domingo, 31 de março de 2013

A MEDIOCRIDADE SATISFEITA

O crescimento brasileiro acelerou visivelmente entre 2003 e 2010, atingindo uma velocidade média de 4% ao ano, ante 2,5% ao ano nos oito anos anteriores.


Voltamos, porém, a patinar em 2011 e 2012, crescendo a menos de 2% ao ano. Mesmo que observemos a aceleração esperada para este ano (3%) e para o próximo (3,5%), estaremos de volta ao patamar anterior. Trata-se de desaceleração cíclica ou de reflexo de um problema mais profundo?

Não resta dúvida acerca do diagnóstico do governo.

Na sua visão, a piora do desempenho é tratada como questão cíclica, provavelmente causada pela crise internacional, assim como pela menor disponibilidade de crédito, um mini “replay” da crise de 2009, que mereceria, portanto, o mesmo tipo de resposta: juros mais baixos, aumento da disponibilidade de crédito por meio dos bancos públicos e, por fim, uma política fiscal mais frouxa, expressa na redução (“anticíclica”) do superavit primário.

Há apenas um problema com esse diagnóstico: não encontra o menor amparo na realidade.

Para começar, é difícil justificar que a crise internacional teria causado uma redução no crescimento brasileiro ao mesmo tempo em que vários países da região, até mais dependentes de commodities do que o Brasil, tenham registrado aceleração no período.

Afora isso, em 2009 observamos piora no mercado de trabalho e redução expressiva da inflação.

Tais observações são consistentes com uma economia que, em vez de enfrentar uma desaceleração cíclica, parece operar próxima ao seu potencial, como expresso na menor taxa de desemprego observada desde o início da série do IBGE.Agora, ao contrário, o desemprego continuou a cair, e a inflação, após breve queda (em boa parte devido às mudanças metodológicas no IPCA), voltou a acelerar, a ponto de forçar até o relutante BC a recuar de sua promessa de manter “a estabilidade das condições monetárias por um período de tempo suficientemente prolongado”.

Da mesma forma, diferentemente do observado em 2009, quando a velocidade de crescimento dos salários nominais caiu de valores próximos a 11%-12% ao ano para algo em torno de 4%-5% ao ano, estes se expandem hoje a 9%-10% ao ano, também um sintoma de aquecimento no mercado de trabalho.

Aliás, dado que o crescimento da produtividade teima em permanecer ao redor de 1%-1,5% ao ano, bem inferior à expansão salarial, não é difícil concluir que o custo por unidade produzida venha aumentando e, portanto, pressionando a inflação, em particular nos segmentos em que a concorrência internacional é escassa (por exemplo, serviços).

O comportamento do mercado de trabalho, salários e preços aponta, portanto, para uma conclusão desanimadora. A queda de desempenho não se deve principalmente a questões cíclicas, mas, sim, como finalmente o BC parece ter reconhecido, “a limitações no campo da oferta”, ou seja, gargalos no mercado de trabalho (e também infraestrutura) que impedem o crescimento mais vigoroso.

Não se trata, quero deixar claro, de afirmar que houve necessariamente redução do nosso ritmo de crescimento potencial nos últimos anos, mas de algo até mais sério.

É bastante possível que sempre tenha sido baixo; tendo saído, porém, de uma situação de desemprego muito elevado no começo da década passada, pudemos crescer acima do potencial pela utilização da mão de obra então disponível, reduzindo o desemprego ao longo do processo.

Essa estratégia enfrenta suas óbvias limitações, no entanto, quando a disponibilidade de mão de obra se esgota.

Assim, como não preparamos a transição para um crescimento baseado na produtividade, na prática abandonando o processo de reforma que se estendeu de 1995 a 2006, esses limites se traduzem em crescimento baixo e inflação alta.

Já a persistência da estratégia atual de política econômica sugere que o governo está mais do que satisfeito com essa mediocridade. Por: Alexandre Schwartsman  Fonte: Folha de S.Paulo, 27/03/2013

O AÇÚCAR COMO VENENO

Leio na Zero Hora: O consumo de refrigerantes, sucos industrializados e outras bebidas açucaradas pode estar associado a cerca de 180 mil mortes por ano no mundo, de acordo com uma pesquisa apresentada recentemente no congresso da Associação Americana de Cardiologia.

