segunda-feira, 21 de abril de 2014

O QUE FIZERAM COM A DEMOCRACIA?

Uma análise do discurso político atual, comparando-o com o de 50 anos atrás, traz-nos surpresas interessantes. Dentre elas chama atenção a valorização da palavra “democracia” no discurso atual. 50 anos atrás, a democracia como a entendemos era atacada pela esquerda como “democracia burguesa”, contraposta a uma “democracia proletária”, ironicamente presente no nome de muitos países comunistas. A República Democrática Alemã era a Alemanha comunista, enquanto a capitalista era República Federal da Alemanha, por exemplo. O Estado de direito não era valorizado no discurso público; o próprio Jango dizia, sem pejo, que as reformas socializantes que propunha seriam feitas “na lei ou na marra”.


Ao longo dos governos militares – que se percebiam, aliás, como democráticos, por contarem com parlamento (enquanto não estava fechado) e Judiciário independentes –, contudo, a oposição consentida fez seu o termo “democracia”, em contraposição a “ditadura”.

Hoje, a julgar pelo discurso e só pelo discurso, a democracia seria considerada um dos valores básicos do país. Mas o que é realmente democracia? Examinando-se a prática, não apenas o discurso, de nossos governantes atuais (os mesmos que desprezavam a “democracia burguesa” 50 anos atrás), vemos que, se o sentido do termo não é mais exatamente o que se lhe era dado pelas “democracias proletárias” genocidas do século passado, tampouco corresponde ele a uma busca prática de respeitar a vontade popular.

Ao contrário: é considerado “democrático” que o Estado possa ter acesso a dados pessoais dos cidadãos (como os dados de navegação de internet, segundo o Marco Civil), sem necessidade de autorização judicial. É considerado “democrático” tentar calar a oposição, a ponto de ameaçar cortar verbas de uma rede de tevê para que demita ou afaste comentaristas de oposição. É considerado “democrático” distribuir cargos e verbas como se não houvesse amanhã para comprar os votos de partidos inteiros. É ainda igualmente “democrático” aprovar leis abertamente contrárias à vontade popular, à moral e aos bons costumes, seja como ativismo de um Judiciário aparelhado, seja como “normas técnicas” e outros eufemismos.

E, finalmente, é “democrático” aparelhar completamente, até a medula, o Estado, de forma tal que, ainda que surja um candidato de oposição e arranque a Presidência da República das garras do PT, a máquina do Estado continuará por muito tempo trabalhando em prol deste partido.

“Democracia” tornou-se uma palavra mágica, sem sentido próprio. Será que isso é “democrático”?
Publicado no jornal Gazeta do Povo. Por: Carlos Ramalhete é professor.


domingo, 20 de abril de 2014

OS FANÁTICOS DO SECULARISMO

Abomino as demências relativistas que defendem todas as culturas, por mais abjetas que sejam, simplesmente porque são "diferentes".


Mas o meu problema não é apenas com o relativismo. Sinto igual asco com o dogmatismo fanático de quem deseja esmagar qualquer diferença com uma única concepção da Verdade e do Bem.

Um caso talvez ajude a entender o meu asco. Nas últimas eleições municipais em França, a extrema-direita teve votação expressiva: a Frente Nacional de Marine Le Pen, depois de conquistar três cidades em 1995, conseguiu agora 11 prefeituras.

A crise econômica da Europa; o medo dos "imigrantes" que roubam trabalho aos nativos; e uma vetusta tradição autoritária de direita na pátria da "Liberdade, Igualdade, Fraternidade" talvez expliquem esses tristes resultados. Que começam agora a mostrar as suas garras.

Em entrevista recente, Marine Le Pen garantiu que nas cidades onde a Frente Nacional saiu vitoriosa, as escolas terão cardápios únicos, independentemente das restrições alimentares (e religiosas) dos alunos.

Por outras palavras: quando houver porco, os alunos judeus e muçulmanos têm como única opção não almoçar. Ou, melhor ainda, tapar o nariz, violar a consciência e engolir o bicho sem protestar ou vomitar. Justificações para essa intolerância absurda e boçal?

Ironicamente, Marine Le Pen usa um argumentário tipicamente jacobino: porque a religião não pode entrar na esfera pública e, claro, porque é preciso salvar o secularismo da pátria.

Vamos por partes. Nenhuma democracia liberal sobrevive se deixar crescer no seu seio um código cultural e legal que ameace essa mesma democracia liberal. Se um país ocidental aceitar os preceitos da "sharia" (lei islâmica), permitindo que uma mulher muçulmana alegadamente adúltera seja apedrejada até à morte, isso significa o fim do Estado de Direito.

Só que confundir esse perigo com a recusa de alunos judeus e muçulmanos comerem porco não é apenas uma desonestidade intelectual; é uma violência moral que envergonha as democracias liberais. Exatamente como seria uma vergonha se um aluno cristão e profundamente crente fosse obrigado a comer carne de porco em plena Sexta-feira Santa.

Acreditar que o futuro do secularismo está no prato das cantinas escolares é não entender o que significa o secularismo.

E nesse quesito não é apenas Marine Le Pen que chafurda na ignorância. Os seus opositores de esquerda também cometem o mesmo erro ao defenderem uma visão secularista que se faz pelo apagamento radical de qualquer manifestação religiosa em público.

Não vale a pena lembrar os autores clássicos sobre a matéria, como Émile Durkheim, para quem a expressão pública de uma religião é parte da liberdade religiosa que uma democracia liberal deve proteger e garantir.

Basta apenas dizer que a separação entre Estado e Igreja não significa o apagamento da Igreja. Significa apenas que o poder político se rege por princípios laicos, e não religiosos.

Conceder a Deus o que é de Deus e a César o que é de César (ironicamente, um preceito bíblico) é uma mera questão de organização do poder político - e não, como Marine Le Pen e os seus irmãos jacobinos imaginam, colocar César na casa, na dieta e até na consciência de cada um.

Na sua defesa hipócrita e analfabeta do secularismo francês, o que Marine Le Pen e os seus irmãos jacobinos fazem é elevar um princípio político a uma nova forma de religião.

Os Torquemadas do secularismo são os piores inimigos do secularismo.

star

Dicionário de Português*:

CINATTI, Rui - O poeta Ruy Cinatti (1915 - 1986) não precisa de grandes apresentações para os portugueses: é seguramente um dos maiores poetas do país no século 20.

Menos conhecido é o Cinatti antropólogo, que na década de 1940 partiu para a colônia de Timor-Leste como secretário do primeiro governador da ilha e aí encontrou a geografia física e emocional para muitos dos seus escritos.

Esses escritos podem ser lidos agora em "Timor-Amor" (Gryphus, 230 págs.), a primeira colectânea de Cinatti no Brasil superiormente organizada e prefaciada por Vasco Rosa. Resumindo, o livro é uma longa declaração de amor ao território e ao seu povo. Uma declaração feita de explorações botânicas, diários íntimos e versos de uma arrasadora e espiritual beleza:

"Hei-de esquecer-me de tudo

que me prende ainda ao futuro.

Hei-de ser, como não fui,

um homem fora do mundo."

O brasileiro Sérgio Vieira de Mello, a quem o livro é dedicado "in memoriam", teria certamente gostado da mais bela homenagem literária que conheço ao país onde ele viveu os seus últimos dias. 
Leitores vários escrevem-me com regularidade, perguntando por livros ou autores portugueses que merecem edição e leitura no Brasil. Este "Dicionário de Português", a partir de hoje, irá procurar responder a todos eles. Com livros, sim, mas também com artes, lugares e prazeres que valem a pena deste lado do Atlântico. 
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP


sexta-feira, 18 de abril de 2014

OS ÚLTIMOS DESEJOS DA KOMBI / VOLKSWAGEN

DEBANDADA DE EMPRESÁRIOS NA FRANÇA: AGREDIR OS RICOS É PUNIR OS POBRES!

Se quiserem saber por que o Brasil não cresce em linha com o seu potencial, leiam o texto abaixo.


O socialista Hollande assumiu o governo francês com uma retórica contra os ricos. Socialistas tendem a acreditar que riqueza é algo estático, que economia é um jogo de soma zero e que, portanto, o pobre é pobre porque o rico é rico. O resultado é uma hostilidade aos ricos e criadores de riqueza em potencial, o que apenas prejudica os pobres.

À época, os liberais já diziam que essa mentalidade iria afugentar os empresários e piorar a situação econômica da França, já em frangalhos. Não deu outra. Em reportagem publicada no NYT e traduzida pela Folha, há relatos de vários empreendedores que se mudaram de lá e não pretendem voltar. Seguem alguns trechos:

“Muitas pessoas indagam: ‘Por que você saiu da França?’”, disse Santacruz, 29. “Minha resposta é que a França tem problemas demais. Há uma sensação de desânimo que parece estar aumentando. A economia vai mal, e, se você quiser progredir ou abrir seu próprio negócio, o ambiente não é bom.”

