segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

A ECONOMIA BRASILEIRA - UM RESUMO DE FINAL DE ANO

O frenesi intervencionista

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O ano de 2012 certamente já tem seu lugar garantido na história econômica brasileira: foi o ano em que o governo mais exacerbou suas intervenções na economia.

Sim, é verdade que a economia brasileira da década de 1980 e da primeira metade da década de 1990, com seus congelamentos de preços, monopólios estatais e hiperinflação, era muito mais estatizada e bem menos livre que a atual. Porém, mesmo naquela época, havia uma tendência de adoção de medidas de desestatização. Se, de um lado, o governo congelava preços e hiperinflacionava a moeda, de outro, ele reduzia tarifas de importação, extinguia reservas de mercado e privatizava estatais deficitárias. Se o governo se intrometia demais em alguns campos, em outros ele dava sinais de que iria se retirar.

Em 2012, só houve notícias ruins. O estado se agigantou em todos os setores da economia. Mesmo a única notícia aparentemente positiva — a redução do IPI dos automóveis — veio acompanhada 1) de um aumento sanguinário das tarifas de importação e do IPI para automóveis estrangeiros, fazendo com que seu a carga tributária total sobre eles chegue a soviéticos 340%; 2) da imposição dequotas para a importação de automóveis do México, 3) da proibição de demissões por parte das montadoras, e finalmente 4) da ideia ainda não descartada de que o governo iria supervisionar os balancetes das montadoras, estipulando um teto para suas margens de lucro.

Qual foi a consequência de tamanho protecionismo e intervencionismo no setor automotivo? Com a palavra, a própria beneficiada: "a ANFAVEA (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) calcula uma queda de 1,5% na produção neste ano ante 2011. Esta será a primeira queda na produção desde 2002."

Ou seja, ocorreu exatamente o oposto do intencionado pelo governo, que era aumentar a produção e o emprego. 

Com efeito, o mesmo fenômeno pôde ser observado em todo o setor industrial. Incontáveis medidas intervencionistas e protecionistas foram colocadas em prática, como os seguidos recordes de apreensão de bagagens em aeroportos, o aumento do PIS/COFINS sobre produtos importados, os sucessivos recordes de arrecadação com o imposto de importação contra 'o importado barato', os desembolsos recordes do BNDES para as grandes empresas, a exigência de uma enorme fatia de conteúdo nacional para as produções industriais de todos os tipos, a proteção explícita aos setores têxtil, de calçados, de brinquedos, de artefatos de madeira, de palha, de cortiça, de vime e material trançado e transformados de plástico, além do aumento da taxa de importação sobre lâmpadas e sapatos chineses, pneus, batata, tijolos, vidros, vários tipos de máquinas, reatores para lâmpadas ou tubos de descarga, vagões de carga, disjuntores, cordas e cabos, móveis, triciclos, patinetes, bonecos, trens elétricos, quebra-cabeças, produtos lácteos (leite integral, leite parcialmente desnatado e queijo muçarela) e pêssegos (sério!). 

Adicionalmente, o câmbio em 2012 foi substancialmente desvalorizado em relação a 2011 (de R$1,60/US$ para R$2,10/US$).
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Gráfico 1: taxa de câmbio real/dólar; Fonte: Banco Central


Pela lógica dos intervencionistas, tamanha desvalorização cambial em conjunto com toda aquela cornucópia de medidas protecionistas deveria ter colocado a indústria em estado de extrema pujança. E o que houve? Tanto aprodução industrial quanto o emprego na indústria caíram em relação ao ano passado.

Óbvio: desvalorizar a moeda e encarecer importações serve apenas para reduzir o poder de compra da população, que agora terá de gastar mais dinheiro com produtos de menor qualidade, e consequentemente terá menos dinheiro para gastar em outros bens e serviços. Isso é um ataque direto ao padrão de vida. Uma população com menos poder de compra não ativa indústria nenhuma.


O que vimos em 2012 foi mais um exemplo da arrogância fatal de burocratas e planejadores que juram saber exatamente como os indivíduos irão reagir em decorrência de suas intervenções no mercado. Para eles, empreendedores e consumidores padecem do condicionamento clássico do cão de Pavlov: estão sempre prontos a agir estritamente de acordo com estímulos recebidos do governo. Porém, quando o plano dá errado e tudo sai exatamente ao contrário do planejado, em vez de humildemente reconhecerem o erro e reverterem suas intervenções, eles simplesmente dizem, com toda a arrogância, que o que fizeram foi certo mas insuficiente, de modo que mais estímulos se fazem necessários.

Curiosamente, nas últimas recessões brasileiras, em 2003 e em 2009, o governo não saiu baixando pacotes e nem recorreu a medidas intervencionistas mais proeminentes. Em 2003, ele seguiu a cartilha clássica: elevou juros e congelou os gastos. Adicionalmente, não tentou controlar preços e nem privilegiar nenhuma indústria. Também não recorreu ao protecionismo. Por não ter atrapalhado e nem ter gerado incertezas, a economia se recuperou em um ano. Em 2009, embora tenha havido um pouco mais intervenção do que em 2003, o governo não interveio no câmbio e nem recorreu a políticas protecionistas. Principalmente, ele permitiu que preços e salários se ajustassem para baixo. Isso, novamente, permitiu uma rápida recuperação.

O atual governo Dilma, o qual reinstituiu a figura do czar da economia — Guido Mantega é, ao mesmo tempo, Ministro da Fazenda, presidente do Banco Central, ministro do Planejamento e ministro do Desenvolvimento — já é, sem rivais, o mais intervencionista desde a criação do real. Ela conseguiu a façanha de fazer seu antecessor parecer um moderado.

E não há muitos indícios de que isso será revertido no curto prazo. Uma das possíveis próximas tragédias desse intervencionismo já está se desenhando no setor elétrico. Aguardemos.

A estagnação econômica

A principal debilidade da economia brasileira é que ela não se baseia em poupança e nem em investimento, mas sim no fomento ao consumismo puro e simples. Para o iluminado que comanda a Fazenda, se você estourar o seu cartão de crédito e depois pedir empréstimo no banco para cobrir o rombo em sua fatura e voltar a consumir ainda mais, você está estimulando a economia.

Todo o modelo de crescimento se baseia na expansão do crédito. E tal modelo possui óbvias limitações. A mais visível delas é o aumento do endividamento. Se o governo estimula as pessoas a se endividarem para consumir, não é de se espantar que cheguemos a um momento em que tanto o nível de endividamento quanto os gastos das famílias com o serviço de suas dívidas (pagar juros e amortização) seja intolerável. De acordo com as últimas estatísticas, o endividamento das famílias (linha azul) é de quase 45% da renda nacional, e os gastos das famílias para cumprirem o serviço de suas dívidas (linha vermelha) é de 22,5% de sua renda.
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Gráfico 2: endividamento das famílias e gastos com serviço da dívida; Fonte: Banco Central


A título de comparação, como é possível ver no gráfico deste artigo, esta mesma variável (linha vermelha) para os americanos é de 11%.

Em um cenário destes, resta óbvio que adicionais estímulos ao consumo não apenas são ineficazes em termos de crescimento econômico, como também são extremamente perigosos.

E esse endividamento explica boa parte da atual estagnação econômica.

Explicando a mecânica da estagnação

Para entender a estagnação, é necessário analisar o que está acontecendo com aquela variável que representa a metade de toda e qualquer transação econômica: o dinheiro. Dado que o dinheiro é o elo entre todas as atividades econômicas, qualquer alteração na quantidade de dinheiro — e, principalmente, na taxa de crescimento da quantidade de dinheiro — irá inevitavelmente provocar movimentos generalizados em uma economia. Todo e qualquer ciclo econômico é causado por variações na quantidade de dinheiro na economia.

Portanto, para entender os ciclos de expansão e recessão de uma economia, para entender por que há períodos de crescimento econômico seguidos de períodos de estagnação/recessão, é necessário estudarmos as variações no meio geral de troca, que é o dinheiro.

