domingo, 21 de dezembro de 2014

NA FILA PARA SER FELIZ

Domingo à tarde. Perto de um parque na zona oeste paulistana. Bikes por toda parte. Calor. No passado, dizia-se que domingo era dia para descansar. Hoje, descansa-se mais em certos empregos do que cumprindo a função social de lazer.


Uma fila gigantesca de carros entope a rua. A região, invadida por bikes de domingo e por frequentadores do parque, vira um pequeno inferno em busca do lazer.

Traço irônico esse: a busca pela felicidade e pelo descanso torna-se uma visita ao inferno.

Mesmo aqueles que não partilham da busca infernal pela felicidade de domingo sofrem com a invasão do espaço cotidiano. E muitos, acostumados com o modelo de "mundo parque temático" em que vivemos, nem chegam a perceber o ridículo daquele acúmulo de gente na fila para ser feliz.

Pode-se imaginar a pressão dentro dos carros. Percebe-se que, provavelmente, muitos deles e seus "habitantes" vêm de longe em busca de lazer "para as crianças".

Dentro dos pequenos carros (claro que há também aqueles coreanos, que mais parecem ambulâncias zero quilômetro), podemos imaginar a irritação da mulher com seu marido por não ter sido capaz, ainda, de trocar o carro por um com ar-condicionado. Mesmo porque ainda paga a centésima prestação do pequeno micro-ondas com rodas.

O marido, por sua vez, como todo marido humilhado no cotidiano pelo sentimento de que deve engolir sapos por sua família, permanece em silêncio para não piorar as coisas. Afinal, é domingo e ele ainda tem esperança de "comparecer" com a patroa.

Esse tipo sumiu das "representações sociais masculinas". Agora só sobraram os malditos machões idiotas e os sensíveis, que fazem manifesto porque não aguentam o tranco da responsabilidade insustentável de ser "chefe de família". Na pré-história, esse tipo comum, ridicularizado por todos, foi essencial para a sobrevivência da espécie.

E a mulher? Coitada. Cansada de ser mãe, mulher, profissional esmagada pela pressão de ter que dividir gastos com um marido já não tão interessante, já sem muitos horizontes, tem ainda que controlar as duas crianças (pior se forem três...) que gritam no banco de trás, se batem e se mordem, sonhando com o parque que se aproxima na velocidade de cágado com que a fila se move.

Ficar em casa, nem pensar! Talvez o humilhado "homem sério", pai de família, até cogitasse ficar vendo o "Corintia", mas a mulher afundaria num tédio insuportável, e os maridos preferem filas de horas no calor do que encarar uma mulher entediada no domingo.

Um pouco mais à frente, uma van com umas oito ou dez pessoas. Pouco se pode dizer sobre o que vem a ser "aquilo", além de uma "mancha humana", como diria Kafka. Mas ouve-se seu péssimo gosto musical de longe. Além, claro, da gritaria de gente sonhando em ser feliz no domingo no parque.

No meio de tudo isso, pessoas atravessando a rua sem olhar para os carros como se fossem imunes à morte. De onde vem esse empoderamento da má educação, que agora passa por cima de todo mundo na sua busca feroz por alegria?

Por um instante me lembro da barata de Kafka ("Metamorfose"), personagem a esta altura conhecido de muitos, apesar de, talvez, tristemente mal compreendido.

Gregor Samsa, jovem que acorda um dia transformado num gigantesco inseto marrom (que carinhosamente assumimos como sendo uma barata), de cara, teme por perder seu bonde para o serviço e, consequentemente, perder seu emprego.

Estranha fidelidade essa ao emprego que faz alguém temer mais perdê-lo do que chorar por ter virado uma barata. Confessemos: todos nós o entendemos, mesmo que, possivelmente, sejamos mais chiques do que ele.

Gregor-barata um dia descobre que pode andar pelo teto e pelas paredes com suas centenas de perninhas que colam na superfície, graças a um sofisticado sistema de gosma marrom que deixa um rastro por onde passa.

Algum profissional especializado em palestras motivacionais poderia citar esse momento como algo "inspiracional" para a nova condição barata de Gregor, a fim de mostrar o "lado positivo" que tudo tem.

A fila de carros no parque também deixa seu rastro marrom.
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

SEIS PROVAS DE QUE O MOTORISTA BRASILEIRO É UM OTÁRIO

Especialista critica medidas adotadas no Brasil em nome da segurança do trânsito e lembra exemplos do passado que caíram no esquecimento por fugirem ao bom senso


Todo motorista brasileiro é um otário. Ou, ao menos, é feito o tempo todo de otário pelas autoridades do trânsito do País, segundo o especialista em trânsito Ronaldo de Breyne Salvagni, professor titular e coordenador do Centro de Engenharia Automotiva da Escola Politécnica da USP e conselheiro da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva. Confira abaixo cinco exemplos de fatos que comprovam a afirmação e a íntegra do artigo onde o especialista explica a sua opinião:

Alguém lembra do "kit de primeiros socorros", que todo carro foi obrigado a ter há alguns anos atrás? Foi uma festa de lucros para os seus fabricantes, mas a coisa era tão escandalosamente inútil (não era necessário para pequenos ferimentos, e era inútil para qualquer ferimento maior) que o bom senso prevaleceu e a lei não durou muito tempo.

Entretanto, um outro "conto do vigário", tão inútil e tão lucrativo para os respectivos fabricantes como aquele "kit", permanece vivo: o do "extintor de incêndio veicular". Trata-se de mais uma "jabuticaba" - só existe no Brasil. Nenhum outro país exige esse acessório, por razões óbvias: é desnecessário para pequenos focos de fogo (que podem ser apagados por simples abafamento), e insuficiente e inútil para incêndios maiores. Essa inutilidade já foi declarada por entidades técnicas no Brasil, mas ninguém levou isso em conta. Note-se que o extintor é até mais lucrativo que aquele "kit de primeiros socorros", pois exige manutenção e trocas periódicas, regiamente cobradas, o que não acontecia com o "kit". Agora, com desfaçatez impressionante, anuncia-se mais um passo na exploração do motorista: a obrigatoriedade de trocar todos os extintores antigos (e pagar caro) por um "novo modelo" a partir de 2015.

É verdade que quem compra carro no Brasil já é visto como otário, por estrangeiros: paga-se, em muitas prestações, cerca de duas vezes mais do que o preço do mesmo modelo em outros países, notadamente nos Estados Unidos ou na Europa. Para proteger esse esquema, os carros importados são enormemente taxados, e todos acham isso normal.

Mas a exploração do motorista brasileiro não fica só nisto, nem é de agora. Alguém lembra da "plaqueta", uma plaquinha de metal com o ano corrente que era rebitada sobra a placa traseira do veículo, e que precisava ser trocada todo ano no licenciamento, sendo também (obviamente) cobrada? Essa plaqueta não existe mais, porém outros esquemas tão ou mais lucrativos continuam aparecendo. Periodicamente, os modelos das placas são trocados, obrigatoriamente. Entre 1941 e 1969 eram seis números, passou para duas letras e quatro números entre 1969 e 1990, e de lá até hoje são três letras e quatro números. Todos os proprietários tiveram que trocar as placas dos seus veículos nessas ocasiões, e pagar por isso. Depois vieram as "placas refletivas", mais caras. O próximo passo na exploração do motorista brasileiro já foi dado: os jornais informam que todos terão que adotar o "modelo Mercosul" a partir de 2016. Os fabricantes de placas já estão felicíssimos, comemorando mais esta conquista.

É impressionante a criatividade para encontrar novas formas de "bullying" a serem aplicadas aos motoristas. Em São Paulo, noticiou-se que a velocidade máxima atual de 90 km/h será reduzida "por causa dos acidentes ocorridos nas madrugadas devido a "rachas"". Ora, esses acidentes (em rachas!) já não ocorreram em velocidades muito superiores ao limite de 90 km/h? De que vai adiantar reduzir esse limite? O fato é que, com os modernos radares atuais, é fácil flagrar qualquer veículo em velocidade superior à permitida, e baixar o limite (especialmente nas marginais de São Paulo) vai aumentar significativamente a arrecadação de multas sem maiores esforços nem investimentos. Mais uma maneira de arrancar dinheiro do motorista. Na mesma linha, noticiou-se que os limites de velocidade nas vias centrais de São Paulo (normalmente congestionadas) também serão reduzidos, para "proteger aqueles mais vulneráveis no trânsito, como pedestres e ciclistas". O mais impressionante é que os argumentos são apresentados sem nenhuma fundamentação técnica, não é mostrada nenhuma evidência estatística da correlação entre os acidentes alegados e a velocidade dos veículos. Vai haver, isso sim, mais multas, e mais arrecadação.

O estereótipo do "brasileiro cordial" é verdadeiro, em parte devido ao desconhecimento dos seus direitos e do respeito que lhe é devido como cidadão - desta forma, ele fica vulnerável aos "espertos" e às "autoridades" em geral, que se aproveitam disso. A exploração do motorista brasileiro é apenas a ponta do "iceberg".

Como disse Cícero, e poderíamos parafrasear agora: "Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?"

Por: Ronaldo de Breyne Salvagni - Professor Titular e Coordenador do Centro de Engenharia Automotiva da Escola Politécnica da USP e conselheiro da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva Publicado no Estado de S. Paulo




"VOCÊ ESTAR COMUNISTO?"

Seria ingênuo acreditar que o PT não está cumprindo uma etapa para a instauração de um regime totalitário


O falecido Jean Mellé, fundador e diretor do “Notícias Populares”, que se tornaria um clássico do jornalismo de escândalo, era um refugiado romeno que tinha sólidas razões para odiar o comunismo. Grande e musculoso, de vez em quando agarrava um de seus subordinados pela goela e, com um olhar feroz de grão-inquisidor, perguntava: “Você estar comunisto?”. Se a resposta fosse “Não”, ele se dava por satisfeito.

