como opositores automáticos aos nazistas e, dessa forma, confiáveis a se opor a extrema direita. 

Mais uma vez, muita coisa está errada nisso. A Segunda Guerra Mundial começou com uma aliança entre Hitler e Stalin em 1939. Terminou com a União Soviética expulsando os sobreviventes judeus pela sua fronteira para a Polônia. Após a fundação do Estado de Israel, Stalin começou a associar os judeus soviéticos com uma conspiração do mundo capitalista e iniciou uma campanha de prisões, deportações e assassinatos de líderes escritores judeus. Quando Stalin morreu em 1953, ele estava preparando uma campanha ainda maior contra os judeus. 

Após a morte de Stalin, o comunismo ganhou cada vez mais uma coloração étnica, com pessoas que queriam reviver suas glórias afirmando que o problema do stalinismo fora que esse havia sido estragado por judeus. A purificação étnica do legado comunista é precisamente a lógica do nacional-bolchevismo, que é a fundação ideológica do Eurasianismo hoje. Putin é um admirador do filósofo Ivan Ilin, que queria que a Rússia fosse uma ditadura nacionalista.

* * *
O que quer dizer quando o lobo aponta aos outros e grita: “lobo!”? Obviamente, propagandistas em Moscou e Kiev nos tomam por idiotas - o que, pelos indícios, é um tanto justificável. 

De maneira mais sutil, o que essa campanha faz é tentar reduzir a tensão social em um país complexo a uma batalha de símbolos do passado. A Ucrânia não é o teatro para a propaganda histórica de outros nem um quebra-cabeça no qual peças possam ser removidas. É um grande país europeu no qual os cidadãos possuem importantes laços culturais e econômicos tanto com a União Européia quanto com a Rússia. Para definir seu próprio caminho, a Ucrânia necessita de debate público normal, da restituição da democracia parlamentar e de relações funcionais com todos os seus vizinhos. A Ucrânia está repleta de pessoas sofisticadas e ambiciosas. Caso as pessoas no Ocidente fiquem presas a questão de serem eles predominantemente nazistas ou não, então os ocidentais irão perder de vista as questões centrais da presente crise.

De fato, os ucranianos estão em uma luta tanto contra a concentração de riqueza quanto contra a concentração de poder armado nas mãos de Viktor Yanukovych e seus aliados mais próximos. Os protestos podem ser vistos como um belo exemplo de coragem para americanos tanto na esquerda quanto na direita. Os ucranianos estão fazendo sacrifícios reais na esperança de se juntarem a União Européia. Pode haver algo a ser aprendido nisso tudo entre os eurocéticos em Londres ou em qualquer outro lugar? Esse é um diálogo que não está ocorrendo.

A história do Holocausto é parte do nosso próprio discurso público, do nosso agora, da nossa maidan. A atual tentativa russa de manipular a memória do Holocausto é tão gritante e cínica que aqueles que são idiotas o suficiente para cair nela vão um dia ter de se perguntar como, e a serviço do que, foram coniventes. Se o fascismo se fantasia com o manto do anti-fascismo, a memória do Holocausto em si será alterada. Será mais difícil no futuro se referir ao Holocausto quando em defesa de qualquer causa nobre, seja ela particularmente a história judaica ou a história dos direitos humanos em geral.

POR TIMOTHY SNYDER Tradução: Fernando de Souza Do site: http://www.midiasemmascara.org/

sábado, 8 de março de 2014

RUMO À CENSURA TOTAL

Desde a publicação do livro do delegado Romeu Tuma Jr. ninguém ignora que o assassinato de reputações, praticado com recursos do Estado e primores de sordidez que desafiam a imaginação humana, é o procedimento usual e normal da quadrilha comunopetista para lidar com aqueles que a incomodem.

Mas, no tempo em que o delegado começou a beber sua quota desse veneno, a poção só era servida a políticos, a altos funcionários ou a empresários dos quais se desejasse extorquir algum dinheiro.

Desde então a indústria da intriga progrediu muito. Sofreu ao mesmo tempo uma transformação e um upgrade, ampliando seu círculo de alvos e elevando-se a instrumento perfeito da censura total, do controle completo do fluxo de informações, uma espécie de Marco Civil avant-la-lettre.

Não existindo um partido de direita, nem qualquer força política de direita organizada, nem muito menos poderes financeiros sustentando uma militância de direita, nem, enfim, nenhuma classe ou entidade sobre a qual se possa lançar as culpas de todo o mal que o governo faz, só resta ao esquerdismo voltar suas baterias contra indivíduos, cidadãos isolados e sem qualquer respaldo político ou econômico -- jornalistas, escritores, blogueiros -- e atacá-los com a fúria e o desespero de quem defendesse a própria vida contra uma invasão imperialista ou um golpe militar.

A quantidade de pavor imaginário que esses indivíduos despertam nas hostes esquerdistas -- bem como em pequenos grupos de extrema direita empenhados em mostrar serviço --, o volume dos recursos que se mobilizam para emporcalhar suas imagens, a obstinação devota que se consagra à criação de toda sorte de invencionices, calúnias e chacotas contra eles, constituem sem dúvida um capítulo notável da história da covardia universal -- algo que não se poderia passar, talvez, em nenhum outro país, e que as gerações futuras chegarão a duvidar de que possa ter acontecido.

Mas, como toda difamação pode ser desfeita em pó e toda calúnia voltar-se contra o caluniador, logo esse bombardeio de infâmias cessou de satisfazer à sanha destrutiva que a inspirava.

De fato, chega a ser cômico usar contra um escritor táticas de “character assassination” que seriam letais se voltadas contra um político ou alto funcionário. A fama de um escritor jamais depende de uma imagem de idoneidade impoluta, mas da sua simples habilidade de registrar seus pensamentos e emoções, quaisquer que sejam, bons ou maus, e comunicá-los ao público. Mesmo que o exército de difamadores alcançasse sucesso em me pintar nas cores de um réprobo, de um criminoso, de um monstro, isso não me privaria de um só leitor. Ninguém jamais deixou de ler Jean Genet por causa da sua folha corrida, nem de apreciar os poemas de Rimbaud ao saber que o autor foi contrabandista de armas. Ninguém parou de ler André Gide quando ele próprio se confessou pedófilo. E nem mesmo o mais escandaloso dos rótulos – o de colaborador do nazismo – tirou leitores de Louis-Ferdinand Céline, de Martin Heidegger ou de Paul de Man. Em todos esses casos, os crimes eram verdadeiros. Quanto mais impotente não seria então a imputação de delitos e pecados imaginários?

Foi por isso que se passou de uma estéril campanha difamatória ao bloqueio dos meios de expressão.

Tão logo o deputado Marco Feliciano denunciou na Câmara a campanha de assassinato de reputação que eu vinha sofrendo (v. https://www.youtube.com/watch?v=CIFB9RXmIi0), a militância do crime, decerto mobilizada por alguma Excelência em pânico, mudou de tática e passou a tentar bloquear a minha conta no Facebook para que, diante do assalto multitudinário à minha pessoa e à minha honra, não me restasse nem mesmo este miserável e último recurso de defesa que é espernear na internet.

O ardil consiste simplesmente em entrar na minha conta desde um IP qualquer que não seja o meu, acionando automaticamente o Facebook para que bloqueie a conta e inicie um procedimento de verificação.Tentaram isso esta semana, usando um IP registrado numa cidade da Índia.

Como eu conseguisse restaurar a conta, aperfeiçoaram o sistema. Fornecem ao Facebook, usando a minha senha de que se apossaram não sei como, um número de telefone falso (desta vez foi +33 7 87 16 56 82), de modo que o código para restauração da conta é enviado a esse número e não chega jamais a mim. Assim, torna-se impossível reativar o acesso à página. Os quase cinqüenta mil leitores que ali me acompanham me escrevem, perguntando quando voltarei ao ar, e só o que posso lhes responder é: Não sei.

A coisa é de uma sordidez impensável, mas, se querem saber, não me surpreende que a militância “enragée” apele a esse recurso, ou talvez, mais tarde, a outros mais abjetos ainda. A mentalidade dessa gente faria os porcos vomitarem, se lhes fosse servida no cocho.

Porém igualmente desprezíveis são aqueles que, no intuito de isentar de culpas uma lideranca política que notoriamente estimula esses crimes e recompensa os agentes que os praticam, dizem: “Ah, isso não é nada, é só um grupo de jovens gozadores.” Pois desde quando, pergunto eu, desde quando uma facção governante, ao praticar um crime, o assina com o carimbo da sua identidade partidária? Os Black Blocs não eram também apenas jovens gozadores até o momento em que comprovou de onde vinham as ordens e o pagamento? Os próprios mensaleiros não eram simples ladrõezinhos avulsos, que agiam pelas costas do inocente poder público?

Nada no mundo é mais repulsivo do que a afetação de inocência de um psicopata cujos trejeitos de candura mal escondem o risinho cínico que lhe sai do canto da boca. 

Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio. Do site: http://www.midiasemmascara.org/

PERGUNTA INCONTORNÁVEL

Desde suas remotas origens até a atualidade mais candente, o movimento revolucionário vive de incessantes autonegações e transmutações dialéticas que desnorteiam a platéia leiga.


