segunda-feira, 27 de junho de 2016

O MITO DO "TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO

As operações de combate ao trabalho escravo não "libertam" ou "resgatam" ninguém, não ajudam os trabalhadores pobres e consideram escravos gente que ganha muito mais que a média dos brasileiros


Mais uma grife de roupas foi acusada de utilizar trabalho escravo no Brasil. Segundo uma reportagem da BBC publicada nesta segunda-feira, auditores do Ministério do Trabalho flagraram cinco bolivianos, entre eles uma adolescente de 14 anos, mantidos como escravos numa oficina na zona leste de São Paulo que produzia para a grife Brooksfield.

Infelizmente a BBC só reproduziu a desinformação que ativistas do combate ao trabalho escravo costumam difundir sobre o assunto. Abaixo, mostro seis esclarecimentos que a reportagem poderia ter feito. O leitor me desculpe o tamanho do texto – o assunto é relevante e merece ser explicado em detalhe.

1. Não é escravidão

No caso desta semana e na maioria dos que vão aos jornais, a situação flagrada pelos fiscais não tinha nada do que o povo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) ou as leis da maioria dos países entendem por escravidão. Não havia pessoas acorrentadas, ameaçadas, trabalhando para pagar uma dívida com os patrões ou para recuperar um documento.

Por que, então, dizem que é trabalho escravo? No Brasil, uma mudança no Código Penal afrouxou enormemente o conceito de trabalho escravo. Passou a incluir a jornada exaustiva e condições degradantes como critérios para caracterização.

Parece um detalhe, mas a mudança na lei juntou crimes diferentes no mesmo balaio. Patrões que ofereciam alojamentos sem a distância adequada entre as camas passaram a responder pelo mesmo crime que quem torturava os trabalhadores com ferro de marcar gado ou os mantinha em cativeiro.

A própria OIT esclarece, num relatório de 2005, que não se deve confundir trabalho ruim com escravidão. “O trabalho forçado não pode simplesmente ser equiparado a baixos salários ou a más condições de trabalho. Tampouco cobre situações de mera necessidade econômica, por exemplo, quando um trabalhador não tem condições de deixar um posto de trabalho devido à escassez, real ou suposta, de alternativas de emprego.”

Os bolivianos que produziam para a Brooksfield foram considerados escravos porque não tinham carteira assinada ou férias e, segundo a BBC, “trabalhavam e dormiam com suas famílias em ambientes com cheiro forte, onde os locais em que ficavam os vasos sanitários não tinham porta e camas eram separadas de máquinas de costura por placas de madeira e plástico”. Era trabalho precário, mas não escravidão.

2. Há “escravos” que ganham R$ 5 mil por mês

Como cabe ao auditor do trabalho decidir o que é trabalho escravo, há interpretações das mais extravagantes e ideológicas.

Em 2013, a fiscalização encontrou vinte funcionários de uma construtora de Belo Horizonte que tinham registro na carteira, recebiam horas-extras e adicionais de produção. Um pedreiro disse que ganhava 5 mil por mês. Como não havia lençóis nos beliches do alojamento e os banheiros estavam sujos, o fiscal enquadrou a construtora como escravista.

O alojamento era, de fato, precário, mas muitos dos trabalhadores poderiam achar que a remuneração compensava. Um salário de 5 mil reais, afinal, colocava o funcionário entre os 20% de brasileiros mais ricos daquele ano. Como revelou a revista Exame, casos assim são comuns.

No episódio desta semana, os imigrantes ganhavam 6 reais por peça produzida. Se costuravam duas peças por hora (provavelmente produziam muito mais), ganhariam 12 reais por hora, 96 reais por jornada de oito horas, ou 2100 reais por mês. Isso é mais do que ganham 72% dos brasileiros, que sobrevivem com até dois salários mínimos.

3. Não há “resgate” ou “libertação” de trabalhadores

O mito do “trabalho análogo à escravidão” vem sendo cultivado por auditores do trabalho, procuradores, jornalistas e ativistas bem-intencionados. Eles fazem questão de esclarecer que a servidão moderna se define por condições precárias de trabalho e tem pouco da escravidão tradicional. Mas utilizam termos e imagens que só fazem sentido quando se referem à restrição da liberdade – como imagens de correntes e termos como “resgate” ou “libertação”.

Imagem da campanha de combate ao trabalho escravo, divulgada pela Secretaria de Direitos Humanos.

Os trabalhadores costumam considerar um absurdo serem chamados de escravos. Sem ninguém pedir, os fiscais quebram contratos de trabalho, calculam multas enormes para as empresas e mandam os trabalhadores para hotéis ou de volta para suas cidades de origem.

“O primeiro contato com a vítima geralmente é de resistência. Ela não se enxerga como trabalhador forçado e se incomoda com o rótulo”, me disse, no ano passado, Luiz Machado, coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da OIT. “Quando explicamos as violações dos direitos trabalhistas, eles ficam agradecidos, pois ganham pagamentos de direitos, seguro-desemprego especial para resgatados e prioridade na fila do Bolsa Família.

4. As operações não ajudam os trabalhadores

Quando a indenização acaba, os “escravos libertados” descobrem que os fiscais os transformaram em desempregados dependentes de programas assistenciais. Precisam começar tudo de novo e sair à procura de um emprego. Geralmente encontram trabalhos bem parecidos com aqueles dos quais foram “resgatados”.

“Quando a polícia vai embora, os bolivianos vão para outras oficinas onde a condição é a mesma”, me contou, numa entrevista, o boliviano Luis Vásquez, líder da comunidade boliviana em São Paulo.

Os próprios ativistas admitem o problema da reescravização. “O trabalhador volta para casa com três meses de seguro-desemprego no bolso, mais verbas rescisórias, mas assim que o dinheiro acaba, ele volta a migrar e acaba escravizado de novo”, disse, em outra reportagem da BBC, o fundador da ONG Repórter Brasil, Leonardo Sakamoto.

5. As operações eliminam alternativas de quem já tem poucas

Numa coisa os ativistas do combate ao trabalho degradante estão certos: milhões de pessoas têm empregos terríveis no Brasil. Trabalham amontoadas em cômodos sem janelas; cumprem uma jornada tão alta que mal veem a família. Diante de situações assim, tudo o que não se deve fazer é diminuir as opções disponíveis a eles.

O que prejudica o trabalhador não é a opção de trabalho que ele encontra, e sim a falta de opções. Os operários das pequenas oficinas de roupas da zona leste de São Paulo se submetem a condições ruins porque aquela é a melhor alternativa de que dispõem. O que os torna vulneráveis não é a empresa que os contratou, mas a ausência de mais empresas que os contratem.

E o que as operações de combate ao trabalho escravo fazem é diminuir ainda mais essas opções. “Quando a Polícia Federal aparece, dá a impressão de que vai prender o Fernandinho Beira-Mar”, diz o boliviano Luiz Vásquez. “Um monte de viaturas e policiais para prender o coitado do dono da oficina. Ele é multado por tudo o que você pode imaginar. Essa história tem levado muitos empreendedores à falência”.

Não é um grande incentivo à abertura de fábricas no Brasil ter a possibilidade de ver a marca manchada por falsas acusações de trabalho escravo. As bem-intencionadas operações prejudicam a segurança jurídica e dão um empurrão a mais para fábricas se mudarem para a China ou o Paraguai. Com menos vagas à disposição no Brasil, os trabalhadores ficam ainda mais vulneráveis.

Quem realmente se preocupa com os pobres precisa, pelo amor de Deus, evitar que as empresas tenham medo de contratar ou subcontratar trabalhadores no Brasil. Ações menos sensacionalistas, como criar um pacto entre as oficinas para seguirem condições mínimas, sob pena de multa, ajudariam muito mais do que aterrorizar grifes internacionais interessadas em produzir no Brasil.

