quarta-feira, 31 de outubro de 2012

NONA LIÇÃO

Dez lições de economia para iniciantes - Nona lição: moeda e preços 



israel-coin-Tara-Todras-AP-heads.jpgUm dos maiores avanços de todos os tempos foi sem dúvida a invenção da moeda. Sim, hoje é difícil pensar que as transações eram realizadas sem dinheiro, mas na mais remota antiguidade o que existiam eramtrocas diretas: se você, por exemplo, criava galinhas e desejava comprar arroz, deveria levar algumas galinhas até o mercado (que era um espaço físico) e procurar alguém que, ao mesmo tempo estivesse interessado nas suas galinhas e que tivesse arroz para trocar por elas. É fácil perceber que isso dificultava tremendamente as trocas, porque os custos de transação envolvidos eram gigantescos.

O passo seguinte, centenas de anos depois, em um processo de evolução chamado ordem espontânea, em que as coisas vão sendo descobertas como consequência da ação das pessoas, mas sem que elas planejem como serão descobertas, foi a chamada moeda-mercadoria. Algumas mercadorias, por serem duráveis, por serem fáceis de transportar e, principalmente, por serem aceitas em quase todas as trocas, transformaram-se na moeda da época. O sal foi a principal dessas mercadorias. Então, você não precisava mais levar suas galinhas ao mercado para trocá-las por arroz, bastava levar certa quantidade de sal.

Mais tarde, sempre seguindo essa evolução espontânea, os metais preciosos, como ouro e prata, passaram a ser usados como moeda, especialmente depois da invenção do processo de cunhagem. A etapa seguinte foi a da chamada moeda-papel, um certificado nominativo que você recebia do seu banqueiro declarando que você havia depositado certa quantidade de ouro e que só você poderia pegar de volta quando desejasse. Quando esses papéis passaram a ser ao portador, se transformaram no papel-moeda. E o que chamamos de moeda ou dinheiro passou a ser composto por aqueles certificados (que se transformaram com o tempo nas cédulas) e as moedas metálicas.

Posteriormente, quando os banqueiros descobriram que poderiam emprestar parte do dinheiro que recebiam como depósitos (mesmo este dinheiro não lhes pertencendo, o que é um absurdo) ao público, esses empréstimos, ao gerarem novos depósitos, transformaram-se no que conhecemos como moeda escritural. E a moeda ou dinheiro passou a ser o papel-moeda (mais as moedas metálicas) e os depósitos à vista do público nos bancos comerciais. A faceta mais moderna desse processo evolutivo é a chamada moeda eletrônica, que são os cartões magnéticos utilizados largamente a partir do final do século XX. Qual será o próximo passo? É impossível dizermos, porque, como ressaltamos, a moeda é uma ordem espontânea, um produto da ação humana, porém não planejada.

Os economistas austríacos sempre disseram que aumentos na quantidade existente de moeda não geram benefícios para a sociedade, basicamente porque eles não alteram os serviços de troca que a moeda proporciona; apenas diluem o poder de compra de cada unidade monetária. Portanto, não existe nenhuma "necessidade social" que justifique o crescimento da quantidade de moeda, nem mesmo se a produção ou a população aumentarem: simplesmente, as pessoas poderão manter uma proporção maior de dinheiro para uma dada quantidade de moeda, gastando menos, o que fará subir o poder de compra desse dinheiro. Conforme Mises escreveu no capítulo XVII de "Ação Humana", em 1948, "... a quantidade de moeda disponível em toda a economia é sempre suficiente para assegurar a todos tudo o que a moeda faz e pode fazer".

A inflação — que não deve ser entendida simplesmente como um aumento contínuo e generalizado de preços (este é o seu efeito, não a sua causa), mas como uma queda progressiva do poder de compra da unidade monetária e a correspondente elevação dos preços — é um método pelo qual o governo, o sistema bancário que ele controla e os grupos que ele favorece politicamente adquirem a capacidade de expropriar parte da riqueza dos demais grupos da sociedade. Portanto, é mais do que aconselhável — é crucial — que a sociedade, mediante o estabelecimento de instituições adequadas, impeça que os governos e os políticos tomem conta da quantidade de moeda, emitindo a seu bel prazer. O economista Friedrich von Hayek, um dos gigantes da Escola Austríaca, tem uma frase muito apropriada para descrever esse perigo: "Entregar o controle da oferta monetária aos políticos é o mesmo que pedir a um gato para tomar conta de um pires de leite".

Por sinal, antigamente não eram os governos que emitiam as moedas: elas eram emitidas por banqueiros privados e competiam entre si. Posteriormente é que os governos descobriram que era um grande negócio para eles serem os detentores do monopólio da moeda e inventaram a chamada "moeda de curso legal", aquela que, por decreto, é a moeda "oficial" de um país ou grupo de países. 

Vamos abordar agora uma questão importante e que está sempre relacionada com a moeda. O que vem a ser a inflação? Sua causa primária, sempre e em qualquer lugar, é um crescimento na moeda e no crédito sem lastro em aumentos correspondentes na produção, na produtividade e na população. Na verdade, a inflação deve ser definida mais propriamente como essa ampliação na oferta de moeda e crédito, e não da forma que se tornou usual — como um aumento contínuo e generalizado de preços. A utilização da palavra "inflação" com este segundo significado tem gerado muitas interpretações incorretas ao longo dos anos, produzindo diagnósticos equivocados e terapias desastrosas. Obviamente, expansões monetárias não são o mesmo que as elevações em todos os preços que elas provocam, porque causa não é efeito.

Inflação significa simplesmente que se a moeda e o crédito são "inflados", os agentes econômicos passam a dispor de mais dinheiro para comprar bens e serviços; ora, se a oferta desses últimos não cresce à mesma velocidade que a das emissões — o que é de se esperar, pois, no mundo real, tartarugas não conseguem acompanhar lebres —, então seus preços crescerão e continuarão a aumentar enquanto a causa persistir.

Como disse o Professor Mises, a batata é mais barata do que o caviar porque sua oferta é muito mais abundante. Pois em um processo inflacionário, a moeda e o crédito desempenham o papel da batata e os demais bens e serviços o do caviar: para comprar as mesmas quantidades de produtos, serão necessárias cada vez mais unidades monetárias, assim como para comprar caviar se gasta mais do que para comprar batatas. É tão simples! Se há mais reais circulando sem lastro, nada mais natural do que o valor do real diminuir relativamente aos dos demais bens!

Uma das falácias mais repetidas é a de que a causa da inflação não são excessos de moeda e crédito, mas "escassez" de produtos. É verdade que um aumento de preços — que não deve ser confundido com inflação — pode ser causado tanto por expansões da moeda e do crédito como por escassez de produtos, ou por ambos. O preço do trigo, por exemplo, pode crescer temporariamente por conta de algum problema na safra, mas não há caso, mesmo em economias de guerra, de aumentos generalizados de preços gerados por escassez universal de bens. Na Alemanha pós-guerra de 1923, por exemplo, os preços subiam astronomicamente, todos reclamavam contra a escassez generalizada, mas levas de estrangeiros entravam no país para comprar produtos alemães, porque muitos preços eram menores na Alemanha do que em seus países.

Guarde o seguinte: existe inflação, mas não existe "inflação dos alimentos", ou "inflação" da cenoura, do chuchu, dos barbeiros, das pizzas, do cafezinho ou do petróleo. Por mais importante que seja na economia, nenhum produto é capaz de provocar aumentos permanentes em todos os demais, mas, devido ao péssimo hábito de se olhar apenas para o que os índices mensais de preços refletem, sempre é possível encontrar o vilão da vez, o bandido do mês, aquele preço que subiu acima da média...

Sair em uma noite fria sem estar agasalhado costuma causar gripe, cujos sintomas — dores no corpo, prostração e entupimento nasal — apenas se manifestam dois ou três dias depois. Da mesma forma, a inflação nasce quando ocorre crescimento sem lastro na moeda e no crédito e se torna visível alguns meses depois, quando todos os preços começam a subir sem parar.

As variações na quantidade de moeda em circulação não são "neutras" porque não afetam todos os preços de maneira uniforme e, portanto, alteram os preços relativos e, assim, a estrutura de capital, como veremos na próxima aula!

A idéia central dos austríacos é que o dinheiro novo entra em um ponto específico do sistema econômico e, sendo assim, ele é gasto em certos bens e serviços particulares, até que, gradualmente, vai-se espalhando por todo o sistema, assim como um objeto qualquer, ao ser atirado na superfície de um lago, forma círculos concêntricos com diâmetros progressivamente maiores, ou como quando se derrama mel no centro de um pires e ele vai-se espalhando a partir do montículo que se forma no ponto em que está sendo derramado (analogias, respectivamente, de Mises e Hayek). Por isso, alguns gastos e preços mudam antes e outros mudam depois e, enquanto a mudança monetária — digamos, uma expansão do crédito — for mantida, sua irradiação para gastos e preços persiste em movimento.

Assim, as alterações provocadas nos preços relativos, que são definidos como as comparações de todos os preços tomados dois a dois, produzem mudanças na alocação de recursos. Quando ocorre uma expansão do crédito bancário, supondo que as expectativas quanto à inflação futura não existam, as taxas de juros, inicialmente, caem, mantendo-se abaixo dos níveis que alcançariam se o crédito não tivesse aumentado. O efeito disso é que, necessariamente, os padrões de gastos sofrerão alterações: os gastos de investimentos subirão relativamente aos gastos de consumo corrente e às poupanças. Portanto, a expansão monetária, necessariamente, provoca uma descoordenação entre os planos de poupança e de investimento do setor privado. Esse impacto descoordenador da política monetária é essencial na visão hayekiana, mas não é levado em conta pela teoria macroeconômica convencional.

Como este curso é dirigido a iniciantes em economia, não vamos discutir a importantes questões: os governos devem continuar detendo o monopólio sobre a moeda? Os bancos centrais devem mesmo existir? Para incentivar você a se aprofundar no fascinante mundo econômico, vamos apenas dizer que a resposta de alguns austríacos (entre os quais me incluo) para ambas as perguntas é: não!

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 

EDUCAÇÃO E LIBERDADE


Educação e liberdade: apontamentos para uma prática pedagógica não coercitiva


Introdução

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No debate sobre temas referentes à liberdade, a perspectiva abordada pela tradição liberal é ver a liberdade como liberdade negativa. Neste ponto de vista a liberdade é um conceito formal, sendo resumido à máxima "liberdade é ausência de coação". Para uma discussão política puramente teórica é importante que o termo esteja bem definido, porém há outros pontos que podem enriquecer o debate acerca da liberdade.

