sábado, 31 de maio de 2014

BELEZA ROUBADA


Há muito suspeitava que um dia as mulheres mais bonitas iam ser de alguma forma castigadas por nossa sociedade. Meu temor, em parte, se confirmou. Incluindo aí também um castigo para os homens mais bonitos. E por quê? Porque pesquisas recentes parecem provar que homens mais bonitos e mulheres mais bonitas têm mais sucesso profissional, e isso é "imperdoável" num mundo em que a inveja e o ressentimento fazem a política das nações. Vivemos numa era do ressentimento.

Claro, dirão que critérios de beleza variam. Sim, numa certa medida mais gordinhas hoje parecem estar em baixa. As magrelinhas podem fazer sucesso em passarelas e nos espelhos de lojas, mas nem sempre encantam o desejo de todos os homens. E mais: não creio que as figuras das "bruxas" deixem alguma dúvida sobre o que era "feio" (não me refiro às mulheres, muitas delas bonitas, que hoje se dedicam a cultos da Europa pré-cristã).

De qualquer forma, o livro "Beauty Pays: Why Attractive People Are More Successful" (A beleza paga: por que as pessoas mais atraentes são mais bem-sucedidas), de Daniel Hamermesh (indicado pelo excelente artigo do "Valor Econômico"), aprofunda o que é essa beleza que paga bem no mercado profissional. O artigo parte da bela Marissa Meyer, CEO do Yahoo!, para discutir o novo problema a ser enfrentado pelos mais bem-sucedidos que forem mais belos.

Os burocratas dos tributos (em países como os EUA), parasitas que passam o dia pensando em como tirar dinheiro de quem produz dinheiro, já tiveram uma ideia incrível: taxar quem tiver mais sucesso profissional e for bonito.

Como será que esse personagem de Kafka (vejo-o como um rato cheio de formulários na mão) vai fazer para identificar a beleza como parte da razão de uma pessoa ser ainda mais achacada pelo fisco? Testemunhos dos "prejudicados" na carreira pela "injusta" beleza dos outros? O livro em questão, no seu capítulo oito, discute as possíveis "proteções legais para os feios"!

Difícil dizer, mas sem dúvida vão descobrir uma forma, porque o Estado está sempre aquém na "ponta da entrega", mas sempre além da imaginação em competência na "ponta da arrecadação".

A base do ódio organizado à beleza e à riqueza (travestido de taxação em nome da justiça "sócio-estética") é o velho ressentimento. Nietzsche é um analista social e político muito mais sofisticado do que o guru Marx. Luta de classes é o "nome fantasia" do ressentimento que se tem contra os mais afortunados e mais competentes. É difícil aceitar que algumas pessoas sejam mais capazes e mais afortunadas (a velha Fortuna de Maquiavel, que, como toda mulher, ama a ousadia e a coragem) do que outras.

Adam Smith, pai da noção de sociedade comercial (ou sociedade de mercado), sabia que havia um risco de crescimento da "frouxidão" generalizada com o enriquecimento. Mas a contingência (ou acaso ou fortuna) que está na base da visão de mundo de Smith fere nossa sensibilidade de carentes.

Sua "cosmologia" não parece reconhecer uma ordem inteligente superior que equilibre de modo "justo" as diferentes capacidades pessoais. A famosa "mão invisível" equilibraria apenas os resultados totais da riqueza, mas não a inveja de quem é menos capaz.

A sociedade de mercado é uma ferida narcísica incurável para quem nela fracassa. E é difícil não ser, uma vez que todos somos infelizes e carentes em algum nível. Os "marcadores" dessas diferenças que ninguém quer dizer o nome (beleza, riqueza, inteligência, originalidade), acolhidas pela sociedade de mercado, são detestados pelo narcisismo carente, fonte inesgotável de ressentimento.

Portanto, a psicologia nietzschiana do ressentimento deveria ser mais levada a sério quando se discute política no mundo contemporâneo.

Dica: o ódio às belas, rancor atávico das feias, o ódio aos mais capazes, rancor atávico dos menos capazes, nunca foi descrito de modo tão claro como pela filósofa Ayn Rand em seu "Revolta de Atlas" (uma das referências bibliográficas que nossa universidade nega a seus alunos), livro antídoto às mentiras do ressentimento. Leia. 
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP


sexta-feira, 30 de maio de 2014

A VITÓRIA DE KHOMEINI

LONDRES - Leio nesta Folha que o governo iraquiano pretende aprovar nova legislação matrimonial para mulheres xiitas. "Mulheres" é força de expressão: no Iraque, o casamento era possível para maiores de 18 anos.


Agora, com a provável reeleição do premiê Nuri al-Maliki, a ideia é passar para metade: com nove anos, a noiva pode subir ao altar, cumprir todos os desejos do marido e, caso o organismo o permita, engravidar.

Mas não pense que a nova lei "desprotege" os direitos das "mulheres" de nove anos: existe sempre a possibilidade de divórcio para elas desde que o marido seja impotente ou, melhor ainda, vítima de castração.
Imagino que, caso a castração seja efetuada pela própria "mulher" de nove anos, o caso não seja pacífico nos tribunais religiosos locais.

Confrontado com essa notícia, um sujeito racionalmente equilibrado dirá que a nova lei não é, em rigor, uma lei matrimonial. É uma expressão de selvageria, sancionando o abuso de crianças —ou, para não usar eufemismos, permitindo a violação pedófila para os grandes machos do Iraque, que temem sexualmente as mulheres adultas e por isso preferem caçar na escola primária.

Mas o Ocidente chegou a um tal ponto de covardia moral e miséria intelectual que qualquer crítica sobre o Outro será sempre um "preconceito" —e, pior que isso, um crime. Melhor não dizer nada.

Que o diga Paul Weston. Esclarecimento: o sr. Weston é um político britânico ligeiramente amalucado que se candidata às eleições europeias pelo extremista Liberty GB. As ideias do homem, que oscilam entre o ridículo e o lunático, não fazem a minha praia.

Mas um episódio recente fez manchetes nos jornais aqui de Londres: quando fazia campanha nas ruas, Paul Weston cometeu a imprudência de ler um trecho de Winston Churchill onde o antigo premiê britânico tecia considerações pouco simpáticas sobre os muçulmanos.

Foi o que bastou para que a polícia chegasse ao local e enfiasse Weston na cadeia.

Lendo o trecho em questão, não há nele qualquer incitamento ao ódio racial —e, pelos padrões do excêntrico Churchill, a prosa é relativamente anódina.
Mas o espantoso da situação é que o país que nos deu John Stuart Mill —um dos grandes defensores da liberdade, e sobretudo da liberdade para ofender terceiros- considera que é função do seu governo proteger a sensibilidade de grupos ou minorias de tudo aquilo que as desagrada ou ofende.

Como é evidente, o problema aqui não está no sr. Paul Weston, por mais desagradável que a criatura seja. Está no próprio texto de Churchill —e nos milhares de textos da cultura ocidental nos quais muçulmanos, judeus, cristãos, hindus, budistas, índios, negros, druidas, fadas ou gnomos são tratados com "desrespeito".

Quem prende um político por ler um desses trechos pode, pela mesma ordem de ideias, censurar qualquer texto, qualquer filme, qualquer quadro, qualquer escultura, qualquer peça de teatro que ofenda a sensibilidade dos mais sensíveis. O resultado lógico desse processo psicótico é a destruição retroativa da cultura que sobreviveu até nós.

Há precisamente 25 anos, o aiatolá Ruhollah Khomeini, sem ler "Os Versos Satânicos" de Salman Rushdie, condenou o escritor à morte por ofensas ao Profeta e ofereceu US$ 1,5 milhão a quem executasse o serviço.
Khomeini está morto, Rushdie está vivo e os otimistas afirmam que, na luta entre a escuridão e a luz, a luz acabou por vencer.

Os otimistas estão errados. Para começar, a "fatwa" de Khomeini continua válida sobre a cabeça de Rushdie. E, depois, mesmo em 1989 não faltaram escritores ocidentais que, entre a escuridão e a luz, optaram pelas trevas.

A revista "Vanity Fair", para celebrar a data, lembra o caso de John Le Carré, que escreveu um dos textos mais sabujos contra Rushdie (e "compreendendo" o desagrado do aiatolá). Eu já conhecia esse caso e confesso que desde 1989 não entra um único romance de Le Carré aqui em casa.