Os autores usaram dados do estudo The Global Burden of Disease (literalmente, O Peso Global da Doença), de 2010, e relacionaram a ingestão de bebidas açucaradas a 133 mil mortes por diabetes, 44 mil mortes por doenças cardiovasculares e 6 mil mortes por câncer. Cerca de 80% dessas mortes ocorreram em países de renda média ou baixa.

Os pesquisadores calcularam as quantidades consumidas dessas bebidas por idade e sexo, os efeitos desse consumo na obesidade e no diabetes e o impacto das mortes relacionadas a essas doenças. A Associação Americana de Bebidas afirmou que o estudo traz "mais sensacionalismo do que ciência".

Já comentei o assunto no século passado, em 1989. Não que a descoberta fosse minha. Mas de Carson Ritchie, cujo ensaio Food in Civilization - How History Has Been Affected by Human Tastes alerta para os efeitos danosos do açúcar. O livro foi publicado em 1981.

Ritchie um dia convidou alguns amigos a um bom restaurante. Jantaram à la farta e tudo transcorreu muito bem, pelo menos até o momento da dolorosa. Ritchie puxou a carteira e nela não encontrou dinheiro suficiente. Teve de apelar aos amigos que convidara para jantar. Passado o episódio, considerou que a história da alimentação em algo se parece com esta anedota: quando chega o momento de pagar o banquete, podemos descobrir que aquilo que desfrutamos custa bem mais do que estávamos dispostos a pagar quando nos sentamos à mesa. Terá sido talvez esta gafe o que deu origem a seu livro. 

"O açúcar para adoçar o chá e o café europeu - escreve Ritchie - foi cultivado às custas da escravidão negra. Os peles vermelhas foram expulsos sem piedade das pradarias onde caçavam para que o homem branco pudesse cultivar trigo e milho, e seus búfalos foram exterminados para dar lugar a grandes rebanhos vacuns. Os escritores norte-americanos responsabilizaram as grandes multinacionais fruticultoras pelo caos das economias centro-americanas, construindo ferrovias ilegais, sonegando impostos, manipulando os baixos salários da mão-de-obra não qualificada (já por si suficientemente baixos), expropriando as terras dos camponeses e exaurindo a fertilidade do solo. E tudo isso para que os norte-americanos tivessem bananas como sobremesa!"

Ao debruçar-se sobre os efeitos dos alimentos na História, Ritchie descobre que foram os conceitos errôneos de alimentação e não os corretos, os que demonstraram ter maior influência. "Crenças em que as especiarias aumentavam a virilidade, que o açúcar era essencial para a saúde, ou que para ser forte devia-se beber muita cerveja, condicionaram mais os destinos da humanidade que as autênticas e consolidadas leis da ciência da alimentação".

Mas como convencer minha Cristina de que seu vício não passa de um hidrato de carbono sem nenhum valor alimentício? Se os europeus, para açucarar suas tardes, destruíram homens e culturas, na África e nas ditas Índias Ocidentais, como queixar-me de minha faxineira?

Já vi universitários e professores universitários se lambuzando com sorvetes, que além de açúcar contém algo mais nocivo, o sal. (Isso até que não é tão grave: há universitários que acreditam em Deus). Pior ainda, já vi muitos destes senhores que, por uma questão de ofício possuem, ou deveriam possuir, noções de bem comer, dando sorvetes a seus filhos. Assim sendo, sempre tenho em casa um açucareiro cheio para saciar os instintos primários de Cristina e de eventuais formigas que já descobriram o mapa da mina. Sem falar que, quando o café é forte, tipo exportação, não me furto a ajuntar-lhe uma colherinha de veneno.

Pois este hidrato tão prestigiado, que no fundo só serve para produzir cáries, obesidade e doenças cardíacas, produziu mais estragos na trajetória do ser humano do que o próprio sal, que pelo menos tem a virtude de conservar as carnes, fator aparentemente banal mas decisivo na caminhada do Homo sapiens, seja rumo ao combate, seja rumo a descobertas. E já fez levas de jovens do mundo todo partirem em revoadas rumo àquela ilha tanto amada por Paulo, Cardeal Arns, para cortar cana em prol da revolução.

Pois a cana-de-açúcar deve ser colhida rapidamente quando madura e Castro, preocupado em seguir as diretrizes de Moscou, mandou para Angola a juventude cubana, onde, em vez de ceifar cana, ceifaram vidas alheias e muitas vezes perderam as suas. Mas Estados Unidos, Europa, América Latina e mesmo o Brasil, pronto supriram a falta de mão-de-obra. Milhares de jovens, que jamais haviam visto de perto um canavial, bravamente acorreram, de machete em punho, em apoio à ditadura cubana. 