Um êxodo de empresários e de jovens está em curso, em um momento no qual a França mais precisa deles. O país teve baixo crescimento econômico nos últimos cinco anos, tendendo à estagnação, e aumento do índice de desemprego, atualmente em cerca de 11%.

Empresários ricos também estão partindo. Enquanto novatos reclamam das dificuldades para abrir um negócio, os que o conseguiram dizem que a sociedade estigmatiza o sucesso financeiro. A eleição do presidente François Hollande, membro do Partido Socialista que certa vez declarou: “Não gosto dos ricos”, não ajudou a desfazer essa impressão.
[...]
Segundo o Ministério de Relações Exteriores, cerca de 1,6 milhão dos 63 milhões de cidadãos da França vivem fora do país, e até 60% desse montante saíram a partir de 2000. Milhares estão indo para Hong Kong, Cidade do México, Nova York, Xangai e outras cidades. Aproximadamente 50 mil franceses moram no Vale do Silício, e 350 mil estão radicados no Reino Unido. Muitos dizem que provavelmente não voltarão.

Tudo isso é um tanto óbvio para os liberais, é o resultado esperado quando o governo ataca aqueles que criam riqueza. Mas a esquerda não entende isso, ou por ignorância, ou dominada pela inveja que prefere destruir os mais ricos em vez de ajudar os mais pobres.

Qualquer governo que pretende ajudar os mais pobres deve tratar bem os mais ricos e, acima de tudo, os empreendedores, os criadores de mais riqueza em potencial. O ambiente de negócios deve ser o mais amigável possível, com baixos impostos, tributação simplificada, confiança nas regras do jogo, segurança jurídica e física, sólidas instituições, e respeito à meritocracia, ou seja, haverá perdedores e vencedores no processo competitivo, e tais resultados devem ser respeitados.

Foi Ayn Rand, a filósofa e novelista russa, quem melhor resumiu a questão. Em um discurso sobre o dinheiro, ela coloca na boca de seu personagem: “Não espere que eles [empresários] produzam, quando a produção é punida e a pilhagem recompensada”. Diz Rand:

“Quando você perceber que para produzir precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho, e que as leis não nos protegem deles, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada, e a honestidade se converte em autossacrifício; então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada”. 

Como a França de Hollande comprova uma vez mais, o jeito mais fácil de se criar pobreza é agredir os ricos. Quer melhorar a vida dos mais pobres? Então é bom começar a tratar bem os mais ricos…

Rodrigo Constantino Do site: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/

O SAMBA-DA-PRESIDENTA-DOIDA

Existe a revisão virtuosa da história. À medida que se descobrem novos documentos, que se apela a saberes não convencionais para as ciências humanas, que se estudam fontes de narrativas antes consideradas fidedignas, o passado pode ganhar novo contorno em benefício da precisão. É o oposto do que está em curso nestes dias, nos 50 anos do golpe militar de 1964. A memória histórica foi abolida em benefício da memória criativa e judiciosa. Dilma se tornou a personagem-símbolo desse saber que se erige como nova moral. Na solenidade de privatização do aeroporto do Galeão, resolveu apelar a Tom Jobim e citou o "Samba do Avião". Segundo disse, a música ligava o Brasil de hoje ao do passado ao "descrever" a chegada ao país dos brasileiros que voltavam do exílio, depois da anistia, "após 21 anos".


É o samba-da-presidenta-doida. A música é de 1962, o golpe foi desferido em 1964, e a Lei da Anistia é de 1979, quando os exilados, então, começaram a voltar –15 anos, portanto, depois do golpe, não 21. A canção faz uma evocação lírica do Rio; nada a ver com protesto. Ao contrário até: o narrador revela aquele doce descompromisso bossa-novista: "Este samba é só porque/ Rio, eu gosto de você"... Não havia nada de programático a ser interpretado: "A morena vai sambar" queria dizer que a morena iria sambar. Sugiro um estudo aos teóricos do Complexo Pucusp: o mal que o golpe fez à cultura metafórica brasileira.

Na semana passada, lembrei que, em 1987, em vez de reciclar os ódios ao Estado Novo, inaugurado em 1937, o Brasil cuidava do futuro e vivia o processo constituinte, aprovado pela Emenda nº 26, de 1985, que tinha a anistia de 1979 como pressuposto. "Anistia" que, por fatalidade da língua, tem a mesma raiz de "amnésia" e significa, para todos os efeitos da política e do direito, "esquecimento". Por óbvio, isso não impede que se procure a verdade, coisa que não cabe a um ente do Estado. Por natureza, ele irá justificar a ordem de compromissos que o instituiu.

Assim, uma comissão oficial da verdade, lamento!, é mentirosa "ab ovo". Nem o governo negro da África do Sul se negou a apurar atos protagonizados por adversários do apartheid. A do Brasil, contrariando a lei que a instituiu, já deixou claro que sua vocação é demonstrar que o Lobo Mau era mau e que os Chapeuzinhos Vermelhos eram bons.

Num pequeno discurso, Dilma reconheceu, oblíqua e envergonhadamente, a Lei da Anistia e, de novo, elogiou os que tombaram. Na sua lista não estão as 120 pessoas (no mínimo) assassinadas por grupos terroristas, inclusive os de que ela fez parte. Ai de quem se atrever a lembrar, no entanto, os crimes sinistros de poetas da morte como Lamarca e Marighella! Passa a ser tratado por alguns cronistas –que têm de opinião arrogante o que exibem de orgulhosa ignorância– como sócio e partícipe da tortura. Transformam supostos adversários em caricaturas para que fique fácil vencê-los –no boteco ao menos. Fazem com a história o que Dilma fez com o "Samba do Avião". Como responder? Jogando no seu colo o corpo despedaçado de Mário Kozel Filho ou o crânio esmagado de Alberto Mendes Júnior? Nem sabem do que falo. Não dá para entrar nesse jogo rasteiro.

Não pretendo voltar ao golpe neste espaço –a menos que ache necessário. O que hoje desperta o meu interesse é essa esquerda que se ancora numa falsa gesta do passado para assaltar o futuro, como evidenciam as lambanças na Petrobras e o esforço suarento do petista André Vargas para explicar o lobby no Ministério da Saúde em favor de um doleiro –assunto que vai se tornar ainda mais rechonchudo. O que me mobiliza é fazer a sociologia dessa "burguesia do capital alheio", ainda a minha melhor expressão para definir essa gente. Na quarta, um desenhinho animado da presidente, em sua página oficial no Facebook, dava "um beijinho no ombro" para "us inimigo". Uma "Dilma Popozuda" é evidência de arrogância e descolamento da realidade, não de graça. Dilma Bolada está no comando. Por: Reinaldo Azevedo Publicado na Folha de SP


quinta-feira, 17 de abril de 2014

MORAL DOS AMADORES

Quando não existe comércio, não há esperança. Afirmação estranha, eu sei, para um país atrasado como o nosso, que ainda não descobriu que quem faz "justiça social" verdadeira é o comércio.


Um amigo esquisito que eu tenho me disse certa feita que, no século 19 no Brasil, era comum se usar a expressão "comércio de ideias". A expressão me soou familiar de alguma forma.

Acho que ela é melhor do que "mundo cultural" ou "ciências humanas", porque ela descreve de forma mais precisa o que acontece quando as pessoas de fato debatem ideias.

Um dos traços do atraso ancestral do Brasil está no fato de que a elite acha que as ideias não valem dinheiro. Hoje em dia, mesmo em pânico com a crescente violência de certas ideias totalitárias no país e com o crescimento do perigoso ressentimento social, a elite continua pensando como gente atrasada: quer que o produto (as ideias) caia do céu, como se amadores pudessem construir aviões ou erguer bancos. Triste país esse que ainda vive num mundo antes da escrita. Estamos às portas de uma guerra cultural e política.

O comércio é o coração de toda civilização que se preza. Os delírios políticos dos últimos 250 anos têm sua pedra de toque na condenação sistemática do comércio. Enquanto pensarmos assim, não sairemos do buraco em que nos encontramos. Você identifica um mau filósofo quando ele se dedica a condenar o comércio. Toda ética que exclui o comércio é moral de amadores.

O pior é que na prática todos nós sabemos disso, inclusive quem trabalha no comércio de ideias verdadeiro, aquele que faz circular ideias nos livros, nas revistas, nos jornais, na mídia, mesmo nessa masmorra sem luz, paraíso dos linchamentos e das bobagens, chamada redes sociais.

No dia a dia, comercializamos terapias, aulas de ioga, esperanças transcendentais, sonhos futuros, curas, amores. Mas, ainda assim, insistimos na ideia primitiva de que um mundo sem comércio seria um mundo melhor. Quando vendemos algo, nem por isso partimos do pressuposto de que o que vendemos é "sujo" porque vendemos. Mas, como sempre acontece, condenamos no outro o mesmo interesse que temos em nós: ganharmos algo ao longo da vida.

Sei que os primitivos dirão que a ganância estraga tudo. Mas o comércio institucionaliza a ganância, fazendo com que ela seja mais do que si mesma, fazendo com que ela produza todo um mundo material no qual nosso espírito sobrevive.