Outra opção é ajudar os imigrantes a encontrar vagas melhores e ter documentação para se candidatar a elas. Em São Paulo, o Ministério Público do Trabalhou fez um excelente trabalho ao criar um centro onde os imigrantes podem regularizar a residência no Brasil, tirar carteira de trabalho e abrir uma conta corrente. Documentados, ficam aptos a trabalhos menos precários.

“Em diversos países e momentos da história, o subemprego foi o meio pelo qual as minorias, os migrantes e os menos favorecidos entraram no mercado de trabalho e começaram a ascender socialmente”, diz o cientista político Diogo Costa. “Proibir o emprego ruim acaba funcionando como uma barreira de exclusão dos menos qualificados.”

6. Coibir as más condições é impor preferências da elite aos trabalhadores pobres

Imagine que você acabou de se mudar para um país estranho e está sem dinheiro, sem qualificação ou mesmo conhecimento da língua local – e ainda tem três filhos famintos nas costas. De repente aparecem duas opções de trabalho em oficinas de costura.

A primeira oficina, ensolarada e espaçosa, oferece um salário de 10 reais por hora. A segunda, sem janelas e com uma jornada maior, paga 12 reais. Na hora do aperto, você não se dará ao luxo de perder 20% da remuneração. Como quer acumular o máximo possível e voltar para o seu país, você trabalharia mais, muito mais que oito horas por dia.

O combate ao trabalho degradante se baseia na ideia de que as condições ruins são fruto da escolha dos patrões. Mas a escolha não é só deles. Ao decidir ingressar num emprego, uma pessoa avalia todos os tipos de compensação – o salário, o conforto, a jornada. Quem ganha bem pode se dar ao luxo de descontar parte do salário em conforto e jornada menor. Mas se a renda e a produtividade são baixas, e a melhor alternativa de trabalho não é o suficiente para pagar as contas, provavelmente ele abrirá mão do conforto para extrair o máximo da remuneração em forma de salário.

“Isso significa que a combinação de compensações é determinada pelas preferências dos empregados (até o limite da sua produtividade), e não pelas preferências de corporações multinacionais ou empresas terceirizadas”, diz o economista Benjamin Powell, autor do livro Out of Poverty: Sweatshops in the Global Economy.

Powell comprovou essa opção entrevistando operários da Guatemala. Ele conversou justamente com quem trabalhava em fábricas de roupa que motivaram escândalos de trabalho degradante, em reportagens da TV americana. Descobriu que quase todos os trabalhadores não topariam trocar parte do salário por melhores condições:
Você aceitaria ter um salário menor se o seu empregador…
SIM NÃO
tornasse as condições de trabalho mais agradáveis? 8,6% 91,4%
reduzisse o número de horas de trabalho? 10% 90%
aumentasse o horário de almoço? 4,3% 95,7%
fornecesse plano de saúde? 14,3% 85,7%
desse férias remuneradas? 18,6% 81,4%

O ensaísta Nassim Nicholas Taleb chama de “filantropia de araque” a atividade de “ajudar as pessoas de uma forma visível e sensacional, sem levar em conta o cemitério oculto de consequências invisíveis”. O exemplo preferido de Taleb são as causas trabalhistas. “Você nota as pessoas cujos empregos estão mais seguros e atribui benefícios sociais a essas medidas. Você não percebe o efeito naqueles que ficarão desempregados, já que as medidas vão reduzir a oferta de empregos. Em alguns casos, as consequências positivas de uma ação vão beneficiar imediatamente os políticos e os humanitários de araque, enquanto as negativas levarão um bom tempo para aparecer – e talvez nunca sejam perceptíveis.” Não há definição melhor para o combate ao “trabalho análogo à escravidão” no Brasil.
Por: Leandro Narloch 23/06/2016 às 10:19
@lnarloch

*Para quem se interessar, dedico a este tema um capítulo do Guia Politicamente Incorreto da Economia Brasileira. Do site: http://veja.abril.com.br/

sábado, 25 de junho de 2016

BREXIT: AS CAUSAS


As causas do Brexit, a história da União Europeia e suas duas ideologias conflitantes

Desde o início da União Europeia, tem havido um conflito entre os defensores de dois ideais diferentes. Qual postura o continente europeu deve adotar: a visão liberal-clássica ou visão socialista? 

Para se entender melhor as motivações do Brexit, é importante estar familiarizado com essas duas visões divergentes e essenciais, assim como as subsequentes tensões que vieram à tona em decorrência delas.

A visão liberal-clássica

Os pais fundadores da União Europeia, Robert Schuman (França [nascido em Luxemburgo]), Konrad Adenauer(Alemanha) e Alcide de Gasperi (Itália), todos católicos que falavam alemão, eram adeptos da visão liberal-clássica para a Europa. Eles também eram democratas-cristãos. 

A visão liberal-clássica considera a liberdade individual como sendo o mais importante valor cultural dos europeus e do cristianismo. De acordo com essa visão, a função dos estados soberanos europeus é proteger os direitos de propriedade e a economia de livre mercado em uma Europa de fronteiras abertas, permitindo desta forma o livre comércio de bens, serviços e idéias.

O Tratado de Roma, assinado em 1957, foi a principal realização para a criação de uma Europa baseada no liberalismo clássico. O tratado estabeleceu quatro liberdades básicas: livre circulação de bens, livre oferta de serviços, livre movimentação de capital financeiro e livre migração. O tratado também restaurou direitos que haviam sido essenciais para a Europa durante a vigência do período liberal-clássico no século XIX, mas que haviam sido abandonados durante a era do nacionalismo e do socialismo. O tratado representou a rejeição da era do socialismo, período esse que havia gerado conflitos entre as nações européias, culminando em duas guerras mundiais.

A visão liberal-clássica visa à restauração das liberdades do século XIX. A livre concorrência, sem barreiras à entrada nos mercados, deveria prevalecer em um mercado comum europeu. De acordo com essa visão, ninguém poderia proibir um cabeleireiro alemão de cortar cabelos na Espanha, e ninguém poderia tributar um inglês que quisesse transferir dinheiro de um banco alemão para um banco francês, ou que quisesse investir no mercado de ações da Itália. 

Ninguém poderia impedir, por meio de regulamentações, que uma cervejeira francesa vendesse suas cervejas na Alemanha. Nenhum governo poderia dar subsídios, algo que distorce e corrompe o sistema de livre concorrência. Ninguém poderia impedir que um dinamarquês fugisse de seu estado assistencialista e de sua alta carga tributária e migrasse para um estado com uma carga tributária mais baixa, como a Irlanda.

Para atingir esse ideal de cooperação pacífica e prosperidade comercial, o único pré-requisito necessário seria a liberdade. De acordo com essa visão, não haveria nenhuma necessidade de se criar um super-estado europeu. Com efeito, a visão liberal-clássica é completamente cética no que concerne a um estado central europeu; tal criação é considerada prejudicial e perniciosa para as liberdades individuais. 

Filosoficamente falando, muitos defensores dessa visão são inspirados pelo catolicismo, e as fronteiras da comunidade europeia são definidas pelo cristianismo.

De acordo com a doutrina social católica, o princípio da subsidiariedade deveria prevalecer: os problemas deveriam ser resolvidos no nível mais baixo e menos concentrado possível dos arranjos. A única instituição centralizada europeia aceitável seria uma Corte de Justiça Europeia, com suas atividades sendo restritas à resolução de conflitos entre os estados-membros e à garantia das quatro liberdades básicas.

Do ponto de vista liberal-clássico, deveria haver vários sistemas políticos concorrentes, como ocorreu na Europa durante séculos. Desde a Idade Média até o século XIX, existiram sistemas políticos muito diferentes, tais como as cidades independentes de Flandres (região no noroeste da Europa, que inclui partes da Bélgica, França e Holanda), da Alemanha e do norte da Itália. Havia reinados, como os da Bavária e da Saxônia, e havia repúblicas, como a de Veneza. 