No atual sistema monetário e bancário, o Banco Central controla a base monetária do país. Porém, a quantidade de dinheiro produzida pelo Banco Central é insignificante se comparada à quantidade de dinheiro eletrônico que o sistema bancário cria por meio da expansão do crédito através de seu sistema de reservas fracionadas. Sempre que uma empresa ou um indivíduo qualquer vão a um banco e pedem um empréstimo, o banco cria do nada dinheiro eletrônico na conta-corrente deste tomador de empréstimo. O dinheiro não foi retirado de nenhuma outra conta. Ele simplesmente foi criado ex nihilo. O bancário apertou algumas teclas no computador e dígitos eletrônicos surgiram na conta-corrente do mutuário. É assim que o dinheiro entra na economia no sistema monetário atual e é assim que a quantidade de dinheiro em uma economia aumenta. (Todo este processo foi explicado em detalhes neste artigo, de modo que, pelo bem da brevidade, ele não será repetido aqui).

Embora toda a concessão de crédito represente criação de dinheiro, existe também a operação inversa, que é a destruição deste dinheiro que entrou na economia. Por exemplo, quando um banco quer aumentar seu capital, ele vende um papel. A pessoa ou empresa que comprar este papel irá transferir dinheiro da sua conta-corrente para este banco. O banco pegará este dinheiro (totalmente eletrônico) e irá contabilizá-lo como 'reservas bancárias', que é um ativo em seu balancete. Ao final do processo, houve uma redução da quantidade de dinheiro na economia e um aumento das reservas bancárias, que é um dinheiro que não está na economia. Exatamente o mesmo procedimento ocorre quando um banco vende dólares em sua carteira para algum cliente ou mesmo quando ele toma empréstimos junto a corretoras, distribuidoras, sociedades de arrendamento mercantil e fundos de investimento financeiro.

Fiz essa digressão técnica apenas para explicar por que a quantidade de dinheiro na economia não é idêntica à quantidade de crédito criada pelo setor bancário. Embora bancos criem dinheiro concedendo crédito, eles também destroem dinheiro quando vendem algum papel para se recapitalizar.

Entendido isso, o gráfico a seguir mostra a evolução da quantidade total de dinheiro na economia. Trata-se de papel-moeda em posse de indivíduos e empresas, mais o total de dinheiro eletrônico em conta-corrente, em poupança, em depósitos a prazo e em outros depósitos no sistema bancário. Em suma, o gráfico mostra todo o dinheiro que foi criado via concessão de crédito, e já descontado de todo o dinheiro que foi retirado da economia. Trata-se de um bom indicador para saber se o ritmo da concessão de crédito está maior, igual ou menor do que o ritmo da retirada de dinheiro da economia, o que, por sua vez, indicaria uma maior cautela dos bancos.

(Infelizmente as duas variáveis não são fornecidas já somadas, de modo que tal operação aritmética será feita no segundo gráfico).
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Gráfico 3: papel-moeda em poder do público mais depósitos em conta-corrente (moeda) mais depósitos em poupança, depósitos a prazo e outros depósitos em bancos (quase-moeda); Fonte: Banco Central
Abaixo, a soma das duas variáveis acima, desde janeiro de 2009, ano da última recessão. Observe que a partir de meados de 2009, começa a haver uma aceleração do crescimento da quantidade de moeda na economia. Tal aceleração se intensifica em 2010. Essa foi a época do crescimento econômico forte, porém artificial. Em 2011, começa a haver uma desaceleração. Em 2012, o crescimento monetário praticamente se estanca no segundo semestre.
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Gráfico 4: crescimento da quantidade total de moeda na economia; Fonte: Banco Central


No Brasil, desde 2009, os indivíduos intensificaram seu endividamento (ver gráfico 2) para poder consumir, na crença de que a expansão do crédito continuaria farta e que sua renda futura continuaria aumentando, o que facilitaria a quitação destas dívidas. Já as empresas embarcaram em investimentos de longo prazo levadas tanto pela redução artificial dos juros criada pela expansão monetária do Banco Central (o que fez com que os investimentos se tornassem mais financeiramente viáveis) quanto pela expectativa de que o aumento futuro da renda possibilitaria o consumo dos produtos criados pelos seus investimentos. 

No entanto, tão logo o endividamento foi aumentando, a demanda por mais empréstimos foi se arrefecendo e o modelo de expansão do crédito foi se esgotando. Consequentemente, a taxa de crescimento da quantidade de dinheiro na economia brasileira começou a desacelerar. Isso fez com que os projetos das empresas, das indústrias e dos indivíduos se comprovassem irrealizáveis. No caso dos indivíduos, esta redução na taxa de crescimento da oferta monetária fez com que suas rendas não aumentassem como haviam previsto ainda no ápice do boom econômico, o que tornou suas dívidas difíceis de serem quitadas. No caso das empresas, tal redução faz com que suas receitas futuras não fossem as previstas (vide o caso das indústrias e, mais recentemente, da Gol e de empresas do setor imobiliário), ao mesmo tempo em que seus custos (com mão-de-obra e bens de capital) seguiram crescendo em decorrência da inflação passada.

Vale ressaltar que não são reduções forçadas nos juros que irão resolver esse problema. Reduções nos juros estimulam consumismo, mas não estimulam mais poupança, que é justamente do que endividados necessitam. 

Caso não haja reversão da tendência acima, o ano de 2013 promete dificuldades. 


Para mais detalhes e mais dados sobre o mecanismo de expansão do crédito no Brasil e seu efeito direito sobre vários indicadores da economia brasileira, sugere-se este artigo.

O maior problema do Brasil para o longo prazo

Enquanto a imprensa se ocupa em alardear os previsíveis e desimportantes números do PIB (para entender por que o PIB nada diz de concreto ver aqui, aqui, aqui e aqui), fatores realmente importantes e decisivos estão sendo ignorados. 

Por exemplo, a destruição do poder de compra da moeda em conjunto com as proibitivas tarifas de importação. Temos hoje uma moeda continuamente inflacionada e desvalorizada em relação às outras moedas, o que encarece sobremaneira as importações de bens de capital e bens de consumo. Além de a unidade monetária comprar cada vez menos, o governo ainda impõe tarifas de importação para encarecer ainda mais as compras do exterior. Ou seja, ao mesmo tempo em que encarece as coisas aqui dentro, o governo proíbe a população de comprar barato do exterior.

A consequência desse fechamento das fronteiras? Coube ao Financial Times nos mostrar. O gráfico abaixo ilustra a produtividade de alguns países em relação aos EUA.
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Gráfico 5: produtividade da mão-de-obra em de vários países em relação à mão-de-obra americana


Observe que a produtividade dos trabalhadores brasileiros não apenas está em queda livre, como é a única que vem caindo década após década. Um trabalhador brasileiro médio tem apenas 20% da produtividade de um americano. No ano de 1980 (atenção, ano; e não década), ele tinha 30% da produtividade. (Deve-se levar em conta que toda a década de 1970 foi de estagflação para os EUA, sendo aquela a sua década perdida; daí o salto brasileiro observado entre 1970 e 1980. Já em 1990, após a década perdida de 1980 para o Brasil, as coisas voltaram a ser como antes).

Por que essa queda contínua? Meu palpite: porque além de termos uma mão-de-obra pouco instruída, as tarifas protecionistas impostas pelo governo encareceram ainda mais a importação de bens de capital, justamente o que poderia aumentar nossa produtividade no curto prazo. Alexandre Schwartsman comentou isso recentemente:

Desde o terceiro trimestre de 2011 os preços em dólares dos bens de capital importados recuaram 1%, mas a depreciação da moeda, 24% no período, implicou uma elevação de 23% no preço em reais destes bens (19% descontada a inflação).

Esta não é, provavelmente, a única causa da queda do investimento, mas é difícil comprar a ideia que um aumento desta magnitude no preço dos bens de capital não representa um impacto negativo na decisão de investir...

Com uma mão-de-obra mal instruída e pouco produtiva, dificultar o acesso a bens de capital seria a última coisa que qualquer ser racional defenderia. Mas estamos falando do governo, que opera em outra dimensão de inteligência.

O padrão de vida de um país é determinado pela abundância de bens e serviços. Quanto maior a quantidade de bens e serviços ofertados, e quanto maior a diversidade dessa oferta, maior será o padrão de vida da população. Por exemplo, quanto maior a oferta de alimentos, quanto maior a variedade de restaurantes e de supermercados, de serviços de saúde e de educação, de bens como vestuário, materiais de construção, eletroeletrônicos e livros, de pontos comerciais, de shoppings, de cinemas etc., maior tende a ser a qualidade de vida da população. 

