domingo, 25 de maio de 2014

RASCUNHO ACHADO NO LIXO

Enviam-me duas folhas A4 amassadas, supostamente recuperadas de uma lixeira do Palácio dos Bandeirantes. Nelas, um texto impresso, sem assinatura, intitulado "Comunicado da Sabesp". A hipótese é que se trata de uma sugestão rejeitada oriunda de assessores do governador Geraldo Alckmin. Gostei tanto do texto que o reproduzo a seguir.


"A Companhia de Saneamento Básico do Estado de S. Paulo (Sabesp) comunica o cancelamento da exibição de sua última peça publicitária, que enaltece a 'coragem', a 'determinação' e a 'solidariedade' dos paulistas diante da crise de abastecimento de água. As razões:

1) A peça infringe a Constituição, que restringe a publicidade oficial a campanhas de 'caráter educativo, informativo ou de orientação social'. É propaganda política e eleitoral (mal) dissimulada. No Brasil, governantes em todos os níveis apropriam-se das verbas publicitárias para promoção de seus interesses partidários. O governo federal faz isso todos os dias, por meio de ministérios e empresas estatais como a Petrobras e a Caixa Econômica Federal (CEF). A CEF chega ao cúmulo de financiar blogs oficialistas consagrados, hoje, à difamação sistemática do Poder Judiciário. O Ministério Público finge que não vê, outorgando aos políticos a prerrogativa de violar a lei. Mas nós decidimos seguir a lei, o que acarretará brutal redução das despesas publicitárias, que não levam água a nenhum consumidor.

2) A peça é mistificadora. Essa conversa de que 'paulista é aquele que nasceu para vencer, faça chuva ou faça sol', reminiscente da mitologia bandeirante, configura uma aposta anacrônica no 'patriotismo regional'. Não existe, a não ser num limitado sentido político-administrativo, 'o paulista', 'o gaúcho', 'o mineiro' ou 'o nordestino'. Sempre que governantes atribuem identidades essenciais aos habitantes de uma região ou Estado, falando de uma pluralidade no singular, estão usurpando os direitos do povo. Os paulistas não são súditos de Alckmin, que não tem a prerrogativa de defini-los.

3) A peça falseia a realidade. 'A chuva não veio', 'a maior seca da história' de São Paulo, é uma causa verdadeira da crise da água, mas nem tudo pode ser atribuído à natureza. A variabilidade climática é um dado óbvio na equação do planejamento. Reconhecemos as carências de investimentos na conservação de mananciais e na ampliação dos sistemas de represas que abastecem a macrometrópole. Não temos o direito de ocultar nossos erros apenas porque o governo federal rejeita suas responsabilidades sobre a crise na geração hidrelétrica no país –deflagrada, ela também, pela prolongada estiagem.

O cancelamento da peça publicitária não extingue o assunto. Nos próximos dias, iniciaremos um racionamento oficial no abastecimento de água. A medida prudencial destina-se a poupar a reserva do volume morto no sistema Cantareira, pois não se pode apostar tudo na temporada de chuvas da primavera. É um erro imperdoável converter os paulistas em reféns do imperativo político-eleitoral de aguardar que o governo federal anuncie o racionamento de eletricidade no país. A imprudência deles não justifica a nossa."

Fim do rascunho. Mas há algo mais. No alto da primeira página, aparece uma observação escrita à mão, com caneta vermelha, que diz: "Os marqueteiros tentarão vetar esse comunicado. Eles sempre subestimam a inteligência dos cidadãos (na linguagem deles, 'eleitores', ou seja, indivíduos irrelevantes fora do período eleitoral)".

Desconfio de todo o episódio. Meu instinto sugere que o tal rascunho nunca foi escrito no Palácio dos Bandeirantes: é uma falsificação de algum gaiato. Acho que Alckmin, Dilma "et caterva" pensam exatamente como seus marqueteiros –isto é, desprezam os cidadãos que pagam impostos. Teremos água e energia elétrica até as eleições. Depois, só Deus (ou são Pedro) sabe. 
Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP


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