Fora de alguns círculos discretos de neo-estalinistas, muita gente de esquerda reconhece hoje que o comunismo soviético foi uma tirania genocida e uma economia tão louca e ineficiente que acabou por se auto-eletrocutar.

O problema é que, ao persistir na esquerda, essa turma nos deixa sem uma resposta razoável para a seguinte e incontornável pergunta: Se o comunismo foi tão ruim, por que deveríamos admitir que o monopólio do bem e da virtude reside, hoje, naqueles que o apoiaram e não naqueles que o combateram?

Por que os herdeiros ideológicos que só renegaram o comunismo quando ele já estava morto e não havia mais meio de salvá-lo são pessoas mais decentes do que aqueles que o enfrentaram de peito aberto, arriscando a vida e a honra, quando ele era vivo e todo-poderoso? Por que chamar de heróis os que fomentaram o crime e de vilões os que tentaram detê-lo?

Será porque Hitler foi anticomunista? Mas Hitler também foi antitabagista, e ninguém sai por aí fumando só para ostentar antinazismo. Hitler foi vegetariano fanático, meio veganista -- mas vegetarianos e veganistas pululam na esquerda muito mais do que na direita, sem que ninguém os olhe com desconfiança. Hitler foi feroz inimigo da liberdade de mercado (v. http://mises.org/freemarket_detail.aspx?control=507), e nenhum socialista se vexa, por isso, de atacar a liberdade de mercado. Sobretudo, é claro, Hitler odiava os judeus, e nem por isso deixa de ser elegante, na esquerda, aplaudir os terroristas que os matam.

Não. Aqui como em praticamente tudo o mais, a reductio ad hitlerum, ou Lei de Godwin (v. http://en.wikipedia.org/wiki/Reductio_ad_Hitlerum), é uma fraude, não um argumento.

A solução do enigma está em outro lugar. Para enxergá-la é preciso estar ciente de três fatos. A descrição que aqui forneço deles é demasiado compacta, mas corresponde estritamente à realidade e pode ser comprovada por amostragem mais que abundante: 

1) É só nos dicionários que o comunismo é o nome de um sistema econômico definido, bem delimitado, inconfundível com o capitalismo, com a economia fascista, com a socialdemocracia etc. Na realidade da vida, os governos comunistas tentaram todos os arranjos e misturas, pela simples razão de que o comunismo dos dicionários -- a completa estatização dos meios de produção e subseqüente desaparição do Estado por efeito paradoxal da onipresença -- é uma impossibilidade absoluta.

2) Se não tem a unidade de um sistema econômico definido, o comunismo tem, em contrapartida, a de um movimento: é uma rede mundial de organizações de variados tipos (por exemplo, partidos legais e grupos terroristas) em permanente intercomunicação, onde tanto o conflito quanto a solidariedade concorrem dialeticamente para o crescimento e avanço do conjunto na sua luta pelo poder.

3) Em razão dos dois fatos anteriores, a variedade de sentidos da palavra “comunismo” já se incorporou há tempos no discurso comunista, servindo igualmente bem para desnortear o adversário e fortalecer a unidade do movimento por trás de divergências de superfície. Um governo dominado pelos comunistas pode, por exemplo, ser admitido como “comunista” perante a platéia interna, ao mesmo tempo que, quando se fala ao público geral, se jura que ele não é comunista de maneira alguma (por exemplo, porque favorece o livre mercado como fez Lênin com sua Nova Política Econômica em 1921). Mutatis mutandis, essa flexibilidade semântica resolve o problema de como o movimento comunista presente e atuante deve falar dos governos comunistas extintos ou reconhecidamente fracassados. Conforme a platéia a que esteja se dirigindo, ele tanto pode denominá-los francamente “comunistas”, para dar a entender que ele próprio não o é de maneira alguma, quanto pode jurar que eles nunca foram comunistas, salvando assim o ideal comunista abstrato de toda responsabilidade pelos crimes e pecados do comunismo histórico: o primeiro desses modos de dizer é usado para o público externo que se deseja tranqüilizar anestesicamente, o segundo para uma platéia mais próxima de militantes que se deseja encorajar ou de simpatizantes que se espera recrutar.

Desses três fenômenos a solução do problema com que iniciei este artigo brota espontaneamente: quando se condena o velho comunismo, mas exaltando os que o defenderam e denegrindo os que o combateram, de um só golpe a coesão, o revigoramento e o prestígio do movimento são assegurados, junto com a necessária camuflagem protetora, pelo artifício de rejeitar suas partes mortas e dar um novo nome às suas partes vivas.

Desde suas remotas origens até a atualidade mais candente, o movimento revolucionário vive de incessantes autonegações e transmutações dialéticas que desnorteiam a platéia leiga, mas que, aos olhos do estudioso – seja ele comunista ou anticomunista – são de uma simplicidade quase pueril e às vezes de um automatismo deprimente.
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O assassinato de reputações começou nas altas esferas federais, mas agora baixou para o humilde recinto do jornalismo. A página do Facebook, “Ruth Sheherazade – a irmãzinha boa da Raquel” foi criada especialmente para sujar a imagem da apresentadora de TV, jogando, de raspão, uns respingos fecais na minha pessoa. A técnica é a mesma dos famosos dossiês forjados contra inimigos do governo: fuçar a biografia da vítima em busca de detalhes inócuos aos quais se possa dar ares de grandes crimes e escândalos mediante uma linguagem artificiosa, fingidamente denuncista. A coisa é um trabalho de publicitários profissionais, restando averiguar quem é o cliente.
POR OLAVO DE CARVALHO Publicado no Diário do Comércio com o título 'Difícil resposta'. 
Do site: http://www.midiasemmascara.org/



sexta-feira, 7 de março de 2014

QUANDO JOVENS VIRAM HOMENS

Alguém ainda lembra quando Dona Dilma, em junho do ano passado, apressou-se em dizer que depredar ônibus, carros e bancos eram manifestações pacíficas próprias da democracia?

“O Brasil hoje acordou mais forte. A grandeza das manifestações de ontem comprovam (o plural é dela) a energia da nossa democracia, a força da voz das ruas e o civismo da nossa população. É bom ver tantos jovens e adultos, o neto, o pais, o avô juntos com a bandeira do Brasil cantando o hino nacional, dizendo com orgulho ‘eu sou brasileiro’ e defendendo um país melhor. O Brasil tem orgulho deles”, disse então a presidente. 

Temos então que o Brasil se orgulha de seus baderneiros. Fernando Henrique Cardoso, que de seu glorioso climatério assiste de camarote os distúrbios de rua, perdeu uma ocasião única de ficar calado. Desqualificar os protestos dos jovens em São Paulo e outras capitais "como se fossem ação de baderneiros" constitui, na avaliação do ex-presidente, "um grave erro". Para ele, "dizer que essas manifestações são violentas é parcial e não resolve. É melhor entendê-las, perceber que essas manifestações decorrem da carestia, da má qualidade dos serviços públicos, das injustiças, da corrupção". 

Enquanto dizia isso, os “jovens” arrombavam os portões do palácio Bandeirantes, onde governa seu companheiro de partido, Geraldo Alckmin. O governador, que uma semana antes classificara os manifestantes como "vândalos" e "baderneiros", passou então a acudir com panos quentes: "Queria fazer um elogio às lideranças do movimento e também à segurança pública e à Polícia Militar”. 

Ora, se um ex-presidente, a atual presidente e o governador de São Paulo aplaudem os “jovens”, se governo e oposição endossam a violência, que resta aos "jovens" fazer? No mínimo, invadir a prefeitura de São Paulo. Que é o que tentaram fazer numa noite dos meados de junho, marcada por saques e depredações. Com o aval da Presidência da República. 

- Não é preciso doutorado em sociologia ou psicologia para saber que, quanto mais violência for usada contra os jovens, maior será a violência de sua reação – escreveu na época, no Estadão, Juan Arias, correspondente do El País no Brasil -. Sempre se disse que os jovens têm vocação para incendiário, até que completam 40 anos e passam a agir como bombeiro para apagar o fogo da contestação. Se movimentos de pessoas indignadas em todo o mundo fizeram amanhecer novas primaveras de esperança de mais democracia, é de se esperar que também o Brasil saia dessas manifestações de rua e protestos por causas justas mais fortalecido em sua democracia, conquistada com tanta dor, tortura e morte. Um país que encurrala seus jovens por medo de suas reivindicações é um país perdedor”. Os “jovens”. Em francês, “les jeunes”, que é como a imprensa francesa chama os árabes e africanos que promovem quebra-quebras e incendeiam centenas de carros nas noites de réveillon. 

Não sei se o leitor notou, mas depois do assassinado do cinegrafista da Band, a palavra jovem meio que sumiu dos jornais. Caio Souza e Fábio Raposo, apesar de terem 22 anos, são agora os “homens”, as “pessoas”, o tatuador, o estudante universitário. Ou atendem simplesmente pelo nome, sem nenhum qualificativo. Você jamais lerá "os jovens Caio Souza e Fernando Raposo". De repente, não mais que de repente, deixaram de ser jovens. Da noite para o dia, viraram homens. Porque jovem não mata. Matar é coisa de homens ou pessoas, tudo menos de jovens. Jovem é palavra que rima com revolução, revolta contra tudo que está aí, enfim, todas essas palavrinhas lindas que absolvem qualquer vandalismo. 