Só gente semiletrada acredita que o espírito humano precisa de menos comércio do que o corpo. Na verdade, o espírito costuma ser mais caro do que o corpo, basta comparar o preço do amor com o do sexo. Sexo é sempre barato, mesmo que você pague R$ 5.000 por ele -por isso, aliás, é que seu efeito é tão efêmero se comparado ao do amor.

Na Pré-História, por exemplo, dados arqueológicos mostram como, entre 30 mil e 20 mil anos atrás, na região que vai da Israel moderna até as fronteiras ocidentais da Índia, se desenvolveu uma robusta (para a época) rede de comércio entre vários povoados, que assegurou uma redução da violência generalizada que caracterizava a Pré-História.

Quando você vai ao cinema, quando vai jantar com amigos, quando vai à praia, quando vai a uma exposição de arte, quando vai à Europa ou ao Vietnã, quando toma remédios, quando dá um presente, você está fazendo comércio.

Quando acaba o comércio, perde-se a fé no mundo. A forma mais rude dessa ideia se manifesta no uso impensado da expressão "queda do crédito", que nada mais é do que a redução do "quantum" de fé que se deposita nas relações de trabalho e de troca que sustentam uma sociedade. Homens civilizados se relacionam fazendo comércio.

Nada aqui significa um mundo perfeito, mas um mundo possível. Mesmo os semiletrados sabem, apesar de não dizerem, que é o comércio que sustenta a civilização, principalmente a liberdade das ideias. Do que viveria o espírito se não existissem grandes livrarias, físicas ou virtuais, que fazem chegar até nós Shakespeare e Machado de Assis?

Espero que um dia o Brasil saia desse pesadelo pré-histórico do ódio ao comércio. Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP


quarta-feira, 16 de abril de 2014

THE CLASH

Volto ao tema do humor porque a questão continua a preocupar e acho que o que aconteceu com o grupo Porta do Fundos não pode acontecer. O humor não pode ser considerado "falta de respeito". Humor não é caso de polícia.


Quando o vocabulário público toma esse viés, estamos às portas da censura. Mas quem normalmente gritou contra a censura na ditadura são os mesmos que agora são os verdadeiros responsáveis por esta infelicidade.

Vemos "ex-guerrilheiros da liberdade" agora pregando a censura em nome do culto das "vítimas sociais". Claro que quase toda a moçada que diz que era guerrilheira da liberdade no tempo da ditadura era de fato tão autoritária quanto os militares. Mas ninguém pode dizer isso, porque é "feio". Este é um "adendo" a ser feito à comissão da verdade.

Mas o problema não foi criado pelos cristãos ou pela polícia ofendida. Foi criado por toda uma "trupe" que abraçou a causa do politicamente correto no Brasil. Agora, aguentemos.

Como determinar se mostrar Jesus batendo papo na cruz com o soldado romano que vai pregar suas mãos não é "falta de respeito" se aceitamos de partida a ideia de que "falta de respeito" ou "incitação ao preconceito" podem ser associados ao humor? Como dizer que um cristão está errado em afirmar que uma piada desta "incita a população descrente a ridicularizar cristãos"?

Portanto, devemos responsabilizar aqueles que começaram com essa cultura de censura travestida de "discurso do respeito".

Liberdade de expressão implica riscos. E não se responde a liberdade que nos incomoda pedindo R$ 1 milhão por insulto. Mas o Brasil está virando uma ditadura light e só não vê quem não quer. Os ignorantes ainda não perceberam que a destruição da liberdade é muito mais eficaz quando é levada a cabo pela "cultura" e não pelas armas. Foi isso que os "totalitários do bem" perceberam e estão pondo em prática.

Mas o próprio sistema legislativo e jurídico brasileiro (seja por contar com oportunistas de plantão, seja por contar com idealistas totalitários — não conheço um idealista que não acabe sendo totalitário...) criou as condições de possibilidade pra eliminarmos a liberdade de expressão no Brasil.

O politicamente correto é uma cultura descarada do medo e não uma preocupação com a justiça. O Brasil não tem cultura de liberdade. É autoritário à esquerda e à direita.

Muita gente que agora está indignada com a tentativa de alguns cristãos de processar o grupo em questão é, em parte, o tipo de gente que inventou a cultura da demonização do humor. Que provém do veneno que criaram.

Podemos esperar mais dos cristãos de fato "praticantes", pois eles são organizados, têm grana e filhos aos montes. Não vai parar aí. São uma cultura combativa que derrubou o império romano.

Em 1992, o cientista político Samuel P. Huntington fez uma conferencia no American Enterprise Institute, depois ampliada e publicada na revista "Foreign Affairs" em 1993, com o título "The Clash of Civilizations" (O Conflito das Civilizações). Algumas semanas atrás, o colega J.P. Coutinho citou este texto em sua coluna aqui na "Ilustrada".

Pois bem, a playboizada politicamente correta adora xingar Huntington dizendo que seu texto é "preconceituoso". Mas qualquer um que leia seu texto, guardando a distância devida (1992-1993), perceberá que sim, de lá pra cá, os conflitos são cada vez mais culturais. E o "clash" não é só entre grandes sistemas civilizacionais (como é o foco de Huntington), mas entre culturas locais.

O conflito atual entre russos e ocidentais, na realidade muito antigo, marca a diferença entre práticas centradas na ideia de etnia misturada com interesses pragmáticos contra práticas centradas na ideia de interesses pragmáticos sem opções étnicas.

O autor fala de países rasgados entre culturas conflitantes. O Brasil hoje é um país rasgado entre uma cultura liberal, centrada no indivíduo e na valorização da autonomia e autorresponsabilidade, e uma autoritária, centrada no "coletivo" e no culto do ressentimento e da dependência. 
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP


terça-feira, 15 de abril de 2014

PUTIN CONTRA O SEXO DOS ANJOS

A comunidade europeia, essa reunião de países cheios de gente mimada, anda querendo discutir se é certo tratar uma criança quando é pequena de menino ou menina. O debate, é evidente, é coisa de gente riquinha que acaba levando a sério delírios da chamada teoria de gênero, essa invenção de professores desocupados com problemas de identidade sexual.


De fato, desse jeito, parece que a Europa ocidental acabou mesmo. As escolas europeias, se essa ideia idiota passar, vão virar um antro de "autoritarismo de gênero".

Nesse sentido, Putin talvez esteja fazendo um favor aos europeus, lembrando a eles que existe um mundo de preocupações reais, e não os debates idiotas sobre se meninos são meninos e meninas são meninas ou se tudo isso é uma invenção humana como o "croissant".

Nesse cenário, cabe bem o Obama, que, sendo um presidente pop das redes sociais, deve ter mandando um WhatsApp para o Putin protestando contra a anexação da Crimeia pelos russos, coisa que o russos têm todo o direito de fazer e que a maioria esmagadora da população da Crimeia deseja.

Imagino que Obama, cuja única competência é ser o primeiro presidente negro dos EUA (uma grande coisa, sem dúvida), deve ter posto na sua página do "Face" grandes bravatas dizendo que ia fazer isso e aquilo e colocar o Putin no seu lugar. Na verdade, quem colocou quem aqui no "seu lugar"? O Putin é que colocou a série toda de líderes ocidentais nos seus lugares, porque estes, viciados em discutir como a vida é uma "agência de direitos chiques", enquanto comem queijos e vinhos, se esqueceram de que a vida é o que acontece quando você está ocupado delirando com seus sonhos de Branca de Neve.

Putin é um choque de realidade na sociedade fútil em que se transformou a Europa ocidental, banhada em "direitos" que custam muito caro.

Voltando à discussão sobre o sexo das crianças. Chocante é como muitos psicólogos, contaminados pela ideia de que construímos sujeitos socialmente, se deixam levar por essa bobagem do tamanho de um bonde cheio de bobos. O fato de que existam gays e lésbicas, e que estes tenham, sim, direito de viver como todo mundo, não implica o direito de teóricos autoritários começarem a legislar sobre a sexualidade de um monte de crianças "avant la lettre".

Imagino que, se essa lei pegar, o número de crianças com problemas de identidade no futuro da Europa será enorme; mas tudo bem, porque o Estado de bem-estar social (esse personagem de um conto de fadas) vai garantir terapia para todo mundo. Levar um debate desses a sério beira as raias da pura e simples irresponsabilidade moral.

Voltando à Rússia. Desde, no mínimo, o século 19 (vemos isso, por exemplo, nos debates na imprensa russa, debates esses do qual fez parte gente de peso como Dostoiévski, Turguêniev e Tolstói), a Rússia se vê como uma nação que deve cuidar de si mesma para não se transformar no fantasma de si mesma que virou a Europa, bêbada com o que alguns filósofos e similares inventaram para combater o tédio.

Um amigo meu, discutindo esse projeto de lei estúpido, fez uma bela analogia. Sabemos que Francis Bacon, entre outros (o louquinho do Giordano Bruno também fez essa crítica, mas a usou para seus delírios metafísicos inócuos), criticou duramente o que se convencionou chamar em história da filosofia de "baixa escolástica".

