quarta-feira, 30 de outubro de 2013

ACHADOS E PERDIDOS


Às vezes, eu sinto a angústia de um menino perdido numa multidão. Vivemos hoje no Brasil um período inusitado de estabilidade política permeada pelas superimposições promovidas pelo casamento entre hierarquias aristocráticas – que em todas as sociedades (e sobretudo na escravidão, como percebeu o seu teórico mais sensível, Joaquim Nabuco) têm como base a amizade e a simpatia pessoal; e o individualismo moderno relativamente igualitário que demanda burocracia e, com ela, uma impecável, abrangente e inatingível impessoalidade.

O hibridismo resultante pode ser negativo ou positivo. Pelo que capturo, o hibridismo – ou o mulatismo ético – é sempre mal visto porque ele não cabe no modo ocidental de pensar. Provam isso as Cruzadas, a Inquisição, o Puritanismo, as Guerras Mundiais, o Holocausto e a exagerada ênfase na purificação e na eugenia – na coerência absoluta entre gente, terra, língua e costumes, típicas do eurocentrismo. A mistura corre do lado errado e tende a derrapar como um carro dirigido por jovens bêbados quando saem da balada; ou da esquerda carismática-populista, burocrática e patrimonialista no poder.

Desconfio que continuamos divididos entre tipos de dominação weberiana e suas instituições. Fazer a lei e, sobretudo, preparar a sociedade para a lei, ou simplesmente prender? Chamar a polícia (que é, salvo as honrosas exceções, intensamente ligada aos bandidos e chefes do crime paradoxalmente presos) ou resolver pela “política”? Mas como fazê-lo se os “políticos” (com as exceções de praxe) estão interessados no desequilíbrio porque a estabilidade impede e dificulta a chegada ao “poder”? Poder que significa, além da sacralização pessoal, um imoral enriquecimento pelo povo e com o povo. Ademais, somente uma minoria acredita na política representada por instituições igualitárias e niveladoras.

Para ser mais preciso ou confuso, amamos a dominação racional-legal estilo germano-romana, mas não deixamos de lado nosso apreço infinito pela dominação carismática em todas as esferas sociais, inclusive na “cultura”, como revela esse disparate de censurar biografias. Temos irrestrita admiração por todos os que usaram e abusaram da liberdade individualista nesse nosso mundinho relacional quando os perdoamos e não os criticamos, o que conduz a uma confusão trágica entre o uso da liberdade e o seu abuso irresponsável. Esses mimados pela vida e exaltados pelos amigos – os nossos maluquinhos – legitimam a ambiguidade que se consolida pelo pessoalismo do herói a ser lido pelo lado do direito ou do avesso. Esse avesso que, no Brasil, é confundido com a causa dos oprimidos num esquerdismo que tem tudo a ver com uma “ética da caridade” do catolicismo balizador e historicamente oficial. Com isso, ficamos sempre – como dizia aquele general-ditador – a um passo do abismo. Andar para trás é condescendência, para a frente, suicídio.

Como gostamos de brincar com fogo, estamos sempre a um passo da legitimação da violência justificada como a voz dos oprimidos que ainda não aprenderam a se manifestar corretamente. E como fazê-lo se jamais tivemos um ensino efetivamente igualitário ou instrumental para o igualitarismo numa sociedade cunhada pelo escravismo e por uma ética de condescendência pelos amigos e conhecidos?

Pressinto uma enorme violência no nosso sistema de vida. Temo que ela venha a ocupar um território ainda mais denso e seja usada para legitimar outras violências tanto ou mais brutais do que o “quebra-quebra” hoje redefinido como “manifestações”. Protestos que começam como demandas legitimas e, infiltrados, tornam-se “quebra-quebras”. Qual é o lado a ser tomado se ambos são legítimos e, como é óbvio, dizem alguma coisa como tudo o que é humano?

Estou, pois, um tanto perdido e um tanto achado nessa encruzilhada entre demandas legais e prestígios pessoais. Entre patrimonialismo carismático e burocracia, os quais sustentam o “Você sabe com quem está falando?” – esse padrinho do “comigo é diferente”, “cada caso é um caso”, “ele é meu amigo”, “você está errado mas eu continuo te amando”… E por aí vai numa sequência que o leitor pode inferir, deferir ou embargar.

Embargar, aliás, é o verbo e a figura jurídica do momento em que vivemos e dos sistemas que se constroem pela lei, mas confundindo a regra com o curso torto, podre e vaidoso da humanidade, tem as suas cláusulas de desconstrução. Com isso, condenamos com a mão direita e embargamos com a esquerda; ou criamos os heróis com a esquerda e os embargamos com a direita. Construímos pela metade. O ponto que já foi ressaltado por mim algumas vezes é o simples: se conseguirmos assumir e controlar abertamente a ambiguidade, há a esperança de controlá-la. E isso pode ser uma enorme vantagem num planeta cujo futuro é um inevitável “abrasileiramento”.

Assim, entre o ser obrigado a calvinisticamente condenar, como fazem os nossos brothers americanos que todo dia atiram nos próprios pés, podemos assumir em definitivo que todos têm razão. Afinal de contas, o Brasil é um vasto programa de auditório com pitadas de missa solene e jogo de futebol.

Por: Roberto DaMatta Fonte: O Estado de S. Paulo, 23/10/2013

terça-feira, 29 de outubro de 2013

HISTÓRIA, POLÍTICA, POLÍTICA E TEMPERAMENTO, QUEM É QUEM NA POLÍTICA ARGENTINA

Nos últimos 67 anos os diversos peronismos – em ritmo felino – governaram a Argentina mais da metade do tempo

“Quando os outros nos ouvem gritar acham que estamos brigando. Nada disso..somos como os gatos. Quando gritamos estamos nos reproduzindo!” (Juan Domingo Perón, explicando com felina metáfora como são as brigas/cópulas dos peronismo. O quadro acima é “Gatos lutam em uma despansa”, de Paul de Vos, 1663.

Os argentinos foram às urnas neste domingo para renovar metade da Câmara de Deputados e um terço do Senado. Os principais protagonistas deste embate – cujo decisivo campo de batalha será a província de Buenos Aires (que concentra 38% do eleitorado) – serão Martín Insaurralde, cabeça da lista de candidatos a deputado da Frente pela Vitória, e Sergio Massa, da Frente Renovadora. No entanto, as duas “Frentes” – a primeira kirchnerista e a segunda anti-kirchnerista – são duas sublegendas rivais do Partido Justicialista (Peronista), movimento que chegou ao poder em 1946, quando foi eleito Juan Domingo Perón, fundador da griffe política à qual deu seu nome.

Dos 67 anos transcorridos de lá para cá, o Peronismo – em suas mais variadas modalidades – governou a Argentina mais da metade do tempo (34,5 anos).

Perón governou entre 1946 e 1955, ano em que foi deposto por um golpe. Em 1973 Perón, que estava no exílio, usou um velho braço-direito no Parlamento, Héctor Cámpora, para vencer em seu nome as eleições presidenciais. O representante do velho caudilho foi eleito com o slogan “Cámpora no governo, Perón no poder”.

Menos de três meses depois Cámpora suspendia a proibição existente no país sobre a atuação política de Perón, renunciava e deixava a presidência interina nas mãos do peronista Raúl Lastiri, genro de José López Rega, astrólogo de Perón e sua eminência parda. Cámpora, um conservador mas que contava com vários ministros de esquerda, abria o caminho para que seu chefe voltasse do exílio e fosse eleito em outubro desse ano.

Com a saída de Cámpora estava concluída a “Primavera Peronista” e iniciava um período conservador, com alguns toques neoliberais de Perón, que estava reconfigurando suas políticas. Este Perón, que havia voltado do exílio e ia contra-mão de seu intervencionismo dos anos 50 morreu em 1974.

Sua esposa e vice-presidente, Maria Estela Martinez de Perón, conhecida pelo apelido de “Isabelita”, assumiu o comando do país. A nova presidente – que Perón havia conhecido quando ela era dançarina em um cabaré no Panamá – foi deposta pelos militares em 1976, no meio do caos político.

O peronismo perdeu suas primeiras eleições em 1983, com a volta da democracia. Mas, teriam sua vingança nas urnas em 1989, com a eleição do peronista Carlos Menem, que fizera sua campanha com slogans pregando maior intervenção do Estado na economia. No entanto, imediatamente Menem deu uma guinada implantou as privatizações mais radicais da História da América Latina.

A política neoliberal de Menem provocou um êxodo de peronistas que deixaram o partido e fundaram a Frepaso. Menem foi reeleito em 1995. Mas, em 1989, seu candidato, Eduardo Duhalde, que não sintonizava totalmente com o neoliberalismo de Menem, perdeu as eleições.

Duhalde foi derrotado pela coalizão Aliança UCR-Frepaso, formada pela centenária União Cívica Radical, de centro, e os progressistas da Frepaso.

Em dezembro de 2001 a crise econômica e social provocou a queda de Fernando De la Rúa, da Aliança, que foi substituído por uma sequência de três breves presidentes provisórios peronistas (Ramón Puerta, Eduardo Caamaño e Adolfo Rodríguez Saá).

Em janeiro de 2002, Duhalde assumiu como presidente provisório. Em maio de 2003 deixou o cargo a Néstor Kirchner, seu delfim, que depois o trairia. Kirchner, ele próprio um ex-menemista e ex-duhaldista, atraiu ex-menemistas, ex-duhaldistas e boa parte dos antigos frepasistas que voltaram ao seio do peronismo.


O novo presidente deu um tom intervencionista ao governo, recuperando parte do peronismo de Perón em seu primeiro governo. Simultaneamente Kirchner tentou remover da memória popular que havia respaldado as políticas neoliberais de Menem nos anos 90, sendo figura crucial na privatização da petrolífera YPF.

Em 2007 Kirchner lançou sua própria esposa, Cristina Kirchner, para a sucessão presidencial em 2007. Kirchner morreu em 2010. Cristina foi reeleita em 2011. Um ano depois Cristina intensificaria seu perfil intervencionista ao reestatizar a YPF (desta vez, com o respaldo do ex-neoliberal senador Menem). Mas, em meados deste ano daria uma guinada no discurso nacionalista ao associar a YPF à empresa Chevron.

Nas eleições parlamentares deste domingo, o kirchnerista Insaurralde se confronta com Sergio Massa, atualmente ex-kirchnerista (que foi chefe do gabinete de Cristina entre 2008 e 2009). No entanto, ambos são peronistas.

“O Peronismo é como a Coca-Cola”, me disse em off um idoso ex-vice-ministro peronista. “Você tem Coca light, Coca regular, etc. O Peronismo é assim: tem neoliberais, esquerdistas, e as mais diversas variáveis. No fundo, tudo é Coca-Cola, isto é, todos são peronistas. Mudam o rótulo da quantidade do ‘açúcar’ político dependendo da conveniência. Mas continua sendo a mesma marca. Assim é com o Peronismo. É como um refrigerante que pretende atender todos os gostos”.

Depois, recorda uma marota frase de Perón que deixava claro que as supostas brigas entre os peronistas não eram motivo de preocupação: “quando os outros nos ouvem gritar acham que estamos brigando. Nada disso..somos como os gatos. Quando gritamos estamos nos reproduzindo!”. 
Perón usava gatos em suas metáforas políticas. Mas ‘El General’ era fã mesmo dos cachorros. Mais especificamente, dos poodles.