Assassinato, por enquanto, é feio. Mas só por enquanto. Porque não faltam intelectuais, políticos e mesmo partidos políticos, financiando os jovens – perdão, os homens, as pessoas – que matam.

Em sua tentativa de absolver baderneiros financiados para fazer baderna, o UOL foi encontrar “rolezeiros”... em Paris. Temos então que nem a civilizada Paris permanece imune ao fenômeno. Escreve hoje Sonia Oliveira no site da Folha: 

'Rolezeiros' franceses usam Nike e Zara, comem KFC e ouvem música pop Assim como São Paulo, Paris também tem seus 'rolezeiros'. Com idade média entre 15 e 17 anos, eles também capricham no visual e saem da periferia para ir para 'causar' no centro da capital francesa. O ponto de encontro é sempre o mesmo: o quadrilátero Fontaine des innocents no bairro dos Halles.

Discretos, se comparados às manifestações brasileiras, os rolês à la française acontecem há várias décadas, desde a abertura das linhas de RER (Rede Expressa Regional), que liga o subúrbio a Paris, e da construção do Forum des Halles - centro comercial-, no final dos anos 1970.

Em sua maioria estudantes, eles se aglomeram nas tardes de sábado. Sem "ídolo" nem "famosinho", têm duas motivações comuns aos meninos brasileiros: consumir e paquerar. 

Ora, a correspondente pelo jeito nada viu nem leu sobre o que aconteceu em São Paulo. Shopppings foram invadidos por centenas de “jovens”, aos berros e canções de funk, atemorizando os freqüentadores. Naqueles dias, houve acentuada que de clientes nos shoppings. Na Fontaine des Innocents, como também no Forum des Halles – mais conhecido como Le Trou de Chirac -, ali perto, vão algumas dezenas de drogados abastecer-se, e isso não é de hoje.

Toda capital européia tem, em seus centros, praças onde os “jovens” consomem tranquilamente drogas. Em Madri é a Plaza del Angel, em pleno Casco Viejo da cidade. Em Lisboa é o Rossio, onde hoje já não é saudável flanar à noite. Em Copenhague é Christiania, onde o comércio de drogas é livre, e constitui atrativo para turistas, apenas com a recomendação de que não fotografem traficantes e consumidores. Cá entre nós, temos a Cracolândia, onde os drogados são protegidos pelas forças políciais que zelam pelo consumo tranquilo de drogas por seus munícipes. Continua a repórter: 

A reportagem do UOL esteve no último sábado (8) no local para conversar com os participantes do 'rolezinho' de Paris. Anna*, 17, terceiro ano do ensino médio, mora na zona oeste de Paris. Vem com os colegas. "Principalmente para comprar", diz. Fã de Lady Gaga e Rihanna, investe num estilo meio Amy Winehouse. Diz montar looks com as marcas Zara, H&M e Bershka.

Uma ostentação razoável, considerando-se que as peças dessas marcas variam de 15 a 40 euros (entre R$ 49 e R$ 125). Anna junta a mesada dada pelos pais e compra uma peça por mês. Acompanhada de Charlotte*, 16, ela curte "rever" no centro da cidade os colegas da escola.

"Aqui, a gente fica mais à vontade, faz o que quer, o parisiense não está nem aí", explica Victor*, 16, de Essone, periferia sul de Paris. Ele conta que onde mora os jovens são muito observados. 

A repórter pretende que os inofensivos menininhos parisienses, que vão tranquilamente comprar e fumar sem perturbar ninguém,sejam o equivalente dos “rozeleiros” paulistanos. Se em Paris também tem, então é louvável, digno e justo. Continua a moça:

Victor conta que os amigos vêm para comprar e comer nos fast-foods da região. Destaque para o KFC, o que "realmente bomba" entre os meninos.

"Rolezeiro usa Nike, Zara e Timberland", descreve Victor, que quer ser estilista. Mas o vintage seria a grande tendência, conforme ele, vestido de um casaco de peles comprado em um brechó. "E aquele modelo branco de tênis", aponta para um Nike, modelo Air Force One --que custa em média 90 euros (R$ 280). Como a maioria deles, Victor ouve R&B. "Gosto de rap americano, Lil Wayne, 2 Chainz e Drake. 

A repórter pretende, em um tour de force, que rolezeiros seja palavra que existe no francês. Mais ainda: não são nem mesmo jovens, mas meninos.

Sobre os verdadeiros “rolezeiros”, aqueles que iluminam ainda mais a Cidade Luz nos réveillons, Sonia não dá um pio. Seria contraproducente compará-los aos “jovens” brasileiros. A repórter finaliza seu trabalho como uma observação digna de um analfabeto funcional: "Os nomes dos menores de idade foram mudados para preservar a identidade deles, conforme a lei francesa.”

Ora, em primeiro lugar os meninos não cometeram nenhum crime, para que jornalistas se preocupem em omitir seus verdadeiros nomes. Em segundo, as leis francesas não vigem no Brasil.

Por: Janer Cristaldo Do site: http://cristaldo.blogspot.com.br/

quinta-feira, 6 de março de 2014

A BONDADE DOS ASSASSINOS

País começou a matar Santiago ao ficar na dúvida sobre o que fazer diante dos boçais mascarados e seus chiliques medievais


O Brasil bonzinho assassinou o cinegrafista Santiago Andrade. Não foi outro o criminoso. Quem matou Santiago foi esse Brasil envernizado de bondade e infernizado de hipocrisia. Nenhum débil mental mascarado poderia ter matado Santiago sem a cumplicidade desse monstro. A herança maldita da Primavera Burra foi apontada exaustivamente neste espaço. Os bem-pensantes e os demagogos — hoje praticamente indiscerníveis — continuaram matraqueando que os políticos precisavam ouvir “o recado das ruas”. Mentira. Não houve recado nenhum. Não há uma mísera mensagem aproveitável daquele carnaval cívico, onde multidões exuberantes marcharam contra tudo e contra nada — na mais patética perda de oportunidade política na era do Império do Oprimido. É claro que esse heroísmo imaginário das passeatas não poderia acabar bem. Qualquer bando de almas penadas que fechava uma rua podia ser aplaudido pela sociedade engarrafada. “Desculpem o transtorno, estamos mudando o Brasil”, diziam os revolucionários de videogame. Mudando o Brasil para onde? Para o Afeganistão? 

Ninguém perguntou. E a natureza não perdoa: onde não há luz, há treva. Rapidamente, o espaço sacralizado da revolução sem cabeça foi tomado pelo obscurantismo. E o Brasil começou a matar Santiago Andrade quando se permitiu ficar na dúvida sobre o que fazer diante dos boçais mascarados e seus chiliques medievais. Ou melhor: a parte mais bondosa e solidária desse Brasil não ficou na dúvida. Criou um movimento pela libertação dos detidos nas arruaças, black blocs e idiotas associados. 

Deputados bonzinhos, intelectuais do bem e artistas antenados gritaram — alto — pela liberdade dos presos em manifestações. Não há artefato mais letal do que a bondade prenhe de ignorância e flacidez moral. E os comandantes da segurança pública, intoxicados pelo arrastão populista, passaram a declarar que “a polícia não está preparada para esse novo tipo de manifestação”. Um escárnio. A barbárie nunca foi tratada com tanto carinho. 

Ora, o que se faz com criminosos que saem pelas ruas destruindo o patrimônio público e privado, sitiando cidadãos e atentando contra a sua integridade física? Prende-se. Depois processa-se, julga-se e condena-se. Com as leis que estão aí, com o aparato judicial e policial que está aí, sem um segundo de conversa fiada sobre novos tempos e nova boçalidade. Esse Brasil progressista que matou Santiago se permitiu hesitar diante da afronta ao estado de direito. Confundiu atentado com protesto, e resolveu (embora jamais vá confessar isso) relativizar a violência. Assassino. 

Os criminosos que explodiram o crânio do cinegrafista foram identificados sem dificuldade, e estão presos. Mas eles mesmos e seus coleguinhas de terror se cansaram de protagonizar atos igualmente letais, fartamente filmados e fotografados — e puderam voltar tranquilamente para o Facebook e combinar o próximo programinha. Isso porque a sociedade civilizada cismou que não sabe combater “esse novo tipo de manifestação”. A mãe do sujeito que disparou contra Santiago, assustada, não sabia que tinha um criminoso em casa. O Brasil escondeu isso dela. 

Quem se meteu a investigar os computadores dos covardes mascarados, chegando a deter alguns dos articuladores desse câncer, foi bombardeado pelos progressistas nas redes sociais. E lá ia o Brasil discutir se pode ou não pode condenar os facínoras ideológicos, deixando as mamães sem uma notícia decente de quem eram os seus pimpolhos homicidas. 

Brasil, explique isso agora aos filhos de Santiago. 