Passaram-se 25 anos, sim. Mas, esteja lá onde estiver, o aitolá Khomeini pode olhar cá para baixo e sentir-se orgulhoso com a descendência que deixou. O clima de medo que ele inaugurou contra Rushdie acabou por derrotar a coragem e a razão do Ocidente. Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

O NOME DE UM JORNAL

"Não queríamos nos apropriar do nome de Cuba para usá-lo como nossa marca e, no seu lugar, escolhemos o mais universal dos códigos: os números." Yoani Sánchez cumpriu a promessa que anunciou em sua visita ao Brasil e lançou, dias atrás, o jornal eletrônico 14ymedio. O nome inspira-se em referências temporais (2014) e espaciais (o andar do apartamento de Yoani, onde funciona a Redação), bem como na ideia de comunicação ("medio": veículo), e inclui um atestado de origem: o Y, referência a seu blog, "Generación Y". Num gesto de respeito à diversidade política, "Cuba" ficou de fora: 14ymedio está dizendo que Cuba é a pátria de todos os cubanos, não uma propriedade ideológica. É por isso que, horas depois da inauguração, o site do jornal foi bloqueado pelos servidores da Cuba castrista.


"Queremos produzir um jornal que não pretende ser anti-Castro, comprometido com a verdade e a realidade cotidiana dos cubanos", explicou o editor Reinaldo Escobar, demitido da publicação oficial "Juventud Rebelde" em 1988 e proibido de exercer sua profissão. 14ymedio evitará usar "palavras carregadas" como "ditadura" e "regime", preferindo expressões como "o chefe de Estado" ou "o presidente general Raúl Castro", completou Escobar. Não são iniciativas destinadas a obter uma (impossível) tolerância do regime, mas a demarcar o terreno: o veículo não é um jornal partidário, militante, mas apenas um jornal. É isso que o torna insuportável aos olhos da ditadura castrista.

"Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados." A célebre definição de Millôr Fernandes não representa um elogio da imprensa militante, mas uma constatação básica, cuja relevância aumenta na razão direta do crescimento dos gastos publicitários governamentais: o jornalismo independente sempre dirá aquilo que não interessa ao poder de turno. O caminho da moderação escolhido por 14ymedio não o torna menos oposicionista, especialmente num país onde discordar do governo é oficialmente classificado como trair a pátria. Em Cuba, os internautas que tentam acessar o novo jornal são redirecionados a uma página consagrada à difamação de Yoani Sánchez. A espúria identificação entre o governo e a pátria é um pilar essencial do regime castrista.

"Deem-me a liberdade de conhecer, de pronunciar e de debater livremente, de acordo com minha consciência, acima de todas as liberdades", escreveu John Milton em 1644 no "Areopagitica", que solicitava ao Parlamento inglês a anulação da exigência de licença oficial para imprimir. O panfleto de Milton está na origem da liberdade de imprensa e da aventura histórica do jornalismo. Seu argumento é que, ao longo do tempo, a obra coletiva de incontáveis autores individuais produziria um saber valioso, muito superior ao saber circunstancial dos censores a serviço do governo. Esse tema, tão antigo, conserva evidente atualidade na nossa era digital. O lançamento de 14ymedio reativa a polêmica deflagrada em meio à Guerra Civil Inglesa do século 17: a liberdade do jornal produzido no 14º andar de um edifício do centro de Havana não é um mero "problema cubano".

"Estou preso e sou feliz, pois me sinto mais livre que muitos que estão nas ruas ou na União de Escritores e Artistas de Cuba", respondeu Ángel Santiesteban, em entrevista publicada na edição inaugural de 14ymedio. Santiesteban já foi agraciado com o Prêmio Casa das Américas, principal distinção literária concedida pelo regime cubano. Há 13 meses cumpre pena por delito de opinião. Cuba é um teste político e moral para os intelectuais de esquerda. No Brasil, até agora e com honrosas exceções, eles foram reprovados. Não se viu um manifesto pela libertação de Santiesteban. Duvido que solicitem a liberdade para o 14ymedio. Eles acham que a liberdade deve ser um privilégio de usufruto restrito aos que concordam com eles. Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP


quinta-feira, 29 de maio de 2014

QUEM REALMENTE ESTÁ CAUSANDO A CARESTIA NO BRASIL


A percepção da carestia na rotina dos brasileiros é real. Nas filas de supermercados, nos restaurantes a quilo, no comércio em geral e nos serviços contratados, as reclamações já não se restringem a apenas um ou outro bem ou serviço. A realidade é que a palavra inflação voltou com tudo para o léxico dos consumidores.

De fato, os números da carestia são bastante preocupantes. No setor de serviços, por exemplo, a inflação de preços acumulada em 12 meses foi de 9,1% em março. Esse foi osegundo maior valor desde 1999 (ano em que foram adotados o sistema de metas de inflação e o uso da SELIC como ferramenta básica para a política monetária). O maior valor ocorreu em janeiro de 2012, quando a taxa acumulada em 12 meses foi de 9,2%.

Já a inflação acumulada em 12 meses para os bens não-comercializáveis — ou seja, todos os produtos e serviços que não sofrem concorrência de importados — fechou março em 8,09%, após chegar ao pico de 9,70% em maio de 2013.

Em todo o governo Dilma, a média da inflação de preços do setor de serviços está, no momento, em 8,45% ao ano. E a média da inflação de preços dos bens não-comercializáveis está em 8,28%. Para ambos os casos, trata-se da maior média já observada desde 1999

Ou seja, esses dois lamentáveis recordes de carestia pertencem ao governo Dilma e à atual equipe do Banco Central, que já se consolidou como a pior da era do real. Tal incompetência, no mínimo, ajuda a explicar por que as pessoas repentinamente se tornaram preocupadas com a carestia e por que a popularidade da presidente segue em queda.

No entanto, um fenômeno inusitado vem chamando a atenção: no início de abril de 2013, a taxa SELIC estava em 7,25%. Um ano depois, ela já está em 11%. A inflação de preços, no entanto, segue impávida.

Esse fenômeno açulou uma controvérsia que até então estava razoavelmente adormecida: afinal, o Banco Central elevar a taxa básica de juros funciona ou não para combater a inflação? 

Até mesmo alguns colunistas mais experientes se mostram particularmente atordoados. Segundo eles, após todo esse "aperto monetário" promovido pelo Banco Central, era para a inflação de preços ter arrefecido. Mas isso não ocorreu. Pior ainda: a carestia não apresenta o mais mínimo sinal de folga. Por quê?

A pergunta que várias pessoas estão fazendo é: se a economia está crescendo pouco — a média do crescimento econômico do governo Dilma só será melhor que a média obtida nos 3 anos do governo Collor — e a criação de empregos está estagnada há um ano, de onde está vindo a pressão para essa carestia? Por que os preços seguem subindo e não dão sinais de arrefecimento?

Há duas causas.

A primeira causa

A primeira causa — que não é a principal — está ligada às expectativas ruins dos agentes econômicos. 

Segundo alguns analistas, a falta de uma política fiscal mais austera e transparente seria o principal motivo de as expectativas de inflação ainda se mostrarem resistentes. Essas expectativas negativas dos agentes econômicos, que pioram continuamente, estariam estimulando remarcações preventivas nos preços.

Já outros analistas afirmam que o governo errou ao permitir que a inflação se mantivesse longe do centro da meta — de 4,5% ao ano — por tanto tempo. Isso enviou aos agentes econômicos a mensagem de que o governo é tolerante com a inflação, o que ampliou a onda de pessimismo e desconfiança.

Para piorar, a evidente submissão da atual equipe do Banco Central às pretensões políticas de Dilma — que, junto com Guido Mantega e Arno Augustin, implantou uma malfadada "Nova Matriz Econômica" — jogou a credibilidade do BACEN ao chão. 

Empenhada em ter a menor SELIC da história, Dilma pressionou para que o BACEN atuasse nesse sentido. Obediente, o BACEN reduziu a taxa básica de juros para 7,25% em outubro de 2012, o menor nível de sua história. E nesse valor ela permaneceu por seis meses, mesmo com a carestia já em ascensão. Ao mostrar essa submissão ao Palácio do Planalto, o Banco Central perdeu toda aquela confiança que usufruía junto ao mercado durante a gestão Henrique Meirelles.

Portanto, para esses analistas, o maior problema da economia brasileira é a desconfiança gerada pelo governo. Ela estaria inibindo os investimentos produtivos que poderiam aditivar a economia, gerar um aumento da oferta e, com isso, arrefecer um pouco a pressão sobre os preços. 

Aquelas distorções que sempre oprimiram a economia brasileira, e com as quais fomos forçados a conviver passivamente — como infraestrutura precária, carga tributária sufocante, burocracia asfixiante e baixa qualidade da mão-de-obra —, não estão, no momento, no topo da lista de reclamações. Por ora, não são esses os problemas que estão inibindo empresários a aumentar seus investimentos. O problema realmente é a falta de credibilidade do governo.

Ao colocar em risco os fundamentos mais básicos da economia, ao aceitar a inflação de preços no teto na meta por tanto tempo, ao gastar mais do que arrecada, e ao fazer intervencionismos pontuais — como intervir em contratos no setor de energia, alterar o marco do setor petrolífero, segurar os preços dos combustíveis, e adotar políticas de impostos e de tarifas de importação com o intuito de incentivar alguns setores escolhidos segundo critérios políticos e eleitoreiros —, o governo criou insegurança e se transformou no maior inibidor dos investimentos, cuja ausência restringe a oferta e pressiona os preços para o alto.