Em noventa por cento dos casos, o interrogado era um membro do Partido e saía rindo do patrão cujo poder ameaçador se neutralizava a si mesmo com uma dose patética de ingenuidade.

Na verdade, Mellé não era nada ingênuo. Conhecia de trás para diante a ambiguidade escorregadia da conduta dos comunistas. Não tinha a menor ilusão de que andassem com foice e martelo estampados na testa ou declarassem de bom grado sua identidade ideológica. Contentava-se com a resposta sumária somente porque não dominava a língua nacional o suficiente para encompridar a discussão. Queria apenas infundir um pouco de medo no coração dos comunas, e conseguia. Eles vingavam-se com risadinhas forçadas que espalhavam o mito do adversário simplório, grandão bobo que até crianças poderiam enganar. Mentiam, e mentiam sobre a mentira: ocultavam sua filiação partidária e fingiam que tinham conseguido ludibriar “a direita”. A satisfação com que se entregavam a esse empreendimento acabava por se impregnar nas suas mentes, transfigurando o fingimento ocasional numa sintomatologia histérica completa e o autoengano num estilo de vida permanente.

Decorrido meio século, o movimento comunista ainda tem no jornalismo brasileiro um exército de colaboradores fiéis cuja tática persuasiva habitual e praticamente única consiste em inventar uma versão ridiculamente simplória do comunismo, atribuí-la aos direitistas e, demolindo-a com duas ou três piadinhas sem graça, cantar vitória, ficando assim provado que o comunismo não existe, que é apenas uma fantasia paranoica de direitistas raivosos. É o bom e velho recurso erístico do “homem de palha”, que nessas pessoas já se tornou uma segunda natureza.

Alguns dos praticantes dessa mágica besta são homens tarimbados, treinados em Havana e Praga. A prova mais patente do poder que adquiriram nas redações é a naturalidade com que estágios em centros de propaganda e desinformação na Cortina de Ferro entram nos seus currículos como provas de “experiência jornalística”, como se a técnica de mentir fosse a mesmíssima coisa que a de relatar os fatos. É óbvio que, ao menos nos velhos tempos, muitas dessas gentis criaturas eram agentes pagos de serviços secretos comunistas. Seus nomes, com atraso de meio século, vão sendo pouco a pouco revelados pelos documentos arquivados em Praga no Instituto para o Estudo dos Regimes Totalitários (v. https://www.youtube.com/watch?v=Dbt1rIg8FbI e https://www.youtube.com/watch?v=S0hcCDwS8xU). 

Outros, mais jovens, não precisaram viajar para adquirir as manhas da prosa comunista. Aprenderam-nas por aqui mesmo, em faculdades de jornalismo que os cavalheiros mencionados no parágrafo anterior transformaram em centros de adestramento da militância pelo menos desde a década de 70 do século passado.

O primeiro sinal de que você é inteligente é a sua capacidade de perceber que um outro é mais inteligente. Mutatis mutandis, o primeiro sinal de burrice é supor, sempre, que o outro é mais burro do que é. Nisso consiste o artifício de retórica erística a que me referi: O sujeito define o comunismo da maneira mais simplória e mecânica e, argumentando que esse comunismo não existe (como de fato não pode existir), conclui que todo anticomunismo é uma doença mental, fonte de violência e “crimes de ódio”.

A definição usada nesse truque é a seguinte: o comunismo é a estatização completa, repentina e ostensiva dos meios de produção e de toda propriedade particular. O governante pega o microfone e anuncia: “Olhe aqui, gente, eu sou comunista. Agora quem manda nesta porcaria é o comunismo. Passem aí as suas propriedades ou vão para o Gulag.”Para tipos como o sr. Jô Soares e outras cabeças iluminadas que guiam o pensamento nacional, o fato de que isso nunca tenha acontecido é a prova cabal de que o perigo comunista não passa de uma invencionice criada para justificar um golpe de Estado ou coisa pior.

Em contraste com essa desconversa vagabunda, vejamos o que é o comunismo de verdade, na sua teoria e na sua prática no mundo.

Karl Marx ensinava que a estatização dos meios de produção – etapa inicial da construção do socialismo – seria um processo complexo que deveria se estender por muitas décadas ou séculos, e que não poderia nem mesmo começar antes que os meios capitalistas de produção alcançassem o seu máximo desenvolvimento possível.

A última coisa que um governante comunista deve fazer – sobretudo se chegou ao poder pelas vias democráticas usuais e sem derramamento de sangue -- é portanto sair estatizando tudo, desmantelando a classe capitalista. Ao contrário: deve ajudar os capitalistas a ganhar o máximo de dinheiro que possam, ao mesmo tempo que os destitui dos seus meios de ação política e ideológica. A função do capitalista nessa fase do socialismo é fazer dinheiro e não dar palpite, tornando-se tanto mais próspero quanto mais politicamente inócuo e subserviente à elite governante comunista. Seduzidos pelos ganhos fáceis, os capitalistas vão transferindo aos comunistas todo o seu poder ideológico, de modo que, em prazo relativamente breve, quatro coisas acontecem:

(1) Em pleno regime de prosperidade capitalista, só há ideias comunistas em circulação. De maneira mais ostensiva ou mais camuflada, a propaganda comunista se torna o único discurso vigente na sociedade. As ideias concorrentes desaparecem ao ponto de se tornarem impensáveis. Subsistem, na melhor das hipóteses, como vagos mitos de outras épocas. Um restinho de “ideologia capitalista” permanece no ar, reduzido à apologia da eficiência econômica, que os comunistas seriam os últimos a negar.

(2) A riqueza deixa de ser um meio de ação política independente e se reduz a instrumento da propaganda comunista. Cada capitalista gasta rios de dinheiro elegendo comunistas e financiando o ódio ao capitalismo.

(3) Ter uma imensa conta bancária dá menos poder do que uma carteirinha do Partido ou um cargo público qualquer. O poder político-ideológico é transferido da burguesia para a elite partidária sem que a propriedade capitalista sofra qualquer arranhão visível.

(4) Os comunistas, por seu lado, podem tanto se gabar de ser os dominadores absolutos da situação como continuar a se fazer de vítimas indefesas da burguesia. Passam do discurso ameaçador às lágrimas de autocomiseração com a maior facilidade, e a incoerência mesma da sua atitude serve para desnortear ainda mais o adversário.

Nessa etapa, não há guerra econômica. Não se trata de tomar as propriedades dos burgueses, mas de destituí-los de seus meios de autodefesa ideológica.

Esse é o programa que o governo do PT vem cumprindo à risca, esse é o esquema comunista real e genuíno. Ele não é um homem de palha, muito menos é uma ameaça: é a realidade em que vivemos.
Por: Olavo de Carvalho Do site: http://www.dcomercio.com.br


quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

PSICOPATIA E HISTERIA

Uma elite de psicopatas sobe ao poder e se cerca de adeptos e militantes que, no afã de enxergar as coisas como seus chefes mandam, acabam desenvolvendo todos os sintomas da histeria


A saúde mental de uma comunidade pode ser aferida pela dos indivíduos que ela eleva aos mais altos postos e incumbe de representá-la. O mais breve exame do Brasil sob esse aspecto leva a conclusões que já ultrapassam a escala do alarmante e se revelam francamente aterrorizantes.

Já tivemos um presidente que achava lindo fazer sexo com cabritas, se gabava de haver tentado estuprar um companheiro de cela – prova de macheza, segundo ele – e confessava entre risos as mais cínicas mentiras de campanha. É claro que a tropa dos seus guarda-costas e marqueteiros corria, nessas ocasiões, para dar a essas declarações o sentido de meras brincadeiras, mas, supondo que o fossem, é igualmente evidente que pessoas adultas normais não se divertem com gracejos tão torpes.

Qualquer que fosse o caso, no entanto, a conduta desse cidadão não sugeria nenhuma doença mental e sim propriamente uma psicopatia – a deformidade moral profunda que sufoca a voz da consciência e autoriza o indivíduo a viver de manipulações, trapaças e crimes sem nunca enxergar nisso nada de anormal.

Já mencionei, em outros artigos, o livro do psiquiatra Andrew Lobaczewski, Ponerologia: Psicopatas no Poder (Vide Editorial, 2014), em que uma equipe de médicos poloneses condensa os resultados de décadas de observação da elite comunista que dominava o país, e descreve tecnicamente o fenômeno da “patocracia”, o governo dos psicopatas.

Mas, como explica o próprio dr. Lobaczewski, quando uma elite de psicopatas sobe ao poder, ela se cerca de adeptos e militantes que não são psicopatas, mas que, no afã de enxergar as coisas como seus chefes mandam em vez de aceitar os dados da realidade, acabam desenvolvendo todos os sintomas da histeria. A histeria é um comportamento fingido e imitativo, no qual o doente nega o que percebe e sabe, criando com palavras um mundo fictício cuja credibilidade depende inteiramente da reiteração de atitudes emocionais exageradas e teatrais.

Um exemplo, já antigo, esclarecerá isso melhor.

Todo mundo conhece o deprimente episódio da discussão feia na qual a deputada Maria do Rosário xingou seu colega Jair Bolsonaro de “estuprador”. Incrédulo, o deputado perguntou:

-- Agora sou eu o estuprador?

A deputada, fria e pausadamente, confirmou:

-- É sim.

O deputado, que não é lá muito famoso pelas boas maneiras, deu-lhe uma resposta brutalmente sarcástica (“não vou estuprar você porque você não merece”) e a adversária ameaçou dar-lhe uns tapas, deixando de cumprir o intuito ante a promessa de um revide, sendo então chamada de “vagabunda” e tendo um dos mais célebres chiliques da história política nacional.