Não, ninguém vai explicar nada. Já estão chovendo teorias sobre o que é terrorismo, o que é black bloc, que reformas devem ser propostas ao Congresso Nacional (só rindo). Daqui a pouco o irrevogável Mercadante propõe um “plebiscito popular”, e o país volta tranquilamente à sua letargia assassina. Por falar em assassinato, os diplomatas do MST deixaram dez policiais gravemente feridos em Brasília. O Brasil está esperando um deles morrer para se horrorizar. 

E o que aconteceu com os agressores? Foram recebidos em seguida por Dilma Rousseff no palácio, para um bate-papo de uma hora sobre reforma agrária. O que você está esperando para pegar sua borduna e ir atrás do que é seu? 

Mas vá logo, porque o que é seu está sendo devorado rapidamente pelos amigos do povo — esses que a Primavera Burra não viu. Santiago morreu cobrindo um suposto protesto contra aumento das passagens de ônibus, e não se viu um único revolucionário ninja apontando sua revolta contra a usina de inflação do governo popular S.A. E Dilma pode ir ao aniversário do PT apoiar os mensaleiros presos — numa boa, sem nem um herói das ruas para vaiá-la na saída. 

Santiago não teve sorte. Quem tem sorte no país dele é Delúbio Soares, que arrecada pela internet R$ 1 milhão em uma semana — livre de impostos e de covardes mascarados.

Por: Guilherme Fiuza - - O Globo - 15/02/14

"AVANÇO PARA O PASSADO"

Imaginem por um curto instante o estado de choque em que ficariam o comitê central do PT, seus milhares de militantes e sua agressiva (e cada vez mais cara) máquina de propaganda, se esta revista, para dar um exemplo de entendimento bem fácil, publicasse um texto no qual o povo brasileiro fosse chamado de “essa gente”. Mais: que “essa gente” está cometendo uma enorme “ingratidão” ao protestar contra o governo, depois de todos os presentes que tem ganhado das nossas mais altas autoridades.O mundo viria abaixo ─ eis aí, diria a esquerda nacional, a prova definitiva da sordidez sem limites da “grande mídia” brasileira. Mas, graças ao bom Deus, quem disse isso não foi VEJA, e sim o secretário-geral (com nível de ministro) Gilberto Carvalho, descrito como homem de importância praticamente sobrenatural dentro e fora do Palácio do Planalto. Será que foi mesmo ele? Sim, está provado que foi, numa viagem recente a Porto Alegre. “Fizemos tanto por essa gente”, queixou-se Carvalho, “e agora eles se levantam contra nós.” Essa gente? Eles? Ingratidão? É um concentrado de insultos à população que parece ter saído diretamente da linguagem utilizada no Brasil antes da abolição da escravatura.


Está tudo errado nessa declaração, a começar pelo sujeito da frase. “Fizemos”? Quem “fizemos”? É como se o ministro e seus companheiros estivessem tirando dinheiro do próprio bolso para dar aos pobres; mas quem banca tudo é o povo, a cada tostão que tem de pagar em impostos quando compra um palito de fósforo que seja. Ao mesmo tempo, está tudo certo, certíssimo: a frase do companheiro é provavelmente a tomografia mais fiel já feita até hoje dos verdadeiros sentimentos que os donos atuais do Brasil têm em relação à sociedade brasileira. O secretário, simplesmente, disse em público aquilo em que ele e os companheiros acreditam em particular. Foi uma espécie de hora da verdade ─ por distração, ou sabe-se lá por quê, Carvalho esqueceu a regra-base de seu partido, que manda os chefes não falarem como pensam e, mais do que tudo, não agirem como falam. “Essa gente” a que se refere o companheiro Carvalho, exatamente como os barões do café falavam no Brasil do atraso, é a mesma de sempre: o povão da fila do ônibus ou da sala de espera do SUS, essa grande massa sem rosto ou nome, ignorante, preguiçosa, inepta, desinformada, capaz de ler não mais do que três palavras juntas na telinha do celular, sem noção de seus direitos, só utilizável para o trabalho braçal e ainda por cima ingrata. Quando um dos mais notáveis lordes do almirantado petista fala como falou sobre a nossa “gente”, aparece à vista de todos o real projeto das forças que estão no governo: reinar sobre uma opinião pública obediente, inconsciente e boçal, que tem de agradecer quando recebe um pouco daquilo a que tem direito. O que querem é manter o Brasil exatamente como está e sempre esteve, mas com a astúcia de fingirem que estão mudando tudo.

O governo do ex-presidente Lula, de Dilma Rousseff e do PT é uma das mais bem-sucedidas farsas jamais levadas ao público na história política brasileira. Por conta de progressos ocorridos nos níveis de bem-estar, os mesmos que dezenas de outros países alcançaram nos últimos anos (ou até menos do que muitos deles conseguiram), Lula e seu entorno, com endosso de gente séria pelo mundo afora, garantem que sua missão de fazer uma revolução social no Brasil foi um espetáculo ─ o tipo da operação concluída com sucesso, como dizem as vozes que desbloqueiam cartões de crédito pelo telefone. Mas não mudou nada no modo como o país é governado, nem como o poder é distribuído, nem como o bolo é fatiado; não houve nenhuma “mudança estrutural”, que é a maneira de os economistas dizerem que foi trocada a pintura do carro, mas não se mexeu em nada no motor. De concreto, mesmo, é o compromisso do governo petista de manter intacto oBrasil do passado ─ injusto, desigual, atrasado, onde o importante não é ser cidadão brasileiro, e sim depender de quem está no governo. Lula e seu auditório tinham prometido acabar com esse Brasil obsoleto e colocar em seu lugar uma nação pronta para o século XXI. Onze anos após eles chegarem à Presidência da República, o Brasil, na sua essência, está idêntico ao que receberam em janeiro de 2003 ─ e seus melhores aliados são justamente os chefes políticos que equivalem, hoje, aos senhores de engenho de ontem. Com certeza não houve revolução nenhuma em todo esse período. Como estava, ficou.

O Brasil seria um país bem melhor se Carvalho fosse uma exceção ─ um “ponto fora da curva”, como se diz hoje. Infelizmente, não é assim. Na verdade, o secretário-geral da Presidência é a própria curva ─ um espelho que reflete sem piedade a vida como ela é no ano 11 da Era Lulista. Mais que isso, reflete o exemplo de conduta que o homem recebe de quem está acima, e quem está acima dele é a presidente da República. Essa última viagem de Dilma à Suíça e a Cuba, por exemplo, é um perfeito improviso do falso esquerdismo do governo, que tenta ocultar, com palavrório, notas oficiais de sintaxe primitiva e a pura e simples mentira, os hábitos de sultão que seus barões adotam na realidade do cotidiano: falam de um jeito, vivem de outro. O que poderia comprovar melhor seu desprezo pelo cidadão comum do que a mentira que a presidente obrigou seu ministro do Exterior a dizer em público, para esconder os motivos de uma escala “não programada” que fez em Portugal ─ e, ainda por cima, uma mentira incompetente, incapaz de resistir a 24 horas de investigação? A atitude oficial é: “Inventem aí uma coisa qualquer para dizer ao público”. Para piorar, Dilma hospedou-se num hotel onde a diária da principal suíte passa dos 8 000 euros, soma de meter medo em qualquer campeão das nossas elites mais vorazes. Pode uma coisa dessas? Não pode. Não é uma questão legal; é uma questão de compostura, só isso. A governante número 1 de um país com as misérias do Brasil simplesmente não tem o direito moral de gastar 8 000 euros do Tesouro Nacional para pagar uma noite de sono. O conserto ficou pior que o defeito quando Dilma decidiu esclarecer uma conta de cerca de 300 reais que pagou em seu jantar em Lisboa. “Paguei com o meu dinheiro”, disse ela. “Se o dinheiro é meu, eu como onde quiser. Estou pagando.” Há linguajar que reproduza tão bem o vocabulário truculento da elite brasileira, nos seus piores momentos de onipotência, grosseria e mania de grandeza? Nada de admirar, no fundo, quando se sabe que a presidente aluga um caminhão só para levar suas roupas em viagens internacionais ─ ou acha comum requisitar hospedagem para 45 assessores, como nesse último passeio. É um dos vícios públicos brasileiros que mais agradam ao PT ─ a ideia de “aproveitar” até o bagaço tudo o que o ”governo está pagando”.

O fato é que existe hoje, nas massas que habitam a máquina estatal, uma imensa distância separando a pregação revolucionária que fazem no palanque das ações que praticam na vida diária. Para manter a pose de “esquerda”, e ao contrário do que ensina o dito popular, o cidadão come presunto Pata Negra, mas arrota mortadela da venda. Quer falar como socialista e, ao mesmo tempo, viver como burguês; não pode dar certo. Há um preço mínimo a pagar para sustentar uma imagem, e esse preço exige que se enfrente um pouco de desconforto para segurar a onda de herói popular. Fidel Castro, por exemplo, hospedou-se num pulgueiro do Harlem em sua primeira visita a Nova York ─ não no Excelsior de Roma ou no Ritz Four Seasons de Lisboa, como fez sua companheira Dilma. Demagogia? Fidel achou que não; parece que sabia o que estava fazendo.