O que a tradição — não apenas liberal, mas filosófica — negou durante muito tempo foi a presença do corpo. A liberdade pode ser conceituada, mas a condição de estar livre é sentida no corpo. Uma algema retirada do pulso não é simplesmente a ausência da coação para com a mobilidade, há uma experimentação física. O metal gelado é retirado da pele, o sangue passa a circular melhor e há o regozijo da troca da condição de preso para a condição de livre. Todo regozijo é sentido no corpo, há alteração da frequência cardíaca, no ritmo da respiração e diversas outras mudanças físicas e hormonais que vão do suor à tremedeira.

Com isto, não intento dizer que a liberdade resume-se às alterações físicas que proporciona. Contudo, a coação para com o indivíduo não pode ser resumida como uma coação apenas formal, pois a coação é também uma coação para com o corpo. É intuito abordar a liberdade num contexto escolar-educacional levando em conta os processos de amarras físicas que a escolarização produz e multiplica.

Uma abordagem apenas política e econômica é capaz de discutir temas referentes à qualidade, à eficiência e ao direito, por exemplo. A perspectiva deste trabalho é discutir a possibilidade de um ensino não coercitivo.

É tema recorrente nos escritos deste autor a questão da obrigatoriedade. A realização política prussiana da obrigatoriedade legal do envio dos infantes, reproduzida posteriormente pelas outras nações que se consolidavam na modernidade, não é uma obrigatoriedade apenas conceitual. As consequências físicas para este tipo de decisão constitucional são a retirada do tempo de vida, o confinamento espacial, o condicionamento físico e motor, bem como todo tipo de conformismo social através do domínio psicológico. Estas formas de controle e domínio poderiam ser facilmente abolidas com a abolição do sistema educacional e das condições jurídico-criminais que obrigam os pais a enviarem seus filhos para a escola.

Entretanto, seria ingenuidade imaginar que apenas a não obrigatoriedade educacional-escolar construiria um ambiente de plena ausência de coação. Há diversos fatores que impedem a plena realização da liberdade dentro deste tema. Um primeiro problema é a constatação de que nem todos os pais possuem condições intelectuais e temporais para realizarem o ensino domiciliar (homeschooling). É preciso frisar que uma defesa da liberdade é a defesa de que os pais que desejarem aplicar esta modalidade de ensino devem estar livres para fazê-lo. Sem a obrigatoriedade de enviar filhos para uma escola, alguns pais escolheriam ensiná-los em casa, mas muitos outros pais, desejosos em educar e seus filhos e sem tempo ou condições, continuariam a enviá-los para uma escola. Por este motivo é preciso pensar não apenas num ambiente sem coação estatal, mas também numa prática pedagógica não coercitiva. É incompatível uma luta contra o poder coercitivo do estado e a manutenção de uma prática coercitiva.

Prática pedagógica livre

A primeira necessidade é discutir o modelo pedagógico desejado para a prática da liberdade, tendo em vista que as escolas não deixarão de existir mesmo com o fim da obrigatoriedade da escolarização.

Começando com a produção bibliográfica libertária há o livro Education: Free and Compulsory de Murray Rothbard. Neste paper, o fundador do moderno libertarianismo aponta que o melhor ensino é aquele realizado numa relação um para um (ROTHBARD, 1999). Significa que vê no antigo modelo de tutoria, no qual o preceptor se dedicava exclusivamente ao aprendiz, a melhor realização do processo de ensino-aprendizagem. Não é um mero detalhe o fato deste modelo ter um alto custo. É preciso um preceptor que possua fluência em diversos saberes. Seu tempo de dedicação é um bem e precisa ser justamente ressarcido, isto é, o valor pago deve ser um acordo entre ele a família de seu aprendiz. O custo elevado torna esta modalidade inviável para todos os bolsos, além de sua inviabilidade devido a falta de profissionais capacitados.

Na esfera do factível Rothbard (1999) retoma um antigo conceito. Defende um ensino de conteúdos primários, isto é, ler, escrever e contar. A criança precisa tomar posse da leitura e escrita para que possa usar tais ferramentas para conhecer a produção intelectual da humanidade. A matemática é a ferramenta necessária para desenvolver o raciocínio lógico e é o suporte para se relacionar com os números. Saber contar é saber viver no mundo, saber trocar, medir, pesar.

É certo que um conteúdo basilar permite uma abertura de horizontes e possibilidades. A discussão acerca do que ensinar é extensa. Contudo, faz-se mister comentar um pouco sobre um ponto doravante esquecido ou deixado à margem nas discussões libertárias que priorizam os aspectos políticos e econômicos, a saber, o como ensinar.

Conteúdos devem ser pensados conjuntamente com o método de ensino. Independente de ser escolar, domiciliar, tutorial, o ensino precisa ser dado de modo que não exista coação. É preciso aliar um ensino eficaz com a liberdade e aqui é preciso pensar em alguns pontos.

Referente ao ensino escolar, contexto no qual há uma estrutura hierárquica, um colegiado e discentes das mais variadas culturas, a escola tradicional impõe uma excelência e disciplina que necessita ser seguida. Neste sentido trata os alunos da mesma forma que a tradição liberal trata os cidadãos. Todos são formalmente iguais. Esta igualdade formal não leva em conta a individualidade, a pessoalidade e o fato de indivíduos possuírem estruturas mentais e psíquicas diferentes dos demais pares. Formalmente o tratamento igual pode ser uma caracteriza interessante, mas pedagogicamente é preciso levar em conta o indivíduo, sem lidar com uma sala de aula como se houvesse homogeneidade.

Se o melhor ensino é o individual, não o coletivo, como educar coletivamente sem que o ritmo e os conteúdos sejam violentos para as crianças? No pensamento pedagógico há algumas possibilidades.

Um modelo pedagógico que se preocupou, em parte, com esta problemática foi o movimento da Escola Nova. Um dos pontos levados em conta por pensadores como John Dewey, Maria Montessori e, salvo as devidas diferenças, Jean Piaget, é pensar em quem está sendo ensinado. É preciso compreender o indivíduo que está aprendendo, seus interesses, anseios e estrutura psicológica. Neste sentido, a escola precisa levar em conta o tempo de aprendizado da criança, seu interesse em aprender e suas capacidades motoras, psicológicas e intelectuais. Apesar de não serem totalmente não dirigistas, os escolanovistas pensaram elementos que permitem uma liberdade de aprendizado e, em certo grau, levam em conta o momento e interesse da própria criança. Tais princípios colaboram na elaboração de uma pedagogia não coercitiva em comparação com a pedagogia tradicional.

Muito mais centrada na ideia de não direcionar a criança está a proposta não diretiva de educação, da qual Carl Rogers é seu principal defensor. Para ele o professor deve ser um facilitador do desenvolvimento, mas este ocorre internamente na criança. A educação é centrada na criança, que deve se autorrealizar enquanto indivíduo. O centro deste modelo educacional é o self (eu). A criança precisa valorizar e buscar constituir a si mesma. Currículos e avaliações não possuem espaço, pois "toda intervenção é ameaçadora, inibidora da aprendizagem" (LUCKESI, 2011, p. 79).

De encontro aos modos de pensar acima há o pensamento progressista, que foca na construção de um indivíduo crítico perante a realidade. Este projeto libertador, na concepção freireana, é marcado por um engajamento político de transformação social. A transformação, porém, é marcada por uma visão de mundo inerentemente marxista. Neste sentido, visa influenciar não diretamente o contexto escolar, mas extraescolar, com o intuito de transformar a sociedade conjuntamente com a escola.

Uma perspectiva mais "libertária", no sentido mais anarquista e menos libertarista, ataca a própria estrutura escolar. O ensino deve ter como base a autogestão e a autonomia. Nos termos do pensamento do educador brasileiro Tragtenberg, esta autogestão e autonomia estão relacionadas com o coletivo, no caso os alunos. Esta linha do pensamento, que também faz uma ponte com a ideia de Rogers, tem muito a acrescentar quando se pensa numa educação não coercitiva. Obviamente que numa perspectiva individualista a ideia da construção coletiva tende a encaminhar a prática para determinada heteronomia. Entretanto, o convívio com outros não é determinante para a construção do indivíduo, visto que este não é apenas fruto de interações sociais. A vivência, a experiência e as trocas favorecem o desenvolvimento da individualidade e da pessoalidade dos sujeitos. Por outro lado, numa perspectiva de gestão escolar, escolas autogeridas e cooperativas de pais para proporcionar ensino aos seus filhos são soluções inteligentes no sentido de dissolver custos e propiciar métodos pedagógicos alternativos que estejam de acordo com o ideal de ensino defendido pela associação de pais.

A abertura de possibilidades para pensar uma prática pedagógica livre está feita. Controles escolares como conteúdos, horários, uniformes, uso do espaço arquitetônico, hierarquia e métodos são e devem ser criticados. Todos eles afetam diretamente a ideia de que a criança é dona de si mesma, tratando-a como pertencente aos responsáveis por sua educação, como os pais, professores, sociedade e estado. O não cerceamento da prática escolar possibilita invenções e reinvenções. Este é o papel dos pensadores, professores, educadores e pais que desejam educar.

Certamente que num ambiente sem intervenções como a do Ministério da Educação haveria uma "concorrência" de modelos escolares. Pais observariam resultados e colocariam seus filhos em colégios que se adequassem a aquilo que buscam para seus filhos. Nesta busca por uma utilidade do ensino, pais que visam educar, no sentido amplo do termo, devem se ater aos aspectos não apenas conteudistas, mas também a uma forma de ensino que leve em conta a criança como um indivíduo único.

Homeschooling e relação entre pais e flhos

Discutimos modelos e práticas pedagógicas escolares. Precisamos discutir um pouco outro aspecto da educação, aquela que se dá no primeiro ambiente socializador, a família.

Não há ambiente mais contraditório do que a família. A relação pais-filhos é permeada por problemáticas que envolvem responsabilidades e direitos individuais. O papel e função dos pais e seus limites de atuação constituem enorme debate. A criança ainda não está totalmente constituída e por este motivo há o debate sobre até que ponto os pais devem direcionar seus filhos.

Um bom resumo sobre a questão foi apresentado por Stephan Kinsella, baseando-se nos escritos de Hoppe e Rothbard, ao escrever "quem é o dono do corpo de uma criança? Inicialmente, os pais o são, como um tipo de tutor temporário." (2008).