Está tudo gravado.

As circunstâncias que precederam o acontecimento são muito reveladoras. Bolsonaro tinha apresentado um projeto de lei que previa penas mais severas para os estupradores, inclusive antecipando o prazo de maioridade penal para que a punição pudesse alcançar tipos como Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha, um dos estupradores e assassinos mais cruéis que este país já conheceu.

Maria do Rosário era contra a antecipação da maioridade e defendia penas mais brandas para estupradores e assassinos de menos de dezoito anos.

O projeto do deputado Bolsonaro era aprovado por mais de 90% da população. 

Defensora de uma causa impopular, e cunhada, ela própria, de um estuprador de menores, Maria do Rosário tinha todos os motivos para ficar com os nervos à flor da pele quando se discutia estupro e menoridade. Chamar de estuprador o algoz maior dos estupradores não fazia o menor sentido, evidentemente, exceto como inversão histérica da situação real.

Do ponto de vista penal, admitindo-se que ambos os parlamentares tenham cometido delitos, o da deputada foi bem mais grave. Nosso Código Penal pune com seis meses a dois anos de detenção o crime de calúnia (imputação falsa de ato delituoso) e com apenas um a seis meses de detenção o de injúria (ofender a dignidade e o decoro de alguém). Pior: a lei concede atenuante ao delito de injúria se é cometido em revide a insulto anterior, e um segundo e maior atenuante se o revide foi imediato. Os dois atenuantes aplicavam-se à conduta do deputado Bolsonaro. Em comparação com Maria do Rosário, ele estava praticamente inocente no episódio.

Bem, esses são os dados objetivos da situação, mas a reação da esquerda nacional quase inteira, seguida de perto por toda a grande mídia, foi levantar um escarcéu dos diabos contra o deputado, chegando a pedir a cassação do seu mandato e apresentando Maria do Rosário como vítima inocente de uma violência verbal intolerável.

Por mais intenso que seja o ódio político que se vota a um inimigo, simplesmente não é normal inverter de maneira tão flagrante a lógica dos fatos e o seu sentido jurídico para fazer do agredido o agressor e do revide injurioso, por mais grosseiro que fosse, um crime mais grave que o de calúnia.

Pior: todos os que incorreram nessa loucura faziam-no em tom de tão profunda indignação – alguns chegando até às lágrimas --, que não pareciam, de maneira alguma, estar mentindo deliberadamente. Ao contrário: a coisa era uma inversão histérica genuína, característica, indisfarçável. E coletiva.

A passagem do tempo não parece tê-la curado, mas agravado. Ainda esta semana, como o deputado Bolsonaro relembrasse o episódio, mostrando não arrepender-se do que tinha dito a Maria do Rosário, a deputada Jandira Feghali viu nisso, não, como seria normal, uma prova de falta de educação, mas – pasmem – uma confissão de estupro. E, aos berros, exigia a cassação do mandato de Bolsonaro, alegando que “não podemos admitir a presença de um estuprador nesta Casa”. Não deixa de ser significativo que, nessa mesma semana, uma pesquisa da Universidade da Califórnia revelasse que a incapacidade de perceber o sarcasmo pode ser um sintoma de demência.

Porém ainda mais significativo é que, também na mesma semana, a deputada, lendo uma frase minha segundo a qual todos deveríamos “atirar à cara dos comunistas, em público, todo o mal que fizeram”, lançou o alarma: Olavo de Carvalho prega assassinato de comunistas!

O histérico não enxerga o que está diante dos seus olhos, mas o que é projetado na tela da sua imaginação pelo medo e pelo ódio.
Por: Olavo de Carvalho Publicado no site: http://www.dcomercio.com.br

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

E ASSIM VAI O MUNDO

1. O Real Madrid apagou a cruz de Cristo do seu distintivo. Razões comerciais: o clube espera receber financiamento árabe e não pretende ofender as sensibilidades dos torcedores muçulmanos.


A ideia parece-me excelente e, mais ainda, o início de uma parceria entre a Espanha e o Oriente Médio que poderá ser aprofundada.

Depois do distintivo do Real Madrid, não vejo por que motivo os dois países não incrementariam as suas relações –comerciais, culturais, paranormais– destruindo na Espanha todos os símbolos cristãos que sobreviveram na paisagem.

Claro que, tratando-se da Espanha, o apagamento de símbolos cristãos pode significar o apagamento de todo o país, ou quase, isso se excetuarmos a arte muçulmana mais ao sul.

Mas até isso pode ser positivo: se a Espanha se transformar em um deserto, com alguns minaretes pelo meio, tenho a certeza de que os investidores árabes irão se sentir ainda mais em casa.

2. A humanidade conseguiu enviar uma sonda para um cometa. Feito único, sem dúvida, embora ensombrado pelo caso do Dr. Matt Taylor. Melhor: pela camiseta que o Dr. Taylor, um conceituado astrofísico inglês, exibiu perante as câmeras.

Na dita cuja, era possível observar várias mulheres pin-up, com poses sensuais e trajes idem, o que provocou reações histéricas entre as histéricas –feministas que são rápidas a ver "machismo" em todo o lado, mas obviamente incapazes de realizar uma equação de primeiro grau.

O cientista, aturdido com as críticas, pediu desculpas e –imperdoável!– choramingou em público.

Já tudo foi dito sobre o caso: quando o mundo deveria estar a olhar para os céus, o interesse das feministas estava na camiseta de um cientista terráqueo.

Com a devida vênia, eu gostaria de ir ainda mais longe: a sonda do Dr. Taylor pode permitir –um dia, quem sabe– rebentar com um cometa assassino a caminho da Terra. Mas pergunto, com honestidade, se um planeta que perde tempo com a camiseta de um cientista merece mesmo ser salvo.

Dúvidas, muitas dúvidas.

3. Dois fanáticos israelenses entraram numa mesquita e mataram quatro pessoas. Três delas eram imãs em oração. Em várias cidades israelenses, a população judaica saiu à rua para festejar o ataque e agradecer a Deus. Se esse filme tivesse acontecido, o que diria o leitor?

Simples: a selvajaria não tem perdão; os festejos são imorais; os israelenses são os novos nazistas; e etc. etc.

Agora, troque: "fanáticos israelenses" por "fanáticos palestinos"; "mesquita" por "sinagoga"; "imãs" por "rabinos"; e "ruas israelenses" por "ruas palestinas". Foi o que aconteceu depois do ataque em Jerusalém. Algum comentário?

Precisamente, leitor: uma forma desesperada, mas perfeitamente justificável, de combater a ocupação sionista; e etc. etc.

4. Brendan O'Neill escreve na "The Spectator" artigo sobre as "Stepford Students" (uma referência às "Stepford Wives" do romance de Ira Levin, criaturas robóticas e tiranizadas pela ditadura "falocêntrica"). E que nos diz O'Neill? O horror, o horror: os estudantes ingleses estão mais intolerantes do que nunca.

Ele sentiu nos ossos esse clima de intimidação ideológica: convidado a falar sobre o aborto no Christ Church, em Oxford, o pobre O'Neill nem abriu a boca: as suas posições pró-vida despertaram a ira das feministas locais e de outros anões semelhantes, que por todo o lado reclamam "o direito ao conforto".

"Conforto", entenda-se, significa nunca questionar nenhuma posição progressista que possa perturbar as "ideias" que as meninas e os meninos colaram na cabeça.

Perder um minuto a tentar explicar que essa blindagem epistemológica representa um atraso cognitivo e até social (o que teria acontecido se os escravocratas também tivessem silenciado os abolicionistas do século 19 em nome do "direito ao conforto"?) é pura perda de tempo.

O caso de Brendan O'Neill é apenas um vislumbre do que será o futuro: uma espécie de nova Idade Média, em que os bárbaros politicamente corretos têm rédea solta para destruir qualquer processo de conhecimento válido –e, escondidos dentro de portas, alguns monges tudo farão para o salvar.

Razão tinha o outro: primeiro, a história é tragédia; depois, repete-se como farsa.
Por: João Pereira Coutinho  Publicado na Folha de SP

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

A IMPORTÂNCIA DO AUTOCUIDADO

Ontem, dia 1º de dezembro, foi o dia dedicado à luta mundial contra a Aids. Por anos seguidos tivemos campanhas, nacionais e regionais, alertando para os riscos da doença e as maneiras de evitar a infecção pelo HIV.

Pois é, tivemos uma epidemia de campanhas, mas elas foram controladas. Hoje, muitos jovens, que nem eram nascidos na época de intensas campanhas e reportagens, têm poucas informações a respeito dessa síndrome.

Como resultado, enfrentamos um crescimento de infectados com idade entre 15 e 24 anos. Esse é um bom motivo para conversarmos sobre como ensinar aos filhos o autocuidado. Você já evitou passar por uma rua que é considerada perigosa ou comer com frequência um alimento que não lhe faz bem e já se consultou com um médico sem ter sintoma algum. Essas atitudes revelam o autocuidado.

O primeiro passo para uma criança aprender a se cuidar é ser cuidada. Conheço muitas mães e pais que acham que cuidam dos filhos, mas, na verdade, eles os protegem de quase tudo. Protegem dos pequenos perigos do cotidiano, por exemplo: de cair, de subir em lugares mais altos do que conseguem, de usar objetos que podem machucar etc.

E proteger, nesses casos, se expressa de diferentes maneiras, mas quase sempre é impedir a criança de correr o risco. Há mesmo situações que crianças pequenas não devem experimentar porque elas ainda não têm condições de considerar todo o contexto para tomar o cuidado necessário consigo mesmas. Mas, em muitos casos, é preciso que elas experimentem, com supervisão atenta e próxima do adulto, para aprenderem a se cuidar, e não apenas serem protegidas dos riscos.