A diversidade política era demonstrada de modo mais explícito na fortemente descentralizada Alemanha. Sob essa cultura de diversidade e pluralismo, a ciência e a indústria se desenvolveram e prosperaram.[1]

A concorrência em todos os níveis é essencial para a visão liberal-clássica. Ela gera uma congruência, uma vez que a qualidade dos produtos, os preços dos fatores de produção e, principalmente, os salários tendem a convergir. O capital vai para os locais onde os salários são menores, o que provoca sua elevação; os trabalhadores, por outro lado, vão para onde os salários são mais altos, o que faz com que essa maior oferta de mão-de-obra os reduza. Os mercados oferecem soluções descentralizadas para os problemas ambientais, baseando-se na propriedade privada. A concorrência política assegura o mais importante valor europeu: a liberdade.

A concorrência tributária promove alíquotas de impostos mais baixas, bem como a responsabilidade fiscal. As pessoas "votam com seus pés", saindo dos países com carga tributária abusiva, como fazem as empresas. Nações soberanas concorrendo entre si com diferentes cargas tributárias são vistas como a melhor proteção contra a tirania. A concorrência também se dá na questão das moedas. Diferentes autoridades monetárias competem para oferecer a moeda de maior qualidade. As autoridades que oferecem moedas mais estáveis exercem pressão sobre as autoridades mais displicentes, e estas são obrigadas a se adequar e seguir o exemplo daquelas.

A visão socialista

Em direta oposição à visão liberal-clássica tem-se a visão socialista ou imperial da Europa, defendida por políticos como Jacques Delors e François Mitterrand. Uma coalizão de interesses estatistas entre grupos nacionalistas, socialistas e conservadores faz o que pode para promover e avançar sua agenda. Tal coalizão sempre quis ver a União Europeia como um império ou uma fortaleza: protecionista para quem está de fora e intervencionista para quem está dentro. 

Esses estatistas sonham com um estado centralizado e controlado por tecnocratas eficientes — atributo este que todos os tecnocratas estatistas imaginam ter.

Dentro desse ideal, o centro do Império deveria governar toda a periferia. Haveria uma legislação comum e centralizada. Os defensores da visão socialista para a Europa querem erigir um megaestado europeu, reproduzindo as nações-estado em um nível continental. Eles querem um estado assistencialista europeu que garanta a redistribuição de riqueza, a regulamentação econômica e a harmonização das legislações dentro da Europa. 

A harmonização dos impostos e as regulamentações sociais seriam executadas pelo mais alto escalão da burocracia. Se o imposto sobre valor agregado estiver variando entre 15 e 25% dentro União Europeia, os socialistas iriam harmonizá-lo em 25% para todos os países. Tal harmonização das regulamentações sociais é do interesse dos mais protegidos, mais ricos e mais produtivos trabalhadores, que podem "arcar" com os custos dessas regulamentações — ao passo que seus concorrentes não podem. Por exemplo, se as políticas sociais alemãs fossem aplicadas aos poloneses, estes teriam grandes problemas para concorrer com aqueles.

A intenção desse ideal socialista é conceder cada vez mais poderes para o estado central — isto é, para Bruxelas. A visão socialista para a Europa é a ideal para a classe política, para os burocratas, para os grupos de interesse que fazem lobby, e para os setores protegidos e subsidiados que querem criar um poderoso estado central visando ao seu próprio enriquecimento. 

Partidários dessa visão apresentam um megaestado europeu como uma necessidade, e consideram sua total implementação apenas uma questão de tempo.

Ao longo desse caminho socialista, o estado central europeu iria se tornar um dia tão poderoso, que os estados soberanos passariam a lhe prestar total subserviência. (Já podemos ver os primeiros indicadores de tal subserviência no caso da Grécia. A Grécia se comporta hoje como um protetorado de Bruxelas, que diz ao governo grego como ele deve lidar com seus problemas).

A visão socialista não fornece nenhuma limitação geográfica explícita para o estado europeu — ao contrário da visão liberal-clássica inspirada no catolicismo. A concorrência política é vista como um obstáculo para o estado central, o qual, no ideário socialista, deve sair completamente de qualquer controle por parte do público. Nesse sentido, o estado central, na visão socialista, se torna cada vez menos democrático à medida que o poder vai sendo deslocado para burocratas e tecnocratas.

(Um bom exemplo disso é a Comissão Europeia, o corpo executivo da União Europeia. Os membros da comissão não são eleitos, mas sim designados pelos governos dos estados-membros. E o próprio Parlamento Europeu é totalmente impotente para impedir ou revogar os atos da Comissão Europeia.)

Historicamente, os precedentes para esse velho plano socialista de criar um estado central controlador na Europa foram estabelecidos por Carlos Magno, Napoleão, Stalin e Hitler. A diferença, entretanto, é que dessa vez nenhum meio militar seria necessário. A mera coerção do poder estatal seria a mola propulsora para a criação de um poderoso estado central europeu.

De um ponto de vista tático, situações específicas de crise seriam utilizadas pelos partidários da visão socialista para criar novas instituições (tais como o Banco Central Europeu (BCE), ou, possivelmente, um Ministério Europeu das Finanças), bem como para ampliar os poderes das atuais instituições, como a Comissão Europeia e o próprio BCE.

A visão liberal-clássica e a visão socialista para a Europa são irreconciliáveis. Com efeito, o aumento no poder de um estado central — como proposto pela visão socialista — implica uma redução das quatro liberdade básicas (livre circulação de bens, livre oferta de serviços, livre movimentação de capital financeiro e livre migração) e certamente liberdades civis cada vez menores.

A história de uma batalha entre duas visões

Essas duas visões têm travado batalhas entre si desde os anos 1950. No início, o projeto das Comunidades Europeias era mais fiel à visão liberal-clássica.

As Comunidades Europeias eram formadas pela Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, que criava um mercado comum para carvão e aço; pela Comunidade Econômica Europeia, que promovia a integração econômica; e pela Comunidade Europeia da Energia Atômica, que criava um mercado especial para energia nuclear, fazendo sua distribuição pela Comunidade. 

A Comunidade Europeia era composta por estados soberanos e assegurava as quatro liberdades básicas. Do ponto de vista do liberalismo clássico, um dos principais defeitos de nascença do projeto eram os subsídios e as intervenções da política agrícola. Da mesma forma, desde seu nascimento, o único poder legislativo pertencia à Comissão Europeia. Assim, uma vez que a Comissão fizesse uma proposta legislativa, o Conselho da União Europeia poderia sozinho, ou em conjunto com o Parlamento Europeu, aprovar a proposta.

Esse arranjo já continha em si as sementes da centralização. Consequentemente, o arranjo institucional, desde seu início, havia sido projetado para acomodar a centralização e o controle sobre as opiniões minoritárias, uma vez que a unanimidade não era necessária para todas as decisões, e as áreas em que a regra da unanimidade se fazia necessária foram sendo reduzidas ao longo dos anos.

O modelo liberal-clássico é defendido tradicionalmente pelos democratas-cristãos e por países como Holanda, Alemanha e Reino Unido. Porém, os social-democratas e socialistas, normalmente liderados pelo governo francês, defendem a versão imperialista da Europa. Com efeito, em decorrência de sua rápida queda em 1940, dos anos da ocupação nazista, de seus fracassos na Indochina, e da perda de suas colônias africanas, a classe dominante francesa utilizou a Comunidade Europeia para readquirir sua influência e seu orgulho, e para se recuperar da perda de seu império.[2]

Com o passar dos anos, houve uma lenta porém contínua tendência rumo ao ideal socialista: os países-membros foram sendo obrigados a direcionar cada vez mais dinheiro de impostos de seus cidadãos para custear os orçamentos cada vez maiores da União Europeia; houve uma crescente perda de autonomia nacional, com sua transferência praticamente integral para Bruxelas; e, após a crise financeira de 2008, adotou-se uma nova política regional que efetivamente redistribui riquezas por toda a Europa.