A escolástica foi um tipo de prática filosófica muito comum na Idade Média, que buscava racionalizar todo o conhecimento a partir de enunciados lógicos sistemáticos que supostamente esgotariam a totalidade da realidade, inclusive a metafísica. Grandes figuras desse período, como Tomás de Aquino, foram escolásticos.

A "baixa escolástica" é a marca da decadência da escolástica, que por sua vez representou a decadência da Europa medieval e metafísica pré-científica e burguesa.

Os escolásticos decadentes, para Bacon, discutiam coisas como "quando um homem puxa um burro, é ele quem puxa ou a corda?". Ou: "Teriam os anjos sexo?".

Estamos quase lá: os europeus se preparam para discutir se as crianças têm sexo. A Europa precisa muito de Putin.
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP


MELHOR IMPOSSÍVEL?

Você lembra do filme com Jack Nicholson chamado "Melhor É Impossível"? Há uma cena em que ele, um obsessivo-compulsivo (diríamos, um caso grave de TOC), de repente, saindo do analista, se dá conta: "E se melhor do que isso for impossível?". Referia-se a seu quadro tenso, cheio de rituais obsessivos, mas rasgado por um esforço cotidiano de enfrentá-lo.


Pois bem, outro dia, em meio a uma aula com alunos de graduação, discutindo se é melhor ser religioso ou não, essa questão apareceu: "E se a vida não puder ser melhor do que isso?". Ou: "E se uma vida melhor for impossível de se conseguir?". Que vida é essa da qual falávamos? O que pensa um jovem de 20 anos acerca do que seja qualidade de vida?

A questão se apresentou quando ouvíamos uma menina, religiosa, dizer o quanto melhor era a qualidade de vida que se tinha vivendo dentro de uma comunidade religiosa. Melhores amizades, melhor namoro, meninos mais honestos, melhores férias, melhor convívio com os pais, enfim, melhor tudo que importa, apesar de nunca ser perfeito.

Os semiletrados pensam que jovens gostam de ser "livres".

Risadas? Jovens querem famílias estáveis, casa com segurança, futuro garantido, um grupo para dizer que é seu, códigos que os definam de forma clara e distinta, enfim, de um quadro de referências que torne o mundo significativo e seu.

Quando encontram, aderem de forma muito mais direta do que pessoas com mais de 30. Estas já começam a entrar no desgaste cético que a vida impõe a todos nós. Da louça que lavamos, do sexo meia boca que fazemos à arte que cultivamos.

Basta ver o caráter dogmático do movimento estudantil pra ver esse tipo de adesão direta e sem medo dos jovens. Às vezes temo que mais atrapalhamos os jovens do que os ajudamos com o conjunto de exigências que fazemos a eles: sejam diferentes, mudem o mundo, rompam com tudo, inventem-se. Woodstock foi um surto do qual eles já se curaram, mas nós não.

Mas, de volta a: "E se a vida não puder ser melhor do que isso?". O problema era: É melhor viver sem religião ou viver aceitando um código religioso claro?

E vejam: no dia a dia, os poucos jovens religiosos que conheço no meio que frequento costumam ser melhores alunos, mais atentos ao que se fala em sala de aula, menos inseguros com relação a temas como sexo, drogas e rock and roll, assim como também quando se fala de futuros relacionamentos. Enfim, parecem saber mais o que querem e parecem ser menos permeáveis às modinhas bobas que existem por aí.

A conclusão parece ser que uma adesão a uma vida religiosa sem exageros de contenção de comportamento nutre mais esses meninos e meninas ao redor dos 20 anos do que a parafernália de teorias que a filosofia ou as ciências humanas produziram nos últimos séculos.

É como se as religiões tradicionais (como digo sempre, se você quiser uma religião, pegue uma com mais de mil anos...) carregassem uma sabedoria mais instalada, apesar de silenciosa, com relação ao que de fato eles precisam.

E se tivermos alcançado algum limite nas utopias propostas para a modernidade? E se o surto do século 18 pra cá tiver se esgotado como fórmula e chegarmos à conclusão de que, com pequenos ajustes aqui e ali, pequenas correções de percurso (um cuidado com os recursos do meio ambiente, uma sensibilidade maior aos riscos de um materialismo extremado, maior longevidade, beijo gay na novela das nove), a vida se impõe em seu ritmo como sempre se impôs aos nossos ancestrais?

E se o velho ritmo de nascer, crescer, plantar, colher, reproduzir e morrer, com variações criadas pela Apple, for tudo o que temos? E se for justamente essa "perenidade do esforço" impermeável às modas de comportamento a realidade silenciosa da vida?

E se o Eclesiastes, livro que compõe o conjunto de quatro textos da Bíblia hebraica (que os cristãos chamam de Velho Testamento) conhecidos como Sabedoria Israelita (Provérbios, Eclesiastes, Livro de Jó e Cântico dos Cânticos), estiver certo e não existir nada de novo sob o Sol? E se tudo for, como diz o sábio bíblico, vaidade e vento que passa? 
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

segunda-feira, 14 de abril de 2014

QUEIMANDO HEREGES

1.

A ESQUERDA gosta de romantizar o povo. Exceto quando o povo é pouco romântico e expressa o que realmente pensa sobre o mundo.

Uma enquete do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) horrorizou algumas consciências "finas" com as opiniões do povo sobre a violência contra as mulheres.
Simplifico: dentro de casa, é feio bater. Mas, fora de casa, quando o crime é sexual, as mulheres têm culpa no cartório. Números: 65% dos brasileiros concordam que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas". Um aiatolá no Irã não diria melhor. E 58,5% consideram que "se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros". Um aiatolá no Irã, idem.

É justo concluir que, para a maioria dos brasileiros, o ideal seria que as mulheres usassem burca. O clima brasileiro não permite essas mumificações? Isso não é desculpa. Quem aguenta o calor persa, também aguenta o calor tropical.

A pesquisa é interessante porque revela um dos problemas centrais da política moderna: como defender um regime democrático das "tiranias da maioria"?

Certo: a democracia pode ser o governo do povo, para o povo e pelo povo. Mas o que fazer quando o povo apoia a pena de morte, deseja perseguir homossexuais ou, no caso da pesquisa, tolera estupros contra mulheres de minissaia?

Eis o desafio que os pais fundadores dos Estados Unidos enfrentaram. E a resposta deles, contida nos "Federalist Papers" (uma coletânea de ensaios em defesa da ratificação da Constituição) continua válida, mais de 200 anos depois: a única forma de impedir o perigo das "facções" (um termo caro a James Madison) passa pela defesa de um sistema de governo representativo.

Que o mesmo é dizer: o povo não decide diretamente os assuntos da comunidade; o povo apenas elege os seus representantes para que sejam eles a filtrar a opinião da maioria, decidindo de acordo com um julgamento mais ponderado e informado.

Os herdeiros de Rousseau, que deploram a "democracia representativa" e têm orgasmos com a "democracia direta", deveriam escutar mais vezes as aberrações que o povo defende.

2.
Um amigo viaja para São Paulo e pergunta-me se a cidade é segura. Digo que sim, apesar de já ter sido assaltado à mão armada no lobby de um hotel. "Foi um caso isolado nas duas dezenas de viagens que fiz pelo Brasil", acrescento.

Ele fica mais descansado e depois, passando os olhos pelas notícias da internet, lê a história bizarra de uma cabeça humana encontrada junto da Sé. Cancelou a viagem.

Que exagero, meu Deus! Até porque existem coisas piores que uma cabeça cortada. Por exemplo, ter várias cabeças intactas, mas sem nada lá dentro.

Aconteceu com alunos da USP: um professor de geografia, André Martin, terá dito em plena aula que só as tropas brasileiras poderiam pôr ordem na "macacada" do Haiti.

Os alunos consideraram a palavra ofensiva: "macacada", para eles, é um insulto racista aos haitianos. Para mim, que tenho dicionários em casa, "macacada" significa, no contexto da frase, "turba", "multidão desgovernada", "caos" etc.

Segundo "O Estado de S. Paulo", o professor ainda tentou convencer a turma com esses sinônimos. A turma não se convenceu. O professor, em desespero de causa, terá então dito que "macacada" é o termo que o imperialismo americano usaria para intervir arrogantemente no Haiti. A turma não se comoveu com essa prova de esquerdismo do professor. Onde é que eu já vi isto?

Obviamente, em Philip Roth e no seu magistral "A Marca Humana": Coleman Silk também é um professor que usa a palavra "spooks" ("assombrações") para se referir a dois alunos negros que faltam sistematicamente às aulas (e que ele nem conhece). O problema é que "spooks" era o termo cruel com que os negros americanos eram tratados no tempo da segregação.
No livro, a carreira de Coleman é destruída pelos seus colegas universitários, que transformam uma palavra vulgar em ofensa invulgar.

Espero que o fim de André Martin não seja tão dramático. Mas este caso só confirma a regra. O problema do pensamento politicamente correto é funcionar como as antigas inquisições: encontrando heresias onde elas não existem; e queimando os hereges quando eles não merecem.

Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

VOCÊS QUE AMAM TANTO AS ESTATAIS

Peter Evans escreveu, em 1979, que as empresas estatais no Brasil da ditadura militar funcionavam como elos indispensáveis para os negócios das multinacionais. Mas mesmo ele se surpreenderia com a notícia da transferência líquida e direta de recursos da Petrobras para a belga Astra Oil na transação da refinaria de Pasadena. Os detalhes, que começam a emergir, descortinam uma hipótese "benigna", de incompetência crassa de Dilma Rousseff e da diretoria da Petrobras, e uma maligna, fácil de imaginar. Abaixo da superfície, porém, o episódio lança luz sobre um tema político crucial: o tórrido amor da esquerda brasileira pelas empresas estatais.


É um amor recente –ou melhor, um renascimento recente da chama extinta de uma paixão antiga. Evans, sociólogo americano de esquerda, publicou "A Tríplice Aliança" no outono da ditadura militar. O livro analisa a articulação do capitalismo de Estado brasileiro, de Getúlio Vargas a Ernesto Geisel. Nele, delineiam-se os contornos do tripé formado por estatais, multinacionais e empresas privadas nacionais que sustentou a modernização econômica do país. As estatais, prova o autor, operavam como alavancas da acumulação de capital privado, subsidiando as multinacionais e as empresas privadas de grande porte. A crítica de esquerda ao modelo econômico do regime militar inspirou-se largamente no estudo de Evans.

Três décadas atrás, a esquerda brasileira não era estatista. Confrontada com o modelo da "tríplice aliança", que alcançara o zênite nos anos de Geisel, a esquerda aprendeu que as estatais não representavam um "patrimônio do povo" –nem, muito menos, um degrau na escada utópica que conduziria ao socialismo. A vertente social-democrata, fixada nas ideias de democracia e de combate às desigualdades, pensava o futuro em termos de direitos sociais universais (salários, educação, saúde). A vertente revolucionária, por sua vez, almejava a destruição de um capitalismo que andava sobre as próteses das empresas estatais. As duas sorriam, ironicamente, diante dos nostálgicos do varguismo, apontando as linhas de continuidade entre o nacionalismo populista e o modelo estatista do regime militar.

A paixão reativada pelas estatais é um indício, entre outros, da regressão política e intelectual da esquerda brasileira. O amor à Petrobras –que corresponde, no plano iconográfico, à associação das imagens de Vargas e Lula– revela uma dupla renúncia: à revolução socialista e ao horizonte democrático de universalização de direitos sociais. No lugar daquelas metas de um passado esquecido, a esquerda entrega-se a um projeto restauracionista que obedece a razões de poder. No capitalismo de estado, descobriu o lulopetismo em sua jornada rumo ao Palácio, as estatais oferecem ao governo as chaves de comando da política e da economia.

O amor recente às estatais é uma história de conveniência, não de paixão ideológica. Do ponto de vista do lulopetismo, as estatais funcionam como portas de entrada na esfera das altas finanças. Controlando mercados, formando parcerias de negócios ou adquirindo equipamentos, elas fornecem as ferramentas para a subordinação do empresariado ao governo. Servem, ainda, como porto seguro para aliados políticos e como nexos entre a militância partidária/sindical e a tecnoburocracia estatal. Finalmente, operam nas catacumbas da baixa política, transferindo recursos a empresas de publicidade selecionadas, financiando "movimentos sociais" e pagando os serviços baratos do "jornalismo" chapa-branca.

É um amor que mata. Dilma, a gerente perfeita (ui!), já desviou R$ 15 bilhões do Tesouro para cobrir o rombo que abriu no setor elétrico. A Petrobras, com produção estagnada e eficiência declinante, vive de aportes multibilionários do BNDES –isto é, no fim, nossos. Pasadena? US$ 1,1 bilhão? Dinheiro de troco.
Por: Demétrio Magnoli  Publicado na Folha de SP


OS IDOS DE MARÇO ( E O 1 DE ABRIL)

"O esquecimento, e eu diria mesmo o erro histórico, é um fator essencial na criação de uma nação –e, por isso, o progresso dos estudos históricos representa um perigo para a nacionalidade." O nacionalista Ernest Renan queria que, em nome da unidade francesa, os cidadãos de seu país esquecessem as matanças do Midi, no século 13, e o massacre de protestantes da noite de São Bartolomeu, em 1572. Nosso problema é o oposto: são as revisões políticas de 1964, expressas nas simétricas (e patéticas) Marcha da Família e Marcha Antifascista, que representam perigo –não para a nacionalidade, mas para a convivência democrática.


O golpe de 1964 não nos salvou da "ameaça comunista", que inexistia, nem foi urdido por um "fascismo" puramente imaginário. Os militares não estavam sós. Ulysses Guimarães os apoiou. Depois, com justiça, virou herói da resistência. Todos os grandes jornais, exceto o "Última Hora", também os apoiaram. O célebre editorial "Basta!", de 31 de março de 1964, marcou a virada golpista do "Correio da Manhã". Foi escrito por jornalistas de esquerda: Edmundo Moniz (exilado em 1968), Osvaldo Peralva (preso em 1968), Newton Rodrigues, Otto Maria Carpeaux e Carlos Heitor Cony (preso em 1965 e 1968, tornou-se beneficiário de uma gorda "bolsa anistia"). Na mesma linha estavam Alberto Dines e Antônio Callado. "Fascismo", sério mesmo?

A "ditabranda" (Folha dixit!) converteu-se em ditadura dura em 1968. O AI-5 teve 17 signatários, entre os quais Delfim Netto, que se tornaria um dileto conselheiro de Lula. Depois dele, o "Estadão" virou herói da resistência –com justiça, e ao contrário da Folha e de "O Globo". Ninguém, porém, na grande imprensa, veiculou elogios tão rasgados ao general Médici e à Operação Bandeirante, o aparelho subterrâneo de tortura, como a "Veja" dirigida por Mino Carta com pulso de ferro (seu lugar-tenente dixit!), em editoriais e reportagens publicados na hora mais sombria (curiosos podem consultar, entre outras, as edições de 4/2/1970 e de 1/4/1970 no arquivo digital da revista). Viva a memória, abaixo a caça às bruxas.

Nem "fascismo", nem "neoliberalismo". A efêmera etapa liberal de Roberto Campos deu lugar ao neonacionalismo militar de Médici e Geisel, aplaudido de pé por um alto empresariado que amava as estatais (como ainda ama) e adorava girar em torno da luz do poder (como ainda adora). Rupturas, mas também continuidades: pouco antes do primeiro triunfo eleitoral, Lula prometeu restaurar o "planejamento de longo prazo" do regime militar. Você prefere a memória ou o esquecimento?

Caçadas de bruxas: jovens saíram às ruas para insultar idosos militares reformados, alegadamente ligados às torturas. Os torturadores não eram "maçãs podres", mas peças de uma engrenagem comandada pela cúpula do regime e financiada por respeitados empresários. Promulgada pelo último general-presidente, a Lei de Anistia paralisa a ação dos tribunais, protegendo a máquina inteira de repressão política da ditadura. Em troca da impunidade, ofereceram as "bolsas anistia", tanto as justas quanto as escandalosas. De Sarney a Dilma, todos os governos civis aceitaram o intercâmbio vergonhoso.

Comissão da Verdade, pá de cal. Sem justiça, proibida pela lei, temos um simulacro de memória esculpido segundo as conveniências do presente –e os teatros de máscaras dos marchadores que seguem um crucifixo ou aquela chata canção do Vandré. Criança ainda, no aeroporto, eu vi os cartazes sinistros com as fotos dos "terroristas procurados" –um deles, o pai de um colega de escola. Adolescente, permaneci estático, como os demais, nas escadarias da Catedral da Sé, após o ato ecumênico em memória de Vladimir Herzog, aguardando o chamado a uma passeata que nunca veio. Minha geração tinha direito a coisa melhor que as encenações em curso do nosso "punto final". 
Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

domingo, 13 de abril de 2014

AS DIVISÕES DO PAPA

"Afinal, quantas divisões tem o papa?".

O comentário de Stálin vem à mente ao comparar o balanço do primeiro aniversário do papa Francisco com as ameaçadoras concentrações de tropas russas nas fronteiras da Ucrânia.

De um lado, o encanto de todos com um líder que sabe comandar e reformar a igreja, sem para isso sacrificar a humildade, o bom humor, a modéstia e simplicidade na forma de viver, o amor aos pobres, a ternura pelos doentes e infelizes.

Uma escolha que certamente tornou o mundo um pouco melhor do que era antes.

Do outro lado, a brutal expressão do poder e da violência e não só da parte de Vladimir Putin, mas dos americanos e ocidentais que desencadearam um imprudente jogo de provocações, sem medir as consequências em termos de agravamento do medo e da insegurança de um mundo já precário.

Doze meses bastaram para mostrar a diferença que pode fazer um homem. Apenas armado de algumas ideias e de energia moral e espiritual, Francisco reinventou uma instituição velha de 2.000 anos.