Os fatos, essa coisa irritante, oferecem muitos outros exemplos da obra de falsificação construída por Lula, Dilma e pelo PT para convencer a plateia de que a “direita”, os “ricos” e os que querem a volta do pelourinho e da chibata são os únicos brasileiros que discordam do governo. É o contrário: estes todos, no mundo das realidades, estão casados com o PT e o PT está casado com eles. Basta olhar um pouco. Não há um único trabalhador no ministério do Partido dos Trabalhadores; em onze anos de governo, e num país com 200 milhões de habitantes, não conseguiram encontrar nenhum até agora, um só que fosse. Ao longo desses anos todos, não foi eliminado no Brasil nem um privilégio sequer, essa praga que mantém nossa vida pública amarrada no século XIX. Não foi cortado um único dos 20 000 a 25 000 cargos públicos para os quais a presidente, seus ministros, os burocratas mais lustrosos e os donos do poder podem nomear quem bem entenderem. A propriedade privada continua sendo sagrada para quem conta com amizades “lá em cima” ─ sobretudo depois que tantos companheiros passaram a desfrutar dos seus aspectos mais agradáveis. Usineiros continuam, como acontece há séculos, recebendo dinheiro do contribuinte para resolver seus problemas ─ só neste ano de 2014, levarão perto de 400 milhões de reais para casa. Os “rentistas”, maldição-mor na linguagem da moda entre os economistas de esquerda, nunca viveram tão bem com as suas rendas.

Empresários amigos, e amigos dos amigos, continuam desfrutando o caixa do BNDES, a juros inferiores a 1% ao ano, como sempre desfrutaram durante os governos a serviço da “alta burguesia”. Tem sido especialmente simpático com frigoríficos, gente da celulose, capitães da “indústria nacional” e empreendedores da modalidade Eike Batista, a quem conseguiu emprestar 200 milhões de reais para reformar um hotel no Rio de Janeiro; Eike não reformou um único mictório, a carcaça do hotel já foi vendida e oBNDES, naturalmente, ainda não recebeu um centavo de volta. As empreiteiras de obras públicas vivem uma nova época de ouro, tão rentável como viviam nos governos de “direita”. Uma delas, a Odebrecht, despacha direto com Lula na construção de um incompreensível estádio para oCorinthians, e construiu para Cuba, com dinheiro do povo brasileiro cedido por Dilma, um porto avaliado em quase 1 bilhão de dólares.

O FGTS virou uma festa para milionários. Não há dinheiro que pertença de forma mais clara e direta ao trabalhador ─ na verdade, existe uma lista, nome por nome, de quem é proprietário das somas ali depositadas e quanto, exatamente, cada um tem na sua conta. O Partido dos Trabalhadores, porém, permite que o governo gaste como bem entender o dinheiro do trabalhador: inventou um “Fundo de Investimento” para o FGTS investir os recursos que recebe todo mês através da folha salarial das empresas, e já tinha, segundo revelação recente da revista EXAME, quase 30 bilhões de reais em carteira no fim de 2013. Três quartos dessa montanha de dinheiro estão aplicados ─ onde mais poderia ser? ─ em títulos de dívidas e ações de empresas privadas, muitas de capital fechado. Se algo der errado com elas, as garantias que o FGTS terá serão os papéis de companhias quebradas. Belo investimento para o trabalhador brasileiro, não? Só mesmo um governo dos trabalhadores cuidaria tão bem dos seus interesses financeiros. Na maior parte esse dinheiro está espalhado pela finíssima flor da elite que o PT fala todos os dias em exterminar: a incansável Odebrecht, a Friboi, construtores de sondas para a Petrobras, empreiteiras de obras, construção naval e por aí afora. Deu para entender? O melhor da história é como se decide quem vai receber o dinheiro do fundo. Um conselho de doze membros é quem realmente manda ─ e ali o governo tem seis representantes, mais três que vêm dessas entidades chapa-branca como Confederação Nacional da Indústria etc. E não há ninguém para falar pelo trabalhador? Sim, um só ─ um cartola da CUT. Se no lugar dele se sentasse o marajá de Baroda, os trabalhadores brasileiros estariam mais bem representados.

É difícil levar adiante essa vigarice de “governo do povo” quando se considera, além de tudo o que já foi dito, que a presidente da República, como se cogita com certa angústia no Palácio do Planalto, está ameaçada de não poder ir a nenhum jogo da Copa do Mundo, para não levar uma vaia de 24 quilates. Que “governo popular” é esse? O companheiro Carvalho está achando que é uma tremenda injustiça. Mas o que se vai fazer? “Essa gente” é mesmo uma dor de cabeça.Por: J. R. Guzzo Publicado na edição impressa de VEJA


quarta-feira, 5 de março de 2014

MUITO ESTETOSCÓPIO AINDA HÁ DE ROLAR...

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas,
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sangüínea e fresca a madrugada...

Os seres humanos têm um especial pendor para lutar – e matar – por idéias estúpidas. Houve época em que se mataram discutindo se deus era três em um ou um em três. As relações entre católicos eram tão afáveis que, quando se reuniam em concílio para discutir um dogma, a facção derrotada tinha de escolher entre o exílio e a fogueira.

Depois surgiram as ideologias. As pessoas se inimizavam por acontecimentos em distantes rincões do planeta. Foram milhões os que, no século passado – e pior, até hoje – se digladiaram pelo que acontecia em Moscou. A ruptura mais emblemática terá sido a de Sartre com Camus.

Em 1946, Camus publica em Combat uma série de artigos, sob o título genérico de "Ni victimes ni bourreaux", reflexões que antecipam O Homem Revoltado. Se o século XVII foi o século das matemáticas, argumenta Camus, se o XVIII foi o século das ciências físicas, se o XIX foi o da biologia, o homem contemporâneo vive o século do medo.

"Dir-me-ão que isto não é uma ciência. Mas, primeiramente, a ciência aí está para qualquer coisa, pois seus últimos progressos teóricos a levaram a negar-se a si mesma, dado que seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam a terra inteira de destruição. Além disso, se o medo em si mesmo não pode ser considerado como uma ciência, não resta dúvida alguma que seja uma técnica".

O que choca Camus é o fato de que homens que viram "mentir, aviltar, matar, deportar, torturar" se façam de surdos cada vez que se tenta dissuadir os homens que mentiam, aviltavam, matavam, deportavam e torturavam, pois estes lutavam em nome de uma abstração. O diálogo entre os homens morreu. "Um homem que não se pode persuadir é um homem que faz medo". 

O que estava em jogo era o comunismo. Sartre, stalinista convicto – e bom amigo dos oficiais nazistas durante a ocupação de Paris – não gostou. "L'amitié, elle aussi, tend à devenir totalitaire; il faut l'accord en tout ou la brouille, et les sans-parti eux-mêmes se comportent en militants de partis imaginaires",revidou o filósofo mais confuso do século passado. Visando Camus, disse: “tout anticomuniste est un chien”. Todo anticomunista é um cão. Sartre não tinha as mãos sujas de sangue, mas sempre apoiou os tiranos que assassinavam em massa.

Anos 60, estava em jogo o Leste asiático. Até mesmo aqui no Brasil, amizades se desfaziam pelo que acontecia na China ou no Vietnã. Eu mesmo, perdi não poucos leitores, em função das escaramuças de Ho Chi Min ou dos massacres de Pol Pot, que hoje poucos saberão quem foi. Mao era outro fator de desavenças. Assassino maior que Hitler ou Stalin, era venerado urbe et orbi como o Grande Timoneiro.

Hoje, fora alguns malucos renitentes que portam luto por Stalin, o último santo a cultuar é Fidel Castro. A ditadura cubana há duas boas décadas já estava desmoralizada na Europa, mas mantém insólita reputação em terras brasílicas. Hoje ainda, há quem acredite no excelente nível de saúde e educação em Cuba, como se pudesse haver saúde em país cujos cidadãos vivem no limite da fome, e como se pudesse haver educação onde não existe liberdade de pensamento. E, por inaudito que pareça, ainda há pessoas cortando relações em função de Cuba.

Aconteceu comigo. Não há uma década, mas ano passado. Uma boa amiga, minha aluna nos anos 80, enviou seu filho, estudante de Medicina, à Cuba. Ela é de Florianópolis, um dos últimos celeiros do castrismo no Brasil. Sempre é bom lembrar que a UFSC foi a única universidade no Brasil a ter a excelsa coragem de conceder um Doutorado Honoris Causa ao Supremo Comandante, Fidel Castro Ruz. Doutorado em Tiro na Nuca, é de supor-se. Ainda ano passado, a universidade oferecia um seminário sobre Direito e Marxismo, no qual se estudava essa obra-prima do Direito intitulada O Capital.

Mantive com minha ex-pupila boas relações nos últimos trinta anos, com algumas décadas de intervalo, é verdade. Até seu filho voltar de Cuba. Postou mensagem no Facebook, louvando a ilha como a representação terrena do paraíso. Discretamente, fiz um rápido comentário.

- Maravilha de ditadura! Que estou ainda fazendo neste país infame? Por que ainda não fui para lá?