Porém, a quantidade e a diversidade não bastam. A facilidade de acesso a estes bens e serviços — no caso, quão caros eles são — também é essencial. Por isso, é de suprema importância termos uma moeda forte.
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No Brasil, além de a qualidade dos serviços no geral ser ruim, a quantidade e a variedade de bens de consumo é muito baixa, pois além de o governo dificultar ao máximo as importações, nossa desvalorizada moeda não tem poder de compra em relação às principais moedas do mundo. E não bastasse a pouca oferta e a pequena variedade de bens e serviços, o acesso a eles é caro, justamente porque o governo destrói continuamente o poder de compra da moeda.

Portanto, eis a realidade atual do Brasil: qualidade da mão-de-obra em queda livre, quantidade e variedade de bens e serviços bastante insatisfatória, e acesso a eles cada vez mais caro. Em vez de facilitar a aquisição de bens de capital, o que poderia remediar a questão da baixa produtividade e da qualidade dos bens e serviços, o governo dificulta o acesso, tanto por meio de tarifas quanto por desvalorizações cambiais. E, para piorar, não há absolutamente nenhuma tendência de melhora na qualidade da mão-de-obra. Esse é o nosso padrão de vida

Mais ainda: a julgar pelas políticas adotadas pelo atual governo no que tange a protecionismo, câmbio e inflação, não há nenhuma indicação de que isso irá mudar no futuro próximo. 

Isso sim será definitivo para o futuro do país — e não o acréscimo de meros dígitos artificiais no PIB.

Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

domingo, 30 de dezembro de 2012

RECORDAÇÕES DE UM BRASIL SOCIALISTA


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Obs: O artigo a seguir foi escrito em agosto de 2002. Circunstâncias recentes ocorridas no Brasil fizeram com que ele se tornasse ainda mais atual do que quando fora escrito.

Pouca gente sabe, ou se deu conta na época, mas o Brasil já viveu um regime socialista. E foi um sucesso... por pouco tempo.

Em 28 de fevereiro de 1986 o presidente Sarney, acossado pela hiperinflação que grassava no país e tendo a legitimidade de seu mandato questionada, decretou o congelamento geral de preços e salários. Em sessão solene transmitida pela TV, ele declarou guerra à inflação e convocou todo o povo para o bom combate, imputando aos especuladores e empresários gananciosos a carestia que castigava a nação. O presidente obteve aprovação quase unânime da população. Mais de 95% do povo apoiava o Plano Cruzado (essa a nova denominação da moeda nacional) sem reservas. 

[A imagem está ruim, mas o vídeo abaixo vale muito a pena para relembrar a época em que a ignorância econômica nacional atingiu seu ápice]

De um dia para o outro, todas as transações privadas caíram sob estrito controle estatal. A propriedade privada e a liberdade econômica foram suprimidas de um só golpe, uma vez que o poder de disposição (vender, alugar etc.), sem o qual o direito de propriedade é privado de sua substância, foi abolido. Somente se podia celebrar contratos bilaterais onerosos pelo preço decretado e controlado pelo estado. Dito de outra forma, o Brasil aboliu a economia de mercado e adotou o socialismo.

A imprensa aderiu imediatamente fomentando um clima de histeria geral. A TV Globo criou uma vinheta sugestiva: "tem que dar certo". Tinha que dar certo à força, é claro.
Logo empresários e gerentes de loja eram presos e humilhados sob a acusação de aumentar preços ilegalmente. Estabelecimentos comerciais foram depredados por turbas enfurecidas. Todos os cidadãos foram informalmente nomeados "fiscais do Sarney" e nenhum comerciante se sentia seguro. Choviam delações anônimas, ao que se seguiam espalhafatosas razzias da SUNAB nas lojas, elevada à condição de KGB nacional.


A adesão da intelectualidade foi, naturalmente, total. Os mesmos que ainda ontem criticavam o uso do decreto-lei (antepassado das medidas provisórias) e as arbitrariedades dos militares agora as aprovavam efusivamente. O ministro da fazenda Dilson Funaro, que secretamente sofria de um câncer quase terminal, fez-se um verdadeiro messias do cruzado. Os economistas que perpetraram o plano, João Sayad, Luiz Gonzaga Belluzo, Persio Arida, Francisco Lopes e outros viraram celebridades instantâneas. A mentora de todos eles, a economista lusa Maria da Conceição Tavares, passou a ser considerada a sumidade suprema da ciência econômica, e a mídia a retratava como a "guerreira do cruzado". Os partidos políticos que recentemente atacavam Sarney aderiram em massa ao presidente. A esquerda, inclusive o nascente PT, perdeu o discurso e ficou na dela. Como pregar o socialismo se o próprio governo o adotara? Sarney e seu bigode eram adorados e adulados pelas massas, tal qual um Stalin tupiniquim.

Poucas vozes ousaram discordar. O sempre corajoso jurista Ives Gandra foi um dos poucos a proclamar para quem quisesse ouvir que o pacote era inconstitucional de cabo a rabo, e olha que a constituição vigente era aquela outorgada pelos militares em seu período mais duro. Mas ninguém queria ouvir, muito menos o Judiciário. A oposição mais cerrada, coerente e de primeira hora veio da revista semanal Visão, onde pontificava o editor Henry Maksoud. Inflação não é aumento geral de preços, escrevia ele. Essa é a consequência. A causa é a expansão desenfreada dos meios de pagamento pelo governo para financiar seus monumentais déficits. O único culpado pela inflação é o governo e só ele pode acabar com ela. Abolir o mecanismo de preços equivale a destruir a economia de mercado. 

Controle de preços nunca resolveu o problema, e a sucessão de fracassos nesse campo foi enumerada começando por um famoso e malogrado decreto do imperador romano Diocleciano, em 301 DC, que parecia uma "tabela da Sunab". Não demorou para que o filho de Maksoud fosse preso e ele próprio recebesse ameaçadoras "visitas" da Sunab. Maksoud foi "banido" dos programas de TV que discutiam o plano. Jornais recusavam-se a reproduzir seus artigos. A revista Visão recebia uma enxurrada de cartas de leitores furiosos, contendo os piores insultos. Maksoud as publicava e replicava pacientemente. O governo garantia que o déficit e a emissão de moeda estavam "sob controle total". Como?, retrucava a Visão, se nenhum funcionário público foi demitido (ao contrário, a época era de contratações e "trens da alegria" a rodo), nenhuma estatal foi privatizada, nenhum gasto foi suprimido, os vastos subsídios não foram cortados e a carga tributária não foi aumentada? Os números das contas públicas sumiram, deixaram de ser publicados, coisa que nem os militares fizeram.

Aos poucos, contudo, a euforia foi passando e os efeitos previstos por Maksoud começaram a se fazer sentir. As mercadorias principiaram a escassear e a sumir. Mercados paralelos floresceram e só pagando "ágio" era possível comprar as coisas. O Brasil foi tomando a feição bem conhecida nos países comunistas. Filas nas lojas e nada para comprar, salvo no mercado negro. O ministro Funaro expôs-se ao ridículo de mandar a Polícia Federal caçar bois nos pastos, já que a carne desaparecera do mercado.

Ficou evidente que o déficit público e a expansão monetária não haviam sido controlados coisa nenhuma. Nada mudara. A economia entrou em colapso, mas o "plano" foi mantido até as eleições, por exigência do PMDB, o "partido do cruzado". Logo depois das eleições, que resultou em esmagadora vitória do PMDB, o governo traiu os que tolamente acreditaram que o cruzado era sério. Os preços foram descongelados e a inflação reprimida os chutou para o alto. Haveria novos "planos" e novos congelamentos, inclusive o mais violento dos "choques heterodoxos" que foi o Plano Collor I. Mas o encanto se esgotara. Ninguém mais levava a sério o socialismo.

É claro que Sarney, o clássico "coroné" patrimonialista nordestino, não era um socialista marxista. Ele apenas utilizou o truque do congelamento para se tornar popular e se manter no "pudê". Quando o "plano" fracassou, Sarney não deu o passo seguinte na direção do socialismo totalitário, que teria sido a estatização de todos os meios de produção (inclusive a força de trabalho de cada um). Voltamos, pois, à velha e péssima "economia mista" de praxe. Um governo Lula ou assemelhado, porém, teria seguido adiante, e pior, contaria com amplo e majoritário apoio popular!

É uma pena que o povo brasileiro não tenha consciência de que aquilo é o verdadeiro socialismo, daí para pior. Logro, arbítrio, violência, escassez, caos, manipulação. Pois ao que parece a história vai se repetir, pois os "economistas" do PT são os mesmos do cruzado. Como é que pode esses caras ainda terem influência no país? Por muito, muito, menos médicos e engenheiros perdem a licença profissional. Mas essas figuras macabras continuam dando as cartas nos meios acadêmicos e políticos. É nisso que dá deixar a ciência econômica aos cuidados dos seguidores de Marx e Keynes. Toda a sociedade paga a conta.