E para encerrar, ad hoc com os felinos peronistas, o “Duetto buffo di due gatti” (Dueto buffo de dois gatos), de Gioacchino Rossini: 




PERFIL: Ariel Palacios fez o Master de Jornalismo do jornal El País (Madri) em 1993. Desde 1995 é o correspondente de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires. Além da Argentina, também cobre o Uruguai, Paraguai e Chile. Ele foi correspondente da rádio CBN (1996-1997) e da rádio Eldorado (1997-2005). Ariel também é correspondente do canal de notícias Globo News desde 1996.


segunda-feira, 28 de outubro de 2013

"DIA DA DEMOCRACIA"

“A data da morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, é considerada o ponto de partida para a retomada do processo democrático no Brasil. Por isso, o dia de hoje 25 DE OUTUBRO, é considerado por muitos o DIA da DEMOCRACIA.

As redes sociais podem decididamente ajudar e estão ajudando a transformar o Brasil e o mundo.

Apesar de todos os riscos do “mau caratismo” e da desconfiança que nós temos pelos episódios que estão ocorrendo, continuemos participando, falando com sinceridade, criando amizades e um mundo melhor.

Estamos atravessando um período interessante do mundo moderno contemporâneo.

Quando o nosso Presidente Ministro do STF Joaquim Barbosa ousa, ouvindo até mesmo outros magistrados, dizer que a Justiça Brasileira é confusa é importante, um gesto valente, corajoso.

Pouco importa as incompreensões.

Coisa igual faz o Papa Francisco, de uma instituição secular como a Igreja Católica, quebrando tabus e falando franco, usando termos como “Vaticanocracia”, e demitindo bispos deslumbrados, como o bispo alemão irresponsável.

É o mundo mudando.

Que essas coisas ou cousas, possam ser aprendidas e apreendidas por nós todos e que a gente, independente de pequenezas, façamos a nossa parte.

Continuaremos amigos e faremos das redes sociais um instrumento de discussões honestas, esclarecedoras e por isso libertária.

Sujeitas à chuvas e trovoadas;

· Voto, infelizmente nem sempre é atestado de honradez ou certificado de competência.

Os exemplos estão aí, desnecessários citá-los.

· Sigla partidária não é carimbo da Vigilância Sanitária. São heterogêneas. Vai desde a Madre Paulina até o Fernandinho beira-mar. Vamos regenera-las.

· Algumas de nossas melhores ideias andam também infelizmente pela boca de alguns de nossos piores homens. Daí a confusão em distingui-los.

· Eleição não é doença é remédio.

· Carteira de identidade, os suínos, os bovinos e até os galináceos tem (chip).

Titulo de eleitor só os cidadãos.

Exige inteligência, raciocínio, livre arbítrio, responsabilidade social.

· Coletivo não é só sinônimo de ônibus.

Pensar o coletivo é ser cidadão, é ser solidário.

· Se interessar pela politica não é só exercer um direito, é uma obrigação de cidadania.

Embora não pareça, os apátridas, os traficantes, os criminosos se preocupam, e muito.

· Lobista é uma coisa, deputado é outra.

Deputado lobista desserve a democracia.

São agentes da corrupção. O Brasil precisa se livrar deles.

· A Reforma Tributaria não sai, não acontece, porque a falta dela é que mantém a vassalagem, a subserviência.

Transforma o direto em um favor.

Temos que fazê-la.

· Essas observações fazem parte do contexto da democracia. Em verdade, se constituem numa homenagem simples ao jornalista Herzog.

Pensemos a respeito.

Qualquer dia tem mais.

Saudações democráticas,

Por: Jaison Barreto.






'O PALÁCIO E OS 'MOVIMENTOS SOCIAIS".

“É um absurdo vender isso. A sociedade não participou do debate sobre o tema. Nossa tentativa é sensibilizar o governo para negociar e discutir.” As sentenças, de Francisco José de Oliveira, diretor da Federação Única dos Petroleiros (FUP), referiam-se ao leilão de Libra, na faixa do pré-sal. Mas a lógica subjacente a elas, expressa na segunda frase, nada tem de singular. Nas duas últimas décadas, os “movimentos sociais” repetem aborrecidamente a ladainha sobre “a sociedade” excluída do “debate”, enquanto invadem órgãos públicos em nome da “participação”. Vivemos nos tempos do supercorporativismo, um ácido corrosivo derramado sobre o material de nossa democracia.

O Brasil moderno nasceu, pelo fórceps de Getúlio Vargas, sob o signo do corporativismo. A “democracia social” do Estado Novo cerceava os direitos do indivíduos, subordinando-os a direitos coletivos. Na definição do historiador Francisco Martinho, “o cidadão nesse novo modelo de organização do Estado era identificado através de seu trabalho e da posse de direitos sociais e não mais por sua condição de indivíduo e posse de direitos civis ou políticos” (O corporativismo em português, Civilização Brasileira, 2007, p. 56). Inspirado no salazarismo português e no fascismo italiano, o corporativismo varguista organizou a sociedade como uma família tripartida: governo, sindicatos patronais e sindicatos de trabalhadores. O supercorporativismo, uma obra do lulopetismo, infla o balão do corporativismo original até limites extremos.

Um traço forte, comum a ambos, é o desprezo pelos direitos civis e políticos, que são direitos individuais associados à ordem da democracia representativa. A principal diferença encontra-se no atributo nuclear da cidadania: o cidadão varguista definia-se pelo trabalho; o cidadão lulopetista define-se pela militância organizada. No Estado Novo, a carteira de trabalho funcionava como atestado de inserção na ordem política nacional. Sob o lulopetismo, o documento relevante é a prova de filiação a um “movimento social”. Na invasão do Ministério das Minas e Energia, junto com a FUP, estavam líderes do Movimento dos Sem Terra (MST) e do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) — que, em tese, não têm interesse no tema da exploração do pré-sal. A sociedade, segundo o supercorporativismo, é a soma das entidades sindicais e dos “movimentos sociais”. É por isso que, sem o consenso dessas corporações da nova ordem, nenhum assunto jamais estará suficientemente “debatido”.

Lula nasceu no berço do sindicalismo. O PT estabeleceu, na origem, íntimas relações com os “movimentos sociais”. Nas democracias, a sociedade civil organiza-se para exercer pressão legítima sobre os poderes de Estado. O lulopetismo, porém, borrou a fronteira entre sociedade civil e Estado assim que chegou ao governo: sua reforma da CLT estendeu a partilha do imposto sindical varguista às centrais sindicais, enquanto os “movimentos sociais” passaram a receber financiamento público direto ou indireto. O cordão umbilical que liga o poder de Estado aos “movimentos sociais” é a Secretaria Geral da Presidência, um ministério estratégico chefiado por Luiz Dulci, no governo Lula, e por Gilberto Carvalho, no governo Dilma Rousseff. Os dois engenheiros do edifício do supercorporativismo pertencem ao círculo de fiéis incondicionais de Lula.

O PT sempre enxergou os “movimentos sociais” como tentáculos partidários. Os líderes mais destacados desses movimentos são militantes petistas. O financiamento público elevou a conexão a um novo patamar: na última década, eles se converteram em satélites do Palácio. Os dirigentes do MST, do MAB e de inúmeros movimentos similares ajustam suas agendas políticas às do Partido e cerram fileiras com o lulopetismo nos embates eleitorais. Durante a odisseia do mensalão, eles desceram às trincheiras enlameadas para proteger José Dirceu et caterva. Contudo, na dialética do supercorporativismo, os “movimentos sociais” também precisam promover mobilizações contra o governo, sob pena de se condenarem à irrelevância.

O corporativismo varguista almejava a harmonia social. No mecanismo de regulação do lulopetismo, a desordem é um componente da ordem. Os “movimentos sociais” palacianos produzem fricções cíclicas, que são reabsorvidas pelo recurso a negociações simbólicas e compensações materiais. A extensão inevitável do “direito à desordem” a movimentos controlados por facções dissidentes (PSOL, PSTU) provoca perturbações suplementares, mas, paradoxalmente, robustece os alicerces lógicos do supercorporativismo. Os invasores do Ministério de Minas e Energia são obrigados a confirmar periodicamente seu estatuto de interlocutores privilegiados do poder por meio de ações de contestação limitada da ordem.

A democracia representativa ancora-se no princípio da soberania popular, que é exercida por meio da delegação de poder, em eleições gerais. O sistema político-partidário brasileiro desmoraliza a representação para assegurar privilégios especiais a uma elite política de natureza patrimonialista. O lulopetismo, um sócio majoritário desse sistema, aproveita-se de seus desvios para erguer o edifício do supercorporativismo como esfera paralela de negociação política. Na dinâmica extraparlamentar do supercorporativismo, o Partido pode ignorar as demandas dos cidadãos comuns, dialogando exclusivamente com a casta mais ou menos amestrada de dirigentes dos “movimentos sociais”. Sabe com quem está falando? Você só é alguém se possuir a carteirinha de um “movimento social” ─ eis a mensagem veiculada pelo Palácio.

Nas “jornadas de junho”, manifestações multitudinárias falaram em “saúde” e “educação”, reivindicando direitos universais estranhos à lógica do supercorporativismo. Por isso, nervoso e assustado, o Partido as rotulou como uma “reação da direita”. Ah, bom…

Por: Demétrio Magnolo O Globo

domingo, 27 de outubro de 2013

A FRANÇA E O ÁPICE DA SOCIAL-DEMOCRACIA: IMPOSTOS PARA TODOS, EMPREGO PARA POUCOS

Um em cada quatro franceses com formação universitária quer sair do país em busca de uma vida melhor. Mais de 70% dos franceses creem que os impostos estão "excessivos" e 80% acreditam que a política econômica do governo é "equivocada" e "ineficiente".

Esta é a nova França de François Hollande, hoje o país com a mais alta carga tributária do mundo. Neste ano, estima-se que as receitas tributárias irão chegar a 46,3% do PIB. O primeiro-ministro Jean-Marc Ayrault, do Partido Socialista, criou nada menos que 84 novos impostos apenas nos últimos dois anos. E essa cifra ainda não contém aquela que seria a mais egrégia de suas façanhas: um imposto de 75% sobre rendas superiores a um milhão de euros. Tal proposta foi considerada inconstitucional. Mas os social-democratas não devem se preocupar, pois alguns políticos franceses não irão deixar essa mera decisão judicial atrapalhar seus planos: a proposta ainda continua sendo discutida na assembléia nacional francesa, com algumas pequenas alterações.

E a possibilidade de essa proposta ser aprovada vem gerando algumas consequências inesperadas. Uma das diversões favoritas dos franceses — junto com os queijos brie e as baguettes — poderá ser duramente atingida: o futebol. Os times franceses correm o risco de serem relegados às pequenas ligas caso esta nova proposta seja aprovada. Afinal, seus melhores jogadores ganham altos salários. Uma alíquota de 75% sobre seus salários fará com que eles exijam salários ainda maiores, apenas para manter o mesmo valor real de antes. E dado que os custos dos jogadores já são hoje uma grande preocupação, acrescentar um pesado tributo sobre salários já historicamente altos será um fardo insuportável para a maioria dos times franceses, que terão muitas dificuldades em se manterem competitivos.