Vamos considerar dois exemplos: o uso de faca de verdade por crianças e a experimentação da busca do equilíbrio corporal em situações que exigem isso. A faca parece ter sido proibida para a criança. Mas, se ela não a usar, não aprenderá a ter cuidado para evitar se machucar, não é? E quando a criança se coloca em uma situação em que pode cair, talvez seja melhor segurar sua roupa, por exemplo, para poder ampará-la caso caia, para que ela tome consciência do que ainda não consegue realizar.

Aprender a ter cuidado com a própria saúde começa, portanto, muito cedo, com a criança sendo cuidada pelos pais, professores e adultos próximos, mas é a partir da adolescência que esse cuidado consigo mesmo pode começar a se realizar. Mas, para que isso aconteça, o jovem precisa, ainda, da ajuda dos adultos.

Para começar, as visitas ao médico podem passar a ser responsabilidade deles mesmos, apoiados e ainda acompanhados pelos pais, mas não durante toda a consulta. Os hebiatras sabem orientar jovens e seus pais nesse período. Não podemos ignorar a sexualidade dos adolescentes, o uso de drogas e os desafios que eles gostam de enfrentar, por isso é importante que eles tenham todas as informações necessárias para se cuidar.

A escola poderia ajudar, mas tem feito pouco nesse sentido porque sua grande –quase exclusiva– preocupação tem sido a transmissão de conteúdos. Mas informação não se torna conhecimento se não fizer sentido para quem a tem.

Promover o autocuidado é ensinar a amar a vida, a evitar riscos desnecessários, a conter a impulsividade inconsequente e a reconhecer e avaliar situações de perigo para viver da melhor forma possível.
Por: Rosely Sayão Publicado na Folha de SP

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

FRANCIS E O PETROLINHO

Naquele outubro de 1996, no café da manhã antes da gravação, Francis estava de mau humor. Era normal. Acabava de sair da cama.


Meia hora depois ele estava de bom humor. Era normal. Nossa conversa na copa antes de gravar era fiada. Francis não falou em Petrobras. No meio do programa, ele jorrou denúncia e transcrevo a gravação:

Francis: "Os diretores da Petrobras todos põem o dinheiro lá...(Suíça) tem conta de 60 milhões de dólares..."

Lucas: "Olha que isso vai dar processo..."

Francis: "É...um amigo meu advogado almoçou com um banqueiro suíço e eles falaram que bom mesmo é brasileiro (…) que coloca 50 milhões de dólares e deixa lá".

Lucas: "Os diretores da Petrobras tem 50 milhões de dólares?"

Francis: "Ahh é claro... imaginem... roubam... superfaturamento...é a maior quadrilha que já existiu no Brasil".

Foi além, mas não deu nomes dos diretores. Nem citou fontes. No próprio programa, o número variou de US$ 50 milhões para 60 milhões. Preocupado, perguntei se queria que cortasse a denúncia, embora o programa, depois de gravado, só sofra cortes por tempo. Francis disse que não.

Na imprensa, numa escala de 1 a 10 em repercussão, a denúncia do Francis mal registrou uns 2 pontinhos. Saíram notas em colunas. Ninguém cobrou da Petrobras. Não sei por que o Francis nunca levou a denúncia para os poderosos Globo, Estadão e Jornal da Globo, onde trabalhava, além do Manhattan Connection, e tinham calibre muito mais grosso do que o GNT.

Seria o poder da Petrobras de silenciar a mídia com sua publicidade? Ou sua reputação na época estava acima de qualquer suspeita? A limitada audiência do canal?

Em novembro, Francis anunciou no programa, também sem aviso prévio, que estava sendo processado pelos diretores da Petrobras, que "queriam US$ 100 milhões de indenização". Na primeira página da carta de intimação dos advogados dos diretores aparecem sete nomes, mas não há este número.

Ainda não descobri de onde saiu. Estes valores quase nunca constam da primeira comunicação entre o processador e o processado.

E pagou sete mil...

Francis entrou num inferno legal. Por sugestão do amigo Ronald Levinsohn, contratou uma advogada e pagou US$ 7 mil. Quando comentei que não era muito, o Francis ficou furioso. Disse que eu não sabia das finanças dele. Até que sabia, porque ele me contava, mas uma só defesa num processo grande poderia destruir a poupança dele. Se perdesse, ficaria arruinado por muito menos do que US$ 100 milhões.

Repercussão na imprensa sobre o processo? Mínima. Saíram notas sobre os assombrosos US$ 100 milhões.

'Arrasado'

Em dezembro, Francis foi passar o Ano Novo em Paris com Sonia Nolasco, Diogo e Anna Mainardi. Diogo disse que ele parecia arrasado. Poucas semanas depois, em janeiro, ligou para o Diogo animadíssimo. Tudo estava sob controle. Diogo comentou com a mulher que o Francis devia ter tomado a bolinha certa naquele dia.

É possível que Paulo Mercadante, seu advogado no Brasil e amigo desde os tempos de Pasquim, tenha informado a ele que o processo não poderia correr na Justiça americana, porque o programa não ia ao ar nos Estados Unidos. Este tipo de processo no Brasil está mais para um punhado de reais do que para os absurdos US$ 100 milhões que assombravam o Francis.

Dia 31 de janeiro, Francis apareceu na gravação passando a mão no ombro esquerdo e se queixando de dor. Saiu direto para o médico, Jesus Cheda, tomar uma injeção de cortisona, como sempre fazia quando estas dores apareciam. Bursite, dizia.

Quatro dias depois, terça-feira, por volta de 5 da manhã, Francis sofreu um fulminante ataque cardíaco e caiu morto no meio da sala, onde ainda estava quando cheguei. O telefone não parava, Sonia não atendia. Atendeu um deles, do presidente Fernando Henrique Cardoso, que deu uma bronca póstuma no Francis pela irresponsabilidade com a própria saúde.

Francis, havia muitos anos, tinha parado de tomar porres, de fumar e de comer bifões crus. O controle da Sonia deu resultado, mas o controle não resolveu o problema da saúde preventiva nem o sedentarismo. Ela não conseguia levá-lo a médicos sérios para fazer check-ups regulares.

Cheesebúrgueres

Melhorou a dieta, mas continuou chegado nos cheesebúrgeres do PJ Clarke's na frente da Globo na hora do almoço e comida chinesa perto da casa dele, onde fez sua última ceia, no Chiam. Parecia um touro de forte. Teve tumores benignos no pescoço, mas não adoecia e nunca deixava de trabalhar. Nem fazia exercício, Nunca. O máximo era uma caminhada semanal com Elio Gaspari do restaurante Bravo Gianni ao museu Metropolitan, para queimar calorias.

Era o dia favorito dele. As noites favoritas eram no balé, com Sonia, ou assistindo óperas e filmes antigos em casa. O último na noite da morte, foi Notorious (Interlúdiono Brasil), de Hitchcock, com Cary Grant e Ingrid Bergman. Da denúncia à morte de Francis foram quatro meses.

Os diretores da Petrobras foram atrás do espólio e da viúva Sonia Nolasco, mas, em parte, por intervenção do presidente Fernando Henrique Cardoso e do próprio advogado, Paulo Mercadante, desistiram do processo. Felizmente o Brasil não desistiu. O petrolinho do profético Francis gerou o Petrolão. A operação Lava Jato deveria ser rebatizada Operação Paulo Francis.

Por: Lucas Mendes De Nova York para a BBC Brasil

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

CRIME AMEAÇA A DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA.


Pesquisa realizada pelo Projeto Opinião Pública da América Latina, da Universidade Vanderbilt, revela que o medo é crescente na região, que tem a maior taxa de homicídios do mundo. No Brasil e na Venezuela, por exemplo, é grande a sensação de que impera a impunidade e a corrupção campeia. Não é à toa que apenas na AL é que ainda se cultivam as ideias socialistas, o antiliberalismo e o anticapitalismo. Do jornal O Globo:

A violência e a criminalidade constituem os principais fatores de instabilidade para as democracias da América Latina, determinados pela desconfiança nas instituições por parte dos cidadãos, os quais, em geral, se inclinam a políticas de pulso firme e baixa qualidade democrática, que podem acabar em violações de direitos fundamentais. Essa é uma das principais conclusões do Barômetro das Américas 2014, uma pesquisa realizada pelo Projeto Opinião Pública da América Latina, da Universidade Vanderbilt.

O relatório preliminar apresentado em Nova York, com base em 50 mil entrevistas feitas em 28 países, aponta que a persistência da criminalidade e da violência em América Latina e Caribe conduzem a “democracias em risco”, nas quais ganham terreno a centralização do poder e, nos casos mais extremos, as soluções populistas, ilegais ou violentas, como os grupos paramilitares, as patrulhas populares ou a condescendência com os linchamentos públicos.

A América Latina e o Caribe experimentaram avanços em suas economias na última década. O número de pessoas que vivem com menos de US$ 2,50 por dia caiu pela metade, e a classe média cresceu. Mas os desequilíbrios continuam sendo enormes, 80 milhões de latino-americanos vivem na pobreza extrema, e mais de 40% acreditam que a economia do seu país piorou no último ano. Certo pessimismo, unido à sensação de insegurança, estende-se pelo continente, o que provocou um retrocesso nos indicadores de legitimidade democrática desde 2012.

Os pesquisadores Mitchell Seligson e Elizabeth Zechmeister, da Universidade Vanderbilt, apresentaram os dados.