Ao que se segue: os pais têm mais direitos sobre a criança do que quaisquer estranhos, por causa de seu elo natural com a criança. Entretanto, quando a criança se "apropriar" de seu corpo, estabelecendo o necessário elo objetivo suficiente para estabelecer a auto-propriedade, a criança se torna um adulto, por assim dizer, e agora passa a ter uma melhor reivindicação sobre seu corpo em relação a seus pais. (Idem)

Esta abordagem nos leva a pensar que, enquanto tutores temporários, os pais não devem interferir na propriedade (autopropriedade) de seus filhos, muito menos suprimir suas liberdades tornando suas casas aprisionamentos. A criança deve ser livre para poder sair de casa e é este o argumento de Rothbard para a realização da maioridade, a condição de poder se autossustentar.

Deixando de lado a discussão legal sobre direitos positivos, amplamente discutida por Rothbard e Hoppe, os pais possuem geralmente um desejo moral em educar seus filhos. É neste ponto que é preciso pensar a prática educacional em casa como possibilitador da compreensão da liberdade.

O primeiro ponto é a agressão física. Por mais que ideologicamente pais defendam a palmada, este recurso não é efetivamente bom. Uma punição física pela não adequação a uma regra ou ordem ensina a criança que a agressão é um recurso válido socialmente para conduzir terceiros no caminho esperado. Definições de regras claras, construídas com as crianças são formas mais eficazes. É preciso levar a criança a refletir sobre suas ações para que perceba a violação da liberdade e propriedade de terceiros. Uma educação livre não é obviamente um total deixar fazer. É deixar fazer tudo aquilo que não agrida a liberdade e propriedade de terceiros.

É preciso ter cuidado para que o convívio doméstico não se torne um aprisionamento. Este aprisionamento é uma das críticas feitas aos adeptos do homeschooling. Tendo em vista as práticas pedagógicas centradas na liberdade, os pais precisam estudar e se apropriar das ideias de não dirigismo. Uma das maiores diferenças entre um ensino em casa e um ensino escolar é a possibilidade da criança aprender o que deseja no tempo que deseja. A intencionalidade da criança é o que a motivará a direcionar seus estudos para aquilo que considera de mais valia e esteja de acordo com suas aptidões naturais.

A restrição de atividades, horários e conteúdos torna-se uma reprodução do ambiente escolar tradicional. O aprisionamento corporal pode dar-se em casa, tendo resultados contrários aos desejados pelos pais.

Conclusão

Desejando-se pensar sobre educação e liberdade também é necessário desejar uma educação não coercitiva. Os controles e restrições escolares afetam diretamente o desenvolvimento intelectual, psíquico e físico. É preciso não apenas pensar uma escola sem determinantes políticos e econômicos e seus dirigismos estatais, mas pensar um ensino não coercitivo.

Retirar o estado das questões educacionais possibilita novas invenções pedagógicas da mesma forma que a retirada da coerção pedagógica leva a novas invenções individuais. A realização da plenitude do indivíduo autônomo não ocorrerá sem um ambiente propício. Assim, é preciso que os defensores de liberdades individuais e econômicas pensem sobre suas ações. Pais e professores desejosos em ensinar a liberdade possuem esta tarefa moral para com suas crianças. 

Texto originalmente publicado na Revista Estudos Pela Liberdade, nº 2
Bibliografia
LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da educação. 3ª. Ed. São Paulo: Cortez, 2011.
ROTHBARD, Murray Newton. Education: free and compulsory. Auburn: Ludwig von Mises Institute, 1999. Original em 1972.

 C.F.: Hoppe. Uma teoria sobre socialismo e capitalismo. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010, e Rothbard, A ética da liberdade. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010.

Filipe Celeti é bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela mesma instituição.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

UM PAÍS EMPERRADO


A empresa brasileira gasta em média 2.600 horas, cada ano, para cuidar dos impostos. A empresa colombiana, 203. Na União Europeia, o dispêndio é de 193 horas. Indicadores desse tipo mostram uma economia travada, onde os empresários têm muito menos tempo que seus concorrentes estrangeiros para cuidar de inovação, produção, qualidade e estratégia comercial. São forçados a enfrentar, no dia a dia, uma sequência absurda de obstáculos criados quase sempre pelo setor público – por excessos burocráticos, por inépcia administrativa ou simplesmente por omissão. Mais uma vez a pesquisa Doing Business, realizada anualmente pelo Banco Mundial, mostra o Brasil em péssima posição na escala internacional de facilidades – ou dificuldade – de fazer negócios. O levantamento cobre principalmente as condições de operação de pequenas e médias empresas em 185 países, mas as diferenças encontradas valem, de modo geral, para o conjunto de cada economia. O ambiente de negócios é descrito com base em dez tópicos – abertura da empresa, licenças de construção, acesso à eletricidade, registro de propriedade, obtenção de crédito, segurança do investidor, pagamento de impostos, comércio internacional, garantia de contratos e processos de insolvência. O relatório aponta avanços em muitos países em desenvolvimento, mas, no caso brasileiro, as mudanças têm sido escassas e de alcance limitado.

Somadas e ponderadas todas as notas, o Brasil, como no ano anterior, ficou em 130.º lugar na classificação geral, logo depois de Bangladesh e um posto à frente da Nigéria. Só um dos Brics, a Índia, apareceu em posição pior, a 132ª. A África do Sul ocupou o 39º posto, a China, o 91º, e a Rússia, o 112º. A Itália, terceira maior economia da zona do euro, foi a 73ª colocada, mas, de modo geral, as potências capitalistas foram bem classificadas, com os Estados Unidos em 4º lugar, depois de Cingapura, Hong Kong e Nova Zelândia.

Com 13 procedimentos e 119 dias para abrir um negócio (contra 13 dias na Colômbia, por exemplo), o empreendedor brasileiro precisa de muita persistência só para iniciar a atividade. A obtenção de licenças para construção consome no Brasil 131 dias, bem mais que a média regional, 95. O acesso à eletricidade é uma das poucas vantagens comparativas do empresário brasileiro – demora de 57 dias, contra 98 nos países ricos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mas essa vantagem se perde no meio de uma porção de entraves, como os 14 procedimentos (o dobro da média regional) e 34 dias necessários para registrar uma transferência de propriedade.Num estudo mais amplo de competitividade seria preciso levar em conta fatores como o peso e a qualidade dos impostos, a infraestrutura, os investimentos em inovação, a qualidade e a disponibilidade da mão de obra, entre outros fatores. Nesse caso, as vantagens das economias mais desenvolvidas seriam mais nítidas e a classificação geral seria diferente. Mas o ambiente de negócios, foco da pesquisa Doing Business, também afeta a eficiência e o poder de competição das empresas e, no caso do Brasil, o peso negativo desse conjunto de fatores é indiscutível. Vários países latino-americanos ficaram em posições bem melhores na classificação geral – casos do Chile (37ª), do Peru (43ª), da Colômbia (45ª) e do México (48ª).

O Brasil perde também quando se trata das condições do comércio exterior. Nesse quesito, o País ficou em 123º lugar na classificação global. Os países da União Europeia ficaram em 36.º e as economias de alta renda da OCDE em 33º. O Chile foi classificado na 48.ª posição e o Peru, na 60.ª. As empresas brasileiras precisam de 7 documentos para exportar (4 na União Europeia) e de 13 dias para o embarque – posição até razoável diante dos padrões globais (10 dias para as economias mais ricas da OCDE). Mas os custos são desastrosos: US$ 2.215 por contêiner, contra US$ 1.004 na União Europeia, US$ 980 no Chile e US$ 890 no Peru. Procedimentos (burocracia excessiva, por exemplo) e infraestrutura são alguns dos itens considerados.

Esses indicadores mostram apenas alguns dos entraves à eficiência. Um quadro completo incluiria vários outros fatores, como o fracasso dos investimentos públicos, as deficiências do transporte, os custos da segurança, o peso e a inadequação do sistema tributário e a situação desastrosa do ensino fundamental. Parte dos empresários e dos analistas prefere, no entanto, discutir a taxa de câmbio. Há quem defenda R$ 2,40 por dólar. Por quanto tempo? É uma atitude confortável para o governo, porque reforça o discurso contra os tsunamis monetários, justifica a solução simplista do protecionismo e torna mais aceitável a política dos incentivos parciais. Já começou a campanha por mais uma prorrogação do IPI reduzido. Para que perder tempo com assuntos de maior alcance?Por: Rolf Kuntz Fonte: O Estado de S. Paulo, 24/10/2012

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

UM OLHAR SOBRE 2013

Nas últimas semanas houve uma boa convergência nas expectativas para 2013. Vejamos os pontos mais relevantes.


O crescimento do final do ano corrente será algo mais lento do que o imaginado. É possível até que a expansão do quarto trimestre sobre o terceiro seja menor que a deste último sobre o segundo. O mesmo ocorre com a visão para 2013: os mais otimistas estão revisando seus números para a faixa de 3,5/4,0%.

Aqui na MB mantemos a projeção para a faixa de 3,0%/3,5% que mencionei nesta coluna no início de agosto ("2012 está perdido. O que será de 2013?").

Reafirma-se hoje que o canal externo não vai melhorar no próximo ano. Embora o risco de uma crise bancária tenha sido mais uma vez afastado pelo Banco Central Europeu, continuam em cena o baixo crescimento da região, o alto desemprego nos países devedores e um lento avanço nas reformas institucionais, que buscam elevar a integração europeia.

A economia americana ainda tem de atravessar seu precipício fiscal e a chinesa chegou, como esperado, aos 7,5% de expansão do PIB. Tudo somado, o mundo não deverá crescer mais que 3,5% em 2013. Com isto, expectativas e exportações seguirão fracas. No caso destas últimas, as coisas serão piores, dada nossa opção preferencial pelos perdedores da América do Sul, em especial a Argentina, pois devemos em especial ao protecionismo da presidente Kirchner a queda observada de 3,5% no quantum exportado de manufaturados, de janeiro a setembro deste ano em relação a 2011. Este é um tema que pretendo abordar proximamente.

A retomada do consumo também será mais lenta do que o desejado, por duas razões, pelo menos: os sucessivos estímulos à compra de veículos garantiram um desempenho razoável para a indústria neste ano. Entretanto, é evidente que parte do resultado é uma antecipação de consumo, que já está levando a uma desaceleração nas vendas. Ao mesmo tempo, tenho convicção de que a expansão de crédito pessoal nos bancos públicos está servindo muito mais para refinanciar um passivo já existente junto ao setor privado, do que novas compras, ao contrário do que ocorreu em 2008/2009. É por isso que o índice das expectativas do consumidor da FGV ainda não mostra melhora consistente até outubro.