Como consequência, já se fala em isenções para times de futebol. O jornal francês Le Figaro estima que uma isenção tributária criada especificamente para os jogadores de futebol poderia poupar à liga francesa 82 milhões de euros por ano. O time com a mais alta folha de pagamento, o Paris Saint-Germain, pouparia 32 milhões de euros. O Olympique de Marseille, 14,2 milhões. E o Lyon, 12,5 milhões.

Salvar o futebol é uma atitude que pode manter as massas pacificadas, mas é curioso notar como tal medida ensina uma lição bem mais ampla: ora, se times e jogadores de futebol necessitam de isenções tributárias para se manter competitivos, por que não todo o resto da economia? É verdade que os salários dos jogadores são maiores e as alíquotas tributárias são mais altas, mas a lógica básica também se aplica ao proletariado e às demais classes trabalhadoras. Estes também são escorchados por impostos, e poucos saem em sua defesa pedindo isenções ou impostos menores. 

Mas prossigamos.

Algumas pessoas poderiam pensar que os 84 novos impostos criados ao menos teriam o efeito benéfico de reduzir um pouco o fardo da dívida pública do governo. Afinal, há outros países que aparentemente também seguem este receituário. A Noruega, por exemplo, é famosa por ter altos impostos. Mas a diferença crucial é que o governo norueguês apresenta incríveis superávits orçamentários de dois dígitos.

Mas não é isso o que ocorre na França. Tendo a maior carga tributária do mundo, é natural que o gasto público também já tenha se tornado o maior do mundo, de 57% do PIB. Apenas para se ter uma ideia de como as coisas funcionam por lá, a França tem pelo menos 30.000 funcionários públicos cuja única função é supervisionar empresas de consultoria privada que são pagas pelo governo para elaborar planos de governo. Apenas uma amostra de como o capitalismo de estado e o socialismo são grandes parceiros de cama.

Essa diferença entre receitas e gastos faz com que o governo tenha de contrair empréstimos para fechar suas contas. Naturalmente, esses empréstimos não advêm dos cidadãos franceses, que praticamente ficam sem nenhum dinheiro para investir após a Receita Federal abocanhar sua fatia. Logo, os empréstimos vêm de fora. A consequência é que a França possui hoje uma dívida externa de mais de $5 trilhões. Isso é o equivalente a quase $75.000 por pessoa (para se ter uma ideia, esse valor é 50% maior do que a dívida per capita dos EUA, que são um país notoriamente endividado).

Como os próprios francês gostam de dizer, plus ça change, plus c'est la même chose. Mais de 200 anos atrás, Jean-Baptiste Colbert alertou o rei Luis XIV que "A arte da tributação consiste em depenar o ganso de modo a obter a maior quantidade de penas com o menor volume possível de grasnido." O som que hoje se ouve na França é o de franceses grasnando indignados. Os gansos com mais penugem — Gérard Depardieu, membros da família Peugeot e da Chanel — já deixaram o país em busca de um futuro melhor.

David Howden é professor assistente de economia na Universidade de St. Louis, no campus de Madri, e vencedor do prêmio do Mises Institute de melhor aluno da Mises University.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

GORDURA SATURADA NÃO É A VILÃ PARA O CORAÇÃO, DIZ ESTUDO

DA EFE, DE LONDRES


As gorduras saturadas da manteiga, do queijo e da carne vermelha não são tão prejudiciais para o coração como se pensava até agora, de acordo com um estudo publicado nesta quarta-feira (23) na revista médica "British Medical Journal".

A pesquisa foi coordenada por Aseem Malhotra, um dos cardiologistas mais prestigiados do Reino Unido e especialista do hospital universitário de Croydon, em Londres.

Em seu artigo, Malhotra afirma que o consumo de produtos com pouca gordura "paradoxalmente" aumentou o risco de ter doenças cardiovasculares.

Segundo o especialista, as pessoas consomem todo tipo de produtos desnatados pensando que são melhores para a saúde e que ajudarão a perder peso, mas que, na realidade, muitos deles contêm grandes quantidades de açúcares acrescentados.

A explicação é que a indústria alimentícia substitui as gorduras eliminadas nos alimentos por açúcares e adoçantes, já que a comida livre de gordura não é tão saborosa, acrescentou Malhotra.

No entanto, acrescenta o especialista, é necessário diferenciar as chamadas "gorduras trans" (encontradas em fast food, produtos de confeitaria e margarina), que são prejudiciais, e as gorduras do leite, do queijo e da carne, que não são ruins para a saúde.

O especialista criticou a "obsessão" médica com os níveis de colesterol, que levou milhões de pessoas a tomarem muitos remédios com estatinas para reduzir a quantidade de gorduras prejudiciais no sangue.
Miguel Mendez/AFP 
Filé sendo colocado em grelha de churrascaria de Buenos Aires, Argentina


Para isso, o cardiologista recomenda que as pessoas com risco de sofrer doenças cardiovasculares façam uma dieta mediterrânea rica em peixes oleosos, azeite de oliva, verduras e frutos secos.

"É hora de romper o mito do papel das gorduras saturadas nas doenças do coração" que esteve presente na indicação dietética e nas recomendações nutricionais durante quase quatro décadas, afirmou Malhotra.

A teoria foi respaldada por outros especialistas como David Haslam, Chefe do Fórum Nacional sobre a Obesidade, que afirmou que a evidência científica está demonstrando atualmente que os carboidratos refinados e o açúcar são na realidade os culpados pelo aumento da gordura no sangue.

Timothy Noakes, professor de ciências do esporte e da atividade física na Universidade da Cidade do Cabo, acrescentou que "o pior erro médico de nossa época foi considerar a alta concentração de colesterol no sangue como a causa exclusiva da doença cardíaca coronária". EFE   Folha de SP

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

OS FATORES QUE LEVARAM AO FIM DA ESCOLÁSTICA

Este artigo é a última parte da série sobre os pós-escolásticos. Leia a primeira e a segunda parte.

6. Os últimos pós-escolásticos e o declínio do escolasticismo

Além de Mariana, os historiadores costumam destacar mais dois escolásticos tardios contemporâneos a ele: Leonardo Léssio (1554-1623) e Juan de Lugo (1583-1660).

Léssio, jesuíta nascido na Bélgica, sustentava que o preço justo de qualquer bem era aquele determinado pela estimativa comum de mercado. Embora admitisse que um preço determinado pelo governo também pudesse ser justo, apontou diversos casos em que o preço de mercado teria de ser escolhido em detrimento do preço legal. Primeiro, quando o preço de mercado é menor e, segundo, quando, "na alteração de circunstâncias de aumento ou diminuição da oferta e fatores semelhantes, as autoridades forem negligentes em alterar o preço legal".

Ainda mais fortemente, até mesmo um indivíduo poderia pedir um preço acima do teto legal caso as autoridades estivessem "mal informadas sobre as circunstâncias comerciais", o que, segundo ele, seria provável de acontecer praticamente sempre. Para ele, a demanda do mercado era o fator determinante dos preços e isso não dependia das despesas dos comerciantes: caso essas despesas fossem maiores (ou menores) do que o preço de venda, os comerciantes deveriam assumir os prejuízos (ou auferir os lucros).

Como ressalta Jesús Huerta de Soto no livro editado por Holcombe, Léssio enxergou com bastante clareza como os mercados econômicos estão inter-relacionados, inclusive o mercado cambial. Aplicou a boa teoria econômica também no campo monetário e no dos salários, que para ele deveriam ser determinados pelas leis da demanda e oferta, tal como qualquer outro preço, o que configuraria a existência de justiça. A respeito do que seria um "salário mínimo ideal", ele percebeu que a simples existência de outra(s) pessoa(s) disposta(s) a executar o mesmo trabalho recebendo aquele salário era um indicador de que esse salário não poderia ser "injusto". Sustentava também o que chamava de "salário psíquico": "Se a obra traz consigo status social e emolumentos, o pagamento pode ser baixo porque o status e vantagens associados são, por assim dizer, uma parte do salário".

Escreveu também que os trabalhadores são contratados pelo empregador por causa dos benefícios que aqueles lhes proporcionam, benefícios esses que devem refletir a produtividade. Assim, Léssio estabeleceu um esboço muito bem elaborado da teoria da produtividade marginal da demanda por mão de obra e, consequentemente, uma teoria para explicar a determinação dos salários, bem semelhante ao que foi estabelecido pelos austríacos e outros economistas neoclássicos, no final do século XIX.

Enfatizou ainda a importância do empreendedorismo na determinação do lucro: a qualidade do empreendedor, a "indústria" de combinar eficientemente fatores de produção, é escassa e, portanto, o empreendedor pode ganhar uma renda muito maior do que os que não são aquinhoados com esse dom. Léssio também fornece uma análise sofisticada da moeda, em que demonstra que seu valor depende de sua oferta e de sua demanda. Quando há excesso de oferta de uma dada moeda, ela valerá menos, tanto para a compra de bens como para a compra de moeda estrangeira e, mutatis mutandis, uma escassez de moeda aumenta o seu valor.

Contribuiu também para o banimento da "lei da usura", com o argumento carentia pecuniae, segundo o qual o credor sofre pela falta de sua liquidez durante o prazo do empréstimo e que, portanto, ele tem o direito de cobrar juros por esta perda. O tempo de renúncia à liquidez, dessa forma, é moralmente justificável. Argumenta que letras de câmbio, ou quaisquer direitos a dinheiro futuro, devem sempre ter um desconto, que é, naturalmente, a taxa de juros. Assim, para Lessius, o preço a ser recebido pela renúncia ao dinheiro em que o emprestador incorre durante o período do empréstimo deve ser estabelecido nos mercados organizados de empréstimos, os"loanable funds markets".

Para diversos estudiosos do escolasticismo, com a cláusula carentia pecuniae Leonard Léssio contribuiu para acabar de uma vez por todas com a proibição da usura, embora, formalmente, ainda tivesse mantido a proibição. Mas foi, sem dúvida, o teólogo cujas visões sobre a usura mais decididamente marcaram a chegada de uma nova era. Foi um precursor do mundo financeiro moderno.

O derradeiro grande nome dos escolásticos tardios de Salamanca foi o cardeal jesuíta Juan de Lugo, no século XVII, em que o poder da Espanha na Europa já estava em declínio. Estudou Direito e Teologia em Salamanca e em seguida foi para Roma lecionar no colégio jesuíta da capital italiana. Depois de ensinar Teologia em Roma por 22 anos, Lugo foi feito cardeal e tornou-se membro de várias comissões influentes da Igreja em Roma. Um teórico bastante respeitado, Lugo é considerado por muitos como o maior teólogo moral desde São Tomás. Escreveu um livro sobre Psicologia e outro sobre Física e sua obra mais importante sobre Direito e Economia foi a De Justitia et Jure, publicado em 1642, livro que passou por várias edições.

Sua Teoria do Valor é uma joia preciosa da Escola de Salamanca, que provê uma explicação subjetiva e bastante avançada para a época a respeito da determinação do valor. Os preços dos bens, observou, flutuam "por conta de sua utilidade em relação à necessidade humana, e apenas por conta da estimativa, pois as joias são muito menos úteis do que o milho, e ainda assim seu preço é muito maior". É fácil perceber que essa afirmativa soa como uma premonição da teoria subjetiva do valor de acordo com a utilidade marginal e para destrinchar o "paradoxo do valor": o milho é mais abundante do que as joias e, portanto, tem maior valor de uso, mas é mais barato no preço. A resposta para o paradoxo é que as estimativas subjetivas ou avaliações diferem do valor objetivo de uso, e este por sua vez é afetado pela escassez relativa.