Muito bem.

Todos esses argumentos apresentados pelos analistas estão corretos. Os fatos são verdadeiros e a lógica é impecável. Com efeito, a questão das expectativas é essencial para o bom funcionamento de uma economia. O economista americano Robert Higgs, seguidor da Escola Austríaca, cunhou o termo "Incerteza Gerada pelo Regime", e sua obra explica cristalinamente tudo isso que estamos vivenciando na prática aqui no Brasil.

Havendo previsibilidade, regras claras, inflação sob controle e um governo comprometido com um orçamento equilibrado, até mesmo deficiências graves como infraestrutura precária, impostos altos, burocracia soviética e mão-de-obra cara e pouco produtiva não se tornam obstáculos intransponíveis. Os investimentos ainda ocorrem. Porém, quando o governo intervém, passa a fazer microgerenciamentos, e deixa claro que questões básicas como inflação de preços e responsabilidade fiscal não mais são importantes, a coisa degringola. As questões objetivas, como os problemas estruturais do país, deixam de pesar nas decisões empresariais. Um fator subjacente — a desconfiança — ganha proeminência e se torna o mais influente.

No entanto, ainda há um problema: embora todos esses fatos e argumentos sejam verdadeiros, eles, por si sós, não explicam completamente a carestia. Há algo mais poderoso por trás de tudo isso, e que está dando sustento a esses contínuos e inabalados aumentos de preços.

A segunda e principal causa da carestia

Poucos sabem, mas, no Brasil, por determinação do governo federal, praticamente metade dos empréstimos feitos pelos bancos cobram juros menores do que a SELIC. 

Em outras palavras, isso significa que metade dos empréstimos feitos pelos bancos praticamente não são afetados por aumentos da taxa básica de juros da economia, a qual, supostamente, deveria servir de baliza para todas as outras taxas de juros da economia. 

Ou, falando ainda mais claramente, isso significa que o Banco Central pode subir a SELIC o quanto quiser — as taxas de juros destes empréstimos praticamente não serão afetadas.

Esta modalidade de crédito é chamada de "crédito direcionado" ou também de "crédito com recursos direcionados". Consiste na obrigatoriedade do fornecimento de empréstimos subsidiados para o setor rural, para o setor imobiliário (aquisição de imóveis), para o setor exportador e para grandes barões do setor industrial. 

E quem são os bancos que fazem esses empréstimos cujos juros praticamente não são afetados pela SELIC? Os bancos estatais, majoritariamente Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES. 

Veja aqui nesta tabela alguns valores. Observe na coluna "taxa de juros" os valores cobrados das pessoas físicas e das pessoas jurídicas. De abril de 2013 a março de 2014, a SELIC subiu de 7,25% para 11%. No entanto, neste mesmo período, a média das taxas de juros do crédito direcionado quase não se moveu: para as pessoas jurídicas, a média dos juros subiu de 7,2% para 8%; e para as pessoas físicas, subiu de 6,7% para 7,2% em fevereiro, e depois para 8% em março.

Quer um exemplo prático do que isso significa? Um conhecido meu (eu sei, também odeio esse clichê de "conhecido meu", mas juro que o caso é verídico), que é produtor rural, comprou uma Strada de R$40.000 por meio de um programa do governo federal chamado Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). Esse programa obriga o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal a fazerem empréstimos a juros subsidiados para produtores rurais. A taxa de juros cobrada? Meros 3% ao ano. É sério, pode conferir aqui, no item 9. Essa taxa de juros é simplesmente metade da taxa de inflação anual. Aliás, como mostra o link, dependendo do preço do maquinário adquirido, a taxa de juros pode ser de mísero 1,5% ao ano.

Outro exemplo: o Banco do Brasil está oferecendo empréstimos para a aquisição de imóveis a juros de 6,37% ao ano, uma taxa que também é menor do que a inflação de preços. Um banquete para os especuladores imobiliários. E há também o inefável BNDES, cujos empréstimos para o grande baronato industrial cobram juros de ínfimos 5% ao ano.

E então, você sabia que, para a metade do seu crédito, o Brasil tem um dos menores juros reais do mundo?

A taxa SELIC influencia apenas o chamado "crédito livre" ou "crédito com recursos livres". Como o próprio nome diz, trata-se dos empréstimos que os bancos podem fazer para quem quiser, cobrando juros de mercado. Eis aqui a tabela com os juros desta modalidade. Bem mais altos e variando de acordo com a SELIC.

E qual a consequência de tudo isso? O gráfico abaixo mostra de maneira translúcida.

A linha azul mostra o total de crédito concedido pelos bancos privados (Itaú, Bradesco, Santander, HSBC, Citibank e outros pequenos). A linha vermelha mostra o total de crédito concedido pelos bancos estatais (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES e demais bancos públicos estaduais, como Banrisul, BRB, Banco do Nordeste, Banco da Amazônia, Banestes )



Antes de fazermos algumas constatações, tenha em mente que, no nosso atual sistema monetário e bancário, quando uma pessoa ou empresa pega empréstimo, os bancos criam dinheiro do nada — na verdade, meros dígitos eletrônicos — e simplesmente acrescentam esses dígitos na conta do tomador do empréstimo. Ou seja, todo esse processo de expansão de crédito nada mais é do que um mecanismo que aumenta a quantidade de dinheiro na economia. (Mesmo o BNDES, que antigamente utilizava apenas recursos do FAT, teve sua operação alterada, e agora também se tornou uma máquina de criar dinheiro, ainda que de maneira indireta

O gráfico acima, portanto, mostra quanto dinheiro foi criado pelos bancos privados (linha azul) e pelos bancos estatais (linha vermelha) em operações de concessão de empréstimo.

Eis algumas constatações óbvias:

1) O crédito no Brasil já se encontra efetivamente estatizado, pois o volume de crédito fornecido pelos bancos estatais ultrapassou o volume de crédito fornecido pelos bancos privados.

2) A partir de 2008, o crescimento do crédito fornecido pelos bancos estatais assumiu um formato exponencial, e, até a presente data, vem se mostrando totalmente indiferente a alterações na SELIC. Isso ocorre porque o crédito fornecido pelos bancos estatais é majoritariamente do tipo 'crédito direcionado'.

3) O comportamento dos bancos privados ocorre estritamente de acordo com as expectativas para a economia. Foi comedido em 2003, eufórico de 2004 a 2008, comedido em 2009, eufórico em 2010, razoavelmente cauteloso em 2011 e desanimado a partir de 2012.

4) Os bancos estatais estão completamente fora de controle, criando dinheiro e jogando esse dinheiro na economia de forma exponencial. De 2008 até hoje, eles sozinhos jogaram mais de R$1 trilhão na economia brasileira. Estão claramente seguindo ordens políticas.

5) São os bancos estatais os principais causadores da carestia que estamos vivenciando no Brasil. Quanto mais dinheiro eles jogam na economia, maior é a pressão sobre os preços.

6) Os bancos privados, ao reduzirem substancialmente o ritmo de seus empréstimos, aliviaram um pouco da pressão altista nos preços.

7) As causas desse ritmo mais brando na concessão de crédito pelos bancos privados são várias, mas as duas principais são o alto endividamento da população (o que reduz a demanda por crédito e piora o histórico de crédito dos tomadores) e a deterioração das expectativas quanto ao futuro da economia.

8) Caso os bancos privados estivessem tão descontrolados quanto os estatais, a inflação de preços provavelmente já estaria nos dois dígitos.

Conclusão

Atualmente, a política de juros do Banco Central não afeta aquela linha vermelha. Ela afeta apenas a linha azul. Ou seja, a política monetária atua apenas sobre o crédito livre, que é quase todo fornecido pelos bancos privados. Na prática, os bancos estatais estão fora do âmbito da política monetária do BC. Isso significa que o combate à carestia via simples aumento da SELIC exigirá um esforço dobrado. 

E isso gerou uma sinuca do bico: se o próximo governo quiser realmente atacar a carestia, a SELIC terá de ser elevada a níveis mais fabulosos (em 2003, ela teve de ir a 26,5%). Só que isso irá asfixiar o crédito dos bancos privados, e consequentemente elevar ainda mais o grau de estatização do crédito.

Portanto, a solução mais óbvia e prática é acabar com esse descontrole dos bancos estatais e enquadrá-los nas mesmas regras vigentes para os bancos privados. Como disse Edmar Bacha, "Em Brasília, os presidentes dessas instituições dão tchauzinho para o pessoal do BC". 