Não perdeu tempo e mudou o papado a partir do momento em que surgiu no balcão e pediu ao povo para abençoá-lo antes de dar-lhe a bênção!

Desde então, o papa não se afastou um milímetro na correspondência total entre o que diz e o que faz, vivendo vida pobre, frugal, sem ostentação, enriquecida com o humor popular de um velho avô cheio de sabedoria.

Sua capacidade de renovar a esperança contrasta com a decepção causada pelos principais líderes mundiais na gestão iníqua da crise financeira provocada pela cobiça dos bancos, no fracasso em lidar com o desafio político da Síria ou da Ucrânia a não ser com mais violência e confronto.

Um dos segredos de Francisco é a coerência entre ideias e vida.

Nada concorreu tanto para a desilusão geral com Obama do que o contraste de seus inspiradores discursos sobre a liberdade e a dignidade com a prática maciça da espionagem violadora da privacidade das pessoas e a persistente incompetência de fechar a prisão de Guantánamo.

E não se alegue que exercer o poder moral não exige coragem e decisão.

Quando os Estados Unidos e seus aliados estavam a ponto de repetir contra a Síria a imensa tragédia da invasão do Iraque, o papa moveu céus e terra, apelou a Putin, aos líderes do G20, convocou um jejum e jornada de orações.

Ajudou a evitar ataques que só agravariam o sofrimento dos inocentes ao demonstrar que não existia apoio popular para nova guerra.

Provou que liderança moral se constrói com determinação e posições claras.

Para isso, não se necessitam divisões armadas, orçamentos bilionários ou marqueteiros especializados em mentir e empulhar o público.

Não há nenhum mistério ou fórmula mágica para conquistar quase de um dia ao outro a confiança e o respeito do povo.

É suficiente ter como guia o infalível conselho do evangelho de Jesus Cristo: quem tem poder deve colocá-lo a serviço dos outros, não se servir do poder para si mesmo.

Quantos dos líderes políticos atuais passariam nesse teste? 
Por: Rubens Ricúpero Publicado na Folha de SP


O ESTADO GERA AS DESIGUALDADES SOCIAIS QUE ELE PRÓPRIO ALEGA SER O ÚNICO CAPAZ DE RESOLVER


O atual sistema monetário é baseado em um monopólio estatal de uma moeda puramente fiduciária. O dinheiro é criado monopolisticamente pelo Banco Central e é em seguida entregue ao sistema bancário. O sistema bancário, por sua vez, por meio da prática das reservas fracionárias, se encarrega de multiplicar este dinheiro (eletronicamente) por meio da expansão do crédito. Falando mais diretamente, o dinheiro criado pelo Banco Central é multiplicado pelo sistema bancário e entra na economia por meio do endividamento de pessoas e empresas.

Ao analisarmos os negativos efeitos sociais e políticos deste arranjo, a seguinte pergunta tem de ser feita: onde estão as manifestações dos defensores e apologistas da justiça social contra este arranjo fiduciário que destrói o poder de compra dos poupadores e aumenta as desigualdades? Por que não ouvimos clamores de políticos e sociólogos — que juram ter em mente o bem-estar geral da população — contra o crédito fácil?

Presumivelmente, a resposta é que todos eles possuem apenas um conhecimento rudimentar sobre a função do dinheiro em uma economia baseada na divisão do trabalho; e, por esse motivo, as consequências de um sistema monetário baseado em uma moeda fiduciária são por eles amplamente desconsideradas.

O atual sistema monetário, formado por um sistema bancário que pratica reservas fracionárias e por bancos centrais que protegem e dão sustentação a este sistema, está em franco contraste a um regime monetário de uma economia genuinamente de mercado, na qual os participantes do mercado poderiam decidir por conta própria, sem a pressão e a coerção do estado, qual dinheiro eles gostariam de utilizar, e na qual não seria possível a ninguém criar dinheiro a seu bel-prazer.

Essa expansão da oferta monetária feita pelos bancos centrais e pelo sistema bancário de reservas fracionárias é o que realmente gera a inflação de preços e, por conseguinte, um declínio na renda das pessoas em termos reais. Em seu livro The Theory of Money and Credit, Ludwig von Mises escreveu:



A mais importante causa de uma diminuição no valor do dinheiro é um aumento na quantidade deste dinheiro sem um simultâneo e igual aumento na demanda por ele. ... Esta menor valoração subjetiva do dinheiro é então transmitida de pessoa a pessoa, pois aqueles que passam a ganhar uma quantidade adicional de dinheiro se tornam propensos a consentir em pagar preços mais altos do que antes.

Quando os preços aumentam em decorrência de uma expansão da oferta monetária, os preços dos vários bens e serviços não aumentam com a mesma intensidade, e também não aumentam ao mesmo tempo. Mises explica os efeitos:



A quantia adicional de dinheiro que entra na economia não vai parar diretamente nos bolsos de todos os indivíduos; e dentre os beneficiados que recebem primeiramente essa nova quantia, nem todos recebem a mesma quantia e nem todos reagem da mesma forma à mesma quantia que recebem. Aqueles primeiros beneficiados têm agora um efetivo em caixa maior do que antes, o que os permite ofertar mais dinheiro no mercado em troca dos bens e serviços que desejam adquirir.

Essa quantia adicional de dinheiro que eles ofertam no mercado pressiona os preços e salários para cima. Mas não são todos os preços e salários que sobem; apenas os desses setores que primeiro receberam o novo dinheiro em troca de seus bens e serviços. E mesmo esses preços e salários que subiram, não sobem no mesmo grau. Por exemplo, se o dinheiro adicional for gasto com obras públicas, apenas os preços de algumas mercadorias e apenas os salários de alguns tipos de trabalho irão subir, sendo que os de outras áreas irão permanecer inalterados ou podem até mesmo cair temporariamente.[...] 

Assim, as mudanças nos preços em consequência da inflação começam apenas com algumas mercadorias e serviços, e depois vão se difundindo mais vagarosamente de um grupo para outro. Leva-se tempo até que essa quantia adicional de dinheiro tenha perpassado toda a economia e exaurido todas as possibilidades de mudanças de preço. Mas, mesmo ao final do processo, os vários bens e serviços da economia não foram afetados no mesmo grau. Esse processo de progressiva depreciação monetária alterou a renda e a riqueza dos diferentes grupos sociais.[...] 

Aqueles que estão vendendo mercadorias ou serviços cujos preços são os primeiros a subir poderão, em decorrência desse fenômeno, utilizar seus maiores proventos para adquirir o que quiserem a preços que ainda não se alteraram. Esses são os indivíduos que tiveram um ganho de riqueza. Por outro lado, aqueles que são os últimos a receber esse novo dinheiro estarão vendendo mercadorias ou serviços a preços ainda inalterados. Esses indivíduos ainda não obtiveram nenhum ganho de renda. Contudo, esses mesmos indivíduos agora têm de comprar as outras mercadorias e serviços a preços mais altos. Esses são os indivíduos que perderam riqueza.

Ou seja: os primeiros a receber o novo dinheiro obtiveram ganhos específicos; eles são os exploradores. Os últimos a receber o novo dinheiro são os perdedores, os explorados, de cujos bolsos saem os ganhos extras obtidos pelos exploradores. Enquanto durar o processo de inflação, estará havendo uma alteração contínua na renda e na riqueza dos indivíduos. Um grupo social ganha à custa de outros. Quando todas as alterações de preços em decorrência da inflação estiverem consumadas, pode-se dizer que ocorreu uma transferência de riqueza entre os grupos sociais. Há agora no sistema econômico uma nova dispersão de riqueza e renda.

Com efeito, caso do preço da mão-de-obra de um trabalhador (isto é, seu salário) aumente a uma taxa menor do que o aumento do preço dos alimentos ou do aluguel, é possível ver como essa alteração na relação entre renda e preços dos bens e serviços pode empobrecer vários trabalhadores e consumidores.

Uma inflação da oferta monetária pode gerar empobrecimento e desigualdade de renda de variadas maneiras:

1. O Efeito Cantillon

A distribuição desigual desta inflação de preços é conhecida como 'Efeito Cantillon'. Aqueles que recebem o dinheiro recém-criado antes de todo o resto da sociedade (primordialmente o governo federal, mas também algumas grandes empresas e grandes magnatas que querem especular no mercado de ações) são os beneficiários de uma política de crédito fácil. Eles podem fazer compras com este novo dinheiro a preços que ainda não se alteraram. Já aqueles que obtêm este dinheiro por último, ou que nem sequer o recebem, são os prejudicados (assalariados, aposentados e pensionistas). Eles terão de se virar comprando bens e serviços a preços que, durante este ínterim, subiram, sem que suas rendas também tenham subido.

2. Inflação de preços de ativos

Grandes investidores e especuladores podem diversificar seus investimentos e seus ativos; consequentemente, eles estão em posição de investir em ativos tangíveis como ações, imóveis e metais preciosos. Quando os preços desses ativos aumentam em decorrência da expansão da oferta monetária, os detentores destes ativos se beneficiam, uma vez que seus ativos ganham valor. Logo, os detentores destes ativos se tornam mais ricos ao passo que as pessoas que detêm poucos ativos ou nenhum ativo irão, respectivamente, ganhar menos ou absolutamente nada com estes aumentos de preços. 