Continua sendo verdade que os investimentos estão muito mal. Conforme cálculos da Inter.B Consultoria, que aqui já mencionei, as inversões em infraestrutura vêm caindo sistematicamente de 2,5% do PIB em 2009 para 1,96% neste ano, número incapaz de sustentar crescimento de alguma expressão. Notícias recorrentes de atrasos em grandes projetos, como a transposição do São Francisco, complementam-se com a recente avaliação feita pela Confederação Nacional dos Transportes, de uma sensível perda de qualidade nas estradas brasileiras nos dois últimos anos.

Na mesma direção, o conhecido trabalho realizado pelo Banco Mundial "Doing Business" mostra, na edição de 2013, uma piora expressiva na posição brasileira. Em dois anos caímos dez posições no ranking!

A decisão de conceder uma série de projetos para o setor privado é bem vinda. Entretanto, o sucesso destas ações depende de uma regulação adequada. Infelizmente, a experiência recente na área federal não é favorável, pela recorrência de dois problemas: excesso de objetivos e interferência em questões que devem ser resolvidas pelo concessionário e pelos mecanismos do leilão. Esses fatores explicam o insucesso da concessão de rodovias de 2007, a insatisfação com o modelo dos aeroportos e as dificuldades, que já mencionei aqui, da Petrobrás em atender simultaneamente os objetivos de elevar rapidamente a produção, com um bom padrão tecnológico, a preços parecidos com os internacionais e, ao mesmo tempo, com 60% de utilização de componentes nacionais. O resultado neste caso tem sido a estagnação da produção de petróleo, atrasos nos projetos, fenomenais estouros de orçamento e um enorme stress sobre a companhia.

O mesmo parece acontecer com o recente pacote elétrico, algo que deixamos para analisar mais adiante.

Estes três vetores sugerem que o crescimento de 3% a 3,5% para o ano que vem está de bom tamanho. Neste caso, a economia brasileira terá crescido apenas 2,4% ao ano entre 2011 e 2013.

Embora não exista, evidentemente, consenso, devo dizer que nunca vi tanta gente se convencendo que estamos presos numa armadilha de baixo crescimento, convicção que partilho já há algum tempo. De um lado, a expansão global deverá ser modesta, como se sabe. Ademais, vários analistas vêm chamando atenção para a forte desaceleração do desempenho econômico dos Brics, que pode ser mais tendencial do que apenas de curto prazo. A The Economist trouxe o declínio da África do Sul como tema de capa, argumentando que o baixo crescimento deve se manter por muito tempo. Também não é difícil construir casos semelhantes para a Rússia e para a Índia. Apenas na China, admite-se que a taxa de expansão de 7,5% ao ano possa ser mantida por mais tempo (aos interessados, sugiro a leitura do trabalho de Ruchir Sharma, do número de outubro da Foreign Affairs).

O caso brasileiro, entretanto, parece-me bem forte. Além do fator externo, há hoje uma grande convergência na aceitação de que temos baixíssima competitividade e um modestíssimo crescimento na produtividade. Como consequência, a expansão do Brasil se dá pela incorporação de mão de obra, que não só se tornou escassa, mas é pouco treinada para as necessidades da produção. Há também um vasto consenso que o nosso sistema educacional é paupérrimo e que tem avançado muito pouco. Ademais, apesar de todos os esforços, as empresas brasileiras são pouco inovadoras.

Argumenta-se, corretamente, que a queda na taxa de juros abre espaço para maior investimento. Entretanto, está para mim cada vez mais claro que a queda dos juros pagos pelo Tesouro Nacional será substituída, em larga medida, por maiores gastos de custeio, e não de investimento. Neste caso, parte significativa dos benefícios da queda da Selic se perderá, e o modesto crescimento da economia poderá continuar. Por: JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS  O Estado de S.Paulo - 28/10

A ORIGEM DAS MAZELAS DO BRASIL

A República Velha foi um período de crescimento pífio e muita confusão. Mas a principal característica do Brasil que deixava para trás o Império e a escravidão era o desconforto com o moderno e com a mudança — um tema pra lá de recorrente ao longo da história brasileira.


Sobre essa época, o jornalista Euclides da Cunha diria que o país vivia “num ambiente completamente fictício de uma civilização de empréstimo”. Mais ao final da primeira fase da República, uma resenha diria tratar-se da “história de uma longa e persistente desilusão”.

Essas observações descrevem com precisão o que se passou com a economia nesses anos e fornecem pistas sobre o Brasil de hoje. Não conseguimos ter crescimento econômico — no perío­do, a média anual foi inferior a 1%. Pior: em quatro décadas, aprofundamos a distância que nos separava de outras nações.

Em 1890, a Argentina era 2,7 vezes mais rica do que o Brasil. Em 1930, era 3,8 vezes mais próspera. Na comparação com os Estados Unidos, o número saiu de 4,2 para 5,9. “Nosso mal tem sido este: quisemos ter estátuas, academias, ciência e arte, antes de ter cidades, esgotos, higiene, conforto”, disse o poeta Olavo Bilac em 1903.

Exemplos extraordinários da desconexão entre o Brasil profundo e a minoria educada que conduzia os destinos do país não faltaram. O desafio da modernidade se transformou em conflito com Antônio Conselheiro e a Guerra de Canudos no final do século 19.

Logo em seguida, veríamos a Revolta da Vacina, detonada por uma campanha de erradicação da varíola e pela remoção de casas no centro do Rio de Janeiro. O Brasil era um país de excluídos inclusive na política. De uma população que atingiu 33 milhões em 1930, menos de 100 000 votavam — e os pleitos eram quase totalmente dominados por fraudes.

Na economia, o tema recorrente era o padrão ouro, ou a conversibilidade da moeda a uma sempre polêmica taxa de paridade. Como o sistema métrico decimal, a eletricidade e as largas alamedas próprias das grandes cidades, o padrão ouro era a credencial para que um país participasse de uma economia internacional em grande expansão, processo semelhante ao que hoje denominamos globalização.

O acalorado debate sobre o assunto nada mais era do que uma discussão sobre as políticas cambial e monetária, sobre a organização e o mandato da autoridade monetária — o que pode haver de mais atual? O que pode haver de mais familiar do que a queixa contra o câmbio valorizado?

Em vários sentidos, a primeira década republicana foi um espantoso prenúncio para todo o século que viria logo a seguir. Antes de completar dois anos de idade, a República foi atingida por uma dessas crises financeiras do mundo globalizado. Sua origem estava na Argentina, mas as dificuldades que criava em Londres paralisavam os influxos de capital para o Brasil.

O que se vê em seguida no país é uma crise cambial, logo transformada em crise bancária de dimensões sistêmicas. Surge, então, uma longa discussão sobre o salvamento de vários bancos, entre os quais o que depois se tornaria o Banco do Brasil. Por fim, a década termina com uma dolorosa renegociação da dívida externa, bem no contexto de um programa como os patrocinados pelo FMI em nossos dias.

Ao fim da primeira fase republicana, já era claro que os grandiosos sonhos de modernização e progresso eram somente isto: sonhos. Em 1926, as autoridades brasileiras usaram a criatividade e combinaram o padrão ouro (portanto, câmbio fixo) com operações de compra de estoques excedentes de café, numa espécie de reprise de 1906. Tudo com o objetivo de manter os preços e alcançar percentuais de crescimento mais altos. No total, no entanto, esses mecanismos não duraram muito.

Nos anos posteriores a 1930, as taxas de crescimento do país foram bem maiores, e já se pode falar em industrialização por substituição de importações. Esse bom desempenho ocorrido enquanto a economia internacional se desagregava após a crise de 1929 resultou num enigma: como pudemos crescer tão pouco durante a época mais próspera da economia internacional, quando mais se acentuou a globalização, e acelerar substancialmente o crescimento no momento em que essa ordem internacional entrou em colapso?

Esse enigma acabou resultando na formulação de várias teorias sobre o caráter perverso da ordem econômica internacional. A “dependência” e as “assimetrias” do mundo anterior a 1930 rapidamente se tornaram maldições e, tacitamente, estabeleceu-se uma relação causal entre crescimento e nacionalismo, cuja expressão mais completa foi a substituição de importações e a busca da autossuficiência, ideias ainda hoje muito caras a certos economistas e políticos brasileiros.

O mal-estar com a modernidade e, sobretudo, com uma de suas mais diletas criaturas, a globalização, encontrou apoio nesses conceitos. Mais adiante, porém, quando o mundo retomou e aprofundou a globalização, ficou claro que o grau de abertura de um país era um componente crucial para seu crescimento — não o contrário.

Um encontro com o passado
O pífio crescimento econômico registrado nesses anos foi consequência direta de conhecidos fatores internos nos­sos. Claramente faltou investimento em capital humano. No Brasil, os níveis de analfabetismo e mortalidade infantil foram altos do começo ao fim da Velha República.

Isso num período em que vários outros países registraram “milagres” em matéria de crescimento econô­mi­co justamente por terem investido nessa área, além, claro, de terem aplicado em infraestrutura e construído insti­tui­ções próprias de uma economia de mercado. O estudo da história na Primeira República parece confirmar a sabedoria de uma observação do economista Roberto Cam­pos, morto em 2001, segundo a qual, no Brasil, “é menos importante ter explicações do que bodes expiatórios”.

Durante muitos anos, a culpa pelo nosso atraso foi creditada ao mundo exterior, que supostamente havia roubado nossos tesouros e nos condenado a uma condição subordinada numa ordem internacional de caráter perverso. O professor Mario Henrique Simonsen, ministro da Fazenda nos anos 70, morto em 1997, tinha uma sábia observação sobre a natureza das perversidades econômicas.

Quando se discutia se a inflação brasileira tinha caráter financeiro ou inercial, ele sempre lembrava: “Inflação não tem caráter”. O mesmo pode ser dito a respeito da história econômica da Primeira República. Quem procurar assimetrias e injustiças ensejadas pela ordem internacional da época da Pax Britanica ou da Belle Époque não encontrará coisa alguma. Essa parte de nossa história, tal como a inflação, não teve nenhum caráter. 
Por: Gustavo H. B. Franco Fonte: revista “Exame”

domingo, 28 de outubro de 2012

A RELIGIÃO DO MOMENTO

CARO IRMÃO, você que está vivendo uma situação desesperadora, que se sente esgotado, estressado, sem saída, eis aqui um convite. Junte-se a nós, dê uma chance ao poder divino da política, venha descobrir que o Estado pode salvar a sua vida.