Em última instância, são os bancos estatais os responsáveis pelos juros e pela inflação de preços serem altos no Brasil. Dado que eles são imunes à SELIC e dado que eles são responsáveis pela metade dos empréstimos feitos no Brasil, a conclusão óbvia é que a SELIC tem de estar em um nível duplamente mais alto apenas para encarecer os empréstimos feitos pelos bancos privados e, com isso, reduzir um pouco o processo de criação de dinheiro.

Caso os bancos estatais operassem sob as mesmas leis que valem para os bancos privados, a SELIC seria menor e, consequentemente, os juros cobrados pelos bancos privados também seriam menores do que são hoje; por outro lado, os juros cobrados pelos bancos estatais seriam maiores do que são hoje. No geral, teríamos taxas de juros (do crédito livre) e de inflação de preços um pouco mais civilizadas.

Essa situação anômala que estamos vivenciando é apenas mais um exemplo prático das nefastas consequências do intervencionismo estatal, dessa vez no crucial setor bancário. Da próxima vez que você vir algo cujo preço aumentou substancialmente nos últimos meses, pense nos logotipos da CEF, do BB e do BNDES. E lembre-se dos políticos que dão ordens a essas instituições.


Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

THOMAS PIKETTY E SEUS DADOS IMPROVÁVEIS



O principal livro de Keynes, A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, está repleto de teoria econômica. Há apenas duas páginas contendo dados, e Keynes ainda desqualifica esses dados dizendo que são "improváveis".

Em contraste, o novo livro do francês Thomas Piketty, O Capital do Século XXI, que é a sensação mundial do momento, é recheado de dados. Ironicamente, Piketty se considera um sucessor daquele mesmo economista cujos dados Keynes descartou como improváveis: Simon Kuznets. Quase todas as pessoas que realmente leram o livro admitem que o argumento teórico de Piketty é fraco. No entanto, seus defensores prontamente contra-argumentam: "Mas veja todos esses dados! Não dá para argumentar contra todo esse volume de evidências históricas!"

O principal argumento de Piketty é que a riqueza (que tende a se concentrar em poucas mãos) cresce mais rapidamente do que a economia, de modo que aqueles que já possuem muita riqueza vão se tornando cada vez mais ricos em relação a todos os outros. Supostamente, esta seria uma característica inevitável do capitalismo.

(Se essa tese lhe soa familiar, é porque ela realmente é: a teoria de Piketty é apenas uma repetição mais atualizada do que Marx e Keynes já haviam dito, embora seja válido lembrar que Keynes zombou da maioria das coisas ditas por Marx, classificando-as como "embuste").

Mas qual seria então a prova de que a riqueza cresceu mais rápido do que a economia?

Analisemos o gráfico abaixo, que foi adaptado do livro de Piketty. A linha roxa é o retorno sobre o capital e a linha amarela é a taxa de crescimento da economia mundial. A linha roxa supostamente mostra como os ricos estão se saindo e a linha amarela, como o cidadão médio está progredindo. Observe que as partes de ambas as linhas localizadas na extrema direita do gráfico são meramente uma projeção de Piketty, e não dados históricos.



Este gráfico é espantoso por várias razões. Em primeiro lugar, ele sugere que o capital apresentou um retorno de 4,5% ou mais, por ano, no período que vai do ano 0 ao ano 1800. Este valor é insano. Por exemplo, se toda a raça humana houvesse começado o ano 1 com uma riqueza total de apenas US$10, um crescimento composto de 4,5% ao ano durante 1.800 anos faria com que, atualmente, fossemos mais de um trilhão de vezes mais ricos do que realmente somos — lembrando que a riqueza total do mundo foi estimada pelo Credit Suisse em US$241 trilhões de dólares.

Esse valor de 4,5% de retorno sobre o capital também é insano porque o próprio Piketty argumenta, e muito corretamente, que todo o crescimento econômico ocorrido antes da Revolução Industrial foi insignificante, o que significa que retornos tão altos para os ricos simplesmente não são compatíveis com um crescimento tão ínfimo. A verdade é que, durante boa parte desse período, os ricos estavam mais interessados em gastar ou em esconder suas riquezas a investi-las, pois, naquela época, expor suas riquezas significava se tornar suscetível a ser roubado — ou por bandidos ou pelo governo.

Por fim, se analisarmos mais atentamente a parte mais atual do gráfico (1913 a 2012) e ignorarmos a projeção feita para o futuro, veremos que as linhas também não dão sustentação à tese de Piketty. A ideia de que, no capitalismo, os ricos sempre necessariamente se tornam mais ricos em relação a todos os outros simplesmente não é corroborada pelos dados que ele apresenta.

Já o gráfico seguinte mostra a fatia da riqueza nas mãos dos 10% mais ricos da Europa ao longo do tempo (linha azul-escura), a fatia de riqueza nas mãos dos 10% mais ricos dos EUA (a linha verde clara), a fatia da riqueza nas mãos do 1% mais rico da Europa (linha azul-clara) e a fatia da riqueza nas mãos do 1% mais rico dos EUA (a linha verde-escuro).

Este gráfico também não corrobora a tese de Piketty. Sim, a fatia dos ricos cresceu desde 1970, mas só depois de ter caído acentuadamente antes.



Finalmente, o próximo gráfico mostra a renda dos 10% mais ricos dos EUA ao longo do tempo em termos da porcentagem da renda total do país.

Renda, neste caso, inclui também os ganhos de capital, que, em termos práticos, não representam renda verdadeira, mas sim apenas uma troca de um ativo por outro. E exclui as transferências de renda feitas pelo governo, exclusão essa gera uma grande alteração nos resultados. Ainda assim, mais uma vez, não se observa nenhum aumento inexorável na renda dos mais ricos ao longo do tempo. Longe disso.



O que realmente vemos no gráfico acima são dois picos para as pessoas de maior renda: um imediatamente antes da crise de 1929 e o outro imediatamente antes da crise de 2008. Ambos os picos ocorreram justamente durante as duas maiores bolhas econômicas da história americana, nas quais o Banco Central americano, em conluio com o sistema bancário, estimulou a expansão do crédito e criou muito dinheiro, o que gerou uma falsa e insustentável prosperidade. Ambas também foram eras que representaram o ápice do capitalismo corporativista — também chamado de "capitalismo de compadrio" —, no qual aquelas pessoas ricas que tinham conexões com os governos utilizaram o dinheiro criado pelo sistema bancário para se tornar ainda mais ricas ou simplesmente se beneficiaram de outras políticas governamentais que as favoreciam.

Infelizmente, após a crise de 2008, o ativismo dos bancos centrais ao redor do mundo inflou outra bolha nos mercados de capitais. Isso elevou a fatia da renda dos mais ricos novamente para o patamar de 50% da renda total em 2012, baseando-se em dados foram disponibilizados após a publicação do livro. Só que essa nova bolha também irá estourar, o que derrubará a fatia da renda dos mais ricos de volta ao patamar dos 40% observados em 1910, início do período analisado pelo gráfico.

Talvez a afirmação mais surpreendente do livro de Piketty é a de que as burocracias governamentais terão de ser reformadas para que possam fazer um uso mais eficiente de toda a receita adicional que será gerada pelos novos impostos sobre renda e sobre a riqueza que ele recomenda. A suposição é a de que o controle governamental quase que completo sobre a economia seria o melhor arranjo, só que esse mecanismo ainda necessita de alguns ajustes para ser definitivamente implantado.

Ludwig von Mises demonstrou, há quase 100 anos, que uma economia gerenciada pelo estado simplesmente não tem como funcionar, pois, entre outros problemas, ela não é capaz de estabelecer preços racionais. Só uma economia guiada pelos consumidores pode fazer isso. Os socialistas têm tentado refutar a tese de Mises desde então, mas nunca conseguiram. Piketty deveria ao menos ler Mises.



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Para ver outro artigo que refuta, com fatos e dados empíricos, a tese central de Piketty, leia este:

Tradução de Pedro Borges Griese

Hunter Lewis é autor de nove livros, dentre eles dois novos: Free Prices Now!  e Crony Capitalism in America: 2008-2012. Lewis é o co-fundador do movimento anti-corporativista Against Crony Capitalism.org.  Também foi criador e presidente da Cambridge Associates, uma empresa de investimentos atuando em nível global.  Já participou do conselho de 15 organizações sem fins lucrativos, dentre elas organizações ambientalistas, pedagógicas, culturais e de pesquisa.  Também já foi membro do Banco Mundial.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

A IGUALDADE ECONÔMICA É IMORAL E ATENTA CONTRA O "BEM COMUM"


"Pessoas livres não são iguais, e pessoas iguais não são livres".

Gostaria muito de saber quem foi a primeira pessoa a proferir essa máxima. Ela certamente está entre as maiores verdades de todos os tempos, uma que é ao mesmo tempo simples e repleta de profundos significados.