3. O mercado de crédito amplifica os efeitos

Os efeitos de uma inflação dos preços dos ativos podem ser amplificados pelo mercado de crédito. Aqueles que possuem uma renda alta podem conseguir empréstimos volumosos dos bancos para adquirir, por exemplo, imóveis. Já aqueles que possuem uma renda pequena tendem a ser rejeitados pelos bancos, por medo de calotes. Se os preços dos imóveis aumentarem por causa da expansão da oferta monetária, eles irão lucrar com estes aumentos de preços, e a disparidade de renda entre ricos e pobres aumentará ainda mais.

4. Ciclos econômicos e desemprego

A causa direta do desemprego é a inflexibilidade do mercado de trabalho gerada pela interferência estatal, como leis trabalhistas rígidas, altos encargos sociais e trabalhistas, e sindicatos poderosos. Já uma causa indireta do desemprego é a expansão do crédito, que gera crescimentos econômicos ilusórios e investimentos insensatos. Especialmente em economias com mercados de trabalho inflexíveis, como as europeias, quando estes investimentos errôneos se tornam evidentes e a economia entra em recessão, as consequências finais são um grande aumento no desemprego e a perpetuação deste alto desemprego, algo que é sentido mais severamente por pessoas de baixa renda.

O estado continua a se expandir

Tão logo as desigualdades de renda e de distribuição de ativos começam a aumentar, os defensores e apologistas da justiça social se tornam ainda mais histéricos em seus protestos, sem saber (ou sem dizer) que é o próprio estado — com seu sistema monetário monopolista — o responsável pelas condições descritas.

Trata-se de um "modelo organizacional" pérfido, no qual o estado cria a desigualdade social por meio de seu sistema monetário monopolista, divide a sociedade em pobres e ricos, e torna as pessoas dependentes do assistencialismo. Para "remediar" este arranjo, ele intervém criando regulamentações e políticas redistributivas, tudo para justificar a sua existência. O economista alemão Roland Baader observou que:



A casta política tem constantemente de provar a necessidade de sua existência, e ela faz isso implementando seguidamente novas políticas. No entanto, dado que tudo o que ela faz apenas piora as coisas, a única solução é estar continuamente inventando novas reformas — ou seja, ela tem de estar sempre fazendo algo, pois já fez alguma coisa antes. Ela não teria de fazer nada caso não houvesse feito nada anteriormente. Se apenas soubéssemos o que poderíamos fazer para impedir que ela saia fazendo coisas...

O estado até mesmo explora as incertezas da população quanto aos reais motivos da crescente desigualdade de renda e de distribuição de riqueza. Por exemplo, o Quarto Relatório sobre Pobreza e Riqueza do governo alemão afirma que, desde 2002, a nítida maioria do povo alemão defende a implantação de medidas para reduzir as diferenças de renda.

Conclusão

O sistema monetário dominante está no cerne da crescente desigualdade de renda que observamos na maioria dos países atuais. Não obstante, o estado continua aumentando seu poder com a desculpa de estar justamente domando o sistema de mercado que supostamente gerou esta desigualdade e este empobrecimento relativo criados pelo estado e seus aliados.

Se aqueles que alegam estar falando em nome da justiça social nada fizerem para protestar contra isso, seu silêncio pode ser interpretado de apenas duas maneiras: ou eles não entendem absolutamente nada sobre como funciona o atual sistema monetário, o que significa que eles nunca se interessaram em pesquisar e estudar sobre o assunto; ou eles de fato leram, estudaram e entenderam perfeitamente bem, o que significa que eles estão ignorando de maneira cínica uma grande fonte de desigualdade e pobreza simplesmente porque provavelmente estão se beneficiando deste sistema.


Andreas Marquart é o diretor-executivo do Instituto Ludwig von Mises da Alemanha.   Ele é consultor financeiro independente há mais de 15 anos e defensor da Escola Austríaca de economia.

sábado, 12 de abril de 2014

O QUE HOUVE COM OS RICAÇOS DA DÉCADA DE 1980?

Um dos erros mais frequentemente encontrados na maioria das análises ideologizadas da ciência econômica é aquele que pressupõe uma visão estática da riqueza. Quem pensa que a riqueza é estática cai no erro de considerar que, quando uma pessoa se torna rica, ela e seus herdeiros serão ricos — e cada vez mais ricos — para sempre.

Não é necessário ir muito longe para encontrar um exemplo recente deste erro. O economista Thomas Piketty, bastante em voga nestes tempos de demonização dos ricos, demonstra em seu deliciosamente equivocado livroCapital no Século XXI — o qual, obviamente, foi muito elogiado por Paul Krugman — que é muito provável que exista uma tendência dentro do capitalismo de que a rentabilidade do capital se situe acima da taxa de crescimento da economia, o que significa que a classe capitalista irá se apropriar de uma fatia cada vez maior da renda nacional, agravando as desigualdades sociais.

Pior ainda: Piketty também considera provável que os mais ricos dentro da classe capitalista tenham maiores facilidades para obter uma taxa de retorno superior àquela conseguida pelos capitalistas de menor dimensão, o que agravaria esse "curso natural" do capitalismo de fazer com que os super-ricos (e seus herdeiros) se apropriem de fatias crescentes da riqueza total.

Para demonstrar sua teoria, Piketty recorre ao ranking de bilionários elaborado anualmente pela revista Forbes e chega à seguinte conclusão: se agregarmos toda a riqueza possuída pela centésima milionésima parte da população mundial adulta em 1987 (ou seja, as 30 pessoas mais ricas do mundo em 1987) e compararmos esta riqueza à riqueza da centésima milionésima parte da população mundial adulta de 2010 (ou seja, as 45 pessoas mais ricas do mundo), chegaremos à conclusão de que esta riqueza cresceu a uma taxa média real anual de 6,8% (já descontada a inflação). Isso é o triplo do crescimento médio anual do conjunto da riqueza mundial (2,1%).

Os super-ricos, portanto, estão cada vez mais ricos, segundo Piketty. E estão mais ricos não por causa de sua exitosa gestão empresarial, mas simplesmente porque acumularam uma enorme quantidade de riqueza que é capaz de se auto-reproduzir como se estivesse no piloto automático. 

Como diz o próprio Piketty em seu livro: "Uma das lições mais impactantes do ranking da Forbes é que, a partir de um determinado valor de riqueza, todas as grandes fortunas têm suas origens ou na herança ou no valor gerado por uma empresa já estabelecida no mercado, e crescem a taxas extremamente elevadas — independentemente de se seu proprietário trabalha ou não trabalha."

No entanto, Piketty dá um salto lógico inadmissível: o fato de a riqueza da camada mais rica da sociedade ter crescido a uma taxa média anual de 6,8% entre 1987 e 2010 não significa que as pessoas ricas de 1987 sejam as mesmas de 2010. 

E isso faz toda a diferença em sua teoria.

Por exemplo, se o indivíduo A foi a pessoa mais rica do mundo em 1987, tendo uma riqueza estimada em 20 bilhões de dólares, nada impede que, em 2010, este mesmo indivíduo já tenha se arruinado por completo, e que outro indivíduo, o indivíduo B, tenha se tornado a pessoa mais rica do mundo, com uma riqueza estimada em 40 bilhões de dólares.

Tendo isso em mente, será que podemos concluir que a conservação e o acréscimo de riqueza é um processo simples e automático, o qual não requer nenhuma destreza pessoal da parte de seu proprietário? É óbvio que não.

Por sorte, não há necessidade nenhuma de ficarmos apenas especulando hipóteses teóricas sobre o crescimento da riqueza dos super-ricos entre 1987 e 2010; podemos simplesmente analisar o que de fato ocorreu com os ricaços de 1987. Será verdade que a riqueza deles cresceu desde então a uma taxa de 6,8% ao ano, como afirma Piketty? Ou será que ela estancou ou até mesmo retrocedeu, fazendo com que eles tenham sido desbancados por outros criadores de riqueza?

Os dez homens mais ricos do mundo em 1987

Foi em 1987 que a revista Forbes começou a elaborar seu ranking de bilionários. Se você olhar hoje aquela lista de 1987, provavelmente irá se surpreender: você não conhecerá praticamente ninguém. E não, a razão disso não é que a maioria daqueles bilionários morreu; a razão é que praticamente todos eles viram seu patrimônio definhar de maneira considerável.

Comecemos pelo homem mais rico do mundo em 1987: o japonês Yoshiaki Tsutsumi, que tinha uma fortuna estimada em 20 bilhões de dólares. A última vez em que ele apareceu no ranking da Forbes foi no ano de 2006, e sua riqueza já havia encolhido para 1,2 bilhão de dólares. Descontando-se a inflação do período, isso equivalia a 678 milhões em dólares de 1987. 

Ou seja, tomando por base o poder de compra de 1987, sua fortuna caiu de 20 bilhões para 678 milhões entre 1987 e 2006, o que significa que sua riqueza encolheu 96% neste período. E, desde 2006, sua riqueza continuou em irreversível declínio, de modo que ele hoje nem sequer figura no ranking da Forbes.