Alceu Garcia é o pseudônimo de um cidadão que, cercado de esquerdistas por todos os lados, e já conhecendo o tratamento que eles dão a quem ouse contrariá-los no local de trabalho, tem bons motivos para desejar permanecer incógnito

ESSE EU CONHEÇO

A reta, como diria o Oscar Niemeyer, é o real. Mas o ideal é a curva, o arredondado sedutor da montanha onde morre o Sol; ou o suave declive da fonte que jorra por entre as suas frestas e mata a nossa infindável sede como viram, cada qual a seu tempo e à sua maneira, Ary Barroso e Schopenhauer.


Platão, inventor da oposição entre real e ideal, afirma que como tudo neste mundo está sempre se fazendo, as coisas reais não conferem nenhum conhecimento definitivo, pois são relativas e variáveis. Sujeitas, como revela sem cessar o nosso frustrante dia a dia, a redefinições. O ideal é único porque as ideias não morrem. O resto, como disseram Shakespeare e Erico Verissimo, é silêncio...

Estou, como o mundo inteiro, chocado com esse novo massacre ocorrido em Newtown, Estados Unidos. Penso nos pais forçados por um louco a entrar nesse triste clube ao qual eu, infelizmente, pertenço: a sociedade dos que perderam filhos. Empresto a todos eles a minha humilde solidariedade. Aprendi como as palavras, que deixam ver, por um instante, o todo no qual vivemos como inocentes, são importantes nesses momentos.

Estive no Estado de Connecticut umas duas ou três vezes e fiz palestras na sua universidade, no famoso Connecticut College (fundado em 1911 quando o Brasil fazia, como as máquinas, múltiplas revoluções) e na sua admirável Universidade Yale (fundada em 1701 quando, para muitos, o Brasil ainda não era Brasil), onde jaz um pedaço da alma do querido e saudoso Richard Morse, o americano mais brasileiro que conheci em toda a minha vida. Como explicar o massacre de crianças num lugar tão "adiantado" e "rico" sem uma lógica bíblica ou messiânica - sem um sistema de espoliação dos miseráveis e sem um Herodes agora armado, ele próprio, de pistolas automáticas, perguntou-me um jovem jornalista?

Inocente, pois não tenho a menor ideia do meu futuro nem da minha vida, a qual eu tento cuidar e honrar com o devido egoísmo por ela determinado, só posso falar de uma importante contradição. Nós odiamos a violência, mas a admitimos em certas circunstâncias. Na guerra, por exemplo. Sobretudo, nas guerras santas que jamais saíram de moda. Ou na luta ideológica contra a famosa "direita", hoje propositalmente confundida no Brasil com o "direito": o ético, o meritório e o correto.

No caso dessa tragédia americana, há uma contradição trivial. O real manda, no mínimo, discutir, como disse o presidente Obama, a venda de armas. Mas o ideal que tende a virar tabu trata a aquisição de armas como um direito.

No Brasil, criminalizamos o jogo, mas a Caixa Econômica Federal banca pelos menos sete ou oito jogos de azar. Ademais, condenamos o jogo e todo tipo de patifaria, mas compreendemos o canalha. Sobretudo quando ele é amigo. "Esse não! Esse eu conheço! Com ele eu não admito, ouviu? Não admito que sua reputação e sua figura à qual o país tanto deve sejam postas em questão!!!"

Somos todos contra a jogatina, mas entendemos quando o primo faz uma "fezinha na borboleta" ou no "burro" - esse totem de um Brasil que tenta sem sucesso livrar-se das asnices de uma visão de mundo na qual a lei teria a virtude de corrigir o mundo por reação e não por prevenção. "Mas isso é crime capitulado no artigo tal da lei X! Não há mais o que discutir." Exceto, é claro, se o capitulado for meu amigo!

O problema é o que fazer com os criminosos depois de devidamente classificados como culpados. No nosso caso, a penalidade não é apenas uma decorrência do crime, é uma ciência e eu até diria, com todo o respeito, uma nobre arte. Afinal, como ouvi muitas vezes nesses meses afora, "são vidas humanas em jogo".

Condenamos também a droga, mas tomamos o nosso vinhozinho, a nossa cervejinha e a nossa cachacinha com os amigos sem problema. Aceitamos até que um conhecido goste de uma "fileirinha", no seu caso, inocente, porque: "Esse eu conheço e sei que é boa pessoa! Não é um indivíduo qualquer a ser espancado pela polícia e depois exposto e escrachado na mídia!!!"

Batemos de frente com as contradições entre o real e o ideal, a menos que ela comprometa o patrão, o amigo e o correligionário a quem devemos carreiras, favores e cargos. "Esse não! De modo algum! Esse eu conheço!" Gritamos com obrigatória veemência.

Uma ética de condescendência - esse pouco discutido valor brasileiro de muitos quilates - nos leva a relativizar o ideal. Como não é fácil equilibrá-los, pois o concreto sempre desafia o ideal, personalizamos e, com isso, impedir que X, Y ou Z sejam apreciados em suas faltas e velhacarias. E como "roupa suja só se lava em casa", ferimos o ideal (e a ética) dando um golpe personalista. "Esse não pode!", falamos, tirando do âmbito do crime ou da patifaria o amigo dileto ou o personagem poderoso.

Mas quem inventa os fatos?

Como esse bárbaro massacre ocorrido nos Estados Unidos; como esse inacreditável mensalão; como os vínculos de terna intimidade entre o ex-presidente e uma alta funcionária que representava a Presidência em São Paulo e lá montou uma quadrilha? Quem inventou um partido como o PT, que iria exterminar os ratos da corrupção nacional - como bolou o publicitário do grupo, o sr. Duda Mendonça - e acabaram metidos no maior escândalo da República? É o jornal que forma a quadrilha ou é a quadrilha que faz o jornal?
Por: ROBERTO DaMATTA O Estado de S.Paulo - 19/12

O PREÇO DO COLABORACIONISMO

Se a população tivesse sido alertada disso em tempo, a “era Lula”, com todo o seu cortejo de crimes e abjeções, teria permanecido no céu das hipóteses, sem jamais descer e realizar-se no planeta Terra.

Não há nada que um comunista odeie mais do que o companheiro-de-viagem frouxo, ou escrupuloso, que não o acompanha em todos os seus desvarios, não endossa todas as suas mentiras, não acoberta ou aplaude todos os seus crimes.

Uma vez que você lhe deu alguma compreensão e ajuda, ele jamais o perdoará se você não continuar a fazê-lo pelos séculos dos séculos, até o amargo fim, sacrificando no caminho a honra, a consciência e até a capacidade elementar de perceber o momento em que a tolerância a um erro se transmuta em cumplicidade com um crime.

Se existe um direito que todo comunista nega sistematicamente aos seus amigos e benfeitores, é o de dizer: “É demais. Cheguei ao meu limite. Não posso lhe dar mais nada.”

Para um comunista, a amizade que não consente em transformar-se em escravidão não é amizade: é traição.

É por isso que a Carta Capital, o Portal Vermelho, a Hora do Povo e todos os outros canais por onde escoa a massa fecal comunista impressa e eletrônica despejam agora todo o seu ódio sobre a “mídia burguesa” ou “mídia golpista”, aquela mesma que, com seu silêncio obsequioso e cúmplice, reforçado de tempos em tempos por negações explícitas, ajudou o Foro de São Paulo a crescer em paz e segurança, escondidinho, longe dos olhos da multidão curiosa, até tornar-se o dominador quase monopolístico não só da política brasileira, mas de meio continente.

Essa mídia finge surpresa e escândalo, agora, quando o depoimento de Marcos Valério e o caso Rosemary terminam de revelar as dimensões oceânicas da sujeira petista e rompem até a blindagem laboriosamente construída e mantida, ao longo de pelo menos dezesseis anos, em torno da figura do sr. Luiz Inácio Lula da Silva.

Mas quem quer que lesse as atas do Foro, onde o impoluto cavalheiro aparecia presidindo assembléias ao lado do sr. Manuel Marulanda, comandante da maior organização terrorista e narcotraficante da América Latina, compreenderia de imediato não estar diante de nenhum santo proletário, mas sim de um leninista cínico, disposto usar de todos os meios lícitos e ilícitos, morais e imorais, para aumentar o poder do seu grupo.