A igualdade perante a lei — por exemplo, ser julgado inocente ou culpado baseando-se exclusivamente em você ter cometido o crime, e não em sua cor, gênero ou crença — é um ideal nobre ao qual nenhuma pessoa de bom senso se opõe. Por isso, não é o tema deste artigo. A "igualdade" a que a frase acima se refere está relacionada à renda econômica e à riqueza material.

Colocando de outra maneira, portanto, a frase pode ser lida da seguinte forma: "Pessoas livres terão rendas distintas. Em arranjos nos quais as pessoas têm obrigatoriamente a mesma renda, elas não podem ser livres".

A igualdade econômica em uma sociedade livre é uma miragem com a qual os redistributivistas sonham — e frequentemente se mostraram muito dispostos a derramar sangue para implantá-la.

A questão é que indivíduos livres são indivíduos intrinsecamente diferentes entre si, de modo que não deveria ser surpresa nenhuma o fato de que eles terão rendas distintas. Nossos talentos e nossas capacidades não são idênticos. Nem todos nós trabalhamos com o mesmo afinco, com a mesma dedicação e com a mesma qualidade. Cada um de nós nasceu em famílias distintas, sendo que cada família possui suas vantagens e suas desvantagens. Também nascemos em diferentes vizinhanças, somos cercados por diferentes tipos de pessoas, recebemos diferentes tipos de incentivos e temos diferentes graus de oportunidade.

É até compreensível que, perante esse ponto de partida desigual, os progressistas queiram remediar a situação implantando políticas governamentais "corretivas". O que eles realmente não entendem é que a cura que eles propõem é muito pior do que doença. Qualquer tentativa de corrigir desequilíbrios nas famílias e nas vizinhanças irá gerar outras desigualdades que podem ser piores do que as originais. 

Thomas Sowell certa vez disse que "Tentativas de se equalizar os resultados econômicos geram desigualdades maiores e mais perigosas de poder político". Ou, como concluiu Milton Friedman, "Uma sociedade que coloca a igualdade à frente da liberdade terminará sem as duas. O uso da força para alcançar a igualdade irá destruir a liberdade, e a força, introduzida com bons propósitos, irá terminar nas mãos de pessoas que irão utilizá-la para promover seus próprios interesses".

Ademais, mesmo se todos nós, magicamente e subitamente, passássemos a ter a mesma riqueza, já no dia seguinte voltaríamos a ser desiguais, pois alguns iriam gastar seu dinheiro e outros iriam poupá-lo.

Em uma economia de mercado, rendas distintas sempre serão uma realidade. E tem de ser assim. Essa diferença de renda ocorrerá em decorrência de fenômenos tão distintos quanto incontroláveis, como talento nato, ambição, energia, disposição, saúde, sorte, percepção correta quanto às demandas do consumidor, parceria com as pessoas corretas etc. Sendo assim, a igualdade econômica só poderá ser tentada (mas nunca alcançada) por meio de monstruosas e contínuas agressões empreendidas por funcionários do governo. O resultado mais provável será uma igualdade de miséria (muito embora os membros da elite política serão mais iguais do que o resto do povo). Igualdade a um nível decente de prosperidade é algo que está muito além da capacidade do estado, como bem ilustram Cuba e Coréia do Norte.

Para produzir uma mínima quantidade de igualdade econômica, os governos teriam de expedir as seguintes ordens (e estar disposto a impingi-las com pelotões de fuzilamento e agentes carcerários): "Não se sobressaia, não trabalhe com mais afinco do que seu vizinho, não tenha boas e novas ideias, não corra nenhum risco, e não faça nada de diferente em relação ao que você já fez ontem". 

Em outras palavras, não seja humano.

Pessoas obcecadas com igualdade econômica — ou, para empregar um termo mais clínico, com o igualitarismo — tendem a fazer coisas estranhas. Elas se tornam invejosas. Elas passam a cobiçar o que é dos outros. Elas dividem a sociedade em dois grupos: vilões e vítimas. Elas gastam mais tempo e energia tentando derrubar e destruir uma pessoa bem sucedida do que se esforçando para se aprimorar, para se tornar uma pessoa melhor e, com isso, subir na vida. São pessoas ressentidas e rancorosas, e não é nada divertido estar perto delas. Quando tais pessoas eventualmente conseguem chegar ao poder, os estragos que elas fazem podem ser irreversíveis. Elas não mais apenas chamam a polícia; elas passam a ser a polícia.

Se a desigualdade econômica é uma opressão, punir o esforço, o mérito e o sucesso não é uma cura. Medidas coercivas que visam à redistribuição de riqueza farão apenas com que os espertos e os politicamente bem-relacionados enviem sua riqueza para o exterior ao passo que os desafortunados terão de arcar com o fardo do inevitável declínio econômico. Uma medida muito mais produtiva seria reduzir o imenso e burocrático aparato governamental — que, com suas regulações que impedem a livre concorrência, com sua inflação que destrói o poder de compra, com suas tarifas de importação que proíbem a aquisição de produtos bons e baratos do exterior — faz com que os pobres se perpetuem nessa condição.

Por outro lado, é fato que há algumas formas de desigualdade econômica condenáveis. Por exemplo, a desigualdade produzida por um capitalismo mercantilista, no qual o estado — por meio de agências reguladoras, tarifas de importação e subsídios — protege os grandes empresários, certamente é indesejável. Por isso, é importante fazermos uma distinção entre empreendedores econômicos e empreendedores políticos. Os primeiros criam valor para a sociedade; ao passo que os últimos simplesmente descobriram como transferir recursos de terceiros para seus próprios bolsos.

Em vez de apenas confiscar a riqueza dos mercantilistas — uma medida inócua que manteria intacto todo o aparato de redistribuição dos pobres para os ricos —, muito mais sensato seria abolir todos os arranjos que permitem o corporativismo, o que levaria à imediata bancarrota desses mercantilistas. Curiosamente, os progressistas de hoje parecem não se importar muito com esse arranjo.

Quando fazemos essa distinção entre mercantilistas e genuínos empreendedores, é possível ver a diferença entre produtores e parasitas. A desigualdade oriunda do empreendedorismo honesto, longe de indicar que algo está errado, significa que há um progresso generalizado na economia. Em um sistema no qual todos melhoram sua situação por meio da atividade criativa e das trocas voluntárias, algumas pessoas inevitavelmente irão se tornar ricas. Trata-se de uma característica natural do sistema — um sistema que recompensa empreendedores e investidores por terem sido bons administradores do capital. 

Obviamente, quando tais pessoas não se mostram bons administradores do capital, elas quebram. Em outras palavras, pessoas que fazem investimentos ruins ou que não servem bem aos consumidores não permanecerão ricas por muito tempo — a menos que o governo decida intervir para salvá-las.

A menos que ela tenha enriquecido contratando advogados e lobistas em vez de pesquisadores e criadores, uma pessoa rica enriqueceu porque criou bens e serviços valiosos para seus consumidores. Sendo assim, a ausência de pessoas muito ricas é um péssimo sinal em uma economia, especialmente para os pobres. Tal ausência, com efeito, indicaria uma das duas coisas a seguir: ou muito pouca coisa de valor foi criada (dificilmente haveria coisas boas e gostosas, como iPhones e trufas) ou o governo incorreu em uma predatória política de redistribuição de renda, destruindo os incentivos para as pessoas serem criadoras de valor e boas gestoras de capital.

No que mais, vale a pena enfatizar que diferenças na propriedade de ativos não significam uma igual diferença no padrão de vida, muito embora várias pessoas tenham esse fetiche. Por exemplo, a riqueza de Bill Gates de ser 100.000 vezes maior do que a minha. Mas será que ele ingere 100.000 vezes mais calorias, proteínas, carboidratos e gordura saturada do que eu? Será que as refeições dele são 100.000 vezes mais saborosas que as minhas? Será que seus filhos são 100.000 vezes mais cultos que os meus? Será que ele pode viajar para a Europa ou para a Ásia 100.000 vezes mais rápido ou mais seguro? Será que ele pode viver 100.000 vezes mais do que eu? 

O capitalismo que gerou essa desigualdade é o mesmo que hoje permite com que boa parte do mundo possa viver com uma qualidade de vida muito melhor que a dos reis de antigamente. Hoje vivemos em condições melhores do que praticamente qualquer pessoa do século XVIII.

Sempre que você vir ou ouvir uma pessoa parolando sobre desigualdade, faça a si mesmo a seguinte pergunta: será que ela está genuinamente preocupada com os pobres ou está apenas indignada com os ricos? Eis uma maneira de descobrir a diferença: sempre que alguém reclamar sobre a desigualdade de renda, pergunte a ela se aceitaria que os ricos ficassem ainda mais ricos se isso, no entanto, significasse condições de vida melhores para os mais pobres. Se a resposta for "não", então ela está admitindo que está importunada apenas com o que os ricos têm, e não com o que os pobres não têm. Já se a resposta for "sim", então a tal desigualdade de renda é irrelevante. Em outras palavras, a preocupação deveria ser com a pobreza absoluta, e não com a pobreza relativa.