Tudo isso culminou na situação atual. 

Só o Reino Unido, em termos líquidos, paga 136 milhões de libras por semana para a União Europeia. Por outro lado, a Grécia há muito tempo não contribui nada para o orçamento da UE, dado que a Alemanha cobre indiretamente suas contribuições por meio de empréstimos que a UE faz para a Grécia.

Inúmeras regulamentações econômicas e "harmonizações burocráticas e tributárias" ajudaram a empurrar ainda mais o arranjo para essa direção socialista. As políticas intervencionistas e centralizadoras da União Europeia criaram uma sombria situação econômica e financeira para seus países-membros: desemprego em massa, finanças públicas descontroladas, e perspectivas de crescimento desanimadoras.

Tudo isso insuflou os desejos separatistas da população do Reino Unido. A imposição da União Europeia para que o país aceitasse imigrantes muçulmanos após o conflito na Síria foi a gota d'água.

A integração forçada

Com a recente enxurrada de refugiados e imigrantes entrando na Europa, a pressão dos cidadãos britânicos sobre para a saída aumentou. Os burocratas de UE propuseram espalhar os imigrantes por vários países da Europa de acordo com um plano de re-assentamento pré-definido. Naturalmente, os britânicos não gostaram da ideia, pois, além das questões que envolvem a segurança nacional, os novos imigrantes geram uma pressão adicional sobre o estado assistencialista britânico. 

E, mesmo que absolutamente nenhum imigrante fosse realocado para o Reino Unido, os britânicos ainda assim teriam de financiar ao menos parcialmente o re-assentamento dos imigrantes no resto da Europa por meio dos impostos que pagam para sustentar a União Europeia. 

Mas essa questão da imigração é mais antiga. Foi só agora que o caldo entornou de vez, mas os conflitos gerados são antigos. Não apenas o influxo de imigrantes afetou o mercado de trabalho para os trabalhadores britânicos menos qualificados (insuflando os argumentos nacionalistas e protecionistas), como também afetou a cultura britânica, até mesmo o idioma. Já em 2009, o inglês não era o primeiro idioma de mais de meio milhão de estudantes nas escolas primárias da Grã-Bretanha. Isso mexeu com os brios de uma parte da população.

Por toda a Europa, a onda de imigração muçulmana em massa é frequentemente apresentada pelos políticos e intelectuais progressistas como sendo um grande salto para a frente, tornando a Europa uma sociedade mais multicultural (conceito esse que sempre foi promovido por essas pessoas como sendo o ideal).

No entanto, essa insistente ideia do "multiculturalismo" (uma versão do "marxismo cultural") pouco ou quase nada tinha a ver com diversidade ou interações culturais positivas, como se propagandeava. Em sua essência, políticas de integração forçada, ao criarem inevitáveis conflitos, abrem espaço para os governos intervirem mais amplamente na sociedade sob o pretexto de estar agindo como o protetor daquelas "minorias discriminadas", as quais vão se tornando cada vez mais dependentes do estado.

Políticos adoram esse arranjo, pois ele lhes confere mais poderes discricionários e mais argumentos para se criar novos programas de redistribuição de renda. A divisão social, as tensões e as discordâncias inevitavelmente geradas por esse arranjo criam um terreno fértil para mais restrições sobre as liberdades pessoais e a autonomia do indivíduo.

O Brexit

Os defensores da saída da União Europeia argumentaram que o Reino Unido havia perdido sua soberania e sua autonomia para tomar decisões — pois estas haviam sido transferidas para Bruxelas —, e estava pagando um alto preço, tanto político quanto econômico, para fazer parte da UE. 

A crise da imigração e a incapacidade de se adotar políticas nacionais autônomas para lidar com ela foi apenas mais uma manifestação dessa excessiva centralização de poderes em Bruxelas.

Em tese, com sua saída, a população do Reino Unido não mais terá de dar satisfações a uma entidade superior localizada em outro país, vista como intrusiva. Tampouco sua população poderá ser tolhida por essa entidade estrangeira. Os indivíduos poderão agora usufruir uma maior autonomia, podendo, agora localmente, resolver os problemas que são do interesse do povo britânico, e não da conveniência de burocratas em Bruxelas.

O fato é que o atual conceito de estado-nação é contrário à ideia de liberdade individual. Não há como ele ser reconciliado com a ideia de liberdade individual. E a situação fica ainda pior quando estados-nações começam a criar uniões, tentando unificar seus poderes em uma única estrutura burocrática — como a União Europeia.

Com a saída do Reino Unido da União Europeia, os britânicos têm em mãos uma oportunidade de frustrar o rolo compressor de Bruxelas, pelo menos por algum tempo, e decidirem com mais autonomia sobre o que realmente querem. No fundo, tudo se resume a esse pergunta: "quem deve decidir por nós?"

É verdade que os libertários não deveriam se preocupar com o conceito político "soberania nacional". Governos, em qualquer nível, não são regentes soberanos e jamais deveriam ser considerados dignos de determinar o curso de nossas vidas. No entanto, também é verdade que, quanto mais enfraquecido o elo entre o indivíduo e o corpo político que pretende lhe governar, maior a autonomia e o poder desse indivíduo.

Em última instância, o Brexit não foi um referendo sobre livre comércio, imigração, ou regras burocráticas impostas pelo (pavoroso) Parlamento Europeu e pela (pavorosa) Comissão Europeia. Foi, isso sim, um referendo sobre uma maior autonomia individual e sobre um menor poder a entidades políticas globalistas.

Libertários deveriam ver a descentralização e a redução do poder estatal como sempre sendo algo positivo, independentemente de quais sejam as motivações por trás de tais movimentos. Reduzir o tamanho, o escopo e o poder de domínio de qualquer estado (ou de qualquer união de estados) é decididamente algo saudável para a liberdade.


_________________________________________
Philipp Bagus, professor adjunto da Universidad Rey Juan Carlos, em Madri.  É o autor do livro A Tragédia do Euro.
Jeff Deist, o atual presidente do Ludwig von Mises Mises Institute.
Claudio Grass, diretor e presidente da empresa suíça Global Gold.


[1]  Roland Vaubel, "The Role of Competition in the Rise of Baroque and Renaissance Music," Journal of Cultural Economics 25 (2005): pp. 277-97, argumenta que o surgimento da música barroca e renascentista na Alemanha e na Itália resultou da descentralização desses países e da subsequente concorrência entre eles
[2] Larsson, Hans Albin. 2004. "National Policy in Disguise: A Historical Interpretation of the EMU.", p. 162.  Como escreve Larsson: "A arena na qual a França buscou ressuscitar sua honra e influência internacional foi a Europa Ocidental.  Como principal país da Comunidade Econômica Europeia, a França recuperou influência e, com isso, recompensou a perda de seu império — e tudo isso dentro de uma área onde a França, tradicionalmente e de diversas maneiras, sempre procurou ter domínio e influência". 
Já em 1950, o premiê francês René Pleven, propôs criar um Exército Europeu como parte da Comunidade de Defesa Europeia (sob a liderança da França).  Ainda que o plano tenha fracassado, ele fornece evidências de que, desde o início, os políticos franceses pressionaram pela centralização e pela visão imperial da Europa.  Uma exceção foi o presidente Charles de Gaulle, que se opunha a um estado europeu supranacional.  Durante a "crise da cadeira vazia", em junho de 1965, a França abandonou seu assento no Conselho dos Ministros por seis meses em protesto contra um ataque à sua soberania.  A Comissão havia pressionado por uma centralização do poder.  Entretanto, de Gaulle também estava tentando melhorar a posição e liderança da França nas negociações acerca da Política Comum Agrícola.  A Comissão havia proposto a criação de uma decisão por maioria de votos nesse quesito.  Os agricultores franceses eram os principais beneficiários dos subsídios, ao passo que a Alemanha era a principal contribuinte.  A decisão por maioria de votos poderia ter privado os agricultores franceses de seus privilégios.