— Somos acadêmicos, não políticos. Claro que os governos da América Latina têm ferramentas melhores do que nós para adotar políticas que solucionem esses problemas — comentaram Seligson e Zechmeister na sede da instituição Sociedade das Américas/Conselho das Américas.

Se há uma tendência clara ao longo da última década nas Américas é a de seus cidadãos se preocuparem muito mais com a criminalidade do que há dez anos. Um em cada três entrevistados considera que esse é o problema mais importante que o seu país enfrenta. Entre os pesquisados, 17% já foram vítimas de algum crime, uma cifra que permanece constante desde 2004, e cerca de 40% admitem ter medo de andar por certas áreas de seu próprio bairro. É um problema urbano.

A América Latina e o Caribe têm a maior taxa de homicídios do mundo: 23 assassinatos a cada 100 mil habitantes em 2012, segundo dados das Nações Unidas. É mais do que o dobro da taxa na África Subsaariana (11,2 homicídios a cada 100 mil pessoas), a segunda região nesse ranking. Um em cada três homicídios no mundo ocorre na América, e 30% deles estão relacionados à atuação de quadrilhas. A América Central supera a média, com 34 homicídios a cada 100 mil habitantes. Na América do Sul, a taxa é de 17.

Há uma década, a economia era, com uma ampla vantagem, o que mais preocupava a população (60,3%), com a segurança em segundo lugar (22,5%). Desde 2004, o panorama mudou. A economia é vista agora como a principal preocupação para 35,8%, seguida de perto pela criminalidade (32,5%). O Peru (com 30,6% dos entrevistados), o Equador (27,5%), a Argentina (24,4%) e a Venezuela (24,4%) são os países onde mais pessoas declararam ter sido vítimas de algum crime.

O medo na América Latina está em seu ponto mais alto na última década. Um total de 40% dos entrevistados admite evitar certas áreas de sua vizinhança, outros 35% têm uma sensação de insegurança nos meios de transporte públicos, e 37% nas escolas. Nesses dois últimos quesitos, a Venezuela está à frente dos demais países. A violência também influencia no desejo de emigrar, que aumentou em 2014 em relação aos anos anteriores.

Metade dos entrevistados expressa sua insatisfação com os organismos de segurança. Bolívia, Venezuela, Peru, Haiti e México são os países onde, nessa ordem, as forças de segurança têm a pior imagem. Um em cada três entrevistados relata que sua polícia demora pelo menos uma hora para atender a uma denúncia de roubo ou, simplesmente, não aparece.

O ano de 2014 marca o ponto em que a confiança na justiça cai a seu nível mais baixo na última década. A sensação de impunidade cresce na região. Venezuela, Brasil, Chile, Bolívia, Peru e México são os países nos quais os cidadãos mais registram essa percepção.

Consequentemente, 55% dos entrevistados são partidários de políticas duras para determinados crimes, contra os 29% que preferem políticas preventivas. São comuns os relatos sobre linchamentos em alguns países ou sobre formas de autodefesa, como ocorre no México. Em relação à pesquisa de 2012, a tendência a recorrer a soluções desse tipo passou de 28,9 para 32, em uma escala de 100.

A percepção em relação à corrupção não melhorou. Um em cada cinco entrevistados pagou algum tipo de propina nos últimos 12 meses. Cerca de 80% deles consideram que a corrupção é comum ou muito comum em seus governos.

O Barômetro mostra um apoio indiscutível ao sistema democrático como forma de governo, mas esse sentimento também sofreu uma queda a seus níveis mais baixos em dez anos. Na sondagem de 2012, esse critério atingia 71 pontos sobre 100, neste ano caiu para 69. As Forças Armadas e a Igreja Católica são as instituições com mais apoio na região. Os que menos recebem apoio são os parlamentos e, principalmente, os partidos políticos. Publicado no site:http://otambosi.blogspot.com.br/

domingo, 7 de dezembro de 2014

LULA, DILMA E A PORTA DO INFERNO

No final da campanha para as eleições presidenciais de 2002, reza a lenda, o futuro ministro Antonio Palocci pegou o candidato pelo braço e mostrou a ele as portas do inferno, ou melhor, os preços negociados nos mercados futuros da BM&F.


Segundo ele, com o dólar acima de R$ 4,00, as projeções de inflação superando 15% ao ano e as cotações das principais ações brasileiras no chão, o futuro governo petista morreria antes de começar a governar.

Lula entendeu o recado dos pregões da BM&F –a maior e mais líquida Bolsa de Futuros do mundo emergente–, mudou seu discurso e publicou a famosa Carta ao Povo Brasileiro.

Algo parecido deve ter ocorrido agora com a presidenta Dilma. Sem a confiança dos principais agentes econômicos, e com as nuvens no horizonte político carregadas pelo escândalo da Petrobras, a repetição do fracasso do primeiro mandato na economia seria mortal para seu governo. Talvez tenha sido a porta do inferno político –mais do que a BM&F– que tenha obrigado Dilma Rousseff a romper com suas convicções econômicas.

Mas é importante qualificar as mudanças de agora para que não se criem expectativas falsas em relação a esses dois episódios marcantes da história recente da política no Brasil. Quando Lula mudou seu discurso e entregou a Meirelles e Palocci o comando da economia, o crescimento chinês começava a chegar à economia brasileira via o canal dos preços de nossos principais produtos de exportação.

Além dessa força expansionista externa, a economia brasileira tinha vários segmentos importantes com elevada capacidade ociosa, o que permitia um ganho rápido de produtividade caso houvesse uma expansão vigorosa da demanda.

O desemprego de mais de 12% da população economicamente ativa –PEA– garantia um mercado de trabalho favorável às empresas, com muito pouca pressão por maiores salários. O volume de crédito na economia era muito baixo, principalmente no segmento de financiamento aos bens de consumo.

Nossa infraestrutura econômica –portos e estradas, principalmente– não tinha sinais de congestionamento. E, finalmente, a valorização do real ante ao dólar, em razão do rápido ajuste de expectativas, provocou um choque de deflação via os produtos precificados em dólares, fazendo com que a inflação convergisse, sem grandes esforços do Banco Central, na direção do chamado centro da meta.

A conjuntura econômica no segundo mandato da presidenta Dilma será completamente diferente da encontrada por Lula em 2003. O mercado de trabalho está ainda muito pressionado, com a taxa de desemprego na mínima histórica, e a China de hoje nada tem de semelhante com a existente nos anos Lula.

O consumidor brasileiro está endividado, com pouco espaço para alavancar sua renda pessoal.

Finalmente, a inflação estará acima dos 7% ainda na primeira metade de 2015 depois dos ajustes que serão feitos em preços controlados importantes.

Os primeiros dois anos do segundo mandato de Dilma serão de ajustes importantes –recessivos, como gostam de carimbar os economistas do PT jogados agora na oposição ao governo– e que na melhor das hipóteses manterão a economia crescendo algo perto de 1% ao ano.

A única força de expansão que estará atuando será um ajuste positivo na expectativa de consumidores e empresas, pois estavam todos esperando uma catástrofe que agora não virá. Mas esse ajuste não virá de imediato, pois muitos vão trabalhar com a hipótese de vida curta para o ministro das mãos de tesouras.

Por essas razões a mudança inesperada da política econômica –de forma diversa da ocorrida com Lula em 2003– encontrará desafios mais difíceis e exigirá da equipe econômica muito bom senso para não exagerar na dose de ortodoxia. De qualquer forma, temos que receber as decisões tomadas pela presidenta com palmas e esperar que ela tenha sucesso na sua empreitada.

Talvez fosse mais fácil, para um analista como eu, jogar no time de que tudo vai dar errado e continuar a apostar no caos. Mas não me parece a atitude correta neste momento, até porque a probabilidade de sucesso é bem maior do que o mercado financeiro vem precificando. 
Por: Luiz Carlos Mendonça de Barros Publicado na Folha de SP

DESEJO DE MATAR

Amigos e leitores pedem-me uma opinião sobre o aborto. Mas, inclinado por natureza à economia de esforço, meu cérebro se recusa a criar uma opinião sobre o quer que seja, exceto quando encontra um bom motivo para fazê-lo. Diante de um problema qualquer, sua reação instintiva é apegar-se ferozmente ao direito natural de não pensar no caso. Mas, ao argumentar em favor desse direito, ele acaba tendo de se perguntar por que afinal existe o maldito problema. Assim, o que era uma tentativa de não pensar acaba por se tornar uma investigação de fundamentos, isto é, o empreendimento mais filosófico que existe. Os futuros autores de biografias depreciativas dirão, com razão, que me tornei filósofo por mera preguiça de pensar. Mas, como a preguiça gradua os assuntos pela escala de atenção prioritária mínima, acabei por desenvolver um agudo sentimento da diferença entre os problemas colocados pela fatalidade das coisas e os problemas que só existem porque determinadas pessoas querem que existam.


Ora, o problema do aborto pertence, com toda a evidência, a esta última espécie. O questionamento do aborto existe porque a prática do aborto existe, e não ao contrário. Que alguém decida em favor do aborto é o pressuposto da existência do debate sobre o aborto. Mas o que é pressuposto de um debate não pode, ao mesmo tempo, ser a sua conclusão lógica. A opção pelo aborto, sendo prévia a toda discussão, é inacessível a argumentos. O abortista é abortista por decisão livre, que prescinde de razões. Essa liberdade afirma-se diretamente pelo ato que a realiza e, multiplicado por milhões, se torna liberdade genericamente reconhecida e consolidada num "direito". Daí que o discurso em favor do aborto evite a problemática moral e se apegue ao terreno jurídico e político: ele não quer tanto afirmar um valor, mas estatuir um direito (que pode, em tese, coexistir com a condenação moral do ato).