O jovem cheio de esperança, a senhora solitária que veio até aqui nos conhecer, tenham certeza que há um candidato olhando para vocês, um vereador proibindo alguma coisa na cidade, uma presidente com poder e sabedoria guiando o país.
É verdade, irmãos, que os últimos tempos não têm favorecido a crença no Estado. Há séculos pregamos que a educação, a saúde e o transporte público vão funcionar, e o que vemos são enfermeiras de postos de saúde injetando café com leite na veia de senhoras idosas.
Apesar disso, irmãos, o Estado nos pede que ignoremos esses problemas e perseveremos na fé -a fé de que um dia algum político nos conduzirá a um reino de paz e justiça social.
Irmãos, a mensagem mais importante a vocês é sobre dois graves riscos que nós corremos nas eleições deste domingo. O primeiro deles é que religiões influenciem a disputa para a chefia de nossos alvíssimos palácios. Isso é um absurdo, irmãos!
Religiões se baseiam em mundos imaginários, irmãos! Em ideias obscuras! Nós, ao contrário, lidamos com o mundo real! Com princípios científicos! Por exemplo, quando almejamos postos de saúde com a mesma qualidade dos melhores hospitais particulares, ou bancos estatais livres da influência de partidos: é a realidade, senhores! Nossos sonhos são perfeitamente realistas, irmãos!
A outra ameaça é eleger sacerdotes que não creem nos poderes do Estado. Gritem comigo: eles são hereges! Eles são demônios! Eles são neoliberais! Querem privatizar a Entidade Nacional do Reino Estatal! Precisamos atirá-los nos calabouços das derrotas eleitorais, irmãos!
Calma, senhora, não precisa jogar cheques e notas em nossos pés. Os sacerdotes fiscais já trataram de reter parte de seu salário e embutir nos preços do mercado a taxa de manutenção de nossas obras divinas. O valor está passando um pouco do dízimo -beira 40% de sua renda- mas acredite, minha senhora: todo ele é destinado ao bom caminho, à construção do paraíso escandinavo, ao poder infinito e sagrado do Estado.
Leandro Narloch jornalista e autor de "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil" e coautor de "Guia Politicamente Incorreto da América Latina".

A ÉTICA ROTHBARDIANA


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O problema da ordem social


Robinson Crusoé, sozinho em sua ilha, pode fazer o que ele quiser. Para ele, problemas relativos a regras de conduta humana pacífica — cooperação social — simplesmente não existem. Evidentemente, esses problemas só podem surgir no momento que uma segunda pessoa, Sexta-feira, chegar na ilha. Mas mesmo assim os problemas permanecem irrelevantes enquanto não houver nenhumaescassez. Suponha que a ilha seja o Jardim do Éden. Todos os bens externos estão disponíveis em superabundância. Eles são "bens livres", do modo que o ar que respiramos normalmente é um bem "livre". Qualquer coisa que Crusoé fizer com estes bens não terá nenhuma repercussão sobre seu próprio estoque futuro destes bens, nemsobre o estoque presente ou futuro dos mesmos bens para Sexta-feira (e vice-versa). Consequentemente, é impossível que ocorra um conflito entre Crusoé e Sexta-feira relativo ao uso destes bens. A possibilidade de um conflito passa a existir somente quando os bens são escassos, e apenas assim pode surgir um problema de formular regras que tornem possível uma cooperação social pacífica — sem conflitos.

No Jardim do Éden só existem dois bens escassos: o corpo de uma pessoa e o local que ela está. Crusoé e Sexta-feira possuem apenas um corpo cada um e podem ocupar apenas um lugar ao mesmo tempo. Logo, mesmo no Jardim do Éden podem surgir conflitos entre Crusoé e Sexta-feira: eles não podem querer ocupar simultaneamente o mesmo local sem se envolverem em um conflito físico. Assim sendo, até mesmo no Jardim do Éden devem existir regras de conduta social pacífica — regras relativas ao posicionamento e movimento apropriados dos corpos humanos. E fora do Jardim do Éden, no mundo da escassez, deve haver regras que regulem não apenas o uso dos corpos das pessoas, mas de tudo que seja escasso, de modo que todos os conflitos possíveis possam ser eliminados. Este é o problema da ordem social.

A solução do problema: a ideia da apropriação original e da propriedade privada

Na história do pensamento político e social muitas propostas foram oferecidas como supostas soluções para o problema da ordem social, e esta variedade de propostas mutuamente inconsistentes contribuiu para o fato de que hoje em dia a busca por uma única resposta "correta" para o problema seja frequentemente considerada ilusória. Ainda assim, como tentarei demonstrar, existe uma solução correta; e portanto, não há motivos para sucumbir ao relativismo moral. Não fui eu quem descobriu esta solução, nem, a propósito, Murray Rothbard. Na verdade, a solução já é essencialmente conhecida há centenas de anos, se não forem milhares. A fama dada a Murray Rothbard é "meramente" porque ele redescobriu esta antiga e também simples solução e a formulou de maneira mais clara e convincente do que qualquer um antes dele.

Deixe-me começar a formular a solução — primeiramente para o caso especial representado pelo Jardim do Éden e subsequentemente para o caso geral representado pelo mundo "real" de escassez generalizada — e então proceder para a explicação de como esta solução, e nenhuma outra, é correta.

No Jardim do Éden, a solução é fornecida pela simples regra que estipula que todos podem colocar ou mover seu próprio corpo onde quiser, contanto que nenhum outro já esteja ali ocupando o mesmo lugar. E fora do Jardim do Éden, no mundo da escassez generalizada, a solução é fornecida pela seguinte regra: Todos são os devidos donos de seus próprios corpos e também de todos os lugares e bens dados pela natureza que ocupem e coloquem em uso por meio de seus corpos, contanto apenas que nenhum outro já tenha ocupado ou colocado em uso os mesmos lugares e bens antes dele. Esta propriedade de lugares e bens "originalmente apropriados" por uma pessoa implica em seu direito de usar e transformar estes lugares e bens da maneira que eles acharem apropriada, contanto que com isso ela não altere sem permissão a integridade física de lugares ou bens originalmente apropriados por outra pessoa. Particularmente, uma vez que um lugar ou bem tenha sido primeiramente apropriado através da, nas palavras de John Locke, "mistura do próprio trabalho" com eles, a propriedade sobre estes lugares e bens pode ser adquirida somente através de uma transferência voluntária — contratual — de seu título de propriedade de um dono anterior para um posterior.

Considerando o predominante relativismo moral, vale a pena ressaltar que esta ideia de apropriação original e propriedade privada como uma solução ao problema da ordem social está em pleno acordo com nossa "intuição" moral. Seria por acaso um absurdo afirmar que uma pessoa não deveria ser a devida dona de seu corpo e dos lugares e bens que ela originalmente, i.e., antes de qualquer outra pessoa, se apropria, usa e/ou produz por meio de seu corpo? Pois quem mais, se não ela, deveria ser sua dona? E não é também óbvio que a esmagadora maioria das pessoas — incluindo crianças e homens primitivos — de fato age conforme estas regras, e o fazem sem questionar e de forma natural?

No entanto, uma intuição moral, por mais importante que seja, não é uma prova. Porém, também existe prova de que nossa intuição moral está correta.

A prova pode ser apresentada em duas etapas. Por um lado, explicando claramente as consequências que se seguem caso alguém fosse negar a validade da instituição da apropriação original e da propriedade privada: Se uma pessoa, A, não fosse a dona de seu próprio corpo e dos lugares e bens originalmente apropriados e/ou produzidos com este corpo como também dos bens adquiridos voluntariamente (contratualmente) de outro dono anterior, então apenas duas alternativas existem. Ou outra pessoa, B, deve ser reconhecida como a dona do corpo de A, bem como dos lugares e bens apropriados, produzidos ou adquiridos por A. Ou todas as pessoas, A eB, devem ser consideradas coproprietárias iguais de todos os corpos, lugares e bens.

No primeiro caso, A seria reduzido ao posto de escravo de B e seria seu objeto de exploração. B é o dono do corpo de A e dos lugares e bens apropriados, produzidos e adquiridos por A, mas A por sua vez não é o dono do corpo de B e dos lugares e bens apropriados, produzidos e adquiridos por B. Consequentemente, sob esta regra duas classes categoricamente distintas de pessoas são constituídas — Untermenschen assim como A eÜbermenschen assim como B — para as quais diferentes "leis" se aplicam. Assim sendo, tal regra deve ser descartada por não ser uma ética humana igualmente aplicável a todos qua seres humanos (animal racional). Logo de cara, pode-se perceber que qualquer regra deste tipo não é universalmente aceitável e, portanto não pode reivindicar representar a lei. Porque para uma regra ser considerada uma lei — uma regra justa — é necessário que esta regra se aplique igual e universalmente a todos.

Alternativamente, no segundo caso de copropriedade igual e universal o requerimento de lei igual para todos é preenchido. No entanto, esta alternativa sofre de outra deficiência ainda mais severa, porque se ela fosse aplicada, toda a raça humana iria perecer instantaneamente. (E uma vez que toda ética humana deve permitir a sobrevivência da raça humana, esta alternativa, então, deve ser rejeitada também.) Pois se todos os bens fossem copropriedade de todos, então ninguém, em momento ou lugar algum, teria permissão de fazer qualquer coisa a menos que ele tenha obtido previamente o consentimento de todos os outros coproprietários; e ainda, como alguém poderia dar tal consentimento se ele não fosse o dono exclusivo de seu próprio corpo (incluindo suas cordas vocais) através do qual seu consentimento deve ser expressado? Na verdade, ele iria precisar primeiro do consentimento dos outros para poder expressar seu próprio, mas esses outros não podem dar seus consentimentos sem ter o dele primeiro etc.

Este insight sobre a impossibilidade praxeológica do "comunismo universal", como Rothbard se referiu a esta proposta, me leva imediatamente a uma segunda maneira alternativa de demonstrar a ideia de apropriação original e de propriedade privada como a única solução correta para o problema da ordem social. Se as pessoas possuem ou não direitos e, se possuem, quais são eles, só pode ser decidido no curso de uma argumentação (trocas proposicionais). Uma justificação — prova, conjectura, refutação — é uma justificação argumentativa. Qualquer um que tentasse negar essa proposição se veria envolvido em uma contradição performática, pois sua própria negação constituiria um argumento. Mesmo um relativista ético, portanto, deve aceitar esta primeira proposição, que tem sido adequadamente chamada de a priori da argumentação. 