Diversos Autores  Do site: http://www.mises.org.br/

quarta-feira, 22 de junho de 2016

A ERA DA INSANIDADE

A era do papel-moeda estatal não conversível em nada e lastreado apenas na confiança dos bancos centrais não para de se superar.

Iniciado oficialmente em 1971, após o fim do vínculo do dólar ao ouro, o grande experimento dos bancos centrais tem gerado excessos recorrentes nos mercados financeiros e não há sinal algum indicando que cessará em breve.

Enquanto no Brasil não conseguimos vislumbrar a mais mínima chance de uma taxa de juros de apenas um dígito, os bancos centrais de países desenvolvidos enfrentam o dilema de taxas em zero ou até negativas — juros de um dígito, jamais, isso seria suicídio.

E nesse processo, o Federal Reserve (Fed), o Banco Central Europeu (BCE) e companhia descarregam munição pesada, inédita, sem precedentes e tudo sem nenhum respaldo da teoria econômica, baseada unicamente no medo da deflação, de os mercados derreterem e de o sistema eclodir.

O cataclismo financeiro que deve ser evitado a todo custo.

Janet Yellen, a presidente do Fed, não retira nenhuma opção de cima da mesa; juros negativos podem ser adotados nos EUA sim. Mario Draghi, do Banco Central Europeu, promete fazer "tudo o que for necessário". Haruhiko Kuroda, do Banco Central do Japão, jura combater a deflação até as últimas consequências.

E o restante dos banqueiros centrais dança conforme a música: juros abaixo de zero, quantitative easing, compra de diversos ativos em larga escala.

A extraordinária liquidez injetada no sistema de alguma forma acaba se manifestando. Cedo ou tarde, aparecem os sintomas decorrentes das políticas monetárias não-convencionais implantadas, especialmente, desde a crise financeira de 2008.

As distorções nos preços dos ativos abundam. A magnitude das ações dos bancos centrais assombra cada vez mais. As economias patinam e o mercado laboral preocupa. Mas, a despeito de tudo o que foi feito, os índices de preços ao consumidor não registram aumentos expressivos. O que é pior — na visão dos banqueiros centrais —, em vários países o fantasma da deflação teima em não sumir.

Mas não se preocupem, defendem eles, está tudo sob controle. Eles sabem o que estão fazendo. Será que sabem mesmo?

Vejamos alguns fatos surreais da economia mundial atual que talvez nos façam, pelo menos, levantar alguns pontos de interrogação.

As políticas não convencionais: taxa básica de juros, QEs e balanços dos bancos centrais

1) Há 35 países com taxas de juros abaixo de 1%. Isso inclui todos os países do G8 e toda a Zona do Euro. Quase 50% do PIB mundial com juros nesse patamar inédito.

2) Com taxas abaixo de 3%, existem 50 países atualmente.

3) Há 5 bancos centrais que já adotaram alguma forma de taxa de juros negativa, ou 23 países submetidos a esse experimento inusitado (Japão, Dinamarca, Suécia, Suíça e todos membros da Zona do Euro).

4) O Federal Reserve está com juros entre zero e 0,5% há 90 meses, ou 7,5 anos. Quase uma década. Isso nunca ocorreu na história. No último meio século, os juros situaram-se ao redor de 1% por, no máximo, não mais do que 6 meses. E, segundo eles, ainda é cedo para mais elevações da Federal Funds Rate (a taxa básica de juros americana).

5) Faz mais de duas décadas que o Banco do Japão (BoJ) mantém os juros em zero.

6) Após as diversas rodadas de QE, o Fed multiplicou seu balanço por 5 em questão de seis anos, alcançando US$ 4,5 trilhões.

7) Já o Banco da Inglaterra aumentou em 5 vezes o seus ativos desde o estouro da crise de 2008.


8) Desde o início do chamado "Abenomics", em 2013, o Banco do Japão inflou o seu balanço em cerca de 200%.

9) O BoJ já está na nona rodada de QE.

10) O Banco Nacional da Suíça (BNS), na tentativa de sustentar um piso para o euro, expandiu seus ativos na ordem de 5,5 vezes desde 2008, ultrapassando 668 bilhões de francos, o que equivale a mais de 100% do PIB.

11) Já o BCE de Mario Draghi praticamente triplicou o balanço nos últimos seis anos.






12) A magnitude da expansão monetária perpetrada pelos BCs de países desenvolvidos é comparável a de países que enfrentaram alta inflação ou hiperinflação, como o Brasil da década de 80, o Zimbábue nos anos 2000, a Argentina na era Kirchner e a Venezuela nos últimos anos.

E o resultado disso tudo? Rendimentos dos títulos (taxa de juros, ou yield), índices de ações, e outros ativos

13) Os rendimentos dos bônus soberanos estão no menor patamar de toda a história financeira do mundo.

14) Os juros implícitos nos títulos da Holanda, cujos registros de dívida soberana datam de 500 anos atrás, nunca estiveram tão baixos.


15) O endividamento de grande parte dos governos também está em níveis recordes. Um paradoxo das finanças pós-bancos centrais.

16) Você se lembra da crise de dívida soberana de 2010/11 dos chamados PIIGS (Portugal, Itália, Irlanda, Espanha e Grécia)? À exceção da Irlanda, todas as demais nações estão com um endividamento maior que quando da eclosão da crise. Mas o custo do refinanciamento das dívidas despencou, a despeito de tudo. 

17) O German Bund de 10 anos (bônus da Alemanha) está sendo negociado a quase 0%, um recorde. Por sinal, está prestes a adentrar território negativo.

18) A Inglaterra realizou um leilão de títulos de 30 anos com cupons de 2,095%, algo inédito para o país. O Gilt de 10 anos também registra as menores taxas de juros da história. 

19) O corolário de juros em níveis irrisórios é o custo de refinanciamento baixíssimo para os governos. Em virtude disso, o Tesouro da Inglaterra resgatou em 2014 os primeiros títulos perpétuos — os quais pagavam um cupom de cerca de 5% e não tinham data para amortização — emitidos durante a bolha do South Sea Company, durante as guerras Napoleônicas e da Crimeia, e durante a Primeira Guerra Mundial.

20) A curva de juros da Suíça (yield curve) está negativa até 20 anos. Um recorde absoluto — e surreal — da história financeira mundial. O bônus com vencimento em 30 anos está em 0,07% ao ano. É possível que, no momento em que este artigo for publicado, a curva inteira já esteja abaixo de zero.

21) Já a curva de juros do Japão apresenta rendimentos negativos até 10 anos. Vender JGBs (japanese government bonds) a descoberto segue fazendo viúvas (widowmaker trade), há décadas. E o governo deve 250% do PIB.

22) Se o Bund de 10 anos ultrapassar a barreira do zero, toda a curva de juros da Alemanha também registrará taxas negativas até 10 anos.

23) Até meados de 2014, era desprezível a quantidade de títulos soberanos sendo negociados com rendimento abaixo de zero.

24) Há pouco mais de um ano, quase US$ 2 trilhões de bônus estavam sendo negociados com rendimentos abaixo de zero. 

25) Em janeiro deste ano, já havia um total de US$ 5 trilhões de dívida soberana com juros negativos.


26) Um mês depois, esse montante subiu para US$ 7 trilhões.