Para tornar essa explicação perfeita, faltou apenas a Lugo incluir o conceito de utilidade marginal. A subjetividade de Lugo significa que as estimativas ou valorações são feitas tanto por pessoas prudentes como também por pessoas imprudentes ou, em linguagem moderna, de maneira racional ou não racional. Portanto, o preço justo é o preço de mercado determinado pela demanda e valorização do consumidor e, se os consumidores são tolos ou avaliarem tolamente, paciência, pois o preço de mercado será um preço justo de qualquer forma.

Ao abordar o comércio, Lugo acrescenta ao conceito de custo de oportunidade os gastos mercantis. Um comerciante só vai continuar a fornecer um produto se o preço cobrir suas despesas e a taxa de lucro que ele poderia ganhar caso exercesse outras atividades.

Em sua teoria monetária, Lugo é um autêntico escolástico tardio: o valor ou poder de compra da moeda é determinado pela qualidade de seu conteúdo metálico, sua oferta e sua demanda. E a moeda sempre se move da área onde seu valor é inferior para onde seu valor é maior.

No que diz respeito à usura ele não concorda com as implicações claras de Léssio e outros de que a proibição da usura deve terminar. Por essa razão, ele se recusa a aceitar o argumento de Léssio de que o credor tem o direito de cobrar pela falta de seu dinheiro durante o período do empréstimo. Mas, por outro lado, admite poderosas armas favoráveis à cobrança de juros, a saber, o risco e o lucrum cessans. Chega a ampliar o conceito de risco explicitamente e também amplia a cláusula do lucrum cessans, pois permite que o credor inclua não apenas o lucro provável de seu empréstimo, mas também a expectativa do lucro que poderia obter em uma aplicação alternativa.

Outro autor importante desse mesmo período foi o filósofo e jurisconsulto genovês Sigismundo Scaccia, cujoTractatus de Commerciis et Cambiis foi publicado em 1618 e reeditado com frequência na Itália, França e Alemanha, até cerca de meados do século XVIII. O ensino de Scaccia é baseado principalmente no da Escola de Salamanca e em Léssio, embora também muitas vezes ele se refira aos escolásticos medievais. Sobre o valor dos bens, ele cita Covarrubias e Azpilcueta no sentido de que as coisas valem menos quando são abundantes e mais quando são escassas e argumenta que um artigo ser "abundante" significa que muitas pessoas o ofertam para a venda para venda, e "escasso" quando mais compradores de vendedores surgirem nos mercados. Em seu capítulo sobre as bolsas estrangeiras, Scaccia menciona e endossa a explicação dada por Soto para o prêmio cobrado sobre letras de câmbio negociadas na Antuérpia e em Espanha e sustenta que a doutrina de Soto se aplica de uma forma muito lúcida para as trocas entre França e Itália.

É evidente que a teoria monetária da Escola de Salamanca espalhou-se por vários países durante as décadas iniciais do século XVII e que continuou a ser desenvolvida e aplicada nos principais tratados sobre Teologia e Jurisprudência. Embora a maioria dos membros originais da Escola tenham sido dominicanos, entre os escritores do século XVII que continuaram seu ensino havia muitos jesuítas. Como moralistas práticos, os jesuítas eram muito influentes naquele momento, uma vez que grande parte de seu trabalho estava no confessionário. Assim, produziram um grande número de manuais para uso dos confessores, em que muitas vezes discutiam problemas complicados de ética comercial com linhas escolásticas.

Pode-se supor que suas doutrinas tenham sido filtradas através dos leigos. Como salienta Marjorie Grice-Hutchinson, "não estou sugerindo que estes trabalhos tediosos constituíam a leitura favorita do "honnête homm" e médio, mas só temos a quem recorrer em Pascal, em suas Cartas Provinciais, para perceber como foi grande a influência dos teólogos jesuítas sobre a vida comum e o pensamento na França naquele período". 

Pascal empregou toda a sua verve irônica atacando muitos dos escritores cuja obra analisamos (ele dedica a Carta Oitava para impugnar a sua doutrina da usura), e é evidente que, escrevendo em 1656, ele olhou para os nossos escritores espanhóis e todas as suas obras como uma força viva e perigosa para seus padrões. [pp. 160-163]

Por sua vez, pensadores do calibre de Condillac, Turgot, Galiani e outros afirmaram que sua própria ênfase na utilidade e raridade era uma novidade. Todos os três escritores foram famosos por seu ensino, especialmente na Teologia e na Jurisprudência e é difícil acreditar que não tinham lido nenhum dos pós-escolásticos. Como filósofos do século XVIII, talvez tenham relutado em reconhecer sua dívida para com os casuístas. Mas nenhuma relutância pode ser estendida a Grotius, Pufendorf, ou Hutcheson. Pode-se supor, como Hutchinson, que Galiani se deparou com os elementos essenciais da sua teoria do valor no trabalho em alguns autores anteriores e que a inteligência e graça com que ele expressa estas verdades antigas fez com que parecessem inovações para seus contemporâneos. No entanto, a existência de uma teoria subjetiva do valor na obra dos escolásticos tardios e seus sucessores pode ter pavimentado o caminho para a recepção favorável concedida à grande obra de Galiani.

7. A decadência do escolasticismo

Às portas da Renascença, a Escolástica já se encontrava moribunda. Com o declínio dos impérios português e espanhol, a filosofia medieval cristã praticamente desapareceu, enquanto o cartesianismo, o positivismo e o agnosticismo kantiano alcançavam o seu ápice.

O chamado iluminismo, um movimento intelectual da elite europeia do século XVIII, que procurou mobilizar o poder da razão para reformar a sociedade e o conhecimento herdados da tradição medieval, muitas vezes é apontado como sendo responsável pelo fim do escolasticismo. O Iluminismo floresceu até cerca de 1790-1800, após o qual a ênfase na razão deu lugar à ênfase na emoção e surgiu um movimento contra-iluminista. No entanto, quando o movimento iluminista eclodiu, praticamente já não existiam autores escolásticos. Apenas no final do século XIX é que houve uma tentativa de resgatar o escolasticismo sob um prisma mais moderno, principalmente com Jacques Maritain (1882-1973), um filósofo francês de orientação católica e tomista, cujas obras influenciaram a democracia cristã.

O ataque fatal à Escolástica veio de dois campos contrastantes, um externo e o outro interno, mas curiosamente aliados: o aumento dos grupos de protestantes calvinistas e a Igreja, que a denunciou por sua suposta decadência e defeitos de formação moral.

O brilho dos argumentos pós-escolásticos para justificar a usura não impressionou seus inimigos, nem mesmo com toda a escolástica jesuítica de "casuísmo", isto é, de aplicar princípios morais, naturais e divinos para os problemas concretos da vida quotidiana. Pode-se pensar que a tarefa da casuística deve ser considerada importante e nobre, pois, se existem princípios morais gerais, por que não deveriam ser aplicados à vida diária? Mas ambos os conjuntos de adversários conseguiram rapidamente fazer da própria palavra "casuísmo" um termo vulgarizado (o que acontece até hoje), a obediência estrita a rigorosos preceitos morais e a imposição de dogmas ultrapassados e "reacionários".

Essa dupla aliança externa e interna contra a Escolástica teve efeitos muito mais profundos do que a discussão sobre a usura. Na raiz do catolicismo como religião, Deus pode ser compreendido pelas faculdades do homem, ou seja, não apenas por meio da fé, mas também pela razão e os sentidos. O protestantismo e, especialmente, o calvinismo, coloca Deus severamente fora das faculdades do homem e considera, por exemplo, modalidades sensoriais de amor do homem por Deus, como pinturas ou esculturas, como constituindo atos de idolatria e blasfêmia, que precisam ser eliminados para limpar o caminho para a única comunicação adequada com Deus, que seria a pura fé na revelação. A ênfase tomista na razão como meio de apreender a lei natural de Deus e até mesmo aspectos da lei divina choca-se com a ênfase protestante na fé na vontade arbitrária de Deus.

A tendência protestante básica, com raras exceções, era opor-se a qualquer lei natural para derivar Ética ou Filosofia Política a partir do uso da razão do homem, pois o homem era muito pecaminoso e corrupto em sua razão e seus sentidos, uma personificação da corrupção e, portanto, só a fé pura em comandos arbitrários, e revelada por Deus, era aceita como base para a ética humana. Essa descrença por parte dos protestantes na lei natural os impedia de criticar as ações do Estado. Com efeito, o calvinismo e até o luteranismo foram incapazes de contestar o Estado absolutista que floresceu em toda a Europa durante o século XVI e triunfou no século XVII.

Como explica Rothbard: 



Se o protestantismo abriu o caminho para o Estado absoluto, os secularistas dos séculos XVI e XVII, o abraçaram. Despojado de leis naturais críticas do Estado, os novos secularistas, como o francês Jean Bodin, adotaram o Direito Positivo do Estado como o único critério possível para a política. Assim como os protestantes antiescolásticos exaltaram a vontade arbitrária de Deus como fundamento da ética, os novos secularistas levantaram a vontade arbitrária do Estado ao status de "soberano" incontestável e absoluto. No nível mais profundo da questão de como sabemos o que sabemos, ou "epistemologia", tomismo e escolástica sofreram os assaltos contrastantes, mas aliados, dos defensores da "razão" e do "empirismo". No pensamento tomista, a razão e o empirismo não estão separados, mas aliados e entrelaçados. A verdade é construída pela razão em uma base sólida na realidade empiricamente conhecida. O racional e o empírico foram integrados em um todo coerente.

Rothbard prossegue sua excelente narrativa escrevendo que na primeira parte do século XVII, dois filósofos contrastantes conseguiram fortalecer o racionalismo e o empirismo, que continuam a assolar o método científico até os dias atuais. Foram eles o inglês Francis Bacon (1561-1626) e o francês René Descartes (1596-1650). Descartes foi o campeão de uma "razão" dissecada matematicamente e divorciada da realidade empírica, enquanto que Bacon foi o defensor de peneirar incessantemente os dados empíricos. Rothbard afirma enfaticamente: 



Tanto o ilustre advogado inglês, que passou a se tornar Lord Chancellor (Lord Verulam), Visconde do reino e juiz corrupto e o aristocrata francês tímido e errante, concordaram em um ponto crucial e destrutivo: o rompimento da razão e do pensamento a partir de dados empíricos. Assim, a partir de Bacon surgiu a tradição inglês "empirista", mergulhada sem pensar em dados incoerentes, e de Descartes a tradição puramente dedutiva e, por vezes, a tradição matemática do "racionalismo" continental.

O resultado foi que a lei natural, que antes integrava o racional com o empírico, foi vítima de um verdadeiro assalto, resultando em uma mudança drástica e sistemática no pensamento europeu no período "pré-moderno" (séculos XVI e XVII, especialmente), Ocorreu em razão disso uma mudança radical nas universidades.

Os teólogos e filósofos que escreveram e pensaram sobre Economia, Direito e outras disciplinas da ação humana durante os períodos medieval e renascentista eram professores universitários. Paris, Bolonha, Oxford, Salamanca, Roma e muitas outras universidades foram as arenas para a produção intelectual e de combate durante séculos. E mesmo as universidades protestantes do início do período moderno eram centros de ensino do Direito Natural.