Quanto ao conteúdo do debate, os adversários do aborto alegam que o feto é um ser humano, que matá-lo é crime de homicídio. Os partidários alegam que o feto é apenas um pedaço de carne, uma parte do corpo da mãe, que deve ter o direito de extirpá-lo à vontade. No presente score da disputa, nenhum dos lados conseguiu ainda persuadir o outro. Nem é razoável esperar que o consiga, pois, não havendo na presente civilização o menor consenso quanto ao que é ou não é a natureza humana, não existem premissas comuns que possam fundamentar um desempate.

Mas o empate mesmo acaba por transfigurar toda a discussão: diante dele, passamos de uma disputa ético-metafísica, insolúvel nas presentes condições da cultura ocidental, a uma simples equação matemática cuja resolução deve, em princípio, ser idêntica e igualmente probante para todos os seres capazes de compreendê-la. Essa equação formula-se assim: se há 50% de probabilidades de que o feto seja humano e 50% de probabilidades de que não o seja, apostar nesta última hipótese é, literalmente, optar por um ato que tem 50% de probabilidades de ser um homicídio.

Com isso, a questão toda se esclarece mais do que poderia exigi-lo o mais refratário dos cérebros. Não havendo certeza absoluta da inumanidade do feto, extirpá-lo pressupõe uma decisão moral (ou imoral) tomada no escuro. Podemos preservar a vida dessa criatura e descobrir mais tarde que empenhamos em vão nossos altos sentimentos éticos em defesa do que não passava, no fim das contas, de mera coisa. Mas podemos também decidir extirpar a coisa, correndo o risco de descobrir, tarde demais, que era um ser humano. Entre a precaução e a aposta temerária, cabe escolher? Qual de nós, armado de um revólver, se acreditaria moralmente autorizado a dispará-lo, se soubesse que tem 50% de chances de acertar numa criatura inocente? Dito de outro modo: apostar na inumanidade do feto é jogar na cara-ou-coroa a sobrevivência ou morte de um possível ser humano.

Chegados a esse ponto do raciocínio, todos os argumentos pró-aborto tornaram-se argumentos contra. Pois aí saímos do terreno do indecidível e deparamos com um consenso mundial firmemente estabelecido: nenhuma vantagem defensável ou indefensável, nenhum benefício real ou hipotético para terceiros pode justificar que a vida de um ser humano seja arriscada numa aposta.

Mas, como vimos, a opção pró-aborto é prévia a toda discussão, sendo este o motivo pelo qual o abortista ressente e denuncia como "violência repressiva" toda argumentação contrária. A decisão pró-aborto, sendo a pré-condição da existência do debate, não poderia buscar no debate senão a legitimação ex post facto de algo que já estava decidido irreversivelmente com debate ou sem debate. O abortista não poderia ceder nem mesmo ante provas cabais da humanidade do feto, quanto mais ante meras avaliações de um risco moral. Ele simplesmente deseja correr o risco, mesmo com chances de zero por cento. Ele quer porque quer. Para ele, a morte dos fetos indesejados é uma questão de honra: trata-se de demonstrar, mediante atos e não mediante argumentos, uma liberdade autofundante que prescinde de razões, um orgulho nietzschiano para o qual a menor objeção é constrangimento intolerável.

Creio descobrir, aí, a razão pela qual meu cérebro se recusava obstinadamente a pensar no assunto. Ele pressentia a inocuidade de todo argumento ante a afirmação brutal e irracional da pura vontade de matar. É claro que, em muitos abortistas, esta vontade permanece subconsciente, encoberta por um véu de racionalizações humanitárias, que o apoio da mídia fortalece e a vociferação dos militantes corrobora. Porém é claro também que não adianta nada argumentar com pessoas capazes de mentir tão tenazmente para si próprias.
Por: Olavo de carvalho Publicado no Jornal da Tarde, 22 de janeiro de 1998

sábado, 6 de dezembro de 2014

ROMBO HISTÓRICO

 – Um “conservador”, que está sob porrete das esquerdas, terá de consertar as burradas do petismo


Dia desses, um dos colunistas de nariz marrom da imprensa brasileira, acostumado a escrever de joelhos, estranhava que Dilma Rousseff tivesse escolhido Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda. Afinal, argumentava ele, o homem é um “conservador”, um crítico da política econômica em curso. E, segundo o “desanalista”, tudo vai tão bem com o país que o desemprego continua baixo — para ele, evidência de que estamos no caminho certo.

Pois bem. As transações correntes em outubro tiveram um déficit de US$ 8,13 bilhões — oficialmente, é o maior desde 1980 porque tal medição, com os critérios atuais, começou a ser feita nesse ano, mas é o maior desde 1947, quando se começou a fazer tal contabilidade. O ministro Guido Mantega pode se orgulhar: sua gestão produziu o maior buraco nas transações correntes em 67 anos.

Querem mais? Para novembro, o BC projeta déficit de US$ 8 bilhões nas transações correntes. Se a projeção se confirmar, o resultado acumulado do ano passará de US$ 70,7 bilhões até outubro para US$ 78,7 bilhões. No acumulado em 12 meses, o déficit externo equivale a 3,73% do PIB (Produto Interno Bruto), o maior desde fevereiro de 2002 (3,94% do PIB).

Os números que vão acima são próprios de um modelo que deu errado, a despeito do que diga o oficialismo. É o fim do mundo? Não é? Caminhamos pra lá? Não tão depressa. Mas estaremos condenados à mediocridade se não houver uma alteração substancial da equação. Não sei se Joaquim Levy, futuro ministro da Fazenda, conseguirá operar a mudança. Uma coisa é certa: ela não se dará se continuarmos na metafísica de agora.

Os Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) somaram US$ 4,979 bilhões em outubro, resultado que ficou abaixo dos US$ 5,439 bilhões registrados no mesmo período do ano passado. No acumulado do ano até o mês passado, o IED soma US$ 51,194 bilhões, o equivalente a 2,71% do Produto Interno Bruto (PIB). É um alento em meio às más notícias.

Faltando apenas dois meses para o fim do ano, o número acumulado de 2014 ainda precisa somar mais US$ 11,8 bilhões para alcançar a previsão do BC, de terminar com US$ 63 bilhões. Nos últimos 12 meses até outubro, o IED está em US$ 66,003 bilhões, o que corresponde a 2,91% do PIB. O número não chega a financiar o rombo, mas compensa em parte o desastre. Mas resta evidente que algo de profundamente errado se passa com a economia.

Acabou, definitivamente, aquele ciclo da economia mundial em que, com o supercrescimento da China e a supervalorização das commodities brasileiras, saldos positivos na balança comercial compensavam desequilíbrios. O déficit na balança no mês passado ficou em US$ 1,17 bilhão de dólares, o pior desde outubro de 1998.

Os petistas e as esquerdas deveriam estar felizes. O abacaxi na economia, vejam vocês, terá de ser descascado não por um esquerdista ou por um populista, mas por um economista que eles consideram “conservador”. Pois é… Um conservador terá de consertar as burradas do petismo. Tomara que consiga.
Por Reinaldo Azevedo  Publicado no site: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

A VINGANÇA DE PAULO FRANCIS


Em seu artigo, “Justiça a Paulo Francis, Ainda que Tardia”, de 23/09/2014, a professora de Direito Internacional da Universidade de São Paulo, Maristela Basso, recorda que anos atrás, no programa Manhattan Connection, Paulo Francis “sugeriu a privatização da Petrobras e chamou atenção para o fato de que seus diretores desviavam dinheiro para contas na Suíça, e era preciso investigar”. Mas, o jornalista não tinha as provas necessárias, sendo então denunciado pelo presidente da Petrobras, Joel Rennó e mais sete diretores que o processaram através do Poder Judiciário dos Estados Unidos. “A indenização aos diretores, mais custas e honorários foi estipulada em 100 milhões de dólares”, quantia impossível de ser paga por Paulo Francis. Como consequência ocorreu sua morte, em fevereiro de 1997, em Nova Iorque, por um enfarte fulminante.

O que diria hoje o brilhante Francis diante do assombroso, estrondoso, o mais gigantesco escândalo entre os muitos ocorridos no governo petista, chamado de petrolão e que agora começa vir à tona graças ao eficiente trabalho do juiz Sérgio Moro, da Polícia Federal e do Ministério Público?

Durante anos funcionários de carreira foram alçados por Lula a diretores da Petrobras. Eles funcionavam como receptadores de empreiteiras, que pagavam propinas para obter contratos de grandes obras da Petrobras, sendo que 1% a 3% eram repassados a partidos como o PT, PMDB e PP, segundo se sabe até agora. Tais repasses faziam com que as empreiteiras superfaturassem o custo das obras.

Ao mesmo tempo, um intricado sistema de lavagem de dinheiro era organizado pelo doleiro Alberto Youssef, que se encontra preso e optou pela delação premiada. Também o ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto da Costa, que se encontra em prisão domiciliar, seguiu o caminho da delação expondo juntamente com Youssef o assalto á Petrobras, do qual ambos participaram assiduamente.

Mais prisões aconteceram como a do ex-diretor da Petrobras, Renato Duque, indicado pelo mensaleiro José Dirceu, de quatro presidentes de grandes empreiteiras e de 15 executivos, na 7ª etapa da Operação Lava Jato denominada Juízo Final. O chamado “operador” do PMDB, Fernando Antonio Falcão Soares, cognome Fernando Baiano, entregou-se a polícia depois de permanecer foragido e deve ter grandes falcatruas a contar se optar pela delação premiada. Muitos outros ainda devem comparecer á Justiça, pois há uma extensa relação de políticos cujos nomes permanecem em sigilo.