27) E, em junho, ultrapassou nada menos que US$ 10 trilhões.

28) Quase 90% do mercado global de dívida soberana, cerca de US$ 22 trilhões, rende não mais do que 2% ao ano.

29) O Banco do Japão detém hoje 35% da dívida pública do governo. Há 3 anos, isso não passava de 11%.

30) Nos EUA, o Fed carrega 15% da dívida pública federal. Em 2008, os Treasuries no balanço do Fed representavam apenas 5% do total emitido.

31) Quase US$ 1,8 trilhão é o valor das hipotecas no balanço do Fed. Sim, as notórias mortgage-backed securities(MBS, títulos lastreados em hipotecas) que quase quebraram o sistema bancário americano em 2008. O real valor de mercado desses ativos? Só Deus sabe.

32) Imagine o BACEN entrando pesado no mercado e comprando ações da Petrobrás, Gerdau, Ambev, Vale etc. Kafkiano, não? Pois é exatamente isso o que anda ocorrendo na terra do sol nascente. Como resultado dos estímulos agressivos do "Abenomics", o Banco do Japão é hoje um dos grandes acionistas em mais de 90% das empresas no Nikkei 225. Não, não é um erro de digitação. Leia novamente. São cerca de 200 empresas em que o BoJ é um grande acionista. Na Mitsumi Electric, o BoJ detém mais de 11% das ações.



33) Mais de 55% de todo o mercado de ETFs (Exchange Traded Funds) pertence ao BoJ.

34) Agora imagine o BACEN acumulando títulos de dívida emitidos pela Petrobrás, Gerdau, Ambev, Vale. Inacreditável, não? Pois o Banco do Japão também está fazendo isso. Em decorrência da crise de 2008, o BoJ passou a intervir no mercado para socorrer empresas com dificuldade de financiamento e hoje possui um portfólio de ¥ 5,5 trilhões (aprox. US$ 52 bi) de bônus corporativos e comercial-papers.

35) Consegue imaginar o BACEN comprando debêntures da Ambev? Nem precisa imaginar, basta olhar para o BCE, que já adquiriu papéis da AB Inbev no mercado europeu, como parte do recém-expandido Programa de Compras de Ativos (APP, Asset Purchase Programme). Depois de inundar o mercado com liquidez para cumprir a meta de € 60 bilhões em compras de títulos soberanos por mês, Mario Draghi agora ampliou o escopo da versão europeia do QE e, juntando-se ao BoJ, passou a "diversificar" o portfólio da autoridade monetária da UE, prometendo acrescê-lo com alguns bilhões de dívida corporativa a partir de junho.

36) Quando feito o anúncio, em março, apenas dívida com "grau de investimento" seria elegível ao programa do BCE. Mas, como Draghi definiu um piso aos rendimentos dos títulos a serem adquiridos — não menos que a taxa da deposit facility, atualmente em 0,40% negativos —, e uma boa parte dos bônus corporativos europeus já está sendo negociada abaixo de zero, o BCE se viu obrigado a ceder e logo na primeira intervenção no mercado comprou, além de AB Inbev, também dívida da Telecom Italia, classificada como "grau especulativo" pela Moody's e S&P.

37) Fixada inicialmente em -0,10%, a taxa da deposit facility logo teve de ser reduzida para 0,20% e depois -0,40% — como previsto neste artigo — porque o BCE restringiu a si próprio ao impor tal taxa como piso à compra de ativos. O problema é que, tão logo as compras começaram, Draghi acabou achatando e reduzindo toda a curva de juros na Europa. Resultado? Sobraram poucos títulos elegíveis para o QE. Reduzir ainda mais a taxa da deposit facility era inevitável.

38) Toda a curva de juros da Alemanha até 5 anos está com rendimentos abaixo de -0,40%. Isso significa que Draghi necessariamente trabalhará na ponta mais longa da curva e/ou comprará mais títulos de países periféricos como os do PIIGS.

39) Assim como o Fed, o BCE não tem intenção de reverter o seu balanço após as intervenções do QE. Quando do vencimento dos títulos, Draghi vai rolar ou reinvestir — mesmo se algum bônus virar "lixo" (junk). As empresas já têm se antecipado e emitido dívidas pensando no BCE como potencial comprador — as emissões neste primeiro semestre explodiram —, o que é lógico e inevitável, pois nada mais natural que aproveitar essa "janela de mercado" em que o único ente com "recursos ilimitados" (impressora de dinheiro) garante intervenções mensais bilionárias e sem data para expirar.

40) No escopo ampliado do Programa de Compras de Ativos (o APP) do BCE, a meta quantitativa passa a ser de € 80 bilhões por mês. Isso equivale à produção anual do Uruguai. Considerando um total de € 960 bilhões por ano, o APP é 40% maior que o PIB da Holanda, ou do tamanho do PIB da Espanha, ou um 1/3 do PIB da Alemanha. Mas ao contrário da produção anual de um país, produzir € 80 bilhões não custa praticamente nada ao BCE. Veja que lindo este didático vídeo sobre o APP:

41) Dos 616 bilhões de francos suíços detidos pelo Banco Nacional da Suíça na forma de investimento em moeda estrangeira, 20% correspondem a ações de empresas — ou CHF 123 bilhões —, o equivalente a 25% do valor de mercado de todas as empresas listadas na Bovespa. O Banco Central da Suíça é um dos grandes acionistas daApple, da Exxon Mobil, da Johnson & Johnson. Além disso, o BNS ainda possui CHF 74 bilhões de bônus corporativos em seu balanço.

42) Bancos Centrais são hoje um dos major players do mercado de ações. 

43) Obviamente, nos últimos 5 anos, diversos índices de ações bateram recordes históricos. A esmagadora maioria das bolsas de países desenvolvidos ou alcançou as máximas de toda a história (muitos se mantêm e seguem testando novos picos) ou estão no maior patamar desde a crise de 2008. Vejam o Dow Jones (mais de 18.000 pontos em 2015), o S&P 500 (mais de 2.100 pontos em 2015), a Nasdaq (mais de 5.200 pontos em 2015), o DAX (mais de 12.300 pontos em 2015), o Nikkei 225 (mais de 20.700 pontos em 2015). A lista é extensa.

O que tudo isso significa? Quais as implicações desse grande experimento? A resposta a essas perguntas será o foco da continuação deste artigo.
Por: Fernando Ulrich, mestre em Economia da Escola Austríaca, com experiência mundial na indústria de elevadores e nos mercados financeiro e imobiliário brasileiros. É conselheiro do Instituto Mises Brasil, estudioso de teoria monetária, entusiasta de moedas digitais, e mantém um blog no portal InfoMoney chamado "Moeda na era digital". Também é autor do livro "Bitcoin - a moeda na era digital". Do site: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2435


segunda-feira, 20 de junho de 2016

QUANDO A MEDICINA ENLOUQUECEU

A perda da identidade da Medicina e a necessidade de compreender o modelo hipocrático e cristão do Ocidente.

Copio a idéia deste título do livro When Medicine Went Mad, editado por Arthur Caplan [1], um grande bioeticista norte-americano. E se a Medicina pode enlouquecer, a conclusão é que há um padrão de sanidade a ser reconhecido.

Muitas vezes sou questionado sobre meu trabalho e minhas pesquisas. Por que se preocupar com o que médicos mortos há mais de mil ou dois mil anos disseram? Por que buscar os escritos desatualizados da tradição hipocrática e cristã?

É claro que os escritos antigos estão cientificamente desatualizados, mas guardam o aspecto eterno que repousa nos valores e na experiência humana. Remexo tanto no passado, e no presente, da Ética Médica e da Bioética porque trabalho com a essência da Medicina, com a nossa identidade enquanto profissionais da área da saúde.