Mas dos grandes teóricos e escritores dos séculos XVII e XVIII quase nenhum foi um professor. Eram panfletários, empresários, errantes aristocratas, como Descartes, funcionários públicos menores, como John Locke, e clérigos como o bispo George Berkeley. Essa mudança de foco foi muito facilitada pela invenção da imprensa por Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg (1398-1468), que tornou muito menos dispendiosa a publicação de livros e escritos e criou um mercado muito mais amplo para a produção intelectual. A impressão foi inventada em meados do século XV e no início do século XVI tornou-se possível, pela primeira vez, ganhar a vida como escritor independente, com a venda de livros.

Uma das consequências dessas mudanças foi o esfacelamento da Escolástica e do tomismo do pensamento ocidental, facilitado pela substituição do latim – que na Idade Média era o idioma em que todos escreviam – para o vernáculo de cada país. Esse fato contribuiu para desfazer uma comunidade intelectual que até então tinha uma linguagem comum. Os protestantes tiveram papel decisivo nessa alteração, pois julgavam que a Bíblia deveria ser lida e estudada por todos na linguagem que dominavam.

Por fim, houve um verdadeiro ataque contra a Cia. de Jesus, que despontou em França com o manual Escobar. O assalto foi liderado por um grupo de cripto-calvinistas influentes dentro da Igreja Católica francesa, que desfecharam forte ataque sobre o que diziam ser a "suposta frouxidão moral da Ordem dos Jesuítas". Essa guerra aos jesuítas e sobre sua devoção à razão e à liberdade da vontade tinha começado na Bélgica e foi acelerada no final do século XVI por Michael Bay, chanceler da grande Universidade de Louvain. O bayanismo atacou Leonardo Léssio e os jesuítas na faculdade. No início do século XVII, dois discípulos de Bay, ex-alunos dos jesuítas, tomaram a defesa de sua causa, sendo o mais importante Cornelius Jansen, fundador do movimento neocalvinista jansenista, que se tornou extremamente poderoso na França. Jansen, como muitos teólogos protestantes, instou abertamente a volta à pureza moral de Santo Agostinho e das doutrinas cristãs dos séculos IV e V.

O filósofo e matemático francês Blaise Pascal assumiu a causa jansenista com um ataque aos jesuítas, particularmente Escobar, por seu suposto fracasso moral em ser condescendente com a usura. Pascal ainda inventou um novo termo popular, "escobarderie", com o qual denunciou a disciplina importante da casuística como sendo evasiva e repleta de tergiversações. Outra vítima da caneta venenosa de Pascal foi o austero jesuíta francês Etienne Bauny que, em Somme des Pechez (1639), estendeu o enfraquecimento da proibição da usura, indo longe demais — segundo Pascal — para justificar taxas de juros superiores à taxa máxima permitida por decreto real, com o argumento de que "os devedores as aceitaram voluntariamente". Embora os jansenistas tenham sido condenados pelo Papa, a agitação indecente de Pascal contra os jesuítas produziu um efeito considerável para ajudar a acabar com a primazia do pensamento escolástico, pelo menos na França.

Em suma, a visão de mundo humanista sofreu diversos ataques, vindos de vários fronts e um dos muitos efeitos perversos dessas críticas foi o que denomino de "desumanização" da Economia e das demais ciências da ação humana, fenômeno que foi aguçado na primeira metade do século XIX com o advento do positivismo de Auguste Comte. Um estrago quase que irreparável e que a Escola Austríaca até hoje tenta neutralizar.

8. Conclusões

Podemos extrair conclusões gerais a partir de nosso estudo da teoria econômica da Escola de Salamanca. A principal é que algumas das principais ideias da teoria econômica moderna têm uma história mais longa do que muitas vezes se supõe. Creio que o leitor que tenha despendido tempo para estudar aqueles antigos tratados não pode deixar de ficar impressionado com a grande medida de acordo sobre os problemas fundamentais da teoria econômica, que uniram os homens de todos os países e períodos, vivendo em vários sistemas religiosos, culturais, sociais e econômicos. Hutchinson, a esse respeito, cita Marshall. "As novas doutrinas têm complementado o velho, o estenderam, desenvolveram, e às vezes o corrigiram, e muitas vezes lhes deram um tom diferente ou uma nova distribuição de ênfase, mas muito raramente o subverteram". [pp 165-166]

Muitas vezes somos advertidos contra o pecado de desejarmos ler nossas próprias ideias em trabalhos de escritores mais velhos. Muitas vezes, de fato, a literatura econômica antiga agora parece remota sob o ângulo de nossas próprias formas de pensamento e por isso não nos desperta muito interesse. Com isso a história das doutrinas econômicas passa a ser considerada como um luxo, como algo supérfluo, já que os refinamentos – especialmente os modelos matemáticos com sua elegância - da teoria moderna deixam menos tempo para isso. Os economistas nos últimos 120 anos vêm apresentando uma lamentável tendência de desprezar os autores do passado e isso vem se acelerando a partir da segunda metade do século XX, quando as técnicas econométricas se desenvolveram rapidamente e os computadores foram popularizados.

Com isso, infelizmente, a Economia, uma ciência que lida claramente com a ação humana no processo de mercado em condições de incerteza genuína passou a receber tratamento semelhante ao de uma ciência exata. Um desastre. Desumanizaram algo que é humano, sob o pretexto de estarem produzindo "ciência". 

Mas há certos eventos na história do pensamento econômico que são familiares para a maioria dos estudantes. Sabemos, por exemplo, que a Saxônia foi o cenário de uma controvérsia monetária famosa no século XVI, que a Itália foi o país com a melhor teoria monetária e a pior política monetária no século XVII, que os fisiocratas inventaram um esquema elaborado chamado de Tableau Économique. E os britânicos sentem orgulho de Adam Smith, David Ricardo e Alfred Marshall.

No entanto, a literatura econômica pós-escolástica, particularmente a do século XVII e XVIII, em Espanha, Portugal e na Itália, é tão extensa e interessante que exige que lhe façamos justiça. É uma tarefa, sem dúvida, que temos que cumprir se quisermos de fato re-humanizar a Ciência Econômica.

Creio que, depois de tudo o que foi abordado no artigo sobre as ideias econômicas dos escolásticos tardios, desejo apenas, primeiro, enfatizar que suas doutrinas econômicas eram compatíveis com a da Escola Austríaca e, segundo, reforçar — já que demonstrá-lo demandaria substancial pesquisa adicional — que suas ideias influenciaram importantíssimos pensadores não escolásticos, como Turgot, Galeani, Condilac, Say, Bastiat, Molinari, Rocher e, por fim, Carl Menger.

Espero que este despretensioso artigo tenha servido para deixar claro que foi no ambiente da "Escolástica Tardia" que se produziram muitas importantes concepções do jus-naturalismo e da ideia de Direito Internacional, além dos tratados de Economia que viriam a influenciar a escola marginalista e o liberalismo da Escola Austríaca nos séc. XIX e XX.

Por isso, posso encerrar com as palavras de meu amigo Alejandro Chafuen que, na conclusão de seu famoso livroEconomia y Etica: Raices Cristianas de La Economia de Mercado, escreve:



Es imposible probar que todos lós escritos de la escolástica tardia favorecían el libre mercado. Tampoco podemos concluir diciendo que para ser um buen Cristiano hay que creer em la economia libre. El hecho de que gente santa defienda uma cierta teoria no es garantia de certeza. El análisis de lós escritos de estos autores sugiere que lós economistas modernos defensores de la libertad econômica tienen para com ellos uma deuda mayor de la que se imaginan. Lo mismo podemos decir de la sociedad libre. [p. 201]

E as últimas palavras de sua conclusão são:



"La propriedad privada está fundamentada em la libertad humana, que a su vez se desprende de la naturaleza humana que, como toda naturaleza, es creada por Dios. La propriedad privada es um prerrequisito esencial para El respeto de las libertades econômicas. La misma seguirá siendo amenazada desde vários frentes y su defensa dependerá de uma nueva generación de escolásticos, hombres de buena formación em El campo de la filosofía moral y de lãs ciências sociales". [p. 202, negrito meu]

O que posso acrescentar a essas palavras de Chafuen, a não ser um "é verdade" repleto de esperança nos jovens que cada vez se interessam mais pela Escola Austríaca, a mais condizente com os valores da ética e da liberdade individual dentre todas as Escolas de Pensamento Econômico?

É verdade, Alex! Como escreveu São Paulo aos coríntios (II Cor 3,17): "Ubi autem Spiritus Domini, ibi libertas". Esta frase do apóstolo dos gentios, que escolhi como lema para minha página na Internet, significa que onde estiver o Espírito do Senhor, aí estará também a liberdade.

Referências bibliográficas:

CALZADA, Gabriel.Las Orígines de la Escuela Austriaca, palestra proferida em 24/1/ 2008 na Universidade Francisco Marroquin, encontrada em: http://www.newmedia.ufm.edu 

CATHARINO, Alex. Antiguidade e Idade Média, A Filosofia Moral e a Teoria Política de Santo Tomás de Aquino, Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista - Cieep, Rio de Janeiro, sem data.

CHAFUEN, Alejandro A. Economia y Etica: Raices Cristianas de la Economia de Libre Mercado,Rialp, Madrid, 1991

GRICE-HUTCHINSON, Marjorie. The School of Salamanca, Oxford at Clarendon Press, London, 1952, disponível na forma de iBook em: www.mises.org.br 

HOLCOMBE, Randall G. "The Great Austrian Economists." Ludwig von Mises Institute, 1999, iBook.

IORIO, Ubiratan J. Economia e Liberdade: A Escola Austríaca e a Economia Brasileira, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1997 (2ª ed.)

LAURES, John, S.J. The Political Economy of Juan de Mariana, New Yoork, Fordham University Press, 1928, disponível em: www.mises.org em pdf.

ROTHBARD, Murray. Economic Thought Before Adam Smith: An Austrian Perspectiveon the History of Economic Tought, vol. I, Elgar, 1995

SANTOS, Renan. Escolástica: A filosofia durante a Idade Média, em:http://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/escolastica-a-filosofia-durante-a-idade-media.htm

SOTO, Jesus H. A Escola Austríaca, S. Paulo, Instituto Mises Brasil, 2ª ed, 2010, cap. 3

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Visite seu website.

OS PÓS-ESCOLÁSTICOS E JUAN DE MARIANA, UM AUSTRÍACO POLITICAMENTE INCORRETO

Este artigo é uma continuação deste outro

4. O Cardeal Gaetano, Tommaso de Vio

A Escolástica tardia – o período dos pós-escolásticos - foi um produto do século XVI, o século que deu início à Reforma Protestante e à Contra Reforma Católica. Se o século XIII foi bem descrito como a idade de Ouro da filosofia escolástica, o século XVI foi a sua Era de Prata, a era de um renascimento brilhante do pensamento escolástico, antes de seu fim. Nos séculos XIV e XV surgiu o nominalismo e o enfraquecimento da ideia de uma lei racional, incluindo uma lei natural ética, descobertos pela razão do homem. Mas o século XVI assistiu a um tomismo renascente, liderado por um dos maiores homens da Igreja de sua época, Tommaso de Vio (1469 -1534), o Cardeal Gaetano (ou Caetano, em português).