Se a população tivesse sido alertada disso em tempo, a “era Lula”, com todo o seu cortejo de crimes e abjeções, teria permanecido no céu das hipóteses, sem jamais descer e realizar-se no planeta Terra. Não só a grande mídia, mas os partidos “de direita”, as lideranças empresariais, as igrejas, os comandos militares e até os propugnadores ostensivos da causa “liberal”, todos unidos, sonegaram ao povo essa informação vital que teria posto o país num rumo menos deprimente e menos vergonhoso.

Mas não foi só o Foro, nem os podres de São Lula, que essa gente escondeu. Durante pelo menos menos duas décadas, a versão esquerdista da história do regime militar foi endossada e repetida fielmente em todos os jornais, canais de TV, escolas e discursos parlamentares, até incorporar-se no imaginário popular como uma espécie de dogma sacrossanto, a encarnação mesma da verdade objetiva, acima de partidos e ideologias.

Nenhum “repórter investigativo”, daqueles que vasculhavam até os últimos desvãos obscuros da vida particular do sr. Collor de Mello, teve jamais a curiosidade de perguntar o que fizeram em Cuba, ao longo de trinta anos ou mais, os terroristas brasileiros que ali se asilaram. Quantos, por exemplo, à imagem e semelhança do sr. José Dirceu, se integraram na polícia política e nos serviços de espionagem da ditadura fidelista, acumpliciando-se a atos de perseguição, tortura e assassinato político incomparavelmente maiores e mais cruéis do que aqueles pelos quais viriam depois a choramingar e exigir indenizações no Brasil?

Omitindo essa e outras partes decisivas da história, nossa mídia e nossas “classes dominantes” permitiram que uma visão monstruosamente deformada do passado se incorporasse à linguagem usual da nossa política, deixando que criminosos amorais e frios ostentassem diante do povo a imagem de vítimas sacrificiais inocentes e obtivessem disso lucros publicitários e eleitorais incalculáveis.

Qual o nome dessas atitudes, senão “colaboracionismo”? Todos aqueles que tinham o poder e os meios de barrar a ascensão comunopetista fizeram exatamente o contrário: estenderam o tapete vermelho e, curvando-se gentilmente dos dois lados da pista, deram passagem a quantos Lulas e Dirceus houvesse, aplaudindo, como prova de grande evolução democrática, a tomada do país por um bando de delinqüentes psicopatas, insensíveis e coriáceos, tão hábeis na simulação de boas intenções quanto incapazes do menor sentimento de vergonha e culpa, mesmo quando pegos de calças na mão.

Mas, é claro, um belo dia até o estômago de avestruz do colaboracionista mais impérvio chega ao limite da sua capacidade digestiva. Com toda a boa-vontade do mundo, sorrindo, entre lisonjas e rapapés, o sujeito engoliu sapos e mais sapos, depois cobras e lagartos e por fim jacarés. Mas então pedem-lhe que engula um dinossauro, e ele por fim desaba: “Não, não agüento. Isso é demais.”

Foi o que aconteceu com a nossa mídia (e a classe que ela representa) quando vieram as provas do Mensalão.

A reação brutal do bloco lulocomunista expressa a indignação da criança mimada ante a repentina supressão dos afagos usuais, que o tempo havia consagrado como direitos adquiridos. 

Por: POR OLAVO DE CARVALHO Publicado no Diário do Comércio.

sábado, 29 de dezembro de 2012

POR QUE OS INTELECTUAIS ODEIAM O CAPITALISMO?

N. do T.: o artigo a seguir foi adaptado de um discurso improvisado feito pelo autor, daí o seu tom mais coloquial.


Por que os intelectuais sistematicamente odeiam o capitalismo? Foi essa pergunta que Bertrand de Jouvenel (1903-1987) fez a si próprio em seu artigo Os intelectuais europeus e o capitalismo.

Esta postura, na realidade, sempre foi uma constante ao longo da história. Desde a Grécia antiga, os intelectuais mais distintos — começando por Sócrates, passando por Platão e incluindo o próprio Aristóteles — viam com receio e desconfiança tudo o que envolvia atividades mercantis, empresariais, artesanais ou comerciais.

E, atualmente, não tenham nenhuma dúvida: desde atores e atrizes de cinema e televisão extremamente bem remunerados até intelectuais e escritores de renome mundial, que colocam seu labor criativo em obras literárias — todos são completamente contrários à economia de mercado e ao capitalismo. Eles são contra o processo espontâneo e de interações voluntárias que ocorre de mercado. Eles querem controlar o resultado destas interações. Eles são socialistas. Eles são de esquerda. Por que é assim?

Vocês, futuros empreendedores, têm de entender isso e já irem se acostumando. Amanhã, quando estiverem no mercado, gerenciando suas próprias empresas, vocês sentirão uma incompreensão diária e contínua, um genuíno desprezo dirigido a vocês por toda a chamada intelligentsia, a elite intelectual, aquele grupo de intelectuais que formam uma vanguarda. Todos estarão contra vocês.

"Por que razão eles agem assim?", perguntou-se Bertrand de Jouvenel, que em seguida pôs-se a escrever um artigo explicando as razões pelas quais os intelectuais — no geral e salvo poucas e honrosas exceções — são sempre contrários ao processo de cooperação social que ocorre no mercado.

Eis as três razões básicas fornecidas por de Jouvenel.

Primeira, o desconhecimento. Mais especificamente, o desconhecimento teórico de como funcionam os processos de mercado. Como bem explicou Hayek, a ordem social empreendedorial é a mais complexa que existe no universo. Qualquer pessoa que queira entender minimamente como funciona o processo de mercado deve se dedicar a várias horas de leituras diárias, e mesmo assim, do ponto de vista analítico, conseguirá entender apenas uma ínfima parte das leis que realmente governam os processos de interação espontânea que ocorrem no mercado. Este trabalho deliberado de análise para se compreender como funciona o processo espontâneo de mercado — o qual só a teoria econômica pode proporcionar — desgraçadamente está completamente ausente da rotina da maior parte dos intelectuais.

Intelectuais normalmente são egocêntricos e tendem a se dar muito importância; eles genuinamente creem que são estudiosos profundos dos assuntos sociais. Porém, a maioria é profundamente ignorante em relação a tudo o que diz respeito à ciência econômica.

A segunda razão, a soberba. Mais especificamente, a soberba do falso racionalista. O intelectual genuinamente acredita que é mais culto e que sabe muito mais do que o resto de seus concidadãos, seja porque fez vários cursos universitários ou porque se vê como uma pessoa refinada que leu muitos livros ou porque participa de muitas conferências ou porque já recebeu alguns prêmios. Em suma, ele se crê uma pessoa mais inteligente e muito mais preparada do que o restante da humanidade. Por agirem assim, tendem a cair no pecado fatal da arrogância ou da soberba com muita facilidade.

Chegam, inclusive, ao ponto de pensar que sabem mais do que nós mesmos sobre o que devemos fazer e como devemos agir. Creem genuinamente que estão legitimados a decidir o que temos de fazer. Riem dos cidadãos de ideias mais simplórias e mais práticas. É uma ofensa à sua fina sensibilidade assistir à televisão. Abominam anúncios comerciais. De alguma forma se escandalizam com a falta de cultura (na concepção deles) de toda a população. E, de seus pedestais, se colocam a pontificar e a criticar tudo o que fazemos porque se creem moral e intelectualmente acima de tudo e todos. 

E, no entanto, como dito, eles sabem muito pouco sobre o mundo real. E isso é um perigo. Por trás de cada intelectual há um ditador em potencial. Qualquer descuido da sociedade e tais pessoas cairão na tentação de se arrogarem a si próprias plenos poderes políticos para impor a toda a população seus peculiares pontos de vista, os quais eles, os intelectuais, consideram ser os melhores, os mais refinados e os mais cultos.

É justamente por causa desta ignorância, desta arrogância fatal de pensar que sabem mais do que nós todos, que são mais cultos e refinados, que não devemos estranhar o fato de que, por trás de cada grande ditador da história, por trás de cada Hitler e Stalin, sempre houve um corte de intelectuais aduladores que se apressaram e se esforçaram para lhes conferir base e legitimidade do ponto de vista ideológico, cultural e filosófico.