Em quase todas as discussões sobre desigualdade de renda, há uma básica dinâmica emocional atuando. Uma pessoa descobre que possui menos do que a outra, e passa ter a inveja. Já outra descobre que tem mais do que o resto, e passa se sentir culpada. Inveja, culpa e indignação. São realmente essas emoções primitivas que deveriam conduzir as políticas públicas? 

Toda essa ideia de igualdade econômica não representa nenhuma genuína forma de compaixão. Quando é somente uma ideia, é fraca. Quando se torna política pública, torna-se um desastre em larga escala.

O fato de que pessoas livres não são iguais em termos econômicos não deve ser lamentado. Ao contrário, é motivo de regozijo. A desigualdade econômica, quando oriunda da interação voluntária de indivíduos criativos, e não de conexões políticas, é um testemunho do fato de que as pessoas estão sendo elas mesmas, cada qual colocando seus talentos e aptidões ímpares para funcionar de maneiras que são gratificantes para elas próprias e que geram bens e serviços valiosos para terceiros. Como diriam os franceses em um contexto mais diferenciado,Vive la difference!


EU SOU UM GENUÍNO LIBERTÁRIO


Eu sou um libertário. Não sou afiliado a nenhum partido político. Não sou progressista nem conservador. Não sou de esquerda nem de direita. Não sou moderado nem radical. Não sou um fusionista. Não estou aberto a concessões.

Sou um libertário puro e inflexível. Para mim, há apenas uma única forma de libertarianismo: aquela que se baseia única e exclusivamente no Princípio da Não-Agressão. Isso significa que, para um genuíno libertário, a lei deveria proibir a iniciação de violência contra pessoas inocentes (tanto as que não cometeram crimes quanto as que querem apenas empreender) e contra sua propriedade. Ponto. O libertarianismo é apenas isso e nada mais do que isso. Não há nada mais no libertarianismo do que as implicações desse axioma básico — o que já é muita coisa.

Por que estou dizendo isso? Porque, de uns tempos para cá, tem havido algumas tentativas, tanto da esquerda quanto da direita, de sequestrar o movimento libertário. 

A esquerda vem tentando sequestrar o movimento libertário acrescentando ao Princípio da Não-Agressão sua típica agenda progressista. Daí surgem bizarrices como dizer que um libertário tem de ser publicamente contrário ao patriarcalismo, ao machismo, a uma hierarquia de poderes dentro das famílias, à homofobia, ao racismo, ao preconceito, ao brutalismo etc. 

Outros vão ainda mais longe e dizem que um libertário deve ser abertamente feminista, pró-movimento gay, e deve fazer apologia de movimentos contra-culturais e ser adepto de estilos de vida alternativos. Alguns chamam isso de libertarianismo humanitário, outros de libertarianismo denso (porque engloba várias características), e ainda há aqueles que chamam isso de "Novo Libertarianismo".

O que essas pessoas não entendem é que ser libertário significa única e exclusivamente se opor à iniciação de agressão contra inocentes. Ponto. É só isso e nada mais do que isso. É perfeitamente possível você ser um racista nojento, ter total aversão a gays e ainda assim ser libertário: basta você guardar para si sua visão de mundo e não implantá-la sobre terceiros. Você pode ser totalmente contra a prática do homossexualismo e totalmente avesso a qualquer ideia feminista; o que você não pode fazer é iniciar agressão contra essas pessoas. Aja assim e você será um libertário.

Quão difícil é entender isso?

Mas o problema não vem apenas da esquerda. Uma tentativa de guinar o libertarianismo para a direita também vem ocorrendo de maneira igualmente intensa. Há alguns direitistas que, assim como os esquerdistas, também querem criar sua própria forma de "libertarianismo denso", exortando libertários a aceitar ideias conservadoras.

Daí a necessidade de fazer estes esclarecimentos.

Sou um libertário. Não sou um libertário "denso" nem "diluído". Não sou brutalista nem humanista. Não sou holista ou solipsista. Não sou moralista nem consequencialista. Não sou aberto nem fechado. Não sou um libertário modal, nem cosmopolita, nem cultural, nem sofisticado. Tampouco sou um "libertário de bom coração". Não sou neo, nem milenar, nem de segunda onda. Sou simplesmente um libertário, do tipo que não precisa de rótulos, não cria advertências, não faz concessões e nem pede desculpas.

Sou libertário. O libertarianismo é uma filosofia política que se preocupa exclusivamente com o uso da coerção e da violência. Não se trata de uma filosofia política que diz que o melhor tipo de governo é um governo limitado. Não se trata de uma filosofia política socialmente liberal e economicamente conservadora. Não se trata de uma filosofia política que diz que o governo é menos eficiente do que o setor privado. Não se trata de uma filosofia política que diz que a liberdade pode ser alcançada por meio da promoção de determinadas políticas governamentais em detrimento de outras. Não se trata de uma filosofia política que advoga um "liberalismo com impostos baixos". 

O libertarianismo não é a ausência de racismo, de machismo, de homofobia, de xenofobia, de nacionalismo, de nativismo, de classismo, de autoritarismo, de patriarcado, de desigualdade ou de hierarquia. Libertarianismo não é diversidade ou ativismo. Libertarianismo não é igualitarismo. Libertarianismo não é tolerância ou respeito. Libertarianismo não é uma atitude social, estilo de vida, ou sensibilidade estética.

Sou um libertário. Sou seguidor do Princípio da Não-Agressão, o qual diz que o único papel adequado para a violência é o de defender o indivíduo e a propriedade contra agressões, e que qualquer uso da violência que vá além de tal defesa é em si mesma agressiva, injusta e criminosa. O libertarianismo, portanto, é uma teoria que afirma que todos devem estar imunes a agressões e que devem ser livres para fazer o que lhes aprouver, desde que isso não signifique agredir a pessoa ou a propriedade de outro.

Meu interesse é nas ações; não estou preocupado com os pensamentos. Estou interessado apenas nas consequências negativas de pensamentos. Acredito que o Princípio da Não-Agressão tem de ser estendido ao governo. Os libertários devem, portanto, se opor à — ou tentar limitar ao máximo a — intromissão dos governos tanto em nível doméstico quanto internacional, pois os governos são os maiores violadores do Princípio da Não-Agressão.

Sou um libertário. Acredito na regra de ouro. Acredito na filosofia do "viva e deixe viver". Acredito que uma pessoa deve ser livre para fazer o que quiser, desde que sua conduta seja pacífica. Acredito que os vícios não são crimes.

Sou um libertário. Nosso inimigo é o estado. Nossos inimigos não são a religião, as corporações, as instituições, as fundações ou as organizações. Elas só têm hoje o poder de nos fazer mal por causa de sua ligação com o estado. Retire os subsídios, as medidas protecionistas, e as regulações que as protegem da concorrência, e elas rapidamente passarão a ser inócuas. Mais ainda: serão inteiramente subserviente a nós consumidores.

Sou um libertário. Acredito no laissez- faire. Qualquer indivíduo deve ser livre para incorrer em qualquer atividade econômica, sem licença, permissão, proibição ou interferência do estado. O governo não deve intervir na economia de nenhuma forma. Acordos de livre comércio, vouchers educacionais e a privatização da Previdência Social não são de forma alguma ideias libertárias.

Sou um libertário. O único governo bom é aquele que não existe. O segundo melhor governo é aquele que menos governa. Como disse Voltaire, governo, em seu melhor estado, é um mal necessário e, no seu pior estado, é intolerável. A melhor coisa que qualquer governo poderia fazer seria simplesmente nos deixar em paz.

Sou um libertário. Imposto é roubo praticado pelo governo. O governo não tem direito a uma determinada porcentagem da renda de ninguém. O código tributário não tem de ser simplificado nem reduzido, e não precisa ser mais justo ou menos intrusivo. As alíquotas de imposto não têm de ser nem diminuídas, nem igualadas e nem se tornar menos graduais. O imposto de renda não precisa de mais e maiores deduções, e nem de lacunas, abrigos, créditos ou isenções. Todo esse sistema pútrido tem de ser abolido. As pessoas têm o direito de manter para si tudo o que ganharam e decidir por si mesmas o que fazer com seu dinheiro: gastá-lo, desperdiçá-lo, torrá-lo, doá-lo, legá-lo, guardá-lo, investi-lo, queimá-lo, apostá-lo.

Sou um libertário. Não sou um libertino. Não sou um hedonista. Não sou um relativista moral. Não sou devoto de algum estilo de vida alternativo. Não sou um revolucionário. Não sou um niilista. E não desejo me associar a ninguém que tenha essas características; mas também não desejo agredir aqueles que têm. Acredito na liberdade absoluta de associação e discriminação.

Eu sou um libertário.

Espero não haver mais dúvidas.