Num antigo seminário promovido pela Associação dos Estudantes de Medicina em Vitória, no Espírito Santo, lembro-me de um colega que defendeu a possibilidade de a Medicina ser compatível com qualquer ideologia política que você tenha. O que defendi à época, e ainda defendo, é que essa idéia é errada e perigosa. Aliás, perigosíssima!

Enquanto os médicos não adquirirem a cultura e a bagagem humanística necessária, poderemos ser sempre alvos das piores monstruosidades e distorções da prática médica.

Basta uma pequena mudança de foco, um pequeno resultado de engenharia social, e pronto! O estrago está feito.

Se por algum momento o médico acreditar que seu principal objetivo não é beneficiar o paciente e sim, promover o progresso ou avanço da ciência, tudo estará perdido. Se por algum momento o médico acreditar que seu principal objetivo é promover um tipo de visão social coletivista e revolucionária, crimes inconfessáveis serão perpetuados.

Estes são os exemplos da medicina nazista e comunista. Adiante, oferecerei algumas passagens perturbadoras daqueles que viveram na carne o resultado da medicina que se esqueceu da própria identidade.

***
Após aceitar uma pequena idéia - a de que o principal dever do médico não é com seu paciente - tudo muda.

Sara Seiler Vigorito relata que, aparentemente, os médicos nazistas eram normais, tinham suas famílias, atendiam em hospitais e trabalhavam com diligência. A única exceção era a de que se dedicavam a um propósito alternativo.[2] Haviam de fato se desligado da tradição hipocrática e cristã da medicina.

O ser humano, uma vez destituído de sua posição de prioridade, virou simples mercadoria. Enquanto vivos, prisioneiros em campos de concentração nazistas eram utilizados como cobaias em experimentos desumanos. Uma vez sacrificados, seu cabelo serviria para fazer o estofo dos colchões, a gordura serviria para fazer o sabão (produzido pelos próprios prisioneiros e futuras fontes de “matéria prima”), a pele ofereceria tecido para produção de abajures e os dentes de ouro iriam para os cofres nazistas.[3]
Eva Kor e sua irmã sobreviveram aos horrores do campo de concentração nazista sob os cuidados do terrível Joseph Mengele.

Relatos especialmente assustadores nos alcançam daqueles que sobreviveram à experiência nos campos de estudos “científicos” em gêmeos, coordenados pelo médico Joseph Mengele, doutor em Antropologia, o mais famoso carniceiro entre os médicos nazistas. Eva Mozes Kor foi presa junto com sua irmã gêmea, e relata que gêmeos idênticos eram “preciosos” para Mengele.

Richard Baer, Josef Mengele e Rudolf Hoess

Havia de tudo. Desde vivissecções, passando por sutura corporal entre dois gêmeos para testar rejeição, até experimentos de injeção de microrganismos para testar eficiência de armas biológicas e a verificação de quanto sangue alguém poderia perder antes de morrer. E a sensação era a de que o ser humano se tornara um pedaço de carne.[4]

Gêmeos eram especialmente selecionados para as pesquisas de Mengele.

Posso compreender por que Margaret Somerville afirma que a idéia mais perigosa do mundo é acreditar que o ser humano nada tem de especial.[5] E também confirmo minha percepção inicial de que a medicina não é compatível com qualquer ideologia. Eu diria que ela é frontalmente oposta a determinadas ideologias.[6]

***

O tão famoso mantra de Georgetown, presente na abertura do livro mais famoso nos círculos de estudo da Bioética, proclama que os grandes problemas éticos do presente e a evolução tecnológica promovem desafios que precisam de uma nova ética. Citam a medicina nazista como exemplo.[7] Eu ouso dizer diferente: foi a insensibilidade moral de uma geração de médicos que optaram por ignorar a moralidade cristã e hipocrática que fundamentou a nossa medicina que permitiu tais atrocidades.

Muitos poderiam alegar que os médicos foram forçados a fazer isso por causa de um governo tirânico. Porém, evidências fortes indicam que médicos destituídos da identidade profissional adequada não somente se voluntariaram para processos de eugenia e pesquisa desumana, eles lideraram o establishment acadêmico, ocupando um alto percentual de reitorias, publicando centenas de periódicos científicos e integrando as fileiras nazistas.[8]

Qual foi o grande erro? Os médicos esqueceram quem eles eram e quem eles deviam buscar ser. Acreditaram que a nova racionalidade e a nova moralidade deveriam ascender em detrimento da moralidade de escravos que imperava anteriormente, como já dizia Nietzsche ao se referir à moralidade cristã.

Hoje a Bioética novamente parece sonhar uma libertação da antiga moralidade. Projetos fantásticos de libertação moral nos empurram para futuros mais eficazes, de alta tecnologia, de aprimoramento, de contenção de desperdícios, de uma visão nova sobre o que é o ser humano. E ao que parece, ainda não aprendemos as velhas lições, positivas ou negativas.

Mas assim é o crescimento moral do ser humano: a cada nova vida, um novo desafio para reconquistar e encarnar tudo aquilo que provou ser bom ao longo de nossa história. A medicina tem sua identidade e, portanto, tem um modelo bem específico a ser seguido em termos éticos. É claro que cada tempo exige novos arranjos, pois as situações específicas sempre mudarão trazendo novidades. Todavia, as regras gerais e fundamentais permanecem, e sempre permaneceram ao longo das eras entre os mais diferentes povos capazes do esforço civilizacional.[9]

Notas:

[1] CAPLAN, Arthur L. When Medicine Went Mad: Bioethics and the Holocaust. Totowa, New Jersey: Humana Press, 1999

[2] VIGORITO, Sara Seiler. A Profile of Nazi Medicine: The Nazi Doctor – His Methods and Goals. In: CAPLAN, Arthur L. When Medicine Went Mad: Bioethics and the Holocaust. Totowa, New Jersey: Humana Press, 1999, p. 9-13.

[3] KOR, Eva Mozes. Nazi Experiments as Viwed by a Survivor of Mengele’s Experiments. In: Ibid., p. 3-8.

[4] Ibid.

[5] SOMERVILLE, Margaret. Bird on an Ethics Wire: Battles about Values in the Culture Wars. Chicago: McGill-Queen’s University Press, 2015.

[6] Como já acredito que ficou claro em: ANGOTTI NETO, Hélio. A Morte da Medicina. Campinas: VIDE Editorial, 2014.

[7] BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, James. Principles of Biomedical Ethics. 7th edition. Baltimore: Oxford University Press, 2012.

[8] PROCTOR, Robert N. Nazi Biomedical Policies. In: CAPLAN, Arthur L. When Medicine Went Mad: Bioethics and the Holocaust. Totowa, New Jersey: Humana Press, 1999, p.23-42.
[9] LEWIS, Clive Staple. A Abolição do Homem. Rio de Janeiro: Editora MArtins Fontes, 2012.

Prof. Dr. Hélio Angotti Neto, autor do livro 
A Morte da Medicina, é coordenador do Curso de Medicina do UNESC, diretor da Mirabilia Medicinæ (Revista internacional em Humanidades Médicas), membro da Comissão de Ensino Médico do CRM-ES, visiting scholar da Global Bioethics Education Initiative do Center for Bioethics and Human Dignity em 2016, membro do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC e criador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina, SEFAM - www.medicinaefilosofia.blogspot.com.br.




terça-feira, 14 de junho de 2016

POR QUE A MONARQUIA É SUPERIOR À DEMOCRACIA

N. do T.: o artigo a seguir é uma transcrição de uma entrevista dada pelo professor Hoppe.

O sistema político que todos fomos ensinados a venerar desde cedo — seja pelas escolas cujos currículos são controlados pelo governo, seja pela mídia serviçal ao estado — é a democracia.

O que quero argumentar aqui é que a antiga forma de governo, a monarquia, não só era muito mais limitada, como também era mais pacífica, menos totalitária e mais propensa ao desenvolvimento de um país do que a democracia.