Três décadas de bom convívio rolaram Varadero abaixo, por uma rápida uronia quanto à ditadura cubana. O estudante deslumbrado com a ditadura permaneceu silente. Já a mãe, com uma fúria tipicamente materna, reagiu como uma tigra parida. Deletou a postagem e me excluiu definitivamente de seu círculo afetivo. Não teve sequer a coragem de defender a cria. Melhor deletar. Acredite quem quiser. Ou puder.

Vivemos hoje dias interessantes. Era mais que previsível. E a debandada recém começou. Apesar dos pesares, dos problemas de trânsito, violência, miséria, analfabetismo, o Brasil é uma ante-sala do paraíso diante de Cuba. Em nome dos bons laços que unem petistas à Cuba – onde treinou guerrilha o mensaleiro José Dirceu, entre outros – Dona Dilma fechou uma corvéia entre Brasil e a ditadura dos irmãos Castro.

O acordo há muito vinha sendo gestado, mas a presidente, mentindo descaradamente, o anunciou como uma resposta à gloriosa Revolução de Junho de 2013, revolução verdadeira, como a definiu a Veja na época. E importou alguns milhares de médicos a preço vil para suprir as deficiências nossas na área de saúde, através do plano Mais Médicos. Os profissionais eram contratados por dez mil reais – o equivalente a pouco mais de quatro mil dólares. Só que destes quatro mil dólares só viam quatrocentos, 958 reais no câmbio de hoje. Os restantes 3.600 dólares vão para sustentar a falida ditadura dos Castro no Caribe.

Ora, no Brasil de hoje, nem enfermeira aceita trabalhar por tal miséria. Pior ainda, sabendo que 90% do salário combinado vai para uma ditadura. Minha diarista, sem curso universitário algum, ganha quase o dobro. As defecções eram esperadas. A ave precursora foi a médica Ramona Matos Rodriguez, que buscou abrigo no início do mês no gabinete da liderança do DEM na Câmara dos Deputados depois de abandonar o programa. Ramona afirmou que pedirá asilo ao governo brasileiro.

Dona Dilma está entre a cruz e a espada. O ano é eleitoral e não há clima para repetir o gesto do capitão-de-mato Tarso Genro, que devolveu para a Disneylândia das esquerdas, em 2007, os boxeadores cubanos Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, depois de uma frustrada tentativa de deserção em julho daquele ano, durante os Jogos Pan-Americanos do Rio.

Ramona já ganhou um emprego burocrático na Ordem dos Médicos do Brasil – que lhe rende três vezes o que lhe era pago quando trabalhava como escrava – enquanto espera resposta a seu pedido de asilo. Asilo que não há, hoje,como negar-lhe. Enquanto isso, mais quatro médicos cubanos deram no pé, rumo aos Estad0s Unidos. De repente, não mais que de repente, soube-se que já são 5 mil os médicos cubanos asilados nos States, oriundos de programas na Venezuela, Bolívia, Angola e Moçambique. Também não mais que de repente, o Ministério Público descobriu que o trabalho escravo dos médicos cubanos... era trabalho escravo.

O mais insólito em tudo isso é que, junto com os médicos-escravos, Cuba exportou também seus métodos ditatoriais. A corvéia não pode sequer deslocar-se de suas residências sem a permissão dos feitores. Junto com os médicos, há monitores que decidem quando e como eles podem sair para a rua. O governo, passivamente, submeteu-se a esta suprema humilhação.

Os médicos cubanos no Brasil já são 7.400. E virão mais outros. Muito estetoscópio ainda há de rolar entre a senzala e a casa grande. Os stalinistas de plantão já mostram as garras. No Estadão de hoje, escreve Luis Fernando Verissimo:

“Inacreditável é que a reação mais forte à vinda de médicos estrangeiros para suprir a falta de atendimento no interior do Brasil, e a exploração da questão dos cubanos insatisfeitos para sabotar o programa, venha justamente de associações médicas”.

Ora, a Ordem dos Médicos acolheu uma colega que foge de uma ditadura. Nem mesmo a empregou como médica, pois falta-lhe o exame que a habilita a exercer sua profissão no País. Enfim, teremos dias divertidos pela frente. Foi-se a primeira pomba despertada... Foram-se outras mais. Serão dezenas? Serão centenas? 

O tiro saiu pela culatra. A tentativa petista de dar alguns milhões de dólares à ditadura amiga só servirá para afundar ainda mais a imagem de Cuba, que só resta intocada neste país sempre à reboque da História. Por: Janer Cristaldo Do site: http://cristaldo.blogspot.com.br/


terça-feira, 4 de março de 2014

DIPLOMACIA INERTE

Houve um erro estratégico desde o governo Lula na avaliação das forças que predominariam no mundo e da posição do Brasil na ordem internacional

Domingo de carnaval, convenhamos, não é o melhor dia para ler artigo sobre política internacional. Mas, que fazer? Coincidiu que o dia de minha coluna fosse hoje e não tenho jeito nem vontade de escrever sobre as alegrias de momo. Por mais que nos anestesiemos no carnaval, o meio circundante não alenta alegrias duráveis.

Comecemos do princípio. Acho que houve um erro estratégico desde o governo Lula na avaliação das forças que predominariam no mundo e da posição do Brasil na ordem internacional que se transformava. Não me refiro ao que eu gostaria que ocorresse, mas às tendências que objetivamente se foram configurando. Nossa diplomacia se guiou pela convicção de que um novo mundo estava nascendo e levou o presidente, em sua natural busca de protagonismo, a ser o arauto dos novos tempos. A convicção implícita era a de que pós-Muro de Berlim, depois de breve período de quase hegemonia dos Estados Unidos, pregada pelos seus teóricos do neoconservadorismo, e da côrte de equívocos da política externa daquele país (invasão do Iraque, do Afeganistão, isolamento da Rússia, apoio acrítico a Israel em sua política de assentamentos de colonos etc.) e dos desastres provocados por estas atitudes, assistiríamos a uma correção de rumos.

De fato, houve essa correção de rumos, mas a direção esperada pela cúpula da diplomacia brasileira e por setores políticos sob influência de alas antiamericanas do PT era a do “declínio do Ocidente”, com a perda relativa do protagonismo americano e a emergência das forças novas: a China (o que ocorreu), o mundo árabe, em especial os países petroleiros, a África e, naturalmente a América Latina, como parte deste “terceiro mundo” renascido. Esta visão encontra raízes em nossa cultura diplomática desde os tempos da “política externa independente”, de Jânio Quadros, e encontra eco nos sentimentos de boa parte dos brasileiros, inclusive de quem escreve este artigo. Sempre sonhamos com um mundo multipolar no qual “os grandes” tivessem que compartilhar poder e nós, brasileiros, pouco a pouco nos tornássemos parceiros legítimos do grande jogo de poder global.

Contudo, uma coisa é desejar um objetivo, outra é analisar as condições de sua possibilidade e atuar para que, dentro do possível, buscando ampliar seus limites, nos aproximemos do que consideramos o ideal. Nisso é que o governo Lula calculou mal. Se a Europa, sobretudo depois da crise financeira de 2008, perdeu tempo em tomar decisões e está até hoje embrulhada na indefinição sobre até que ponto precisará se integrar mais (compatibilizando as políticas monetárias com as fiscais), ou voltar, na linguagem de De Gaulle, a ser a “Europa das Pátrias”, nem a China se perdeu nos devaneios maoístas nem os Estados Unidos no neoconservadorismo que acreditava que a América poderia agir como se fosse uma hiperpotência. Pelo contrário, a China se lançou às reformas para inverter o polo investimento/consumo, diminuindo aquele e aumentando este, e os americanos deixaram de lado a ortodoxia monetarista, recalibraram a sua política externa e se jogaram à inovação das fontes de energia. Hoje, propõem uma coexistência competitiva, mas pacífica com a China, baseada no comércio, e lançam cordas para que a Europa saia do marasmo e se incorpore aos Estados Unidos, que funcionariam como dobradiça entre a China e a Europa, formando um formidável tripé.

Enquanto isso, o Brasil faz reuniões com os árabes, que não deixam de ter sua importância, propõe negociações sobre o Irã em coordenação com a Turquia (imagine-se se os turcos fariam o mesmo, propondo-se a ajudar o Brasil para resolver o litígio das papeleiras entre Uruguai e Argentina...), abre embaixadas nas mais remotas ilhas para, com o voto de países sem peso na mesa das negociações, chegar ao Conselho de Segurança. Por outro lado, comporta-se timidamente quando a Petrobras é expropriada pela Bolívia, interfere contra o sentimento popular em Honduras, abstém-se de entrar em bolas divididas, como no conflito argentino-uruguaio, além de calar diante de manifestações antidemocráticas quando elas ocorrem nos países de influência “bolivariana”.