A perda da Petrobras com os desvios pode chegar a 21 bilhões, segundo o banco americano Morgan Stanley. Tudo se passou durante os mandatos de Lula da Silva, sendo que Dilma Rousseff deles participou como ministra de Minas e Energia, depois ministra da Casa Civil, tendo sido também presidente do Conselho da Petrobras. Rousseff foi eleita presidente da República e a roubalheira se estendeu pelos quatro anos de seu primeiro mandato.

Por isso, quando petistas com aquele cacoete de atribuir sempre aos outros seus erros, falam que a culpa de tudo é dos governos anteriores, estão certos. Anteriormente foram oito anos de Lula da Silva e quatro de Dilma Rousseff. Mesmo assim estes não viram, não ouviram, não sabem de nada.

Some-se aos descalabros da Petrobras a condição econômica do País. Como bem resumiu Celso Ming, “a situação atual é de paradeira, alta inflação, contas públicas degradadas e deterioração das contas externas” (O Estado de S. Paulo, 19/11/2014).

Diante de tantas dificuldades o PT vai chocando seus ovos de serpente, dos quais na hora certa nascerão venenosíssimas urutus. Entre eles podem ser citados:

1 – O Decreto 8.243 que constitui os Conselhos populares, espécie de sovietes compostos pelos chamados movimentos populares ligados e sustentados pelo PT. Caberá a eles se sobrepor ao Legislativo e ao Judiciário. O Decreto já foi rejeitado pela Câmara, mas deverá voltar ao Congresso.

2 – O recente manifesto do PT que aponta para o objetivo de alcançar a hegemonia e se refere, entre outras coisas de cunho autoritário, à censura dos meios de comunicação.

3 – A visita não oficial ao Brasil de Elias Jaua, ministro-chefe das milícias bolivarianas da Venezuela. Posteriormente ele aparece no vídeo de um canal de TV estatal venezuelana assinando um convênio com o MST na cidade de Guararema, a 80 quilômetros de São Paulo. Esses convênios na verdade são cursos de treinamento para a revolução socialista.

4 – A insidiosa campanha contra a polícia acusada de matar pessoas. Não se menciona o número de assassinatos de pessoas por bandidos, nem quantos policiais morreram heroicamente para proteger a população. Só falta pedir que a polícia ande desarmada para enfrentar facínoras fortemente armados.

Diante de tanta degradação e de um futuro nebuloso, o que diria o brilhante polemista, o corajoso jornalista Paulo Francis? Pena que ele não pode mais se expressar, mas, pelo menos está vingado. 
Por: Maria Lucia Victor Barbosa é sócióloga www.maluvibar.blogspot.com.br

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

MULHERES QUE APANHAM

Todas as mulheres gostam de apanhar. Só as neuróticas é que reagem. Assim falava Nelson Rodrigues. E assim falo eu, em jeito de provocação, ao meu auditório feminino lá em casa.


Sem sucesso: rodeado por mulheres mais inteligentes do que eu, elas tratam de responder às provocações com outras provocações de igual calibre, irreproduzíveis num jornal de família.

Eu, sovado e acabrunhado, encerro a discussão, fugindo para a primeira premissa: "Estão vendo? Neuróticas, todas vocês".

Brinco, claro. Mas depois, com o café da manhã, vou lendo notícias que ressuscitam o velho Nelson e conferem "gravitas" aos seus aforismos.

Uma delas vem no "Sunday Times" e parece inventada por uma jornalista (neurótica): o americano Julien Blanc vem a caminho do Reino Unido. Pior: Blanc pode já estar em Londres, pronto para organizar os seus "workshops". Quem é Julien Blanc?

A julgar pelo tom da notícia, parece que o rapaz é um descendente de Jack, o Estripador, pronto para arruinar mulheres de boa ou má fama.

Mas depois lemos que o talento dele é ensinar os homens, em cursos de três dias pelo preço de R$ 5.200, a seduzir, usar e destruir emocionalmente uma donzela. "O meu brinquedo sexual favorito", diz o pensador Blanc, "é a minha namorada." O sucesso tem sido planetário.

Se a coisa ficasse pelos jornais, nada a declarar: a crise da imprensa também é uma crise de inteligência. O pior é que a sombra do temível Blanc já chegou aos governos. A Austrália o expulsou do território como quem expulsa o conde Drácula. O Brasil, que em princípio seria visitado pelos seus caninos em janeiro, já avisou que não há visto para ninguém.

Igual posição é assumida pela ministra do Interior britânica, Theresa May, partindo do pressuposto de que o monstro ainda não chegou às ilhas britânicas. Blanc não terá autorização para entrar porque ele é um "perigo público" e os seus cursos podem "incitar ao abuso e à violência".

Uma pessoa lê essas coisas e pergunta, como um velho dinossauro fora do seu parque jurássico, que mundo é esse em que as mulheres precisam da proteção dos governos para não caírem na cantiga do bandido.

Serei o único a pensar que o comportamento da Austrália, do Brasil e do Reino Unido trata as mulheres como crianças –e um idiota americano qualquer, como um voraz mentor de pedófilos?

Os conselhos de Julien Blanc –como manipular uma mulher; como humilhá-la; como chantageá-la– são de um primitivismo infantil, é certo.

Mas transformá-lo em "perigo público" e impedi-lo de viajar, para além de duvidoso do ponto de vista legal, é retirar às mulheres, sobretudo a mulheres adultas, qualquer estatuto de autonomia ou racionalidade.

Claro que existem sempre vozes de compaixão para quem nem todas as mulheres possuem esse grau de autonomia ou racionalidade (belo paternalismo!). Mulheres sem instrução; mulheres sem independência econômica; mulheres com baixa autoestima (grotesca palavra) –todas elas são presas fáceis para predadores difíceis.

O problema é que a realidade, às vezes, desmente tais piedades. Por ironia cósmica, o mesmo "Sunday Times", na sua revista dominical, publica extratos da autobiografia da atriz Anjelica Huston, mulher de Jack Nicholson durante duas décadas.

E, durante essas duas décadas, Huston foi fazendo uma longa lista de todas as mulheres que Jack Nicholson foi devorando nas horas livres e que provocaram na pobre Anjelica angústias sem nome.

O próprio Jack, aliás, raramente negava esses casos. Quando muito, dizia apenas que era "sexo por compaixão", sem importância ou continuidade.

Confrontado com tal benemérito, um dinossauro perguntará o que fez Anjelica Huston perante tanto abuso e humilhação durante 20 longos anos. No fundo, qual foi a atitude de uma mulher econômica e socialmente independente ante as terríveis infidelidades do seu amado vilão.

A ministra Theresa May, ou o Ministro das Relações Exteriores do Brasil, talvez dissessem que o amor tem razões que a razão desconhece –e que é exatamente por isso que as mulheres devem ser protegidas em "habitat" apropriado. Como certos pandas no jardim zoológico.

Nelson Rodrigues discordaria. Para ele, Anjelica Huston era perfeitamente saudável, não neurótica. Por isso gostava de apanhar. 
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

VIDA BREVE

"Vida intensa e breve, pensou a lebre, correndo sobre as ervas do mundo." Roubo essas linhas do poeta português José Agostinho Baptista porque elas são a trilha sonora dos meus dias. Ou, pelo menos, desses últimos anos.


Caminho para os 40. E, com uma nitidez arrepiante, sinto que o tempo acelera como nunca.

Explico: aos dez, aos 20, o tempo passava com um ritmo mais lento. O ano acadêmico era longo. As férias de verão, também. E os dias, cada dia, tinham minutos que duravam horas e horas que duravam semanas.

Subitamente, os dias encolheram. E, com os dias, as horas e as semanas. Como explicar o fenômeno?

Dois anos atrás, ao passar pela vitrine de um sebo em Nova York, deparei-me com um livro que prometia explicar as minhas inquietações.

Mas o tempo, sempre o tempo, impediu-me de anotar o título e o autor: atrasado para um jantar e na companhia de terceiros, continuei a caminhar –e a vitrine, afastando-se de mim, como se eu fosse um emigrante a bordo de um navio, vislumbrando a terra materna cada vez mais longe.

Para piorar as coisas, a noite ia alta, o sebo estava fechado –e eu regressava de madrugada para Lisboa. Nenhuma possibilidade de lá voltar. E a certeza de que o tempo continuaria a ceifar misteriosamente o meu tempo –e a privar-me da deliciosa lentidão do passado.

Contei todos esses episódios à alma caridosa que partilha os meus dias. E ela, com um talento de Sherlock Holmes, localizou o livro e o ofereceu a mim.

Escrito pelo psicólogo holandês Douwe Draaisma, o título é de uma literalidade que envergonha: "Why Life Speeds Up As You Get Older" ("por que motivo a vida acelera à medida que envelhecemos", Cambridge University Press, 277 págs.). Nem eu diria melhor.

Em rigor, a obra não lida apenas com a aceleração do tempo quando a idade avança. Trata-se de uma coleção de ensaios sobre o papel da memória (e do esquecimento) na forma como percebemos o passado e o futuro.

Mas o ensaio que dá título ao livro ilumina algumas das minhas perguntas porque Draaisma vai revisitando as teorias que a psicologia e as neurociências foram avançando para o fato. É impossível resumi-las todas nesta coluna. Mas duas mereceram a minha especial atenção.

A primeira foi exposta por Jean-Marie Guyau no século 19 e, no essencial, repetida ou intuída por literatos diversos –de Thomas Mann a Albert Camus, sem esquecer esse mestre do metrônomo que dá pelo nome de Marcel Proust.

O tempo acelera porque os nossos dias, tomados pelas rotinas próprias da vida adulta, surgem despojados da variedade dos verdes anos. Aos dez, aos 20, o nosso roteiro biográfico mudava. Constantemente. Imprevisivelmente.