E a terceira e extremamente importante razão, o ressentimento e a inveja. O intelectual é geralmente uma pessoa profundamente ressentida. O intelectual se encontra em uma situação de mercado muito incômoda: na maior parte das circunstâncias, ele percebe que o valor de mercado que ele gera ao processo produtivo da economia é bastante pequeno. Apenas pense nisso: você estudou durante vários anos, passou vários maus bocados, teve de fazer o grande sacrifício de emigrar para Paris, passou boa parte da sua vida pintando quadros aos quais poucas pessoas dão valor e ainda menos pessoas se dispõem a comprá-los. Você se torna um ressentido. Há algo de muito podre na sociedade capitalista quando as pessoas não valorizam como deve os seus esforços, os seus belos quadros, os seus profundos poemas, os seus refinados artigos e seus geniais romances. 

Mesmo aqueles intelectuais que conseguem obter sucesso e prestígio no mercado capitalista nunca estão satisfeitos com o que lhes pagam. O raciocínio é sempre o mesmo: "Levando em conta tudo o que faço como intelectual, sobretudo levando em conta toda a miséria moral que me rodeia, meu trabalho e meu esforço não são devidamente reconhecidos e remunerados. Não posso aceitar, como intelectual de prestígio que sou, que um ignorante, um parvo, um inculto empresário ganhe 10 ou 100 vezes mais do que eu simplesmente por estar vendendo qualquer coisa absurda, como carne bovina, sapatos ou barbeadores em um mercado voltado para satisfazer os desejos artificiais das massas incultas."

"Essa é uma sociedade injusta", prossegue o intelectual. "A nós intelectuais não é pago o que valemos, ao passo que qualquer ignóbil que se dedica a produzir algo demandado pelas massas incultas ganha 100 ou 200 vezes mais do que eu". Ressentimento e inveja.

Segundo Bertrand de Jouvenel,

O mundo dos negócios é, para o intelectual, um mundo de valores falsos, de motivações vis, de recompensas injustas e mal direcionadas . . . para ele, o prejuízo é resultado natural da dedicação a algo superior, algo que deve ser feito, ao passo que o lucro representa apenas uma submissão às opiniões das massas.

Enquanto o homem de negócios tem de dizer que "O cliente sempre tem razão", nenhum intelectual aceita este modo de pensar.

E prossegue de Jouvenel:

Dentre todos os bens que são vendidos em busca do lucro, quantos podemos definir resolutamente como sendo prejudiciais? Por acaso não são muito mais numerosas as ideias prejudiciais que nós, intelectuais, defendemos e avançamos?

Conclusão

Somos humanos, meus caros. Se ao ressentimento e à inveja acrescentamos a soberba e a ignorância, não há por que estranhar que a corte de homens e mulheres do cinema, da televisão, da literatura e das universidades — considerando as possíveis exceções — sempre atue de maneira cega, obtusa e tendenciosa em relação ao processo empreendedorial de mercado, que seja profundamente anticapitalista e sempre se apresente como porta-voz do socialismo, do controle do modo de vida da população e da redistribuição de renda.


Jesús Huerta de Soto , professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo libertário ao redor do mundo. Ele é o autor da monumental obra Money, Bank Credit, and Economic Cycles.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

COMO O ESTADO IRÁ DEFINHAR ATÉ SE TORNAR IRRELEVANTE

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A Google comprou o YouTube em 2006, quando a histeria sobre violações de direitos autorais estava em seu auge. Os novos proprietários do YouTube imediatamente se ocuparam em tentar criar uma plataforma condizente com os padrões legais para evitar bilhões de dólares em processos pendentes. Os usuários do YouTube estavam postando uma enorme quantidade de material protegido por direitos autorais, e a Google seria responsabilizada judicialmente por isso. 

Durante os três anos seguintes, as retiradas de materiais postados ocorreram furiosamente. Usuários estavam tendo seus materiais deletados. Filmes caseiros que utilizavam músicas de fundo protegidas por direitos autorais tiveram seu som apagado. Vídeos que faziam homenagens a artistas populares utilizando suas músicas sumiram. Até mesmo vídeos que mostravam pessoas dançando em seus carros enquanto ouviam alguma música foram abolidos.

Isso não era divertido para ninguém. Os artistas não gostaram dessas medidas. Eles são os mais beneficiados quando um fã faz um vídeo em sua homenagem e ficam contentes (e lisonjeados) em ver sua música sendo difundida. Os proprietários dos direitos autorais também não ganharam nada com essa censura. Eles não obtinham nenhuma receita com a retirada dos materiais.

Já a Google não gostou nada de ter de fazer isso por causa de todos os gastos que teve de incorrer para criar programas que vasculhassem continuamente o site. Era também constrangedor quando esses seus programas deletavam um vídeo caseiro de uma festa infantil só porque as crianças estavam cantando "Parabéns pra Você". Para os consumidores e usuários, ter seu vídeo removido é um insulto imperdoável.

Ou seja, ninguém realmente se beneficiava desse sistema. E a situação estava se tornando cada vez mais difícil de ser controlada, uma vez que os uploads de vídeos cresciam exponencialmente (48 horas de vídeos novos surgem a cada minuto). Mas ainda assim a censura perdurou. A presunção de que músicas protegidas por direitos autorais não podiam ser postadas no YouTube estava enraizada no sistema.

Ninguém realmente gostava da maneira como o sistema funcionava. Mas era difícil imaginar outra forma. Afinal, aquele era o sistema que a lei havia construído. E certamente a lei deve prevalecer independentemente de quão absurdo seja o resultado. Era como as cenas de As Bruxas de Salem, de Arthur Miller: ninguém em Salem realmente acreditava na prática de matar bruxas, mas as pessoas prosseguiam com a carnificina porque era assim que o sistema funcionava.

Era evidente que a lei havia criado uma situação insustentável. Ela criou um sistema custoso demais para todos. Não podia continuar assim. Mas o que iria mudá-lo? E como? Foi exatamente aí que as forças da economia de mercado vieram ao resgate.

A Google criou um novo sistema que exibe anúncios comerciais na parte inferior de cada vídeo. E permitiu também a veiculação de propagandas antes do início dos vídeos. Várias dessas propagandas são incrivelmente interessantes, diga-se de passagem, e nada aborrecidas para os usuários, como poderiam ser — mesmo porque há a opção de pulá-las após 5 segundos de exibição. (Toda a instituição dos anúncios comerciais no YouTube merece um artigo à parte).

Adicionalmente, a Google costurou um acordo entre os usuários do YouTube e os proprietários de direitos autorais. Se um determinado vídeo infringisse direitos autorais, o proprietário destes direitos seria notificado e teria então duas opções: ordenar a retirada do vídeo ou permitir um anúncio comercial neste vídeo, o qual lhe garantiria receitas. Praticamente todos optaram pela solução comercial, e simplesmente porque é mais vantajoso para o proprietário ganhar dinheiro do que perseguir o criador do vídeo utilizando o sistema judicial.

Os proprietários dos direitos autorais aprenderam nesse processo algo que já era óbvio para muitos de nós havia muito tempo, mas que, por motivos estranhos, ainda não havia sido captado pelos fiscais da lei. Eles aprenderam que aquilo que parece ser uma violação da lei e uma transgressão dos direitos de propriedade pode ser retrabalhado e transformado em uma forma pacífica e mutuamente benéfica de publicidade. O maior inimigo de qualquer empreendimento comercial é a obscuridade; e não há maior aliado do que pessoas atentas que podem eventualmente vir a se tornar clientes.

Hoje, o YouTube hospeda uma vasta quantidade de materiais que, dois anos atrás, eram considerados piratas e ilegais. Está tudo lá, atendendo às demandas de milhões de usuários que não pagam um centavo para utilizar este serviço. Ele está fazendo aquilo que o Napster fazia na virada do século, antes de ser destruído pelo governo. A diferença é que o acesso gratuito é financiado por meio de formas pacíficas de publicidade. Aquilo que a lei estatal havia transformado em uma guerra de todos contra todos, o mercado converteu em um sistema de paz e abundância para todo mundo.

Trata-se de uma solução absolutamente brilhante, além de ser um fantástico exemplo de como o mercado é capaz de fornecer soluções pacíficas para problemas que, caso contrário, o estado iria abordar com coerção e brutalidade. A solução do mercado para este caso foi do tipo "breaking bad"[1], no sentido de que foi uma rejeição explícita a tudo que o estado estava tentando impor. E como os custos impostos pela agressiva abordagem estatal estavam crescendo enormemente, o mercado encontrou outra saída. Guerra custa caro.