Desta aceitação inegável — a condição axiomática — deste a priori da argumentação, duas conclusões sucessivas igualmente necessárias se seguem. A primeira deriva-se do a priori da argumentação quando não existe solução racional para o problema de conflitos que surgem a partir da existência da escassez. Suponha que naquela situação que descrevi do Crusoé e do Sexta-feira, Sexta-feira não fosse o nome de um homem, mas sim de um gorila. Obviamente, do mesmo modo que Crusoé pode entrar em conflitos relativos a seu corpo e o lugar que ele se encontra com o homem Sexta-feira, ele também pode com o gorila Sexta-feira. O gorila pode tentar ocupar o mesmo espaço que Crusoé já ocupa. Neste caso, contanto que o gorila seja o tipo de criatura que conhecemos como gorila, de fato não existe nenhuma solução racional para o conflito deles. Ou o gorila vence, e devora, esmaga ou expulsa Crusoé do local — esta é a solução do gorila para o problema — ou Crusoé vence, e mata, bate, expulsa ou doma o gorila — esta é a solução de Crusoé. Nesta situação, é de fato possível se falar em relativismo moral. Assim como fez Alasdair MacIntyre, um proeminente filósofo da vertente relativista, é possível fazer coro a ele na questão título de um de seus livros, Justiça de Quem? Qual Racionalidade? — do Crusoé ou do gorila. Dependendo de qual lado se escolhe, a resposta será diferente. No entanto, é mais apropriado se referir a essa situação como sendo uma em que a questão da justiça e da racionalidade simplesmente não surge: ou seja, como uma situação extra moral. A existência do gorila Sexta-feira simplesmente configura um problema técnico para Crusoé, não um problema moral. Crusoé não tem outra escolha a não ser aprender como conseguir administrar e controlar os movimentos do gorila, do mesmo modo que ele tem que aprender a administrar e controlar objetos inanimados de seu ambiente.

Por consequência, somente se as duas partes de um conflito forem capazes de argumentarem entre si, é possível se falar em um problema moral e existe a questão de poder haver ou não uma solução significativa. Somente se Sexta-feira, independentemente de sua aparência física (i.e., se ele parece um homem ou um gorila), for capaz de argumentar (mesmo que ele tenha mostrado ser capaz apenas uma vez), ele pode ser considerado racional e a questão de existir ou não uma solução correta para o problema da ordem social passa a fazer sentido. Não se pode esperar que seja dada uma resposta — na verdade: qualquer resposta — a alguém que jamais fez uma pergunta, ou, mais precisamente, que jamais tenha expressado sua própria opinião relativista na forma de um argumento. Neste caso, este "outro" só pode ser considerado um, e tratado como, animal ou uma planta, i.e., como uma entidade extra moral. Somente se esta outra entidade puder, em princípio, interromper sua atividade, seja ela qual for, recuar e responder "sim" ou "não" a algo que alguém tenha dito, nós devemos uma resposta a essa entidade e, conforme for, temos a possibilidade de reivindicar que nossa resposta seja a correta para as duas partes envolvidas em um conflito.

Além disso, positivamente o que também se segue do a priori da argumentação é que tudo aquilo que deve ser pressuposto no curso de uma argumentação — como precondições lógicas e praxeológicas da argumentação — não pode, por sua vez, ter sua validade argumentativamente contestada sem envolver, por conta disso, uma contradição interna (performática). Todavia, trocas proposicionais não são constituídas por proposições flutuando sozinhas pelo ar, e sim constituem atividades humanas específicas. Argumentação entre Crusoé e sexta-feira requer que ambos possuam, e mutuamente reconheçam um ao outro como possuidores de, controle exclusivo sobre seus respectivos corpos (seus cérebros, cordas vocais etc.) bem como do lugar ocupado por seus corpos. Ninguém poderia propor alguma coisa e esperar que a outra parte se convença sobre a validade de sua proposição ou então a negue e proponha outra coisa, a não ser que o direito de controle exclusivo dele e de seu oponente sobre seus respectivos corpos e locais já fosse pressuposto e assumido como válido. Na verdade, é precisamente este reconhecimento mútuo da propriedade do proponente e também do seu oponente sobre seus próprios corpos e locais que constitui o characteristicum specificum de toda disputa proposicional: que enquanto alguém possa não concordar com a validade de alguma proposição específica, contudo alguém pode concordar com o fato que alguém discorde.

Além disso, o direito de propriedade sobre o próprio corpo e o lugar que esteja deve ser considerado justificadoa priori (ou indiscutivelmente) pelo proponente e igualmente pelo oponente. Pois qualquer um que queira reivindicar a validade de alguma proposição vis-à-vis um oponente, já teria ter que pressupor os controles exclusivos dele e de seu oponente sobre seus respectivos corpos e lugares apenas para dizer "Eu reivindico que isto e aquilo são verdadeiros, e duvido que prove que eu esteja errado".

Além do mais, seria igualmente impossível se envolver em uma argumentação e contar com a força proposicional de seu argumento, se não fosse permitido que você possuísse (controle exclusivo) outros meios escassos (além do seu próprio corpo e do local que se encontra). Pois se não possuíssemos estes direitos, então todos nós iríamos morrer e o problema de se justificar regras — bem como todos os outros problemas humanos — simplesmente não existiria. Portanto, em virtude do fato de se estar vivo, direitos de propriedade sobre outras coisas devem ser pressupostos como válidos, também. Ninguém que está vivo poderia argumentar o contrário.

E se não fosse permitido que uma pessoa adquirisse propriedade sobre estes bens e espaços por meio de um ato de apropriação original, i.e., estabelecendo um elo objetivo (intersubjetivamente averiguável) entre ele e um bem e/ou espaço específicos antes de qualquer outra pessoa, mas se, ao invés disso, a propriedade sobre bens ou espaços fosse concedida a quem chegasse depois, então não seria permitido a ninguém jamais começar a usar qualquer bem a não ser que ele tenha previamente obtido o consentimento destes que chegariam depois. No entanto, como alguém que chegasse depois pode consentir com as ações de alguém que chegou antes? Além disso, todos os que chegassem depois, por sua vez, precisariam do consentimento dos que chegariam ainda depois deles, e assim por diante. Ou seja, nem nós, nem nossos antepassados ou nossa prole teriam conseguido ou conseguiriam sobreviver se esta regra fosse seguida. Porém, para que uma pessoa — passada, presente ou futura — argumente qualquer coisa ela deve obviamente ser capaz de sobreviver aqui e agora; e para fazer apenas isso, direitos de propriedade não podem ser concebidos como sendo atemporais e indefinidos em relação ao número de pessoas envolvidas.

Mais precisamente, direitos de propriedade devem ser concebidos como originados por ações em pontos específicos no tempo e no espaço por indivíduos específicos. Se não, seria impossível que qualquer pessoa dissesse qualquer coisa em um ponto e espaço específicos, e que qualquer outra pessoa pudesse responder. Então, meramente dizer que a regra do primeiro-usuário-primeiro-proprietário da ética da propriedade privada possa ser ignorada ou é injustificável, implica em uma contradição performática, à medida que alguém ser capaz de dizer isso deve estar presuposta a existência desse alguém como uma unidade tomadora de decisões independente em um dado ponto do tempo e do espaço.

Solução simples, conclusões radicais: anarquia e estado

De tão simples que é a solução do problema da ordem social e de tanto que as pessoas, no seu dia a dia, intuitivamente reconhecem e agem de acordo com a ética da propriedade privada que acaba de ser explicada, esta solução simples e complacente acaba implicando em algumas conclusões surpreendentemente radicais. Pois, além de rejeitar por serem injustificáveis atividades como assassinato, homicídio, estupro, invasão, roubo, assalto, arrombamento e fraude, a ética da propriedade privada também é incompatível com a existência de um estado, definido como uma agência que possui um monopólio territorial compulsório de supremo tomador de decisões (jurisdição) e/ou o direito de cobrar impostos.

A teoria política clássica, ao menos a partir de Hobbes, enxergou o estado como a própria instituição responsável pelo cumprimento da ética da propriedade privada. Ao considerar o estado injusto — na verdade, considerar "uma grande organização criminosa" — e chegando a conclusões anarquistas, Rothbard obviamente não negou a necessidade de se fazer cumprir a ética da propriedade privada. Ele não compartilhou a visão daqueles anarquistas, ridicularizados por Mises, seu professor e mentor, que acreditavam que todas as pessoas, se apenas fossem deixadas em paz, seriam criaturas boas e pacíficas.

Ao contrário, Rothbard concordou plenamente com Mises que sempre existirão assassinos, ladrões, bandidos, vigaristas etc., e que a vida em sociedade seria impossível se eles não fossem punidos através da força física. Ao invés disso, o que Rothbard negou categoricamente foi a alegação de que a partir do direito e da necessidade de proteção da pessoa e da propriedade segue-se que a proteção deveria legitimamente, ou poderia efetivamente, ser fornecida por um monopolista de jurisdição e de tributação. A teoria política clássica, ao alegar isso, teve que apresentar o estado como o resultado de um acordo contratual entre detentores de propriedade privada. No entanto, explica Rothbard, isso era falso e seria uma incumbência impossível. Não é possível que um estado surja contratualmente, e correspondentemente é possível demonstrar que nenhum estado é compatível com a proteção legítima e efetiva da propriedade privada.

A posse de propriedade privada, como o resultado de atos de apropriação original, produção ou troca realizada entre um dono anterior e um posterior, implica no direito do dono à jurisdição exclusiva sobre sua propriedade; e não é possível que um dono de propriedade privada abra mão deste direito de jurisdição suprema sobre sua propriedade e do direito de defesa física desta propriedade e o entregue a outra pessoa — a menos que ele venda ou transfira de outra forma sua propriedade (e neste caso outra pessoa possuiria a jurisdição exclusiva sobre ela). Sem dúvida, todo dono de propriedade privada pode compartilhar as vantagens da divisão do trabalho e buscar mais ou melhor proteção para sua propriedade através da cooperação com outros donos e suas propriedades. Ou seja, todo dono de propriedade privada pode comprar de, vender para, ou de outra forma fechar um contrato com, qualquer outra pessoa, concernente a mais ou melhor proteção da propriedade. Mas todo dono de propriedade também pode, a qualquer hora, unilateralmente cancelar qualquer dessas cooperações com outros, ou alterar suas respectivas filiações. Portanto, para que a demanda por proteção possa ser satisfeita, seria legitimamente possível e é economicamente provável que surgissem indivíduos e agências especializados que forneceriam proteção, seguro e serviços de arbitragem por uma taxa à clientes pagantes voluntários.