As férias de verão eram longas porque eram cheias. O ano acadêmico era longo porque as aulas, os estudos, mas também o reencontro com os amigos e os estragos na companhia deles, faziam de cada dia uma refeição completa.

Aos 40, aos 50, a refeição torna-se repetitiva –casa, trabalho, casa. De tal forma que os dias nos parecem cópias uns dos outros. E, talvez por isso, concentrados e consumidos em um único sopro.

A explicação tem o seu interesse, escreve o autor, mas talvez as coisas sejam mais simples.

E uma segunda tese, que Douwe Draaisma elege como sua, diz-nos que o tempo acelera porque nós já não aceleramos como antigamente. Como o próprio escreve, o corpo corria mais rápido do que o rio do tempo; mas hoje ele se atrasa pelas margens.

Em rigor, o tempo não acelera; o tempo mantém-se rigorosamente igual. Nós é que não: organicamente falando, biologicamente falando, repetimos os mesmos gestos –mas anoiteceu, entretanto.

E anoiteceu mesmo: caminho pelas ruas de Londres e penso nas explicações do prof. Draaisma. Será que a minha vida rotineira precisa de alguma adrenalina suplementar?

Ou o envelhecimento do corpo é um fato –e a atitude mais inteligente é parar de correr atrás da criança que eu fui e que leva sempre vantagem sobre os meus passos mais lentos?

São perguntas que se dissipam no frio. Até porque há presentes de Natal para comprar.

Curioso: Natal. Falta um mês para celebrar a data e eu poderia jurar que ainda ontem estava a celebrar. 
Por: João pereira Coutinho Publicado na Folha de SP.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

RELATOS SELVAGENS

Por que nosso cinema brasileiro é tão inferior ao argentino? A Argentina está quebrada há anos. Sua política é risível (peronismo de todos os lados). Sua presidente atual, uma bolivariana louca.


Mas "los hermanos" continuam anos-luz à nossa frente em uma porção de coisas, entre elas o cinema. A "cultura" brasileira é ainda um atraso em comparação à argentina.

Nosso cinema patina na fórmula da comédia escrachada, masturbações ao redor do amor neurótico, do "coitadismo" (coitado do pobre, do bandido, do drogado) ou de seu contrário: pobre é lindo, bandido é lindo, drogado é lindo. E agora uma novidade: as questões de gênero.

Existe um lugar-comum para o cinema inteligentinho entre nós: a crítica social.

Parodiando o grande Oscar Wilde, quando dizia que toda poesia sincera é ruim, eu diria que todo filme de crítica social é ruim. No mínimo, chato. E não deve melhorar, na medida em que os jovens cineastas continuam sendo formados, em grande parte, no culto a Cuba como meca da resistência ao capital -dá até vontade de rir, se não fosse caso para chorar...

E aí, chegamos a "Relatos Selvagens", dirigido pelo argentino Damián Szifrón, que conta seis histórias curtas sobre violência.

Não, você não vai ver um filme falando de como o capital é responsável por todas as desgraças do mundo, nem sobre como a sociedade desigual produz todo o mal. "Relatos Selvagens" não é infantil -e, quem pensa que a violência é fruto do capitalismo, é infantil.

Mas, claro, as relações entre as pessoas num mundo do dinheiro são parte de como se dá a violência.

Por exemplo, numa das histórias do longa, o personagem de Ricardo Darín é esmagado por algo que conhecemos muito bem: a parceria criminosa entre governo e as empresas privadas que prestam serviços a ele, gerando todo o aparato de multas no trânsito nas grandes cidades, câmeras fotográficas, guinchos e afins.

Além, claro, da burocracia enlouquecedora, feita para inviabilizar qualquer tentativa de reação por parte das pessoas.

Entretanto, pela própria apresentação do filme, vemos que o lugar da violência parece estar além do maniqueísmo típico das ciências sociais: os animais selvagens olhando para as câmeras que os fotografam relevam nosso parentesco de alma com eles.

O tratamento da violência no longa parece ser o seguinte: a violência é constitutiva da espécie e a civilização faz o que pode com isso. Inclusive porque é a própria civilização quem estimula a violência, muitas vezes vista como o "ato de coragem" -que, em um dos relatos, faz um homem recuperar o respeito da própria esposa.

A violência é feia, destrutiva, ridícula. Mas, às vezes, a negação dela seria destrutiva, como na história em que um milionário, achacado pela corrupção do sistema judiciário argentino, decide ser mais agressivo na negociação da propina e consegue reduzir seus gastos com um crime que envolve seu filho, um mauricinho irresponsável.

Aliás, nesse mesmo caso vemos como as classes menos favorecidas sabem muito bem como manipular seus "ganhos" no esquema de corrupção. Um cínico diria que a corrupção também pode ser inclusiva.

Noutra história, a diferença de "natureza" entre duas pessoas distintas pode fazer com que uma, com todas as razões do mundo para se vingar, se mantenha imune ao instinto violento e outra, sem nenhuma relação com o caso em questão, se revele uma besta assassina.

Diferenças de caráter individual, claro, eram consideradas um "fetiche" burguês pelo velho Marx.

Não faltaria em uma obra consistente como "Relatos Selvagens" o reconhecimento da íntima relação entre violência e Eros. A história da festa de casamento traz à tona a sabida "energia positiva da agressividade" no tesão entre um homem e uma mulher. A paz eterna é brocha.

No primeiro relato, somos levados a pensar: qual gostosa nunca trocou o namorado bundão pelo amigo descolado? Quem nunca riu de alguém medíocre? Qual terapeuta nunca subiu o preço da sessão?

Bem vindos à vida real, e não à pasmaceira politicamente correta brasileira.
Por: Luiz Felipe Pondé   Publicado na Folha de SP

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A RATAZANA COM PHD

Imagine que você está numa reunião de colegiado de qualquer universidade brasileira. Desafio você a contar quantas vezes ouvirá a palavra "alunos" ao longo da reunião. Provavelmente, nenhuma ou quase nenhuma. Refiro-me aqui especificamente ao universo do mestrado e do doutorado.


Perguntará o leitor assustado: "Como assim? A universidade não foi feita para os alunos??!!". Responderá o professor: "Coitadinho dele, ingênuo. Não: a universidade existe para fazer relatórios burocráticos que supostamente medem a qualidade da pós-graduação. Servimos a burocracia da produtividade e só isso".

Se Kafka vivesse hoje, escreveria um conto no qual nós, acadêmicos, seríamos representados como ratos aterrorizados pela grande ratazana "empoderada" (essa palavra horrível que alguém inventou em alguma noite em que vomitava continuamente...), rainha de todos os burocratas, seres nascidos para tornar qualquer criatividade real inviável. A originalidade é perseguida a pauladas nos corredores das universidades.

O aluno é a variável menor porque ele não "conta" ponto nenhum para a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), apenas como médias quantitativas que medem a rapidez com a qual mestrados e doutorados são concluídos.

Se for uma universidade pública, então, em que o salário não depende do número de orientandos e de alunos em sua disciplina, o aluno é menos importante do que banheiros limpos. Se for numa privada, ele contará, é claro, nos contratos dos professores como números que garantem salários. E só.

E o aluno, como todo miserável numa cadeia alimentar em que é a parte mais fraca, sonha virar predador: submete-se ao matadouro porque quer passar em algum concurso. Mas, se quiser, trate de arranjar alguém que manipule uma banca a seu favor. Além, claro, de atender às exigências da ratazana rainha.

Todo professor sabe que deve correr atrás de pontuar nos relatórios porque, inclusive, se não o fizer, derruba a nota do seu departamento, e isso será punido das mais diversas formas. Você até pode dar uma aula medíocre, repetindo conteúdos ou fazendo o aluno dar seminários no seu lugar. Isso em nada impacta a "produtividade". A ratazana rainha só enxerga números.

Mas ainda é possível pensar a educação a sério. Livros como o da jornalista Amanda Ripley "As Crianças Mais Inteligentes do Mundo e como Elas Chegaram Lá", do selo editorial Três Estrelas, do Grupo Folha, mostra que, no ensino médio, nem sempre quantidades implicam qualidades (vale muito a pena ler esse livro se você está interessado em superar as bobagens de autoajuda e as tecnobobagens aplicadas à educação, na moda aqui no Brasil). Ainda que o livro se ocupe do ensino médio, ele pode servir de luz para o tema em geral.

Espero que um dia superemos esse paradigma vazio das "listas qualis" que, na realidade, aferem nada, em termos de conteúdo, do que significa a relação com a formação do aluno. Por quê? Simples: porque, mesmo que publiquemos muito segundo parâmetros qualis', a qualidade do ensino de pós-graduação no Brasil é cada vez mais burocrática.

O problema é que ficamos tão atolados com medo dos relatórios contínuos (todas as plataformas X, Y e Z) que pouco importa o desejo de conhecimento dos alunos. Sei: cometi um pecado romântico ao dizer isso. A produção na universidade é industrial do tipo salsichas. Puro capitalismo chinês. E capitalismo chinês é assim: TVs, carros baratos e gente estúpida, correndo da ratazana devoradora de almas.

P.S.: na semana passada, como disse, suspeitava de que o nome da entrevista de Freud sobre seu desinteresse acerca da vida após a morte não fosse "A Transitoriedade" –que é, na verdade, um texto dele mesmo sobre a impermanência das coisas (que era o tema mesmo de que tratava a coluna).

Uma amiga psicanalista me mandou a referência precisa: "O valor da vida. Uma entrevista rara de Freud". Nessa entrevista, dada em 1926 ao jornalista George Sylvester Viereck, ele diz precisamente o seguinte: "Estou muito mais interessado neste botão do que no que possa me acontecer depois que estiver morto". Amém, digo eu. 
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP