domingo, 11 de maio de 2014

O GRANDE TRIPÉ E O PEQUENO

O Brasil não vai bem, a julgar pelos indicadores macroeconômicos, ainda mais quando se considera o prometido, ou o potencial. O crescimento é medíocre (e não há crises para servir como álibi), a inflação está perigosamente próxima de uma região muito escorregadia onde atolaram e afundaram alguns países vizinhos, e as contas externas e fiscais permanecem flagrantemente fora do lugar. Há problemas setoriais talvez explosivos (como no setor de energia, petróleo e também na mobilidade urbana), a produtividade estagnou há anos e a confiança do investidor (nacional e estrangeiro) atingiu os piores níveis em muitos anos.


Quem duvida que o governo perdeu a mão em matéria de macroeconomia?

A ideia que existe uma “matriz econômica alternativa”, como a crença na vida em outros planetas, costuma enclausurar-se num pequeno círculo de crentes e muito raramente é transportada para o terreno prático, onde invariavelmente fracassa. Muitos presidentes, por excesso de malícia ou ingenuidade, caíram nessa conversa, e aqui não foi diferente. A administração Dilma Rousseff experimentou o seu choque heterodoxo, mas não inovou em matéria macroeconômica, nem mesmo em contabilidade pública: os erros são todos velhos, assim como os efeitos especiais. Não há “nova matriz macroeconômica”, e a convicção das autoridades ao proclamá-la cria apenas uma ilusão de legitimidade. Como o juiz de futebol que marca pênalti inexistente, e antecipando-se às vaias, pune o defensor com cartão amarelo ou vermelho, fingindo uma certeza que todos sabem que ele não tem.

Mas por que tanta insistência em desafiar os consensos internacionais em macroeconomia?

Não me parece que esta ousadia tenha nascido das autoridades econômicas, cujas inclinações heterodoxas são bem conhecidas, exatamente como suas limitações. Os grandes pensadores heterodoxos exalam independência e descompromisso, atributos louváveis, mas que os afastam do encargo de formular soluções e de assumir responsabilidades. Talvez por isso mesmo a inflação brasileira nunca tenha tido um rosto, um defensor, alguém para responder perguntas simples sobre por que os preços sobem.

A “Nova Matriz” não pode ser vista senão como uma criatura do Planalto, e seus áulicos não escondem o intuito de antagonizar os “economistas do mercado financeiro”, e também todos os outros (ressalvadas as espécies ameaçadas), e também o FMI, as agências de risco, os especuladores em geral e, de lambuja, os conselhos do ex-presidente Lula, que conhece os economistas alternativos de outros carnavais.

É muito perigosa a ideia de uma política econômica, ainda mais uma “Nova Matriz”, cujo proprietário é o Palácio. Os riscos envolvidos são os costumeiramente discutidos no debate sobre independência do Banco Central. É ótimo quando o presidente pode atribuir à Autoridade Monetária certas políticas antipáticas das quais ele gostaria de se afastar. É péssimo quando o presidente se torna o dono das políticas, sobretudo quando elas não funcionam, e isso vale também para a política fiscal. Por isso mesmo, os presidentes costumam escalar simultaneamente ministros ortodoxos e outros nem tanto para delegar responsabilidades e ônus. Quanto mais centralização, mais a liderança se arrisca, e mais amarrada permanece a determinado curso.

Mas a boa notícia é que as instituições são robustas, o que limita os estragos e facilita sua reversão. Não há maiores dificuldades para o país retornar à racionalidade macroeconômica, normalmente identificada com o “tripé”: superávit primário, metas de inflação e câmbio flutuante. Não será necessária nenhuma emenda constitucional, nem mobilizações nacionais, apenas decisões administrativas do presidente e das autoridades competentes. Nada remotamente comparável com o que tínhamos em 1993.

É claro, todavia, que o país deve ambicionar muito mais. Não vamos esquecer que o “tripé” era uma versão simplificada para um trio de posturas filosóficas de maior alcance para a economia: responsabilidade fiscal, moeda sadia e cidadania global.

Este é o “grande tripé” do qual a versão mais conhecida é apenas uma simplificação tática e de fácil execução. Há muito mais em responsabilidade fiscal que simplesmente um número para o superávit primário, que pode ser facilmente manipulado. A sustentabilidade fiscal e financeira do governo envolve múltiplas questões atinentes ao equilíbrio entre obrigações do Estado, a capacidade de tributar e o endividamento público. O governo escapa de discutir transparentemente esses temas ao fingir que não existem problemas, e não há um pingo de dúvida que o Estado está onerado demais, que o sistema tributário precisa ser reformado e que contribuintes e consumidores estão insatisfeitos. É preciso retomar essas agendas.

A ideia de “moeda sadia” transcende a meta de inflação, pois o papel do Banco Central vai bem além das decisões sobre taxas de juros: inclui o Estado e o custo do crédito, a solidez do sistema bancário e a atuação de bancos públicos. Tampouco as relações do Brasil com o resto do mundo são definidas unicamente pela política cambial que, como já deve ter ficado claro, não tapa buracos nas estradas nem resolve as mazelas da competitividade nacional. As políticas industrial e de comércio exterior, assim como a diplomacia econômica, interagem com a regulamentação e atuação do Banco Central no mercado de câmbio a fim de definir os modos de inserção do Brasil no mundo globalizado. Infelizmente, retrocedemos na direção de ideias velhas sobre autossuficiência e nos afastamos das oportunidades oferecidas pela economia global.

Esse “tripé ampliado” traz consigo, naturalmente, muitas agendas positivas que permanecem engavetadas há muitos anos. Já faz mais de uma década sem reformas e sem imaginação, e a colocação do país nas comparações internacionais de competitividade e de qualidade do ambiente de negócios permanece em níveis sofríveis. Em vez de enfrentar os problemas, as autoridades desprezam essas métricas e se afastam do debate sobre a qualidade da gestão pública e sobre a meritocracia em geral.

Como esperar que o crescimento brasileiro fosse se acelerar sem nenhum esforço de reforma, e com uma administração macroeconômica incapaz de executar nem a versão pequena do “tripé”?
Por: Gustavo Franco Economista e ex-presidente do Banco Central Publicado no Jornal O Globo



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