Já a prosperidade requer paz. O estado queria guerra, mas o mercado disse 'não'. É claro que seria muito melhor se as regulamentações e as proteções aos monopólios intelectuais fossem revogadas e o próprio mercado fosse incumbido da tarefa de criar modelos comerciais de distribuição em um ambiente livre de intervenções. Porém, em vez de apenas ficar inerte esperando por mudanças na lei, o setor privado encontrou uma forma de contornar a lei.

E esta solução está mudando completamente a maneira como se faz distribuição musical. Quando o cantor/rapper sul-coreano PSY surgiu com sua música "Gangnam Style", ainda em julho deste ano, seu vídeo se tornou um viral muito além das expectativas de qualquer ser humano. Ele está fadado a ser o primeiro vídeo do YouTube a receber 1 bilhão de visualizações, e tudo isso em um extremamente curto período de tempo.



PSY (Park Jae-Sang) é um artista que padecia no anonimato havia uma década. Ele sabia o valor da exposição. Quando sua música começou a ser pirateada, quando restaurantes com o nome de Gangnam Style começaram a surgir, quando camisetas e produtos com sua marca começaram a pipocar por todos os lados, ele veementemente se recusou a impingir sua propriedade intelectual. Ele muito sabiamente percebeu que qualquer tipo de compartilhamento de sua imagem poderia ser positivo para ele. E, sem nenhuma surpresa, estima-se que ele irá faturar US$8,1 milhões este ano apenas com downloads de sua música no iTunes, ingressos para suas apresentações e publicidade. Graças à sua recusa em participar do sistema estatal de proteção ao monopólio intelectual, ele se tornou um dos músicos mais famosos do mundo, e rapidamente será um dos mais ricos também.

Vale a pena pararmos para refletir um pouco sobre as lições deste exemplo. Em nossa época, o aparato de regulação estatal — não apenas para a propriedade intelectual, mas também, e principalmente, para todas as áreas da economia — criou uma situação intolerável e insustentável para todos os cidadãos. Até mesmo aqueles que imaginavam que iriam se beneficiar das regulamentações protecionistas não estão colhendo as promessas — pelo menos não no grau em que imaginaram. E é assim porque a marcha da história não pode ser interrompida nem mesmo pelas maiores e mais violentas tentativas de coerção estatal. O mercado sempre irá prevalecer — o que é apenas outra forma de dizer que a ação humana irá preponderar sobre a coerciva maquinaria do estado — no longo prazo.

Estamos testemunhando isso em todas as áreas da vida. As leis estatais antidrogas estão sob séria pressão de pessoas revoltadas com as horrendas ondas de encarceramento por causa de ações que a maioria das pessoas não considera serem crimes sérios (como fumar maconha). A educação pública, por mais poderosos que sejam os sindicatos de seus funcionários, está desacreditada, e sua decadência está levando os pais a optarem pelo ensino doméstico autônomo, pela educação via internet ou por alternativas criativas oferecidas pelo mercado (como a Khan Academy). Em poucos anos, a educação pública — e sua usina de doutrinação marxista — deixará de ter qualquer importância.

Até mesmo o até então poderoso e intocável setor bancário está passando por turbulências, não obstante todas as tentativas dos bancos centrais e dos governos de monopolizarem o sistema. A nova moeda Bitcoin está crescendo e prosperando, não obstante todas as tentativas de dizer que o arranjo é uma farsa e uma fraude. Novos sistemas de pagamento estão surgindo diariamente na forma de cartões-presentes [também chamado deGift Card, é um cartão pré-pago que tem como objetivo ser usado para presentear pessoas para quem você não sabe qual presente específico dar] e de cartões que podem ser instantaneamente carregados com dinheiro. Aplicações digitais estão permitindo novas formas de empréstimos que contornam completamente o sistema oficial chancelado pelo estado.

Pessoal, se vocês quiserem entender como o estado entrará em colapso no futuro, é para essa direção que vocês têm de olhar. O colapso do estado não ocorrerá pela via política. Não ocorrerá por meio de reformas implementadas de cima para baixo. Ocorrerá, isso sim, por meio do sistema empreendedorial de tentativa e erro, pois o mercado não ficará inerte. Tendo de lidar com os pavorosos custos impostos pelo anacrônico sistema estatal, o mercado continuará encontrando maneiras criativas e surpreendentes de burlar o aparato coercivo, inventando com eficácia novas esferas de liberdade que permitirão que o progresso ocorra.

Todo e qualquer ato de empreendedorismo é, por definição, revolucionário. Há um espírito anarquista em sua raiz. Um ato empreendedorial é um ataque ao cerne do status quo. Empreender significa estar insatisfeito com a atual situação. Empreender significa imaginar algo novo e melhor. Empreender é um ato que produz mudanças graduais, inesperadas e não consentidas, pois acrescenta uma nova dimensão de experiência a como nos vemos, a como nos entendemos e a como interagimos com os outros.

Sem empreendedorismo, a história não registraria nenhum momento de progresso, a nossa compreensão do quão singular e especial é essa nossa época neste mundo seria para sempre indefinida, e toda a sociedade iria atrofiar até finalmente morrer. Com o empreendedorismo, toda e qualquer tentativa de controlar e paralisar o mundo encontra resistência e, no longo prazo, sempre fracassa.

A história nos ensina que aqueles que ousam tentar bloquear o progresso humano sempre acabam sendo atropelados. Sim, haverá muito atrito e vários poderosos serão vitimados à medida que tentamos nos mover do atraso para o progresso. Mas chegaremos lá, um ato de desobediência criativa de cada vez.



Jeffrey Tucker é o presidente da  Laissez-Faire Books e consultor editorial do mises.org.  É também autor dos livros It's a Jetsons World: Private Miracles and Public Crimes e Bourbon for Breakfast: Living Outside the Statist Quo

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

AS LAMENTAÇÕES DO DINOSSAURO

Terminei a leitura do último livro de Mario Vargas Llosa ("A Civilização do Espetáculo", editora Quetzal, 219 págs.) exatamente como gosto de terminar um livro: com notas extensas de concórdias e discórdias, escritas pelo meu punho, ao longo de todo o livro.


Mas, primeiro, as apresentações: Vargas Llosa apresenta-se como "um dinossauro em tempos difíceis". O que significa este jurássico autorretrato?

Significa uma confissão: Vargas Llosa olha em volta e vê frivolidade, aparência --numa palavra, "espetáculo". E vê o desaparecimento da cultura como experiência ética e estética que nos permite compreender os problemas do mundo.

Hoje, esta "civilização do espetáculo", que se desdobra em livros "light", filmes "light", arte "light", religiões "light" e até relacionamentos pessoais "light", serve apenas para fugirmos dos problemas do mundo. Numa palavra, serve para nos "alienarmos".

O termo não é inocente, e Vargas Llosa sabe disso: como diria Marx e os seus discípulos, sobretudo o "situacionista" Guy Debord, existe na civilização de hoje, como existia na civilização dos séculos 19 e 20, uma vontade desesperada de remeter o pensamento e a cultura para as margens da sociedade capitalista. E aqui reside a minha pergunta primeira: não terá sido sempre assim?

Platão, na sua "República", não era particularmente entusiasta dos poetas da sua época. Shakespeare, tido agora como parte fundamental do "cânone ocidental", era considerado um dramaturgo "popular" pela "intelligentsia" da Inglaterra isabelina.

Não estaremos nós também a ver superficialidade em toda a parte e a cometer o mesmo erro dos nossos antepassados, que sempre se consideraram testemunhas de um mundo em decadência?

Woody Allen, de quem Vargas Llosa manifestamente não gosta, glosou sobre o assunto em "Meia-Noite em Paris": há nos contemporâneos de todas as eras um descontentamento com o presente que os leva a romantizar eras passadas.

Assim acontecia com o personagem do filme, o roteirista Gil (um notável Owen Wilson), que suspirava no século 21 pela Paris da década de 20. Até viajar a esse passado de "festa móvel", como lhe chamou Hemingway, e descobrir que os contemporâneos da década de 20 suspiravam pela Belle Époque; e os contemporâneos da Belle Época, pelo Renascimento italiano; e etc. etc., sempre em regressão nostálgica.