Ele não foi apenas o filósofo tomista e teólogo eminente de sua época, pois também era um dominicano italiano que se tornou Geral da Ordem em 1508. Como cardeal da Igreja, foi o defensor favorito do Papa em debates com o fundador do protestantismo, Martinho Lutero. Em seu comentário sobre a Summa de São Tomás de Aquino, Caetano, é claro, endossou a visão escolástica de que o preço justo é o preço comum de mercado, refletindo a estimativa dos compradores e considerou que esse preço vai flutuar em decorrência de mudanças nas condições de oferta e demanda. Na tentativa de expurgar da economia escolástica qualquer vestígio da teoria da "estação da vida" de Langenstein, Caetano foi mais longe ao criticar Aquino por este ter denunciado a acumulação de riqueza além de certo nível como pecado de avareza. Pelo contrário, declarou Caetano, é legítimo que pessoas altamente capazes subam na escada social de uma forma que corresponda ao seu trabalho, sua inteligência, sua capacidade e suas realizações.

Em seu tratado abrangente sobre câmbio, "De Cambiis", de 1499, Caetano fez uma defesa completa, firme, contundente e incondicional do mercado de divisas. Uma vez que o papel do comerciante é legítimo, então assim também deve ser o do banqueiro de câmbio, que simplesmente é quem se engaja numa certa espécie de transação mercantil. Além disso, o comércio moderno não poderia funcionar sem o mercado de câmbio e as cidades não poderiam existir sem comércio. Por isso, inferiu, é necessário e justo que o mercado de câmbio exista. Como em outros mercados, o preço de mercado habitual é o preço justo.

No curso de sua defesa do mercado de câmbio, Caetano começou a avançar o estado da arte na teoria monetária: mostrou incisivamente que a moeda é uma mercadoria, particularmente quando os agentes se deslocam de uma cidade para outra, e, portanto, sujeita às leis de oferta e demanda que regem os preços das commodities. Neste ponto, Caetano fez um grande avanço na teoria monetária, em particular, e na própria teoria econômica em geral, ao ressaltar que o valor do dinheiro não depende apenas da demanda existente e das condições de oferta, mas também da expectativa atual do estado futuro do mercado. Expectativas de guerras e fome e de futuras mudanças na oferta de dinheiro – mostrou - afetam o seu valor atual. Assim, o Cardeal Caetano, um príncipe da Igreja do século XVI, pode ser considerado o fundador da teoria das expectativas na economia. Antecipou Menger e Robert Lucas (da Escola de Expectativas Racionais) em 450 e 550 anos, respectivamente.

Adicionalmente, Caetano distinguia dois tipos de "valor da moeda": o seu poder de compra em termos de bens, quando o ouro ou prata são "equiparados" com mercadorias compradas e vendidas, e o valor de uma moeda em termos de outra moeda no mercado de câmbio. Segundo ele, cada tipo de moeda tenderia a se deslocar para a região onde o seu valor é mais alto, e afastar-se da região onde o seu valor é mais baixo.

Quanto à polêmica questão da usura, embora Caetano não tenha sido tão radical como seu contemporâneo Summenhart em praticamente erradicar a proibição da usura, ele se juntou a ele na defesa da doutrina da intenção implícita, e foi ainda mais radical em uma área onde Summenhart tinha recuado: lucrum cessans (lucros cessantes). A "intenção implícita" significa que se alguém realmente acredita que seu contrato não é um empréstimo, então não é um usurário, embora possa ser um empréstimo na prática. Isto, obviamente, abriu o caminho para a eliminação prática da proibição da usura. Além disso, Caetano também se juntou a seus colegas liberais ao aprovar o contrato de investimento garantido. Mas seu grande avanço no campo da usura foi sua reivindicação de lucrum cessans. Empunhando a poderosa autoridade de ser o maior tomista desde o próprio "Boi Mudo" (que era como os colegas chamavam Tomás de Aquino, devido a ser corpulento e a manter-se quase sempre calado), Caetano ofereceu uma crítica minuciosa em que rejeita seu mestre. Ele, então, justifica, na verdade, não apenas os lucros cessantes, mas quaisquer empréstimos.

Dessa forma, um credor pode cobrar juros sobre qualquer empréstimo como forma de pagamento de lucros perdidos em outros investimentos, desde que o empréstimo seja para um homem de negócios. Essa divisão entre empréstimos para empresários e para consumidores foi feita pela primeira vez como um meio de justificar todos os empréstimos comerciais. A lógica era que o dinheiro retinha seu valor mais alto nas mãos dos homens de negócios em relação aos tomadores de empréstimos para consumo. Assim, pela primeira vez na era cristã, o Cardeal Caetano justificou o ato de emprestar dinheiro como um negócio, desde que os empréstimos fossem feitos a empresas. Antes dele, todos os escritores, mesmo os mais liberais, como Conrad Summenhart, justificavam a cobrança de juros apenas quando fundada em lucros cessantes e somente para empréstimos de caridade ad hoc. Agora, o grande Caetano estava justificando o negócio em si de emprestar dinheiro a juros.

Com Caetano, o caminho para o movimento dos escolásticos tardios estava aberto. Restava, agora, calçá-lo.

5. As ideias do grande Juan de Mariana: "austríaco", "politicamente incorreto" e "polêmico"

E quem mais contribuiu para essa tarefa, embora não fosse o único a fazê-lo, foi Juan de Mariana, nascido em 1536 na pequena cidade de Talavera, na diocese de Toledo. De acordo com John Laures, um padre jesuíta que publicou em 1928 o interessante livro The Political Economy of Juan de Mariana (Fordham University Press, New York), 



Tudo o que sabemos sobre suas origens é que ele nasceu no ano de 1536, como o filho de pais pobres e simples. Mesmo este fato é apenas relativamente certo. Na idade de dezessete anos Mariana era um estudante na famosa Universidade de Alcalá, e em 1º de Janeiro de 1554 ele foi recebido na Sociedade de Jesus, [recentemente fundada por São Francisco Xavier, um ex-soldado espanhol que fora ferido em uma das pernas em combate e que se convertera ao Cristianismo]. Ele completou o noviciado em Simancas, em parte sob a direção de Francisco Borgia, o Duque de Gandia aposentado, que um dia seria o Geral da Ordem dos Jesuítas.

Prossegue Laures relatando que no início de 1561 o jovem Juan foi chamado para o recém-construído Colégio Romano, para ensinar Filosofia e Teologia. Um de seus alunos foi Robert Belarmino, destinado a ser um grande polemista e, posteriormente, um cardeal. Depois de quatro anos de ensino, o jovem professor foi enviado à Sicília para ensinar Teologia e introduzir um novo plano de estudos na faculdade lá estabelecida por sua Ordem. Enquanto isso, ganhou reputação como teólogo e em 1569 foi chamado para lecionar na Sorbonne, em Paris, na época a mais famosa universidade do mundo. No entanto, sua precária saúde obrigou-o a deixar Paris quatro anos depois e voltar ao seu país natal, onde viveu durante o resto de sua longa vida, em Toledo.

Mesmo tendo se retirado do mundo, Mariana exerceu forte influência sobre a história contemporânea de Espanha e, até certo ponto, mundial. Sua reputação como teólogo e seu vasto conhecimento em quase todos os campos de aprendizagem deram-lhe um prestígio verdadeiramente extraordinário. Era frequentemente procurado por comerciantes e por autoridades temporais e eclesiásticas em busca de conselhos. Questões importantes esperavam por sua aprovação e eram realizadas sob a sua direção e seus conselhos. Seu lazer deu-lhe tempo para aprofundar e ampliar seus conhecimentos e desenvolver uma atividade literária bastante frutífera.

A segunda obra mais conhecida de Mariana, De Rege et Regis Institutione, surgiu em 1599 em Toledo, tendo sido elaborada por sugestão do tutor dos príncipes reais e publicada sob o patrocínio de Filipe II. É neste livro que Mariana discute a questão de saber se é lícito depor e até mesmo matar um monarca que se comporte como um tirano, uma pergunta à qual ele responde afirmativamente, como se verá mais pormenorizadamente adiante.

No ano de 1610 estourou uma tempestade de indignação contra o livro e contra a Companhia de Jesus em geral. Henrique IV foi assassinado por François Ravaillac (1577-1610) e os inimigos da Sociedade acusaram os jesuítas de serem os supostos autores do crime. Ravaillac foi questionado sobre se ele havia sido induzido a cometer o regicídio pelo livro de Mariana sobre a realeza, mas ele negou até mesmo qualquer familiaridade com ele. No entanto, muitos ainda sustentavam que a doutrina jesuíta teria sido responsável pelo atentado e De Rege foi queimado em público por um carrasco. Desde então, as ideias de Mariana sobre tiranicídio têm sido imputadas a toda a Companhia de Jesus, apesar de nenhum outro jesuíta, seja em seu tempo ou mais tarde, ter aderido a essa doutrina perigosa. O Geral da Ordem, Cláudio Aquaviva, enfaticamente protestou contra o livro, proibindo todos os seus subordinados, de todos os tempos, a ensinar aquela doutrina.

As autoridades francesas pressionaram o rei da Espanha para tirar o livro de circulação, mas não obtiveram êxito e a obra continuou muito popular. Hoje se pode dizer que, embora o autor de De Rege estivesse muito equivocado em alguns aspectos, mesmo para os hábitos culturais da época, sua obra, dentre todos os tratados sobre a realeza, é uma das publicações mais marcantes do século XVI.

Ainda segundo o Padre Laures, De Rege trata não só da Filosofia Política e da arte de governo, mas apresenta muitas ideias econômicas. Outro tratado econômico de Mariana foi De Ponderibus et Mensuris, publicado pela primeira vez em 1599 e que em edições posteriores apareceu juntamente com De Rege em um único volume. É uma discussão histórica de várias moedas: grega, romana, hebraica e espanhola. Um tratado estritamente econômico, De monetae Mutatione, apareceu em Colônia em 1609, como o quarto número do Tractatus VII. Ele foi escrito como uma crítica à adulteração da cunhagem de cobre espanhol por Felipe III. Naquele panfleto Mariana critica severamente o rei e os seus conselheiros, por roubarem as pessoas e perturbarem o equilíbrio do comércio. Ele também desenvolve com rigor naquela obra os princípios científicos da moeda e comprova suas afirmações acerca da história espanhola.

Assim que este pequeno livro apareceu, denunciaram Mariana ao rei pelo crime de lesa-majestade e também imputaram a ele erros em questões de fé. Imediatamente após o aparecimento do Tractatus VII, o rei ordenou aos seus oficiais e embaixadores que comprassem todos os exemplares do livro que pudessem e seu pedido foi prontamente atendido. Pouquíssimos exemplares escaparam de suas mãos, e em tudo o que puderam achar encontraram cortes nas páginas 189-221, ou seja, o tratado De Monetae Mutatione.

Após a morte de Mariana o Tractatus VII foi, aliás, expurgado pela Inquisição espanhola. Muitas frases foram excluídas e colunas inteiras e páginas cobertas com tinta. Todas as cópias não expurgadas foram colocadas noIndex Librorum Prohibitorum et Expurgandorum espanhol, e a maioria dos exemplares sobreviventes foram expurgados por decretos de 1632 e 1640. Como resultado, poucos exemplares completos do Tractatus VIIsobreviveram.