Noutros termos: escolhemos parceiros errados, embora, em si mesma a relação Sul/Sul seja desejável, e menosprezamos os atores que estão saindo da crise como principais condutores da agenda global, exceção parcial feita à China (neste caso, não há menosprezo, mas falta de estratégia). Perdemos liderança na América Latina, hoje atravessada pela cunha bolivariana que parte da Venezuela com apoio de Cuba, estende-se acima até a Nicarágua, passa pelo Equador, abaixo, desce direto à Bolívia e chega à Argentina. No outro polo, consolida-se o Arco do Pacífico, englobando Chile, Peru, Colômbia e México e nós ficamos encurralados no Mercosul, sem acordos comerciais bilaterais e, pior, calados diante de tendências antidemocráticas que surgem aqui e ali.

Ainda agora, na crise da Venezuela, é incrível a timidez de nosso governo em fazer o que deve: não digo apoiar este ou aquele lado em que o país rachou, mas pelo menos agir como pacificador, restabelecendo o diálogo entre as partes, salvaguardando os direitos humanos e a cidadania. O Mercosul, desabridamente se põe do lado do governo de Maduro. O Brasil, timidamente, encolhe-se enquanto o partido da presidente apoia o governo venezuelano, sem qualquer ressalva às mortes, aprisionamento de oposicionistas e cortinas de fumaça que querem fazer crer que o perigo vem de fora e não das péssimas condições em que vive o povo venezuelano.

Agindo assim, como esperar que, chegada a hora, a comunidade internacional reconheça os direitos que cremos ter (e de fato poderíamos ter) de tomar assento nas grandes decisões mundiais? Fomos incapazes de agir, ficamos paralisados em nossa área de influência direta. A continuar assim, que contribuição daremos a uma nova ordem global? Chegou a hora de corrigir o rumo. Que a crise venezuelana nos desperte da letargia.
Por: Fernando Henrique Cardoso 
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/pais/fernando-henrique-cardoso-diplomacia-inerte-11764955#ixzz2v0kWxhiX Do site: http://oglobo.globo.com/

CAUSA MORTIS

“Não vamos parar, o poder é nosso!”, escreveu o Black Bloc RJ na hora da notícia do falecimento do cinegrafista

Santiago Ilídio Andrade era nossos olhos e nossos ouvidos. Sem o trabalho dele, e de tantos colegas seus, cinegrafistas, jornalistas, funcionários de apoio, não teríamos notícias — ou só teríamos versões das partes interessadas. O assassino de Santiago e seus cúmplices diretos, que compraram, transportaram e acenderam o rojão de vara, provavelmente não miravam o cinegrafista, mas os policiais. Contudo, sabemos pela palavra deles que devotam um mesmo ódio a jornalistas e policiais. Faz sentido: eles odeiam a democracia — e, deploravelmente, não estão sozinhos.

Santiago não é uma vítima “acidental”. Santiago é um cadáver circunstancial, mas anunciado desde as jornadas de junho. O que faziam, na periferia e na fímbria das manifestações, os vândalos, os depredadores, os mascarados? Eles abriam picadas no rumo de seu El Dorado: o sangue de alguém, qualquer um, policial, transeunte, jornalista, cinegrafista ou manifestante. “Abaixo a ditadura 2.0”, leio numa página de Facebook consagrada à propagação do vandalismo. Os covardes, rosto escondido, precisavam provar a tese que justificaria sua própria existência: a democracia é uma farsa, a máscara da ditadura.

Santiago teve seu crânio destroçado por um foguete ideológico. Os autores da tese não acenderam o rojão de vara, não o transportaram e não o compraram. Esses intelectuais de araque, que são as fontes de inspiração do assassinato, talvez nunca tenham se misturado a uma manifestação de rua. Eles circulam em esferas sanitizadas: universidades, ONGs, movimentos sociais, partidos políticos. Mas, enquanto a investigação policial desvenda os nomes de quem pode ser indiciado, cabe a nós decifrar as ideias que os mobilizam. O perigo está nelas: os pavios imateriais de foguetes ainda não lançados.

O rojão que matou Santiago é um projétil político dirigido contra o alvo da democracia.

Santiago morreu porque, atrás dos assassinos, renasce uma velha teoria sobre a política e a democracia. As páginas eletrônicas dos black blocs definem a nossa democracia como um “Estado policial”. Um professor da FGV-SP, Rafael Alcadipani da Silveira, atribuiu a “estratégia da violência” aos “jovens das periferias”, “vítimas da violência cotidiana por parte do Estado”. A expressão “contraviolência” foi difundida por intelectuais radicais nas décadas de 1970 e 1980 para celebrar o método de “ação direta” empregado por organizações extremistas que, cindidas, dariam origem a agrupamentos terroristas como o Baader-Meinhof, na Alemanha, e as Brigadas Vermelhas, na Itália. As fórmulas incendiárias daqueles intelectuais ressurgem entre nós, como frutos podres de uma crise política e moral.

Santiago está morto porque a fronteira entre a violência “simbólica” e a violência “real” só existe no pensamento depravado dos cultores da violência “simbólica”. Bruno Torturra, o chefão do Mídia Ninja, um “instituto” informal financiado com recursos públicos, definiu o Black Bloc como “uma estética” e fez a defesa da violência nas manifestações, “desde que dirigida aos bancos”. O filósofo-ativista Pablo Ortellado, um herdeiro ideológico dos arautos europeus da “contraviolência”, declarou sua paixão pela “ação simbólica” de depredação de uma agência bancária, um simulacro da “ruína do capitalismo” situado “na interface da política com a arte”. Mas por que eles nutrem uma obsessão exclusivista pelos bancos? O linchamento de um policial não poderia ser descrito como símbolo da “ruína da repressão de Estado”? O assassinato de um jornalista não anunciaria o almejado “controle social da mídia”?

Santiago morreu de excesso de violência “simbólica”, mas não apenas disso. “Não vamos parar, o poder é nosso!”, escreveu o Black Bloc RJ na hora da notícia do falecimento do cinegrafista. A causa mortis tem ramificações complexas, que deitam raízes na condescendência nacional com a violência “justa”. A imprensa apressou-se, com razão e cumprindo seu dever, a denunciar as truculências policiais contra manifestantes pacíficos nos primeiros protestos de junho — mas custou a usar a palavra “vândalos” para qualificar os idiotas mascarados que se movem em busca de sangue. Um certo número de sindicalistas, alguns deles ligados ao PSOL, firmaram um pacto de aliança com os Black Blocs na greve dos professores do Rio de Janeiro. Numa nota asquerosa, mas típica, o Sindicato dos Jornalistas do Rio omitiu a origem do projétil que vitimou Santiago. Fora algumas honrosas exceções, não se ouviu uma palavra de condenação ao vandalismo sair da boca dos célebres “intelectuais de esquerda”.

Santiago é uma vítima, entre tantas outras não ligadas a manifestações, da inclinação do governo a produzir rimas entre “pobreza” e “violência”. Três meses atrás, o ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, anunciou que buscava “interlocutores” entre os black blocs para “compreender este fenômeno social” e entender “até que ponto a cultura da violência vivida na periferia já emigrou para esse tipo de ação”. O poderoso ministro, representação onipresente de Lula no governo Dilma, fala uma linguagem paralela à dos intelectuais engajados na justificação dos black blocs. “Cultura da violência”? “Fenômeno social”? Não, de jeito nenhum: o rojão que matou Santiago é um projétil político dirigido contra o alvo da democracia.

Santiago morreu porque damos ouvidos a Gilberto Carvalho, não a Reynaldo Simões Rossi, o coronel da PM espancado por uma chusma de covardes durante uma manifestação em São Paulo. Rossi disse que seu dever era respeitar os manifestantes e isolar a “minoria de criminosos e vândalos” que “se apropriam de manifestações legítimas”. Há algo de profundamente errado com um país incapaz de enxergar a face do mal, quando ela se esconde atrás da máscara de uma ideologia. A memória de Santiago exige que, finalmente, separemos os manifestantes dos vândalos — tanto nas palavras quanto nas ações.
Por: Demétrio Magnoli Fonte: O Globo, 13/02/2014

segunda-feira, 3 de março de 2014

OS PAÍSES BÁLTICOS E SEU EXEMPLO DE RECUPERAÇÃO ROBUSTA


Em 2009 e 2010, as políticas de austeridade que estavam sendo aplicadas pelos países bálticos pareciam estar levando-os ao mais inexorável dos colapsos: em relação a 2008, o governo da Estônia havia reduzidos seus gastos em 4,5% em termos nominais; a Lituânia, em 4,7%; e a Letônia em espetaculares 20,1%. 

Paralelamente, e para efeitos de comparação, em 2010 o governo da Espanha havia aumentado seus gastos em 7,7% em relação a 2008. Hoje, não obstante alguns cortes feitos pelo governo de Mariano Rajoy, os gastos governamentais da Espanha seguem acima do nível alcançado em 2008.

O efeito de curto prazo sobre os bálticos certamente foi doloroso: em 2009, em plena vigência das políticas austeridade, o PIB destes três países chegou a despencar algo entre 15 e 20% em relação ao nível máximo alcançado durante o ápice da bolha de crédito que havia se formado em suas economias. Foi aí que os apologistas do esbanjamento e da gastança estatal se puseram a fazer suas panfletagens ideológicas. Por exemplo, em 2009, o jornal espanhol Público escreveu esta matéria a respeito da Letônia: "El bastión neoliberal de Europa se derrumba". 