Não quero com isso dizer --Deus me livre e guarde!-- que um dia olharemos para as brincadeiras conceituais de um Damien Hirst da mesma forma que olhamos para um Cézanne ou para um Matisse. Nessa matéria, o vaso sanitário de Marcel Duchamp já encerrou há muito o capítulo dos "happenings" circenses.

Mas será preciso reproduzir aqui o que os críticos coevos de Cézanne e Matisse escreveram à época sobre os quadros desses dois reputados mestres?

Ponto de ordem. Concordo com Vargas Llosa sobre a "civilização do espetáculo" que se espalhou em volta. Concordo que a sensibilidade cultural do nosso tempo torna mais difícil o aparecimento de um James Joyce porque escasseia o público exigente e paciente para o ler. Concordo que o "eclipse" do intelectual se deve ao papel abjeto que ele teve, sobretudo no século 20, ao emprestar o seu nome e prestígio a regimes totalitários.

E concordo, de alma e coração, que o relativismo larvar que contaminou a "crítica" e as "humanidades" faz com que hoje uma ópera de Verdi ou um concerto dos Rolling Stones sejam colocados no mesmo patamar valorativo.

Mas introduzo aqui uma ligeira variação ao argumento central de Vargas Llosa: vivemos hoje uma "civilização do espetáculo" porque o nosso tempo globalizado criou os mecanismos de difusão que nos permitem assistir a esse excesso de espetáculo.

Assistimos a tudo: ao lixo cultural, mas também a raras preciosidades. Assistimos aos tubarões em formol de Damien Hirst, mas também aos retratos de Lucien Freud. Assistimos à mediocridade pirotécnica de Hollywood, mas também ao cinema de Michael Haneke. Lemos Dan Brown, mas também os romances do próprio Vargas Llosa.

Perante esta selva estética e ética, o caminho não está em jogar a toalha e decretar o fim de uma "civilização". Está, pelo contrário, em ser "um dinossauro com calças e gravata", disposto a resgatar do caos o que merece ser celebrado como nunca. Por: João Pereira Coutinho, Folha de SP

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

A VIRTUDE DAS "INEFICIÊNCIAS DE MERCADO"


O mercado é frequentemente, e muito corretamente, caracterizado como sendo um extraordinário 'solucionador de problemas'. Quando há regras claras e bem determinadas (como respeito à propriedade privada, liberdade de comércio e império da lei), indivíduos em busca de seus próprios interesses econômicos conseguem coordenar seus planos com os planos econômicos de outros indivíduos de maneira relativamente bem-sucedida, gerando uma ordem geral harmoniosa e dinâmica, na qual todos se beneficiam. E o principal: isso tudo ocorre sem que cada indivíduo esteja ciente — ou sem que seja necessário ele estar ciente — de como tudo acontece. É por isso que os economistas costumam dizer que os mercados são muito mais "sábios" do que uma única pessoa.

Porém, sou da opinião de que os mercados são mais importantes pelos problemas que eles "criam" do que pelos problemas que eles solucionam.

Em 1920, Ludwig von Mises explicou que um determinado indivíduo na sociedade só é capaz de planejar racionalmente — isto é, encontrar e utilizar os meios mais eficientes e menos custosos para se alcançar um determinado fim — se houver um sistema de preços de mercado que possam guiá-lo. Seria melhor, do ponto de vista deste indivíduo, construir uma ponte utilizando molibdênio ou utilizando aço? Ou talvez uma combinação de ambos? Ou será que ele deveria mesmo construir uma ponte em vez de investir em um serviço de balsas? Se estas questões já são difíceis o bastante em um mundo em que há preços de mercado, elas seriam impossíveis de ser respondidas caso não houvesse preços para o aço, o molibdênio e todos os tipos de insumos utilizados na construção de um determinado tipo de ponte (ou um determinado tipo de serviço de balsa).

É desta maneira que o sistema de preços — preços que surgem da livre transação de propriedade privada em um livre mercado — ajuda este indivíduo a solucionar não apenas o problema de como construir uma ponte, mas também, e principalmente, a questão sobre se tal ponte deve ou não ser construída. Com a ajuda dos preços de mercado, este indivíduo torna-se capaz, ao menos em princípio, de estimar quais os custos das várias alternativas a esta ponte. E aquela opção que gerar o maior lucro — aquela cujos benefícios esperados excedem os custos esperados pela maior margem — tenderá a ser também a mais eficiente (isto é, este indivíduo estará obtendo o mais alto retorno para seu investimento).

Aproximadamente 20 anos após o artigo de Mises, Friedrich Hayek explicou como estes preços criados pelo mercado permitem que um indivíduo imperfeitamente informado consiga coordenar seus planos em conjunto com um vasto de número de pessoas espalhadas pela economia global sem necessariamente saber como isso está ocorrendo. Se o preço da gasolina sobe, ninguém tem de dizer a este indivíduo para usar menos o seu carro, embora seja exatamente isso o que o aumento da escassez relativa da gasolina (fenômeno esse responsável pelo aumento do preço) esteja impondo.

Tomadas conjuntamente, as análises de Mises e Hayek sobre a economia de mercado aperfeiçoam enormemente a nossa ideia sobre o que Adam Smith, ainda no século XVIII, quis dizer ao se referir à "mão invisível". Considerando que o processo de coordenação, possibiltado pelos preços de mercado, é repetido continuamente para todos os bens e serviços produzidos em uma economia, fica fácil entender por que vários economistas se mostram impressionados com a capacidade do mercado de "espontaneamente" solucionar problemas.

Este processo de coordenação também joga uma luz sobre como as políticas governamentais — coletivistas ou apenas intervencionistas — que eliminam ou distorcem os preços do mercado tendem a tornar o mundo bem mais irregular, incerto e volúvel.

Por mais maravilhosa que a economia de mercado seja em solucionar problemas, de certa forma a verdadeira engenhosidade do processo de mercado está em como ele consegue chamar a atenção das pessoas para os problemas existentes. Para conseguir resolver um problema, você tem antes de estar ciente de que existe um problema. Esta, creio eu, foi a grande constatação que Israel Kirzner, ainda no início da década de 1970, ofereceu para o nosso entendimento do processo de mercado — mais especificamente, que o mercado é um processo de descoberta empreendedorial de erros.

Uma implicação desta constatação é que políticas governamentais que interfiram nos preços do mercado e solapem sua confiabilidade (a qual não pode ser perfeita) inevitavelmente farão com que a descoberta das ineficiências seja profundamente mais difícil e problemática. O solapamento dos preços de mercado é uma medida que obscurece o próprio significado da ineficiência.

A rigor, uma ineficiência existe quando, para uma dada pessoa em um dado tempo e em um dado local, o custo de uma ação supera seus benefícios. Vimos acima que, para calcular racionalmente custos e benefícios, você necessita da existência de preços para insumos e produtos — no exemplo, para aços e pontes. Logo, quando o governo ataca os direitos de propriedade, quando ele interfere no mercado, quando ele manipula a oferta monetária e distorce os preços, ele não apenas está fazendo com que seja mais difícil ser eficiente, como também está afetando a própria capacidade empreendedorial de se perceber as ineficiências.

Por exemplo, utilizando as regras da aritmética, é fácil ver que a afirmação 1 + 2 = 4 está errada. Mas o que podemos dizer sobre a afirmação _ + _ = _ ? Qual a solução deste "problema"? Há alguma solução? No livre mercado, são os preços que preenchem as lacunas; são eles que "criam erros". Ou seja, são eles que revelam erros que ninguém seria capaz de perceber caso inexistissem preços. E são estes erros que empreendedores alertas irão perceber e corrigir. Se os erros e as ineficiências permanecessem invisíveis, a busca por melhores maneiras de se fazer as coisas jamais ocorreria.

Uma economia sem ineficiências é uma em que o conhecimento é tão perfeito que ninguém comete erros. Ou é uma em que as políticas governamentais conseguiram com total eficácia abolir todas as possibilidades de ineficiência. Em um mundo de surpresa e descobrimento, de experimentos e inovações, a primeira opção é impossível; e a segunda, como Mises demonstrou há quase 100 anos, não apenas é impossível como também é intolerável.

Portanto, uma economia ativa e pujante tem de "criar" ineficiências. Várias ineficiências. São as ineficiências que possibilitam maiores eficiências e contínuas inovações. E é exatamente isso o que o processo de mercado faz a todo o momento. Ainda bem!

Sanford Ikeda é professor associado de economia no Purchase College, da State University of New York, e autor do livroThe Dynamics of the Mixed Economy: Toward a Theory of Interventionism.