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Participaram deste artigo:
Laurence Vance, acadêmico associado ao Mises Institute, escritor freelancer, professor adjunto de contabilidade da Pensacola Junior College, em Pensacola, Flórida, e autor dos livros Social InsecurityThe War on Drugs is a War on Freedom, King James, His Bible, and Its Translators e War, Empire, and the Military: Essays on the Follies of War and U.S. Foreign Policy

terça-feira, 27 de maio de 2014

UM RETRATO DA SAÚDE BRASILEIRA - UM DESAFIO DE DOIS MÉDICOS



"Direito" à saúde

A área da saúde pode ser — e é! — negativamente influenciada pela interferência das ideologias socialistas e, consequentemente, da intervenção estatal. Este artigo foi escrito por quem está do lado de cá: clinicando, operando e passando por todo o tipo de dificuldades em tentar ser médico em um país onde a pérfida influência comunista, na disfarçada figura da social democracia, já lançou de forma quase que definitiva seus tentáculos.

Talvez devamos iniciar com uma das frases mais ditas nos últimos 30 anos, minuciosamente pensada e formulada pela inteligentsia: "Saúde, um direito de todos". Tal afirmação positiva é uma grande falácia.

Aqui, vale fazer uma recordação sobre as transformações ideológicas e também sobre as palavras que perderam o sentido, e relembrarmos que "direito" se transformou em uma palavra universal nesse nosso mundo dominado por um estado forte que quer cuidar de tudo e a todos prover — ou pelo menos promete isso.

É fundamental conceituar a definição de "bem", que juridicamente significa 'tudo aquilo que pode ser propriedade de alguém'. Ou ainda, tudo o que é 'útil para poder satisfazer a necessidade de alguém'. Economicamente falando, um bem também se caracteriza pela utilidade e escassez, podendo ser assim um bem de consumo (duradouro e não-duradouro).

E é nesse sentido que gostaríamos de classificar agora a saúde ou o acesso à saúde: não como um direito, mas como um bem de consumo como outro qualquer, sobre o qual atuam as regras da oferta e da procura e da livre concorrência. Sobretudo, vale também a regra da livre escolha do consumidor, a qual, em todos os modelos em que foi aplicada, só produziu preços competitivos, desenvolvimento e fartura.

A saúde, ao ser tratada como um direito a ser suprido pelo estado, tem como único resultado um serviço pífio, quando não a escassez completa. Devemos relembrar que, na antiga União Soviética, até mesmo o setor de alimentação foi envolvido nas regulamentações do estado, e o resultado foi a fome, quando não genocídio por inanição.

Mas de onde se originou todo o problema com a saúde brasileira? O que acontece é que temos uma Constituição até certo ponto recente (26 anos), que foi escrita após um longo período de ditadura militar e com uma demanda reprimida muito grande por serviços e melhorias ditas "sociais". O resultado foi uma carta magna que muito promete e pouco realmente pode cumprir. E não só na área da saúde, mas em todas as áreas básicas, como educação e segurança, e até mesmo na infraestrutura. 

Vivemos, pois, somente em um ambiente profético, no qual o estado promete mundos e fundos. Para a população, só resta esperar e acreditar que seu novo deus a sustente eternamente, transformando assim o estado em uma abstração com um fim superior.

O serviço público não funciona simplesmente porque recai no mesmo problema da impossibilidade de haver um cálculo econômico sob um sistema socialista, conforme descrito por Mises. A regra se aplica integralmente ao SUS, nosso sistema único ou universal de saúde — na verdade um simulacro de sistema de saúde.

Como em todos os serviços públicos, o estado, essa figura amorfa, detém um comando centralizado sobre o sistema, atuando como um líder supremo cujas ordens são sempre ditadas de forma vertical (sempre de cima para baixo), desconsiderando o tamanho do país envolvido e ignorando as variáveis econômicas e culturais de cada região. Esse sistema funciona com burocracia extrema — que é aquilo que faz o estado ser o estado —, e cujos burocratas têm como figura suprema o político.

A mentalidade de ter o SUS como algo acima de todos os sistemas de saúde é percebida no profissional de saúde: a maioria destes ainda prefere a estabilidade pública. Já não é tão incomum colegas não se arriscarem mais na vida privada. Alguns, inclusive, já estão investindo cada vez mais em concursos públicos. Ainda não temos um grupo de "concurseiros profissionais" no meio médico simplesmente porque, em nosso país, nem mesmo os concursos públicos para a área de saúde são frequentes (em comparação com a área jurídica).

Culpa da nossa criação

E por que os médicos e outros profissionais da saúde têm essa visão tão estatizada de suas profissões e até de suas vidas? Primeiramente, a própria criação em nosso país já gera automaticamente uma atitude de crença em um estado provedor e ao qual todos devem recorrer em momentos de crise. No entanto, ao entrarem em uma faculdade de medicina, essa visão é amplificada, pois lhes é inculcada a ideia de que o SUS — e somente ele — tem de ser, a partir daquele momento, o seu guia, sendo todas as outras possibilidades de atuação fora do SUS vistas apenas como formas alternativas.

Tudo se inicia com uma visão de total abnegação da medicina, sendo o médico um ser altruísta por natureza e com necessidades extremamente limitadas. É fato que a profissão médica, em última instância, é uma atividade que requer cuidados triplicados quando comparada a outras atividades profissionais, pois lida com vidas. A atenção e o desprendimento pessoal são imprescindíveis. Os médicos sabem disso e os pacientes também sabem disso. Mas o estado não quer saber disso. 

Para o burocrata, o médico realmente é uma figura franciscana e que concorda plenamente em realizar um altruísmo forçado (mesmo em ambientes profissionais sucateados). E, como a maioria dos profissionais tem essa ideia martelada desde o primeiro ano de faculdade, o SUS vai se mantendo "aos trancos e barrancos". Como diria um famoso político brasileiro há alguns anos: "Médico é igual sal: branco, barato e encontra-se em qualquer lugar", o que quer dizer que somos mercadoria pouco escassa e que, como seres altruístas naturais, iremos aceitar qualquer remuneração e trabalhar de qualquer maneira, pois nossa crença de que o SUS deva continuar existindo — intocável — é nossa premissa universal e verdadeira.

Vale alertar que a educação médica encontra-se cada vez mais centrada em uma visão "social" deturpada por anos de doutrinação ideológica (Gramsci agradece). Umas das várias provas disso é a disseminação da medicina de família ou PSF (Programa de Saúde da Família), que, entre outras coisas, prega uma visão totalmente generalista da formação médica, visão essa que é tida como superior à formação de especialidades.

O PSF originou-se de uma visão de medicina socializada aos moldes cubanos, e nos foi vendida como sendo o modelo-padrão de medicina do tipo preventiva (a verdade é que é apenas um subtipo desse tipo de medicina), a qual deveria ser estimulada, praticada e principalmente implementada em todos os municípios de nosso país.

Com o PSF, a atenção primária seria a mais importante e resolutiva, pois, a partir do pleno funcionamento do modelo, o número de doentes no sistema secundário e terciário de saúde diminuiria drasticamente. É óbvio que esse tipo de modelo (um tanto quanto romântico) jamais funcionou como deveria.

Além do incontornável problema da escassez de recursos, o PSF não funciona pelo simples motivo de que o setor terciário foi e sempre será aquele que realmente resolve o problema. Afinal, em uma cultura como a nossa, na qual prevenção ainda é algo distante, o paciente sempre irá procurar pelo melhor e ir atrás daquilo que realmente produz resultados definitivos.

Foi Adam Smith quem declarou que a divisão do trabalho representa o divisor de águas entre um sistema de baixa produtividade e um de alta produtividade e excelência. A divisão do trabalho constitui o cerne da produtividade econômica e visa ao aumento da abundância de bens e serviços. E foi David Ricardo quem formulou a lei da associação para demonstrar quais são as consequências da divisão do trabalho quando um grupo de indivíduos coopera com outro grupo de indivíduos, mesmo que um deles seja menos eficiente em todos os aspectos. A colaboração dos mais talentosos e capazes com aqueles que são menos talentosos e capazes resulta em benefício para ambos e os ganhos assim obtidos são recíprocos. 

A especialização médica deve, portanto, seguir a mesma lógica de qualquer outra produção de bens, em que as diferentes especialidades médicas constituem novas etapas intermediárias na cadeia de produção do bem 'saúde'. 

No entanto, a medicina socializada, ao acabar com as especializações, visa justamente à abolição desta divisão do trabalho. Abolir a divisão do trabalho no meio médico — ou seja, as especializações — sempre foi algo bem óbvio na visão marxista. A imagem do médico generalista, abnegado, agindo como um beato de casa em casa, e se tornando o grande "Pai da comunidade" e um grande benfeitor completa a agenda socialista em questão.