No entanto, a austeridade do lado dos gastos estatais logrou sanear as finanças públicas destes países. A Estônia registrou superávit orçamentário já em 2010; a Letônia, que partiu de um déficit superior a 7% em 2009, conseguiu equilibrar seu orçamento em 2012; e a Lituânia, partindo de um déficit de 9,4% em 2009, conseguiu reduzi-lo para 3,3% em 2012. Esta ortodoxia financeira também permitiu que estes países consolidassem seu endividamento estatal em níveis invejáveis para o Ocidente: a dívida pública da Estônia em relação ao PIB é de ínfimos 10%; a da Letônia é de 38% e a da Lituânia é de 42%. 

Foi justamente este clima de rigor, de seriedade e de compromisso com um orçamento equilibrado o que transmitiu confiança aos investidores e ao mercado internacional, e que afastou por completo os temores sobre uma até então tida como inevitável desvalorização de suas moedas, as quais seguiram firmemente atreladas ao euro. Esta previsibilidade e estabilidade proporcionou a seus cidadãos e a seus empresários a confiança suficiente para manter ou até mesmo aumentar seus níveis de poupança, o que proporcionou a suas respectivas economias o capital suficiente para alterar sua estrutura, até então voltada para atividades sustentadas meramente por bolhas creditícias. 

Por exemplo, a taxa de poupança da Estônia passou de 20% do PIB em 2008 para 26% em 2013, o que facilitou a manutenção de suas taxas de investimento em elevados 27% do PIB. Já a taxa de poupança da Letônia passou de 17% para 24%, consolidando sua taxa de investimento em quase 26% do PIB. Finalmente, a taxa de poupança da Lituânia, mais lenta, passou de 14 para 18%, alcançando uma taxa de investimentos de 18% do PIB. 

A combinação entre estes notáveis volumes de investimento — em plena crise econômica — e mercados internos substancialmente mais livres e flexíveis do que os do resto da Europa permitiu aos bálticos fazer uma revolucionária transformação na estrutura produtiva de suas economia. Se até então suas economias exibiam números robustos em decorrência de uma acentuada expansão do crédito e do consumismo que isso permitia, a recessão e sua consequente austeridade fizeram com que sua população adotasse uma postura mais poupadora e menos consumista. 

Como resultado desta combinação entre menos gastos e mais poupança, o setor exportador voltou a crescer (sem que houvesse nenhuma desvalorização cambial), o que reduziu enormemente o grande déficit nas contas externas destes países, bem como seu endividamento externo. 

Entre 2007 e 2012, as exportações da Estônia subiram de 50% do PIB para 72% do PIB. As da Letônia subiram de 27% para 44% do PIB, e as da Lituânia foram de 44 para 70%. Graças a essa transformação na estrutura produtiva, as contas externas destes três países — marcadamente deficitárias durante a época da bolha creditícia — passaram por um acentuado aprimoramento: Estônia e Lituânia, que até então apresentavam um déficit externo de 15% do PIB, passaram a apresentar equilíbrio nas contas externas; já a Letônia reduziu seu déficit externo de 22% do PIB para 1%. 

Vale ressaltar: todo este equilíbrio foi conseguido sem nenhuma desvalorização cambial e sem qualquer imposição de tarifas de importação. Houve apenas um rearranjo da estrutura produtiva da economia, que deixou de ser consumista e se tornou mais poupadora e mais voltada para produção. O equilíbrio interno gerou o equilíbrio externo. Tudo sem pirotecnias e sem prejudicar o poder de compra da população e nem sua liberdade de importação. 

E o resultado disso tudo foi espetacular e se traduziu em um vertiginoso crescimento do PIB e do emprego: entre 2010 e 2013, o PIB da Estônia cresceu 16% e a ocupação, 10%. O PIB da Letônia se expandiu 15% e a ocupação, quase 6%. Finalmente, o PIB da Lituânia cresceu 13% com uma criação líquida de empregos de 3%. 

O êxito dos bálticos deveria ser uma bofetada contra os keynesianos, os quais, no entanto, seguem ardorosamente apegados aos seus lugares-comuns. Por exemplo, segundo Paul Krugman, nenhum destes países ainda recuperou os níveis de PIB e de emprego vigentes antes da crise. Só que esta crítica é infundada: dado que a composição do PIB em 2007 era formada por investimentos insensatos fomentados por bolhas creditícias insustentáveis e por um hiperendividamento externo, tal valor do PIB não deveria constituir referência nenhuma

Porém, em todo caso, a crítica ao menos soava verossímil. Afinal, se os bálticos estavam indo tão bem, por que ainda não superaram as marcas alcançadas em 2007 ou 2008? 

Felizmente, este desesperado discurso keynesiano rapidamente passará para os livros de história: prevê-se queEstônia e Lituânia irão superar, em 2014, o PIB que apresentavam antes da crise, ao passo que a Letônia logrará tal feito entre 2015 e 2016. 

No entanto, há sim um número que parece ser ruim: as previsões de emprego. Em 2014, o número de pessoas ocupadas na Estônia será 4% menos do que o máximo alcançado antes da crise. Na Letônia, será de 14%, e na Lituânia, de 8%. Sendo assim, o êxito dos bálticos neste quesito pode parecer um tanto parco, algo que aparentemente poderia dar razão aos keynesianos. No entanto, há ressalvas. 

Podemos começar comparando os bálticos com a economia espanhola, a qual não irá de recuperar o nível de PIB alcançado antes da crise pelo menos até o final desta década, e cujo nível de emprego em 2014 será quase 20% inferior ao de 2007. Ou podemos também comprar os bálticos à Islândia, a menina dos olhos de Krugman e do resto dos keynesianos — país este que, em decorrência de sua acentuada desvalorização monetária, passou a ser um paradigma de como superar uma crise com prontidão —, e que, não obstante haver triplicado seu endividamento público, só irá recuperar o PIB alcançado antes da crise em 2016 (igual à Letônia e pior do que Lituânia e Estônia). Mais ainda: seu nível de emprego em 2014 será 8% inferior ao máximo alcançado antes da crise. 

Ademais, os dados de emprego dos bálticos, embora não sejam lustrosos, devem ser ponderados por sua evolução demográfica. Por causa de sua baixa natalidade e, principalmente, por causa de seus intensos movimentos migratórios, Estônia, Letônia e Lituânia já vêm perdendo sua população há 25 anos. Embora haja a tendência de se imaginar que as fortes emigrações que estes países vivenciaram nos últimos anos se deveram à crise econômica, a realidade é que essa influência foi meramente secundária. Por exemplo, na Letônia — que é o pior entre os bálticos em termos econômicos e que também é o país com a maior emigração —, o saldo migratório líquido apresentava uma saída média de 15.600 entre 1991 e 2007 e passou a apresentar uma média de 24.800 entra 2008 e 2012 (isto é, a perda anual de população via emigração durante os anos da crise não chegou a 0,5% dos cidadãos, uma porcentagem similar à apresentada pela Espanha em 2012). 

A emigração dos bálticos está mais vinculada a fatores políticos e étnicos: a população russa nestes três países foi reduzida em 40% nos últimos 25 anos, o que significa que quase metade da variação de população que estes países sofreram desde então decorreu deste movimento de russos. 

No entanto, contrariamente ao que gostam de afirmar seus críticos, esta queda da população não apenas não retira o mérito do milagre econômico dos bálticos, como na realidade o intensifica ainda mais: afinal, conseguir crescimentos econômicos intensos mesmo com um declínio demográfico é algo muito mais difícil. Por exemplo, a renda per capita da Lituânia já superou, em 2012, o auge alcançado antes da crise. A Letônia fará isso em 2014. Já a Islândia, por outro lado, só conseguirá tal feito em 2018, segundo as atuais previsões. 

Desta forma, portanto, se corrigirmos o emprego pela variação demográfica, obtemos um retrato mais representativo do ocorrido: o número de empregados em relação à população total na Estônia será, em 2014, de 47,6% em relação aos 49% de 2008; para a Letônia será de 43,8% em relação aos 46,3% de 2008; e para a Lituânia será de 39,2% em relação aos 37,8% de 2008. Compare isso à Espanha, que caiu de 45,4% em 2007 para 37,7% em 2014 ou com a muito keynesianamente admirada Islândia, que caiu de 52% para 46,6%. 

O que podemos concluir em definitivo é que os bálticos são um modelo de recuperação a ser seguidos por países como Espanha, Grécia ou Islândia, ou por todos aqueles países que ainda virão a enfrentar uma forte correção em suas economias que atualmente estão sendo atividades por bolhas creditícias. O segredo do sucesso é o mesmo de sempre: austeridade do setor público e liberalização do setor privado; mais poupança e investimento, e menos gastança; mais mercado e menos estado. 
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Fontes com dados completos e detalhados sobre EstôniaLituâniaLetônia e Islândia.
Veja também:

Juan Ramón Rallo é diretor do Instituto Juan de Mariana e professor associado de economia aplicada na Universidad Rey Juan Carlos, em Madri. Do site: http://www.mises.org.br/