No entanto, segundo Piketty, a riqueza de Yoshiaki Tsutsumi deveria ter se multiplicado por seis.

O segundo homem mais rico do mundo em 1987 também era japonês: Taikichiro Mori. Na época, ele tinha uma fortuna estimada em 15 bilhões de dólares, o que o tornaria, em 1991, o homem mais rico do mundo, superando Tsutsumi. Taikichiro Mori faleceu em 1993 e legou sua fortuna a seus filhos: Minoru Mori e Akira Mori. O patrimônio conjunto de ambos é atualmente de 6,3 bilhões, o que equivalia a 3,075 bilhões de dólares em 1987. Ou seja, a riqueza encolheu 80%.

Não consegui encontrar dados referentes às atuais fortunas dos homens (ou de seus herdeiros) que ocupavam a terceira e a quarta posição da lista de 1987, os também nipônicos Shigeru Kobayashi e Haruhiko Yoshimoto, com fortunas estimadas em 7,5 bilhões e 7 bilhões de dólares respectivamente. No entanto, o fato de que ambos estavam acentuadamente investidos no setor imobiliário japonês em 1987, e dado que este setor vivenciou uma acentuada desvalorização no período — tudo combinado ao fato de que não há quase nada na internet sobre eles (ou sobre suas famílias) —, parece sugerir que ambos não tiveram melhor sorte do que seus conterrâneos Tsutsumi e Mori.

O quinto lugar da lista de 1987 era ocupado por Salim Ahmed Bin Mahfouz, cambista profissional e criador do maior banco da Arábia Saudita (o National Commercial Bank da Arábia Saudita). Naquele ano, o saudita gozava de uma fortuna estimada em 6,2 bilhões de dólares. Em 2009, faleceu seu herdeiro, Khalid bin Mahfouz, com uma riqueza estimada em 3,2 bilhões de dólares, que equivaliam a 1,7 bilhão em dólares de 1987. Ou seja, um empobrecimento de 72,5%.

O sexto lugar da lista era ocupado pelos irmãos Hans e Gad Rausing, donos da multinacional sueca Tetra Pak. Ambos detinham um patrimônio estimado em 6 bilhões de dólares. Atualmente, Hans Rausing, já com 92 anos de idade, possui um patrimônio estimado em 12 bilhões de dólares, e ocupa a 92ª posição entre os mais ricos do mundo. Gad morreu no ano 2000, mas estima-se que seus herdeiros possuem uma fortuna de 13 bilhões de dólares. No total, portanto, a fortuna de ambos passou de 6 bilhões de dólares para 25 bilhões. No entanto, descontando-se a inflação do período, o enriquecimento de ambos foi muito menor: de 6 bilhões para 12,2 bilhões, o que equivale a uma taxa média de rentabilidade anual de 2,7%. Muito abaixo dos 6,8% sugeridos por Piketty.

O sétimo lugar era ocupado por um trio de irmãos: os irmãos Reichmann, proprietários da Olympia and York, uma das maiores imobiliárias do mundo. Sua riqueza também era estimada em 6 bilhões de dólares. No entanto, cinco anos depois, a empresa protagonizou uma das mais estrondosas bancarrotas da história, a qual reduziu seu patrimônio a apenas 100 milhões de dólares. Um dos irmãos, Paul, conseguiu se recuperar das cinzas e hoje a riqueza de seus herdeiros está estimada em 2 bilhões de dólares, equivalentes a 975 milhões em dólares de 1987. Ou seja, uma perda de 84%.

A oitava posição estava ocupada por outro japonês, Yohachiro Iwasaki, com uma fortuna estimada em 5,6 bilhões de dólares. Seu herdeiro, Fukuzo Iwasaki, morreu em 2012 com um patrimônio de 5,7 bilhões, equivalentes a 2,8 bilhões em dólares de 1987: ou seja, uma perda patrimonial de 50%.

Melhor sorte teve o nono homem mais rico do mundo em 1987: o canadense Kenneth Roy Thomson, proprietário da Thomson Corporation (hoje parte do grupo Thomson Reuters). Naquele ano, Kenneth desfrutava um patrimônio de 5,4 bilhões de dólares; quando morreu, em 2006, havia conseguido incrementá-lo para 17,9 bilhões, equivalentes a 9,3 bilhões em dólares de 1987. Neste caso, sua média de retorno anual foi de 2,9%. De novo, muito abaixo dos 6,8% certificados por Piketty.

Finalmente, em décimo lugar estava Keizo Saji, com um patrimônio de 4 bilhões de dólares. Saji morreu em 1999 com uma fortuna de 6,7 bilhões de dólares, a qual, descontando-se a inflação do período, equivalia a 4,6 bilhões em dólares de 1987. Ou seja, uma taxa média de retorno anual de 1,1%.

A extremamente complicada conservação do capital

Ludwig von Mises já alertava para a inevitabilidade deste fenômeno ainda na década de 1940:



Em uma economia de mercado, naquela em que há liberdade de empreendimento, e ausência de privilégios e protecionismos estatais, a riqueza de um indivíduo representa a recompensa concedida pela sociedade pelos serviços prestados aos consumidores no passado. E esta riqueza só pode ser preservada se ela continuar a ser utilizada — isto é, investida — no interesse dos consumidores. 

Atribuir a cada um o seu lugar próprio na sociedade é tarefa dos consumidores, os quais, ao comprarem ou absterem-se de comprar, estão determinando a posição social de cada indivíduo. Os consumidores determinam, em última instância, não apenas os preços dos bens de consumo, mas também os preços de todos os fatores de produção. Determinam a renda de cada membro da economia de mercado.

Se um empreendedor não obedecer estritamente às ordens do público tal como lhe são transmitidas pela estrutura de preços do mercado, ele sofrerá prejuízos e irá à falência. Outros homens que melhor souberam satisfazer os desejos dos consumidores o substituirão.

Os consumidores prestigiam as lojas nas quais podem comprar o que querem pelo menor preço. Ao comprarem e ao se absterem de comprar, os consumidores decidem sobre quem permanece no mercado e quem deve sair; quem deve dirigir as fábricas, as fornecedoras e as distribuidoras. Enriquecem um homem pobre e empobrecem um homem rico. Determinam precisamente a quantidade e a qualidade do que deve ser produzido. São patrões impiedosos, cheios de caprichos e fantasias, instáveis e imprevisíveis. Para eles, a única coisa que conta é sua própria satisfação. Não se sensibilizam nem um pouco com méritos passados ou com interesses estabelecidos.

Contrariamente ao que muitos imaginam, e ao que Thomas Piketty pretende demonstrar, não é nada simples conservar seu patrimônio em uma economia de mercado: este sempre estará ao sabor (1) das volúveis e inconstantes preferências dos consumidores, (2) do surgimento de novos concorrentes que podem acabar roubando sua fatia de mercado, ou (3) de um possível reajuste (e posterior colapso) do preço dos seus ativos. É falso dizer que há um valor acima do qual a acumulação de capital passa a ocorrer de modo quase automático.

Ao contrário, aliás: quanto maior for o patrimônio pessoal de um indivíduo, mais complicado será fazê-lo crescer: as oportunidades para reinvestir todo o seu capital a altas taxas de retorno são muito escassas, a menos que se queira arriscar e se aventurar em outros mercados, nos quais não se tem nenhuma vantagem comparativa. 

As mesmas razões que fazem com que um estado grande seja um péssimo gestor de capitais servem para explicar por que os bilionários vão ficando sem ideias e aptidões para gerenciar sua fortuna — até o ponto em que não mais são capazes de se reinventarem continuamente, acabando por ver seu patrimônio reduzido, nem que seja apenas pela inflação. Não é à toa que a sabedoria popular a este respeito vale mais do que as elucubrações de muitos economistas míopes: from clogs to clogs in three generations[1], o que significa que a riqueza acumulada por uma geração já estará totalmente dissipada na terceira geração.

Atualmente, com efeito, nem sequer são necessárias três gerações. Bastam três décadas para se perder quase tudo.

Em 2013, os sobrenomes Tsutsumi, Mori, Reichmann, Iwasaki e Saji eram praticamente irrelevantes. Da mesma maneira, em 1987, muitos dos homens mais ricos da atualidade — Bill Gates, Amancio Ortega, Larry Ellison, Jeff Bezos, Larry Page, Sergey Brin, Mark Zuckerberg — estavam trabalhando em uma garagem, ou estavam fazendo faculdade, ou estavam brincando no jardim de infância. Nenhum herdou sua atual fortuna. Veremos quantos deles seguirão na lista dentro de três décadas.
[1] Clogs é um tipo de sapato barato, feito inteiramente de madeira e comumente utilizado por operários que realizam trabalho pesado.


Juan Ramón Rallo é diretor do Instituto Juan de Mariana e professor associado de economia aplicada na Universidad Rey Juan Carlos, em Madri.  É o autor do livro Los Errores de la Vieja Economía.