No entanto, se é fácil conceber a origem contratual de um sistema de fornecedores de segurança concorrentes, é impossível conceber como donos de propriedade privada poderiam assinar um contrato que designe a outro agente irrevogavelmente (eternamente válido) o poder de supremo tomador de decisões relativas a sua própria pessoa e propriedade e/ou o poder de tributar. Ou seja, é inconcebível como alguém poderia algum dia concordar com um contrato que permitisse que outra pessoa determinasse permanentemente o que ele pode ou não pode fazer com sua propriedade; pois ao fazer isso esta pessoa estaria efetivamente se tornando indefessa vis-à-vis este supremo tomador de decisões. E é igualmente inconcebível como alguém poderia alguma vez concordar com um contrato que permitisse que um protetor determinasse unilateralmente, sem o consentimento do protegido, o quanto o protegido deve pagar por sua proteção.

Teóricos políticos ortodoxos, i.e., estatistas, de John Locke a James Buchanan e John Rawls, tentaram solucionar este problema fazendo uso do expediente de constituições estatais, acordos ou contratos "tácitos", "implícitos" ou "conceituais". No entanto, todas estas tentativas tipicamente sinuosas e confusas, apenas suplementaram a mesma conclusão inevitável descrita por Rothbard: Que é impossível derivar uma justificativa para o governo a partir de contratos explícitos entre donos de propriedade privada, e, consequentemente, que a instituição do estado deve ser considerada injusta, i.e., o resultado de um erro moral.

A consequência do erro moral: estatismo e a destruição da liberdade e da propriedade

Todo erro tem um custo. Isto é mais óbvio quando se tratam de erros referentes as leis da natureza. Se uma pessoa erra em relação as leis da natureza, esta pessoa não conseguirá alcançar seus objetivos. Porém, como o fracasso em alcançar objetivos deve ser arcado por cada indivíduo que errou, prevalece neste campo um desejo universal de aprender e corrigir os próprios erros. Erros morais também têm seu custo. Mas diferentemente do caso anterior, seu custo não precisa, ao menos não necessariamente, ser arcado por cada uma das pessoas que comente o erro. Na verdade, este seria o caso somente se o erro em questão fosse o de se acreditar que todo mundo teria o direito de tributar e o de ser o supremo tomador de decisões relativas a pessoa e a propriedade de todos os outros. Uma sociedade em que os membros acreditassem nisso estaria condenada. O preço a se pagar por este erro seriam a morte e a extinção universal. No entanto, a questão é nitidamente diferente se o erro envolvido é o de se acreditar que apenas uma agência — o estado — possui o direito de tributar e o de ser o supremo tomador de decisões (ao invés de todo mundo, ou então, e corretamente, de ninguém). Uma sociedade em que os membros acreditem nisso — isto é, que deve existir leis diferentes aplicadas de forma desigual a mestres e servos, tributadores e tributados, legisladores e legislados — pode de fato existir e perdurar. Este erro deve ser arcado também. Mas nem todos que o cometem devem pagar igualmente por ele. Ao invés disso, algumas pessoas terão que pagar por ele, enquanto outras — os agentes do estado — na realidade se beneficiam do mesmo erro. Portanto, neste caso seria errado assumir um desejo universal de aprender e corrigir seus erros. Pelo contrário, neste caso deverá se assumir que algumas pessoas, ao invés de aprender e promover a verdade, possuem uma motivação constante para mentir, i.e., para manter e promover inverdades mesmo se eles souberem da verdade.

De qualquer modo, quais são as consequências "embaralhadas" e qual é o preço desigual a ser pago por se cometer esse erro e/ou mentira de se acreditar na justiça da instituição de um estado?

Uma vez que o princípio do governo — monopólio judicial e poder de tributar — seja incorretamente admitido como justo, qualquer noção de restrição do poder do governo e de salvaguarda da propriedade e liberdade individuais se torna ilusória. Ao contrário, sob auspícios monopolistas o preço da justiça e da proteção aumentarão continuamente e a qualidade cairá. Uma agência de proteção financiada por impostos é uma contradição em termos — um protetor de propriedade expropriador — e inevitavelmente resultará em mais impostos e menos proteção. Mesmo que, assim como alguns estatistas — liberais clássicos — propuseram, um governo limitasse suas atividades exclusivamente a proteção de direitos de propriedade pré-existentes, a questão adicional de quanto de segurança deveria ser produzida iria surgir. Motivado (como qualquer um seria) pelos próprios interesses e pela desutilidade do trabalho, mas dotado do singularíssimo poder de tributar, a resposta de um agente do governo será invariavelmente a mesma: Maximizar os gastos com proteção — e praticamente toda a riqueza de uma nação pode concebivelmente ser gasta em proteção — e ao mesmo tempo minimizar a produção de proteção. Quanto mais dinheiro se puder gastar e quanto menos se precisar trabalhar para produzir, melhor será.

Além disso, um monopólio judicial inevitavelmente levará a uma constante deterioração da qualidade da justiça e da proteção. Se ninguém pode apelar a justiça que não seja a do governo, a justiça será pervertida em favor do governo, não obstante constituições e supremos tribunais. Constituições e supremos tribunais são constituições e agências estatais, e quaisquer limitações a ação estatal que eles contenham ou julguem, serão invariavelmente decididas por agentes da própria instituição sub judice. Previsivelmente, as definições de propriedade e proteção serão continuamente alteradas e o âmbito da jurisdição continuamente expandido em favor do governo até que, finalmente, a noção de direitos humanos imutáveis e universais — e, em particular, de direitos de propriedade — desaparecerá e será substituída por uma noção de leis sendo legislações criadas pelo governo e direitos sendo concessões dadas pelo governo.

Os resultados, todos eles previstos por Rothbard, estão diante de nossos olhos, para que todos possam vê-los. A carga de impostos que incide sobre proprietários e produtores tem crescido continuamente, fazendo com que até mesmo o fardo econômico suportado por escravos e servos pareça moderado se comparado ao atual. Os déficits do governo — e, portanto, futuras obrigações tributárias — têm subido a alturas de tirar o fôlego. Todos os pormenores da vida privada, da propriedade, comércio e contrato são regulados por montanhas cada vez maiores de legislações burocráticas. Todavia, a única tarefa que o governo supostamente deveria assumir — a de proteger nossa vida e propriedade — não é desempenhada por ele. Ao contrário, quanto mais tem aumentado o gasto em segurança social, pública e nacional, mais têm sido corroídos nossos direitos de propriedade privada, mais nossa propriedade tem sido expropriada, confiscada, destruída e depreciada. Quanto mais legislações burocráticas são produzidas, mais incertezas legais e riscos morais têm sido criados, e mais a ilegalidade tem substituído a lei e a ordem. Ao invés de proteger do crime doméstico e do agressor estrangeiro, o governo dos E.U.A., por exemplo, munido de enormes quantidades de armas de destruição em massa, ataca qualquer suposto candidato a novo Hitler em qualquer parte do mundo fora de "seu próprio" território. Em suma, ao passo que ficamos cada vez mais indefesos, empobrecidos, ameaçados e inseguros, os governantes estatais se tornam progressivamente mais corruptos, arrogantes e perigosamente armados.

A restauração da moralidade: libertação

Então, o que se pode fazer? Rothbard não apenas reconstruiu a ética da liberdade e explicou o atual lamaçal resultante do estatismo, como também nos mostrou o caminho que devemos trilhar a fim de restaurar a moralidade.

Primeiro e mais importante de tudo, ele explicou que os estados, não importa o quão poderoso e invencível ele aparente ser, devem sua existência fundamentalmente as ideias e, uma vez que em princípio ideias podem mudar instantaneamente, os estados podem esfacelar-se e ser derrubados praticamente da noite para o dia.

Sempre e em qualquer lugar, os representantes do estado são apenas uma pequena minoria da população que eles governam. A razão disto é tão simples quanto é fundamental: cem parasitas podem viver confortavelmente se eles sugarem o sangue de mil hospedeiros produtivos, mas mil parasitas não podem viver confortavelmente dependendo de uma população de apenas uma centena de hospedeiros. Mas se os agentes do governo são meramente uma pequena minoria da população, como eles conseguem impor suas vontades sobre a população e ainda se safar? A resposta dada por Rothbard, e também por la Boétie, Hume e Mises antes dele, é: somente graças a cooperação voluntária da maioria da população subalterna com o estado. Porém, como o estado pode assegurar tal cooperação? A resposta é: somente porque, e a medida em que, a maioria crê na legitimidade do poder estatal. Isto não quer dizer que a maioria da população deva concordar com cada uma das medidas do estado. Na verdade, ela pode muito bem acreditar que muitas das políticas estatais são erradas ou mesmo desprezíveis. No entanto, a maioria da população deve crer na justiça da instituição do estado como tal, e, consequentemente, que mesmo que um governo em particular cometa erros, estes erros são meramente acidentais e devem ser aceitos e tolerados em vista de algum bem maior provido pela instituição do governo.

Todavia, como pode a maioria da população ser levada a acreditar nisso? A resposta é: com a ajuda dos intelectuais. Nos tempos antigos isso significava tentar formar uma aliança entre o estado e a igreja. Nos tempos modernos, e de forma muito mais efetiva, isso significa utilizar a nacionalização (socialização) da educação: através de escolas e universidades geridas ou subsidiadas pelo estado. A demanda que existe no mercado pelos serviços dos intelectuais, em particular na área das ciências humanas e sociais, não é exatamente alta e nem um pouco estável ou segura. Os intelectuais estariam a mercê dos valores e das escolhas das massas, e as massas geralmente não se interessam por assuntos filosófico-intelectuais. O estado, por outro lado, aponta Rothbard, favorece seus egos tipicamente hiperinflados e "está disposto a oferecer aos intelectuais um nicho seguro e permanente no seio do aparato estatal; e, consequentemente, um rendimento certo e um arsenal de prestígios". E de fato, o estado democrático moderno em particular, criou uma massiva superoferta de intelectuais.

Este favorecimento logicamente não garante ideias "corretas" — estatistas —, e por mais que eles sejam muito bem pagos, os intelectuais continuarão reclamando do quão pouco seu "tão importante" trabalho é reconhecido. Mas certamente, algo que ajuda a chegar as conclusões "corretas" é perceber que sem o estado — a instituição de tributação e legislação — seu trabalho estaria seriamente ameaçado e ele poderia ser obrigado a ter que sujar as mãos no trabalho braçal de frentista ao invés de se preocupar com problemas prementes como alienação, desigualdade, exploração, a desconstrução da diferenciação dos sexos, ou a cultura dos Tupis Guaranis, dos Zulus e dos Esquimós. E mesmo que um deles se sinta desprestigiado por este ou aquele governo constituído, ele percebe que uma ajuda só pode vir de outro governo, e certamente não de um ataque intelectual contra a legitimidade da instituição do governo como tal. Portanto, não é nada surpreendente que, constatando-se um fato empírico, a imensa maioria dos intelectuais contemporâneos é pra lá de esquerdista, e que mesmo os intelectuais mais conservadores ou livre mercadistas como, por exemplo, Friedman e Hayek, são fundamental e filosoficamente estatistas.