Democracia x Monarquia

O primeiro ponto a ser enfatizado é: estados — sejam eles monárquicos ou democráticos — não são empresas. Eles não produzem nada para ser vendido no mercado, e, como tal, suas receitas não advêm da venda voluntária de bens e serviços.

Ao contrário: estados vivem da coleta de impostos, que são pagamentos coercivos coletados sob ameaça de violência.

Portanto, sendo um anarcocapitalista, não sou apologista nem da monarquia e nem da democracia. Porém, se tiver de escolher um desses dois regimes maléficos, então é seguro dizer que a monarquia tem certas vantagens.

A razão é que os reis eram normalmente vistos pela população como aquilo que realmente eram: indivíduos privilegiados que podiam tributar seus súditos. E como todos sabiam que não podiam se tornar reis, havia uma certa resistência dos súditos contra as tentativas dos reis de aumentar impostos e expandir a exploração.

Sob a democracia, surge a ilusão de que nós somos nossos próprios governantes, de que governamos a nós mesmos. Entretanto, como já deveria estar mais do que claro, sob a democracia também existem soberanos e os súditos desses soberanos. Porém, o fato de que qualquer um pode potencialmente se tornar um funcionário público é algo que, além de também ajudar a estimular a ilusão de que governamos a nós mesmos, leva a uma redução daquela resistência que havia contra os reis quando estes tentavam aumentar suas receitas tributárias – afinal, o aumento da receita do estado ser-lhe-á favorável caso você seja um dos soberanos.

Há ainda outras desvantagens da democracia.

Na monarquia, o rei pode ser visto como uma pessoa que considera o país sua propriedade privada, e as pessoas que vivem nele são seus inquilinos, que pagam um tipo de aluguel ao rei.

Por outro lado, consideremos os políticos eleitos sob um sistema democrático. Estes políticos não são os proprietários do país da maneira como um rei o é; eles são meros zeladores temporários do país, por um período que pode durar quatro anos, oito ou mais.

E a função de um proprietário é bastante diferente da função de um zelador.

Imagine duas situações distintas: na primeira, você se torna o proprietário de um imóvel. Você pode fazer o que quiser com ele. Você pode morar nele para sempre, você pode vendê-lo no mercado — o que significa que você tem de cuidar muito bem dele para que seu preço possa ser alto —, ou você pode determinar quem será seu herdeiro.

Na segunda situação, o proprietário desse imóvel escolhe você para ser o zelador dele por um período de quatro anos. Nesse caso, você não pode vendê-lo e não pode determinar quem será seu herdeiro. Porém, você ganha um incentivo novo: extrair o máximo possível de renda desse imóvel durante o período de tempo que lhe foi concedido.

Isso implica que, na democracia, o zelador temporário é incentivado a exaurir o valor do capital agregado do país o mais rápido possível, pois, afinal, ele não tem de arcar com os custos desse consumo de capital. O imóvel não é dele. Ele não tem o que perder com seu uso irrefletido. Por outro lado, o rei, como proprietário do imóvel, tem uma perspectiva de longo prazo muito maior que a do zelador. O rei não vai querer exaurir o valor agregado de seu imóvel o mais rapidamente possível porque isso se refletiria em um menor preço do imóvel, o que significa que sua propriedade (o país) seria legada ao seu herdeiro a um valor menor.

Portanto, o rei, por ter uma perspectiva de longo prazo muito maior, tem o interesse de preservar — ou, se possível, aumentar — o valor do país, ao passo que um político em uma democracia tem uma orientação voltada para o curto prazo e quer maximizar sua renda o mais rapidamente possível. Ao fazer isso, ele inevitavelmente irá gerar perdas no valor do capital de todo o país.

Guerras

As guerras sob um regime monárquico tendiam a ser, como certa vez descreveu Mises, guerras exclusivamente entre soldados, ao passo que as guerras feitas por democracias envolvem o homicídio em massa de civis em uma escala jamais vista na história humana.

Essa diferença tem a ver novamente com o fato de que os monarcas consideram o país como sua propriedade. Tipicamente, os monarcas faziam guerras para resolver disputas de propriedade. “Quem é o dono de determinado castelo? Quem é o dono de determinada província?” O objetivo de uma guerra monárquica sempre era limitado e específico.

Já as guerras feitas por democracias tendem a ser guerras ideológicas. Ora quer-se liberar um país de alguma ditadura, ora quer-se converter um país a uma determinada ideologia. E é difícil determinar quando tal objetivo foi de fato atingido. A única maneira certa de atingi-lo é matando toda a população do país que se está tentando invadir ou ocupar.

Um monarca, obviamente, jamais teria tal interesse, pois ele quer adicionar — em vez de destruir — uma determinada província, uma determinada cidade ou mesmo um determinado castelo à sua propriedade privada. E, para atingir esse objetivo satisfatoriamente, é de seu interesse causar os mínimos danos possíveis – afinal, de nada adianta adquirir bens destruídos e sem valor.

Portanto, embora para um monarca fosse mais fácil começar uma guerra, também lhe era mais fácil determinar quando o objetivo havia sido atingido, o que dava fim à guerra.

Nunca houve alguma motivação ideológica que levasse diferentes reis a guerrearem entre si, ao passo que as democracias — assim como as guerras religiosas — são um conflito de civilizações, um conflito de sistemas de valores praticamente impossível de se controlar.

Ademais, as guerras iniciadas por reis eram vistas pelo público meramente como um conflito entre monarcas, uma vez que os reis geralmente dependiam de voluntários para lutarem suas guerras. Já nas democracias, todo o país participa da guerra, todos os seus recursos são forçosamente desviados para o esforço da guerra e nele são exauridos.

Com a democracia surgiu também o serviço militar obrigatório — uma situação típica em várias democracias atuais —, no qual os indivíduos são obrigatoriamente recrutados e forçados a ir às guerras. O argumento utilizado para tal escravidão mortal é: “já que agora você tem uma participação no estado (afinal, estamos em uma democracia), você também tem de lutar as guerras do estado”.

Já sob uma monarquia as pessoas não tinham uma participação no estado; o estado era visto como pertencente ao rei, sendo os cidadãos uma entidade completamente separada do estado. Por causa disso, o envolvimento da população nas guerras monárquicas era muito limitado.

Nacionalismo

Erik von Kuehnelt-Leddihn costumava dizer que uma das coisas de que ele mais gostava nos regimes monárquicos era o fato de que havia muito menos nacionalismo — o nacionalismo, obviamente, é uma característica democrática dos séculos XX e XXI.

Sob a monarquia não havia nada de errado em ser, por exemplo, um nobre germânico e ir trabalhar para a czarina da Rússia. Pessoas que lutavam em vários lados também não eram consideradas “traidoras” da pátria.

Foi com a ascensão da democracia que tivemos a ascensão da beligerante e inauspiciosa filosofia do nacionalismo.

As altas aristocracias foram, por assim dizer, as pessoas mais “internacionais” da história da civilização. Praticamente todos os altos nobres eram interrelacionados com aristocratas de outros países. O Kaiser alemão, por exemplo, tinha relações com os monarcas britânicos e russos. Todos os soberanos de Europa também tinham, de alguma forma indireta, ligações com Maomé — logo, com países islâmicos.

Quando havia contendas entre monarcas, estas eram vistas como brigas entre famílias. Sendo assim, o sentimento de nacionalismo era impossível de surgir — até porque, novamente, os nobres eram a mais internacionalista das classes de pessoas que existiam. Portanto, sentimentos nacionalistas eram totalmente estranhos e atípicos para uma classe como aquela.

E isso certamente poupou várias vidas e evitou muito empobrecimento.
Por Hans -Hermann Hoppe Do site: http://rothbardbrasil.com/