Outra importante forma de desanimar o estudante de medicina a seguir uma subespecialização é o método de ensino empregado por algumas faculdades. Esse novo método retira a obrigatoriedade das cadeiras básicas do curso de medicina (anatomia, histologia, clínica médica, cirurgia geral etc.), estando essas agora diluídas. Consequentemente, acaba também com a presença dos professores titulares de cada uma dessas cadeiras. As aulas agora são ministradas por tutores (que não precisam ser obrigatoriamente médicos). O que temos não são mais aulas e sim grupos de estudo nos quais o aluno agora aprende a "pensar por si mesmo", interpretando textos. O professor (oops, o tutor) não pode nada, e pouco fala ou explica.

Esse modelo é completamente inspirado nas chamadas escolas experimentais dos anos 1970, que eram influenciadas pelas teorias pedagógicas construtivistas, as quais tinham suas bases calcadas no construtivismo estético russo. Ou seja, sua origem e ideologia são comunistas.

Por não haver agora um mestre como baluarte, alguém a ser seguido como exemplo de eficiência e sucesso profissional (quantos médicos resolveram fazer determinadas subespecialidades espelhando-se em seus professores titulares?), temos um crescente estímulo para o médico generalista.

Por fim, vale lembrar que, para tal método novo ser implementado em determinadas faculdades, houve uma voluptuosa contribuição financeira do governo para a instituição interessada; um tipo de incentivo dado pelo Ministério da Educação à instituição que quisesse experimentar esse novo método. Seria isso um tipo de capitalismo de estado (ou mercantilismo) no meio da educação? Deixemos a pergunta no ar.

Código de Ética

O código de ética profissional do profissional médico é um capítulo à parte. Além de dar suporte a um sistema calcado na gratuidade e em supostos direitos a uma saúde universalizada, ele também age como um bloqueio às ações de mercado (ou seja, ações em que, por meio de trocas voluntárias, consumidores e prestadores de serviço encontram a melhor maneira de resolver seus problemas). Principalmente, ele rechaça a ideia de saúde como um bem ou serviço.

O código já se inicia em seu primeiro termo dizendo: "A medicina é uma profissão a serviço do ser humano e da coletividade...". O termo aqui usado, "coletividade", poderia muito bem ser substituído por "de todos", mas isso não enfatizaria o real significado embutido na palavra. Ao insistir nessa expressão, deixa-se claro que os médicos não são indivíduos dotados de livre escolha, mas sim membros de uma comunidade gregária com algum tipo de consciência social. Em vez da livre escolha, há somente o determinismo e a obrigatoriedade de se submeter somente a um tipo de serviço.

Essa visão do coletivo também é corroborada no item que diz: "O médico será solidário com os movimentos de defesa da dignidade profissional..". Ou seja, de forma coerciva, praticamente obriga o médico a participar de todo e qualquer tipo de "movimento", mesmo que esse não seja do agrado ou da concordância do profissional em questão.

Nesse ponto, lembremos dos movimentos arquitetados por líderes sindicais, que também existem no meio médico. Teríamos nós que dar apoio a esse tipo de movimento? Vale lembrar que, embora a contribuição sindical via CRM não seja obrigatória (só faltava!), há uma multa pelo não comparecimento à eleição do CRM. Isso é imoral e, acima de tudo, autoritário. Nesse quesito, o CRM se iguala ao governo, que obriga o cidadão a comparecer à "Festa da Democracia", mesmo que seja à base de força. Trata-se de um claro desrespeito à noção de liberdade individual.

Um dos textos mais cruéis e autoritários do Código de Ética encontra-se no capítulo XII, recentemente criado e que diz respeito à publicidade médica. Para resumir, ele proíbe a participação ou divulgação de qualquer tipo de assunto médico em meios de comunicação de massa. Mais ainda: ainda veda ao profissional a participação em propagandas de qualquer tipo.

Proibir a autopromoção e a divulgação séria e correta de seus serviços é algo absurdo que tem por objetivo transformar o médico em uma figura economicamente estéril. O mais irônico é que propagandas do SUS que exaltam como ele está "mudando a cara da saúde em nosso país" não param de ser marteladas diariamente nos mesmos meios de comunicação de massa vedados aos médicos. E tudo isso financiado com o seu e com o meu dinheiro.

Por outro lado, outros conselhos, como o de odontologia, não coagem seus profissionais e estes estão liberados para realizar propagandas — ou será que ninguém nunca viu em uma propaganda de determinada pasta ou escova de dente a corroboração de um profissional dentista incluindo seu nome e CRO? Isso é válido, salutar e respeitoso para com o profissional. Se o medo do CRM é propaganda enganosa ou exagerada, deixe que a justiça comum cuide do caso. Só não tirem nossa liberdade.

Planos de saúde

Qual seria a saída para a arapuca armada pelo estado (denominada SUS)? Como tentar uma forma de livre mercado na área de saúde?

A resposta mais fácil seria recorrer à medicina privada na forma de planos e seguros de saúde, chamados em nosso país de "saúde suplementar". No entanto, esse ou qualquer outro sistema complementar de saúde em que se tentam aplicar as simples leis de mercado encontram sérias barreiras burocráticas, principalmente na forma de interferência estatal.

O motivo para isto é simples: também no sistema privado de saúde encontramos o chamado capitalismo de estado, em que as grandes operadoras de plano e de seguros de saúde foram cartelizadas pelo governo. Há poucos planos de saúde, e os que existem estão associados ao governo em um esquema de ajuda mútua na qual o consumidor e o prestador de serviço final sempre sairão perdendo. 

De um lado, o estado cria entraves e barreiras burocráticas na forma de rígidas leis, obrigando as operadoras a realizarem aquilo que o governo quer. Em contrapartida, o estado também cria barreiras protecionistas contra a entrada de novos planos de saúde, garantindo uma reserva de mercado para essas operadoras. Como consequência deste arranjo, as operadoras têm uma lucrativa reserva de mercado, o governo tem um amplo controle sobre o mercado, e a relação médico-paciente passa a inexistir.

Se ao menos a entrada de planos de saúde no mercado fosse liberada, isso aumentaria sobremaneira a concorrência, consequentemente fazendo o preço das mensalidades e dos serviços baixarem.

Mas há um complicador adicional. Da mesma forma que governo opera em conluio com os planos de saúde — o que a princípio ajuda as operadoras —, ele também finge estar atendendo aos anseios dos consumidores: é cada vez maior o número de decretos e processos jurídicos obrigando os planos a incluir exames, procedimentos e a liberarem consultas, aumentando coercivamente o leque de cobertura dos planos. Essa regulação extrema aumenta os custos dos planos e faz com que menos recursos (profissionais e equipamentos) sejam alocados para os locais necessários. Consequentemente, os planos começam também a cortar gastos, gerando uma escassez desnecessária e fazendo deles o novo SUS.

Ou seja, uma regulação (proibição da concorrência) gera problemas (aumento dos preços dos planos) que são "solucionados" por meio de novas intervenções (obrigatoriedade de novas coberturas), o que gera aumento de custos e escassez.

A impressão que dá é que o governo faz um jogo duplo: de um lado, incentiva os planos de saúde cartelizados com o intuito de "aliviar" o já abarrotado SUS; de outro, não deixa os planos crescerem muito, sempre aumentando os custos destes, talvez com medo da migração dos profissionais de saúde do setor público para o privado.

Nem mesmo as cooperativas médicas conseguem escapar das amarras do estado. O que em princípio seria um meio de os médicos trabalharem de forma livre e dentro dos preceitos de qualquer cooperativa (adesão voluntária, gestão democrática e participação econômica dos membros), e de alguma maneira conseguirem se autoadministrar, não se concretiza. Aqui também o governo — com sua burocracia extrema, protecionismo, mandatos judiciais e autoritarismo da ANS (que perde em força talvez somente para a ANVISA) — entra com sua mão pesada, retirando o já rarefeito ar e sufocando de vez também as cooperativas.

Conclusão

Nossos médicos são inculcados desde a faculdade a serem agentes do estado e "instrumentos da coletividade", a saúde pública não tem como funcionar, e a saúde privada não pode ser considerada como tal, pois não é regida pelas leis de mercado. Tampouco ela é tratada realmente como um bem de consumo a ser suprido por instrumentos econômicos legítimos, como livre concorrência e leis da oferta e procura, medida essa que, no longo prazo, faria com que os serviços melhorassem sobremaneira para ambos os lados.

O futuro da medicina no nosso país é aziago, a não ser que comecemos a reescrevê-lo a partir de já. Nesse sentido, é fundamental que enxerguemos o que não se vê, e passemos, médicos e não médicos, a compreender o que significa saúde pública: um estado de mal-estar social.

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Helio Dehon Barbosa e Tatiana Villas Boas Gabbi 

Helio Dehon Barbosa é medico Ortopedista e Traumatologista, livre pensador liberal e pró-mercado.

Tatiana Villas Boas Gabbi é médica, dermatologista, libertária e defensora radical do livre