A partir desta constatação sobre a importância das ideias e do papel dos intelectuais como protetores do estado e do estatismo, segue-se que o papel mais importante no processo de libertação — a restauração da justiça e da moralidade — deve ser assumido por aqueles que podemos chamar de intelectuais anti-intelectuais. No entanto, fica a pergunta: como estes intelectuais anti-intelectuais podem ter êxito em deslegitimar o estado perante a opinião pública se considerarmos que a esmagadora maioria de seus colegas é formada por estatistas que farão de tudo para isolá-los e desacreditá-los, taxando-os de extremistas e malucos? O espaço aqui me permite fazer apenas breves comentários sobre esta questão, que é fundamental.

Primeiro: Dado que será necessário enfrentar a oposição cruel e maliciosa de seus colegas, para que o indivíduo possa resistir e não se deixar abater é de máxima importância não basear sua posição no utilitarismo e na ciência econômica, e sim em argumentos de ordem ética e moral. Pois somente convicções morais proveem a força e a coragem necessárias para uma batalha intelectual e ideológica. Poucos se sentem inspirados ou se dispõem a aceitar sacrifícios quando estão se opondo a coisas que consideram ser meros erros ou superficialidades. Por outro lado, inspiração e coragem podem ser obtidas em grande dose se se souber que se está lutando contra o mal e combatendo mentiras perversas. (Retorno a este ponto brevemente).

Segundo: É importante reconhecer que não é necessário convencer outros intelectuais convencionais. Como demonstrou Thomas Kuhn, isto é algo bastante raro até mesmo nas ciências naturais. Nas ciências sociais, praticamente não se conhece casos de intelectuais consagrados que abandonaram suas opiniões anteriores e se converteram. Em vez disso, os esforços devem ser concentrados naqueles jovens que ainda não se comprometeram intelectualmente; jovens cujo idealismo também os torna particularmente mais receptivos a argumentos morais rigorosos. E, da mesma maneira, deve-se ignorar o mundo acadêmico e se esforçar para alcançar o grande público (isto é, os leigos inteligentes esclarecidos), o qual, de modo geral, nutre alguns saudáveis preconceitos anti-intelectuais, que podem ser facilmente explorados.

Terceiro (retornando à importância de um ataque moral contra o estado): É essencial compreender que não se pode fazer nenhuma concessão em nível de teoria. É claro que não se deve recusar uma cooperação com pessoas que possuam opiniões que sejam essencialmente erradas e confusas, desde que os objetivos delas possam ser classificados, clara e inequivocamente, como um passo correto em direção à desestatização da sociedade. Por exemplo, é correto cooperar com pessoas que pretendem introduzir um imposto de renda uniforme (flat) de 10% (embora não iríamos querer cooperar, por exemplo, com aqueles que gostariam de combinar esta medida com um aumento em outros impostos a fim de manter a arrecadação inalterada). No entanto, sob nenhuma circunstância esta cooperação deve levar a, ou ser obtida por meio de, uma contemporização dos próprios princípios. Ou a tributação é algo justo ou ela é injusta. E uma vez que ela seja aceita como justa, como então será possível se opor a qualquer aumento da mesma? A resposta logicamente é que não é possível!

Em outras palavras, fazer concessões em nível de teoria, como vemos acontecer, por exemplo, entre liberais moderados como Hayek e Friedman, ou mesmo entre os chamados minarquistas, não apenas denota uma grande falha filosófica, como também é uma atitude, do ponto de vista prático, inútil e contraproducente. As ideias destas pessoas podem ser — e de fato são — facilmente cooptadas e incorporadas pelos governantes e pelos ideólogos do estado. Aliás, não é de se estranhar a frequência com que ouvimos estatistas defendendo a agenda estatista dizendo coisas como "até mesmo Hayek (Friedman) diz — ou, nem mesmo Hayek (Friedman) nega — que isto e aquilo deve ser feito pelo estado!" Pessoalmente, eles até podem ter ficado descontentes com isso, mas não há como negar que suas obras serviram exatamente a este propósito; e, consequentemente, queiram ou não, eles realmente contribuíram para o contínuo e incessante crescimento do poder do estado.

Ou seja, gradualismo ou concessão teórica irá gerar apenas a perpetuação da falsidade, do mal e das mentiras do estatismo. Somente o purismo teórico, com seu radicalismo e sua intransigência, pode e irá resultar primeiro em reformas práticas e graduais, depois no aprimoramento, até finalmente chegar a uma possível vitória final. Deste modo, sendo um intelectual anti-intelectual no sentido rothbardiano, um indivíduo não deve se limitar apenas a criticar diversas tolices do governo, ainda que ele possa ter de começar por elas; ele deve sempre partir deste ponto e ministrar um ataque fundamental à instituição do estado, mostrando-o como uma afronta ética e moral. O mesmo deve ser feito com seus representantes, que devem ser expostos como fraudes morais e econômicas, bem como mentirosos e impostores — devemos sempre apontar que os reis estão nus.

Particularmente, o indivíduo jamais deve hesitar em atacar o próprio núcleo da legitimidade do estado: seu suposto papel de indispensável fornecedor de segurança e proteção. Já demonstrei em termos teóricos o quão ridícula é esta alegação: como é possível uma agência que pode expropriar propriedade privada alegar ser protetora da propriedade privada? Mas tão importante quanto o ataque teórico é atacar também a legitimidade do estado em bases empíricas. Isto é, trabalhar arduamente sobre o tema de que os estados, que supostamente deveriam nos proteger, são eles próprios a instituição responsável por 200 milhões de mortes apenas no século XX — mais do que as vítimas de crimes privados em toda a história da humanidade (e este número de vítimas de crimes privados, crimes contra os quais o governo não nos protegeu, teria sido bem menor caso os governos de todos os locais e de todas as épocas não tivessem se empenhado continuamente em desarmar seus próprios cidadãos para que eles mesmos, os governos, não encontrassem resistência e pudessem se tornar máquinas mortíferas ainda mais eficientes)!

Portanto, em vez de tratar políticos com respeito, nossa crítica a eles deveria ser significativamente intensificada: quase sem exceção, eles não são somente ladrões; são também falsificadores, corruptos, charlatães e chantagistas. Como ousam exigir nosso respeito e nossa lealdade?

Mas será que uma vigorosa e distinta radicalização ideológica trará os resultados desejados? Não tenho a menor dúvida que sim. De fato, apenas ideias radicais — e, na verdade, radicalmente simples — podem incitar as emoções das massas inertes e indolentes, e deslegitimar o governo perante seus olhos.

Quanto a isto, deixe-me usar uma citação de Hayek (e ao fazer isso, espero ressaltar também que minha dura crítica anterior a ele não deve ser mal entendida como uma implicação de que não se pode aprender nada com autores que sejam fundamentalmente errados e confusos):

Devemos fazer novamente da construção de uma sociedade livre uma aventura intelectual, uma façanha de coragem. O que carecemos é de uma Utopia liberal, um programa que não pareça nem uma mera defesa das coisas como elas são, nem um tipo de socialismo diluído, mas um radicalismo verdadeiramente liberal que não ceda as suscetibilidades do poderoso, que não seja tão rigorosamente prático e que não se limite ao que parece ser politicamente possível hoje. Precisamos de líderes intelectuais que estejam prontos para resistir as bajulações do poder e da influência e que estejam dispostos a trabalhar por um ideal, não importa o quão distante sejam os prospectos de sua realização. Eles precisam ser homens que estejam dispostos a se manter fieis a princípios e a lutar pela sua aceitação total, não importa o quão remota seja. Livre comércio e liberdade de oportunidades são ideias que ainda podem estimular a imaginação de um grande número de pessoas, mas uma mera "liberdade razoável de comércio" ou uma mera "atenuação de controles" não são nem intelectualmente respeitáveis e nem propensos a inspirar qualquer entusiasmo....

A menos que possamos novamente tornar as fundações filosóficas de uma sociedade livre 

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um assunto intelectual vivificante, e sua implementação uma tarefa que desafie a perspicácia e a imaginação de nossas mais vigorosas mentes, os prospectos da liberdade serão de fato tenebrosos. Mas se pudermos recuperar a crença no poder das ideias, que era a marca do liberalismo em seu esplendor, a batalha não estará perdida.


Hayek logicamente não seguiu seu próprio conselho e não nos forneceu uma teoria consistente e inspiradora. Sua Utopia, conforme desenvolvida em seu Os fundamentos da liberdade, é de certa forma a desinteressante visão do estado de bem estar social sueco. Ao contrário, é Rothbard quem fez aquilo que Hayek reconheceu como necessário para uma renovação do liberalismo clássico; e se tem algo que pode reverter a aparentemente irreversível onda de estatismo e restaurar a justiça e a liberdade, é o exemplo pessoal dado pro Murray Rothbard e a divulgação do rothbardianismo.

Igualmente para a reivindicação de John Rawls, em seu celebrado Uma Teoria da Justiça, de que somos obrigados a "aceitar como o primeiro princípio de justiça aquele que requer a distribuição igualitária (de todos os recursos)," e seu comentário de que "este princípio é tão óbvio que seria de se esperar que ele ocorresse imediatamente a qualquer pessoa". O que eu demonstrei aqui é que qualquer ética igualitária como esta proposta por Rawls é não só nada óbvia como deve ser considerada absurda, i.e., autocontraditória e sem sentido. Pois se Rawls estivesse certo e todos os recursos devessem realmente ser distribuídos igualmente, então ele literalmente não teria pernas para suportar seu corpo e permitir que ele se levantasse e propusesse o absurdo que ele propõe.

 Hayek, F.A., "The Intellectuals and Socialism," in idem, Studies in Philosophy, Politics, and Economics (New York: Simon and Schuster, 1969), p.194.

Tradução de Fernando Chiocca
Hans-Hermann Hoppe é um membro sênior do Ludwig von Mises Institute, fundador e presidente da Property and Freedom Society e co-editor do periódico Review of Austrian Economics. Ele recebeu seu Ph.D e fez seu pós-doutorado na Goethe University em Frankfurt, Alemanha. Ele é o autor, entre outros trabalhos, de Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo eThe Economics and Ethics of Private Property.