Mariana, como historiador, afirmou que a sociedade primitiva foi formada por consentimento mútuo. Alguns o criticaram, afirmando que todos os grandes impérios resultaram de conquistas e violência. Ele não nega o fato de que alguns estados passaram a existir desta forma, porém afirma que a maioria surgiu por mútuo consentimento e que estenderam suas fronteiras por guerras que considerava justas. Acreditava firmemente que os impérios baseados em violência e injustiça nunca podem tornar-se legítimos, mesmo através de legislações posteriores. Esta é a síntese da teoria da origem e do fim do estado de Mariana, que se mostra, por assim dizer, contraditória.

Tal como seu colega jesuíta Francisco Suarez, ele justifica a necessidade de existência do estado pela impossibilidade do indivíduo e da família de suprir todas as necessidades da vida. Seus argumentos são: (1) a sociedade política é necessária porque nenhuma família é autossuficiente; (2) se existiam divisões entre as várias famílias, não poderia haver paz e, portanto, elas deveriam ser unidas em uma sociedade. E desde que o homem precisa de uma sociedade política, ele também precisa de um poder político, pois uma sociedade sem tal poder não poderia realizar o seu fim.

Para Mariana, a sabedoria divina permite que o homem, apesar de fraco por natureza e exposto aos seus próprios recursos, possa tornar-se forte se estiver unido com os demais em uma sociedade. A partir disso é que Mariana considera a sociedade política necessária para a natureza humana. Tão logo o homem formou um corpo político, Deus concedeu-lhe o que era necessário para a vida em sociedade, ou seja, o poder político. Este poder, então, não é uma criação do homem ou algo que existia desde o princípio, mas algo acrescentado por Deus à natureza humana imperfeita e, logo, era necessário, a partir do momento em que os homens fizeram as suas mentes funcionarem para formar uma sociedade política.

Mariana foi um ardoroso oponente da crescente onda de absolutismo na Europa e da doutrina do rei James I da Inglaterra, em que os reis governam de maneira absoluta por direito divino. Ele converteu a doutrina escolástica da tirania de um conceito abstrato em uma arma para ferir monarcas reais do passado, denunciando como tiranos antigos governantes tais como Ciro, o Grande, Alexandre o Grande e Júlio César, que adquiriram seu poder pela injustiça e roubo. Os escolásticos anteriores, incluindo Suarez, acreditavam que as pessoas pudessem ratificar tal usurpação injusta por seu consentimento após o fato, e, assim, tornar o seu próprio domínio legítimo. Mas Mariana não aceitava esse consentimento das pessoas. Era um defensor das liberdades individuais. Em contraste com outros escolásticos, que colocaram a "propriedade" do poder no rei, ele ressaltou que as pessoas têm o direito de recuperar seu poder político sempre que o rei abusar dele.

Na verdade, Mariana acreditava que, na transferência de seu poder político do estado de natureza original para um rei, o povo necessariamente deveria reservar direitos importantes para si: além do direito de reclamar a soberania, também poderes vitais como a tributação, o direito de veto a leis, bem como o direito de determinar a sucessão se o rei não tiver herdeiro. Portanto, Mariana, ao invés de Suarez, é que deve ser considerado um antecessor da teoria do consentimento popular e da superioridade do povo frente ao governo de John Locke. E também antecipou Locke, ao considerar que os homens deixam o estado de natureza para formar governos, a fim de preservar os seus direitos de propriedade privada. Mariana também foi muito além de Suarez ao postular um estado de natureza — a sociedade —, anterior à instituição do governo, tese abraçada por muitos liberais do século XX.

Mas a característica mais interessante do "extremismo" da teoria política de Mariana era a sua inovação criativa na teoria escolástica do tiranicídio. Que um tirano podia ser justamente morto pelas pessoas havia sido doutrina padrão, mas Mariana a ampliou muito, em duas maneiras significativas. Primeiro, ele expandiu a definição de tirania: um tirano era qualquer governante que violasse as leis da religião, que impusesse impostos sem o consentimento do povo, ou que impedisse uma reunião de um parlamento democrático. Todos os outros escolásticos, em contrapartida, tinham considerado apenas a imposição injusta de impostos como regra de tirania. Adicionalmente, para Mariana qualquer cidadão podia justamente assassinar um tirano e podia fazê-lo por quaisquer meios necessários. Para ele, esse assassinato não exigiria nenhum tipo de decisão coletiva da parte de todo o povo. Porém, para ter certeza de sua decisão de assassinar algum tirano, os indivíduos não deveriam se envolver em tal propósito de ânimo leve, sem um prévio exame de consciência: primeiro, deveriam tentar reunir as pessoas para tomar essa decisão crucial, mas, se isso fosse impossível, ele deveria pelo menos consultar alguns "homens eruditos e graves", a menos que o clamor do povo contra o tirano fosse tão cruamente manifesto que a consulta se tornasse desnecessária.

Ele foi mais longe — antecipando Locke e a Declaração da Independência — na justificação do direito de rebelião, afirmando que não nos precisamos preocupar com a perturbação da ordem pública causada pelo tiranicídio, pois esta é uma ação sempre perigosa e, portanto, muito poucos estão prontos para arriscar suas vidas dessa maneira. Pelo contrário — prosseguiu —, a maioria dos tiranos não morreu mortes violentas e os tiranicídios foram quase sempre saudados pelas populações como atos de heroísmo.

Um tirano — escreveu ele — necessariamente teme que aqueles a que aterroriza e mantém como escravos venham tentar derrubá-lo e, por isso, ele proíbe os cidadãos de se reunirem em assembleias e discutirem, tirando deles, por métodos de polícia secreta, a oportunidade de falar e de se queixar livremente.

Este "homem erudito e grave", Juan de Mariana, não deixou nenhuma dúvida a respeito de sua opinião sobre o mais recente e famoso tiranicídio: o do rei francês Henrique III. Em 1588, Henrique III tinha sido preparado para nomear como seu sucessor Henrique de Navarra (que assumiria o trono como Henrique IV), um calvinista que estaria governando uma nação fortemente católica. Diante de uma rebelião de nobres católicos, liderados pelo duque de Guise, apoiado pelos cidadãos católicos devotos de Paris, Henrique III chamou o duque e seu irmão, o cardeal, para um pacto de paz em seu acampamento e assassinou os dois. No ano seguinte, a ponto de conquistar a cidade de Paris, Henrique III foi assassinado, por sua vez, por um jovem frade dominicano e membro da Liga Católica, Jacques Clement. Para Mariana, desta forma "o sangue foi expiado com sangue e o duque de Guise foi vingado com sangue real". E o regicídio foi saudado pelo Papa Sisto V e pelos padres de Paris.

As autoridades francesas estavam compreensivelmente nervosas com as teorias de Mariana e seu livro De Rege. Finalmente, em 1610, Henrique IV (ex-Henrique de Navarra, que havia se convertido do calvinismo à fé católica, a fim de tornar-se rei da França), foi assassinado pelo católico François Ravaillac, que desprezava o egocentrismo religioso e o absolutismo estatal imposto pelo rei. Nesse ponto, a França entrou em erupção, em uma onda de indignação contra Mariana e o Parlamento de Paris — como escrevemos linhas atrás — fez um carrasco queimar De Rege publicamente.

Antes de ser executado, Ravaillac foi questionado quanto a se a leitura de Mariana o levara a assassinar o rei, mas ele negou, afirmando que jamais havia ouvido falar dele. A respeito do assassinato de Henrique IV e daexecução de Ravaillac, assim se expressa a Wikipedia:



Em 14 de maio de 1610, Ravaillac rouba uma faca de um albergue. Esconde-se na Rua de la Ferronnerie, em Paris (no atual Quartier des Halles ; as armas de Henrique IV, esculpidas no chão, indicam hoje o local exato do regicídio). Aí espera pela passagem da carruagem real, já que o rei havia decidido dirigir-se ao Arsenal para visitar seu ministro Sully que estava enfermo.

Às quatro horas da tarde, o rei chega. De repente, o cortejo fica bloqueado devido a um congestionamento: Ravaillac aproveita a chance e atira-se sobre o rei. Dá-lhe dois golpes de faca : o primeiro desliza entre duas costelas, o outro atinge a carótida direita.

Ravaillac refugia-se em seguida em um porão na Rua des Lombards, bem próxima do local do atentado, mas é rapidamente encontrado e subjugado. É levado ao Hôtel de Retz para evitar um linchamento e conduzido à Conciergerie.

Tortura e execução: Antes do interrogatório, Ravaillac é preso à roda. A roda é girada e Ravaillac agredido. Suas pernas são esmagadas para fazê-lo falar e são feitos cortes em seu torso, braços e costas. Uma mistura de chumbo derretido, óleo, vinagre e sal foi derramada sobre seu corpo para fechar as feridas. Colocaram-lhe a seguir um culote úmido e o aproximaram do fogo. O culote encolhe, para fazer com que os ossos das pernas, já quebrados, movam-se; toda sua pele é retirada e ele é queimado vivo. Na verdade, Ravaillac ainda permaneceu vivo e nunca confessou seu crime. Foi, a seguir, esquartejado por quatro cavalos.

Seus parentes foram condenados ao exílio e um édito foi promulgado proibindo a qualquer pessoa do reino de se chamar Ravaillac.

Este assassinato desencadeou uma enorme polêmica. Por um lado, levantou-se a suspeita de que os jesuítas teriam incitado Ravaillac ao regicídio. Por outro lado, este ato teria sido inspirado por uma conspiração de que teriam participado Maria de Médicis (esposa do rei), Henriqueta d'Entrages (Marquesa de Verneuil) e o Duque d'Epernon; teriam agido em nome da Espanha.

Enquanto o rei da Espanha se recusou a atender aos apelos franceses para suprimir o trabalho "subversivo" de Mariana, o Geral da Ordem dos Jesuítas emitiu um decreto proibindo os membros da Cia. de Jesus de ensinar que é lícito matar tiranos. Este estratagema, no entanto, não impediu a eclosão na França de uma campanha bem sucedida contra a Ordem Jesuíta, bem como a sua perda de influência política e teológica.

Juan de Mariana foi um pensador fascinante sob todos os aspectos – sua Teologia, Filosofia Política e Economia Política têm bastante claras as marcas registradas de seu temperamento, um jesuíta ascético e que amava a sua Espanha, um homem absolutamente sem medo e que não mostrava qualquer constrangimento em nadar contra a corrente. Se vivesse nos nossos dias, certamente seria taxado de "politicamente incorreto" e de "polêmico". Mas foi, antes de qualquer outro adjetivo, um homem corajoso. Vale a pena conhecermos um pouco mais a seu respeito e de seu pensamento.

Embora enfatizasse a importância da agricultura, ele estava ciente de que ela não é o único fator importante para o bem-estar nacional. O comércio e as trocas voluntárias também são absolutamente necessários para a prosperidade de um país. É verdade que é um pouco crítico quando o comércio é voltado excessivamente para a mera questão do lucro, o que mostra que ele é um teólogo e moralista. O objetivo do comércio, para Mariana, é efetuar um equilíbrio entre as necessidades e os produtos excedentes dos países, de modo que cada um terá o que necessitar. A função importante do comércio, então, é fornecer abundância para todos os países.

Deve, portanto, ser incentivado em todos os sentidos e nada deve interferir nele. Isto é tanto mais verdadeiro porque o comércio é um processo mais delicado e é o mais afetado pela menor perturbação. É - como observou - como o leite, que é estragado pela menor brisa.

Altas tarifas são, acima de tudo, prejudiciais ao comércio exterior, pois seu fardo é deslocado para o comprador, com um consequente aumento nos preços. Logo, as tarifas sobre as necessidades da vida devem ser moderadas, de modo a incentivar e facilitar as importações do exterior. Mariana se opõe, assim, às altas receitas de tarifas, pelo menos na medida em que estão em causa necessidades importantes. Os comerciantes devem aproveitar a proteção especial da lei, porque é necessária para o bem-estar do estado.

A adulteração da moeda é outro grande inconveniente, tanto para o comércio interno quanto para o externo. Estrangeiros serão desencorajados a trazer seus produtos para a Espanha, se não receberem nada em troca, a não ser moeda fraca. Rebaixar o teor de metal na cunhagem resultará em preços mais elevados. Se o rei tentar fixar um preço menor ninguém irá vender e surgirá uma perturbação geral do comércio.

Assim, Mariana, embora não sendo um defensor ardoroso do livre comércio, foi um precursor, que percebeu que altas tarifas são uma forma nefanda de enriquecer um país em detrimento dos estrangeiros. Se nosso autor defendeu um imposto alto sobre bens de luxo isto foi principalmente pela razão de que eles destroem a boa e velha simplicidade que deve reger a vida (lembremos que Mariana era um asceta).

Encontramos ainda outra ideia moderna e também cabível na discussão de nosso autor sobre comércio. A descoberta da América e do caminho marítimo para as Índias Orientais tinha trazido um enorme aumento no comércio internacional. Mercadorias passaram a ser trocadas entre os países mais distantes e parecia que as distâncias tinham desaparecido. Esta relação comercial crescente aparece para Mariana como um símbolo de crescente caridade e um meio de unir as diversas nações do mundo.

É como um moralista que ele concorda com os outros escolásticos que um "preço justo" deve servir de base nas transações comerciais. Este preço foi fixado em tempos medievais pelo governo e foi considerado por ele errado exigir mais do que o montante legalmente fixado. Mariana vê, no entanto, que, na prática, nem sempre é possível determinar os preços de forma satisfatória e que se não estão de acordo com a estimativa popular comum (ou seja, com o mercado), eles não podem ser impostos. Para ser justo um preço não deve ser fixado uma vez e para sempre, deve levar em conta várias condições que mudam com a demanda e a oferta dos artigos em questão. Os preços devem, portanto, serem revistos de tempos em tempos.

Mariana comprova sua afirmação a partir da história da Espanha. Toda vez que os reis espanhóis adulteraram a cunhagem, seguiu-se um aumento geral dos preços, e toda interferência do governo para solucionar o problema provou ser inútil. Mariana também afirma que é praticamente impossível fixar preços para tudo. Aqui, então, vemos que o nosso autor aplica o princípio econômico muito importante de que os preços regulam-se de acordo com a demanda e oferta de bens e da quantidade de dinheiro em circulação. Se a moeda é genuína (metal de bom teor) e escassa, os preços vão diminuir e se ela for adulterada e abundante os preços vão necessariamente subir. Esta é uma aplicação da Teoria Quantitativa da Moeda, que é o princípio fundamental de Irving Fisher para estabilizar a unidade monetária, bem como, naturalmente, uma premonição do que os austríacos nos ensinaram sobre a inflação e a deflação.

Como ressalta Rothbard, Juan de Mariana possuía uma das personalidades mais fascinantes da história do pensamento político e econômico. Honesto, valente e destemido, Mariana esteve em polêmicas durante quase toda a sua longa vida, até mesmo por seus escritos econômicos.

Voltando sua atenção para a teoria e prática monetária, Mariana, em seu breve tratado De Monetae Mutatione(Sobre a Alteração da Moeda, de 1609) denunciou seu soberano, Felipe III, por roubar as pessoas e prejudicar o comércio através da degradação da cunhagem de cobre. Ele ressaltou que esta degradação também causou inflação crônica na Espanha, aumentando a quantidade de dinheiro no país. Felipe tinha dizimado sua dívida pública por rebaixar suas moedas de cobre em dois terços, triplicando assim a oferta de moeda de cobre. Mariana notou que o aviltamento do metal e a interferência do governo no mercado só poderiam causar graves problemas econômicos.

Só um tolo, segundo ele, tentaria separar esses valores de tal forma que o preço legal devesse ser diferente do natural. O mau governante – ponderou - ordena que uma coisa cujo valor é cinco deve ser vendida por dez. Os homens são guiados nesta matéria pela estimativa comum fundada em considerações sobre a qualidade das coisas e de sua abundância ou escassez. Seria vão para um príncipe procurar minar esses princípios de comércio. É melhor deixá-los intactos, sustentava, ao invés de agredi-los pela força em detrimento do bem comum.

Mas nosso personagem meteu-se em real enrascada, em dois sentidos: porque a questão era grave e porque a referida questão era contra o próprio rei! Mariana começa De Monetae com a sinceridade que lhe era característica escrevendo ter ciência de que sua crítica ao rei lhe traria grande impopularidade, mas completa afirmando que o povo está "gemendo" sob as agruras resultantes da degradação monetária e que ainda ninguém teve a coragem de criticar a ação do rei publicamente. Assim, a justiça requer que pelo menos um homem deve expressar a queixa comum do público. Quando uma combinação de medo e suborno conspira para silenciar os críticos, deve haver pelo menos um homem no país que sabe a verdade e tem a coragem de mostrá-la a todos. Mariana então começa a demonstrar que a degradação monetária é um imposto oculto muito pesado, uma senhoriagem, sobre a propriedade privada de seus súditos, e que nenhum rei tem o direito de cobrar impostos sem o consentimento do povo. Uma vez que o poder político se originou do povo, o rei não tem direitos sobre a propriedade privada de seus súditos, nem pode apropriar-se de sua riqueza por puro capricho e vontade. Mariana defende a bula papal Coena Domini, que havia decretado a excomunhão de qualquer governante que impusesse novos impostos.

Para ele, a qualquer rei que pratica aviltamento monetário deve se aplicar a mesma punição, como no caso de qualquer monopólio legal imposto pelo estado sem o consentimento do povo. Sob tais monopólios, o próprio estado, ou seu beneficiário, pode vender um produto para o público a um preço superior ao seu valor de mercado e isso é certamente uma taxação! Ele relata historicamente a degradação da moeda e seus efeitos infelizes e ressalta que os governos devem manter todos os padrões de peso e medida, não só de dinheiro, e que seu ato de adulterar esses padrões é vergonhoso. Castela, por exemplo, tinha mudado suas medidas de azeite e vinho, a fim de cobrar um imposto oculto, e isso levou a uma grande confusão e agitação popular. O livro de Mariana, ao atacar a degradação do rei, levou o monarca a mandar o já idoso padre, então com 73 anos, para a prisão, pelo grave crime de lesa-majestade. Os juízes condenaram Mariana por crime contra o rei, mas o Papa recusou-se a puni-lo e Mariana foi finalmente solto depois de quatro meses, com a condição de que iria cortar as passagens ofensivas de seu livro e de que seria mais cuidadoso no futuro.

Mas o rei, bem conhecendo o padre e, portanto, sabendo que este ficaria apenas com as promessas, ordenou a seus funcionários que comprassem todas as cópias publicadas de De Monetae Mutatione e as destruíssem. Não só isso, depois da morte de Mariana, a Inquisição espanhola, como relatamos anteriormente, expurgou as cópias restantes, excluindo muitas frases e manchando páginas inteiras de tinta. Todas as cópias não expurgadas foram colocadas no Índice da Inquisição espanhola, e estas, por sua vez, foram destruídas durante o século XVII. Como resultado desta campanha selvagem de censura, a existência do texto latino deste importante livro permaneceu desconhecida durante 250 anos, e ele só foi redescoberto porque o texto em espanhol foi incorporado a uma coleção de ensaios clássicos espanhóis do século XIX. Por isso, poucas cópias completas do livreto sobreviveram, das quais a única disponível nos Estados Unidos, segundo Rothbard, está na Biblioteca Pública de Boston.

Mas Mariana aparentemente não estava com problemas suficientes para acalmar seu temperamento: depois que ele foi preso pelo rei, as autoridades, ao apreenderem suas notas e papéis, acharam um manuscrito atacando os poderes que regem a Companhia de Jesus. Um individualista sem medo de pensar por si mesmo, Mariana claramente não concordava com o fato de ser a Cia. de Jesus quase que um corpo militar, tal a disciplina imposta a seus membros. Neste livro, Discurso de las Enfermedades de fa Compania, criticou a Ordem Jesuíta, sua administração e sua formação de noviços e julgou que seus superiores na Ordem eram todos impróprios para a governarem. Acima de tudo, Mariana criticou a hierarquia de estilo militar, apontando que o Geral gozava de muito poder, enquanto os provinciais e outros jesuítas detinham quase nenhuma autonomia. Os jesuítas, afirmou, deveriam ter pelo menos uma voz na seleção de seus superiores imediatos.

Quando o Geral da Ordem Jesuíta, Cláudio Aquaviva, descobriu que cópias do trabalho de Mariana estavam circulando clandestinamente, tanto dentro como fora da ordem, ordenou a Mariana que pedisse desculpas pelo escândalo. O mal-humorado — porém repleto de sólidos princípios morais — Mariana, no entanto, recusou-se a fazê-lo e Aquaviva, talvez movido por prudência ou mesmo por receio de um escândalo mais grave, preferiu não agravar o problema. Mas assim que Mariana morreu, a legião de inimigos da Ordem dos Jesuítas publicou oDiscurso simultaneamente em francês, latim e italiano. Como no caso de todas as organizações burocráticas, os jesuítas, desde então, ficaram mais preocupados com o escândalo e com não lavar roupa suja em público do que em promover a liberdade de investigação, a autocrítica, ou corrigir quaisquer defeitos reais que Mariana pudesse ter descoberto. Mas a Ordem nunca expulsou o seu membro eminente e este nunca a deixou. Ainda assim, ele foi durante toda a sua vida considerado como um criador de problemas, mal-humorado e sempre rebelde em não querer se curvar a ordens ou pressões de seus pares.

O Padre Antonio Astrain, na sua história da Ordem dos Jesuítas, observa que "acima de tudo, devemos ter em mente que o personagem dele [Mariana] foi muito áspero e não mortificado". Pessoalmente, de forma semelhante aos santos italianos franciscanos São Bernardino de Sena e Santo Antonino de Florença, do século XV, Mariana foi uma figura ascética e austera. Nunca frequentou o teatro e afirmou que padres e monges nunca deveriam prejudicar seu caráter sagrado, ouvindo e vendo atores. Ele também denunciou o esporte popular espanhol das touradas, o que diminuiu bastante sua popularidade. Melancolicamente, Mariana costumava enfatizar que a vida era curta, precária e cheia de aflição. No entanto, apesar de sua austeridade, possuía uma sagacidade impressionante. Assim, é famosa uma frase sua sobre o casamento: "Alguém habilmente disse que o primeiro e o último dia do casamento são desejáveis, mas que o resto é terrível". Outra opinião sua parecia antecipar o que Mises, no século XX, declarou a respeito dos economistas: "não há nada tão absurdo que não seja defendido por alguns teólogos".

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Visite seu website.