O açúcar foi introduzido no mundo mediterrâneo por Dario, o rei dos persas, trazido da Índia após suas conquistas por lá. Difundiu-se pela Europa e passou ao Novo Mundo graças aos colonizadores espanhóis. Hernán Cortez introduziu a cana-de-açúcar no México. O Caribe proporcionava ao açúcar o clima mais adequado que seu próprio lugar de origem, a Índia, pois lá chovia muito mais. Acontece que os espanhóis jamais iriam trabalhar se encontrassem alguém que o fizesse por eles.

A tarefa foi delegada, se assim se pode dizer, aos índios caribes e arawaks, culturas que logo foram exterminadas. Tendo de buscar mão-de-obra em outra parte, os colonizadores das "Índias Ocidentais" deram uma piscadela de olhos aos portugueses. Estes, tendo observado que os índios, não se adaptando ao trabalho duro, morriam na colheita de açúcar, os deixaram de lado e foram buscar escravos na África.

"Já que espanhóis e portugueses haviam começado a desenvolver suas plantações de cana com a colaboração dos escravos negros, todos os demais pensaram que tinham de seguir seu exemplo. Se assim não faziam, expunham-se a produzir um açúcar mais caro, sem saída no mercado. Resulta irônico comprovar a que ponto haviam chegado os primeiros colonos franceses e ingleses no Caribe: homens idealistas, freqüentemente perseguidos por suas crenças religiosas, e muitas vezes indivíduos de princípios elevados que queriam viver de uma forma mais livre da qual lhes era permitido viver na Europa". Pois estes senhores, diz-nos Ritchie, tornaram-se escravocratas nas Índias Ocidentais. Para satisfazer o paladar europeu.

Outro subproduto da cana, o rum, serviu para incrementar o tráfico de escravos. Quando surgem as primeiras campanhas abolicionistas, seus líderes implantam o primeiro boicote ao comércio infame, adoçando o café com nata em vez de açúcar, e pedindo conhaque francês em lugar de rum. Para ajudá-los a propagar suas idéias, lady Henderson, comerciante em Londres, vende açucareiros com gravado em letras douradas: "Açúcar das Índias Orientais, não produzido por escravos". 

Ritchie considera que se o açúcar fosse descoberto hoje seria classificado como droga. Droga que já produziu mais estragos em sua trajetória – acrescentemos – do que a maconha ou cocaína. Por: Janer Cristaldo

SOBRE O ASSALTO CIPRIOTA


Até o último fim de semana, a abordagem básica da União Europeia para socorrer países endividados era repassar a eles dinheiro que os tornasse capazes de honrar o pagamento de suas dívidas e de outras despesas correntes, dentre elas os maciços programas de bem-estar social de sua população. Em troca deste dinheiro, ficava estipulado que o governo reduzisse algumas despesas e aumentasse impostos. Adicionalmente, pedia-se àqueles que haviam comprado títulos da dívida do governo que sofressem algumas perdas.

Porém, com o Chipre, as coisas tomaram um rumo distinto. Para evitar ter de cortar gastos e aumentar impostos, o presidente do Chipre anunciou que o governo iria simplesmente expropriar o dinheiro que seus cidadãos haviam depositado nos bancos daquele país. Aqueles que tivessem depósitos acima de €100.000 teriam 10% do seu dinheiro confiscado. Aqueles com depósitos menores que €100.000 teriam aproximadamente 7% do seu dinheiro confiscado.

Embora tal medida ainda tenha de ser aprovada pelo parlamento do Chipre, a decisão de implantá-la foi tomada por burocratas da zona do euro em uma reunião fechada. Caso o governo cipriota recuse esta proposta, a zona do euro não irá fornecer um pacote de €10 bilhões para socorrer os insolventes bancos do Chipre.

Os bancos do Chipre se tornaram insolventes após os líderes da zona do euro terem decidido que os títulos da dívida grega seriam "reestruturados" — leia-se "parcialmente caloteados". Como os bancos do Chipre haviam comprado vários destes títulos, eles tiveram perdas substanciais.

A história está sendo amplamente coberta pela mídia mundial, e por um bom motivo. Os eurocratas sempre disseram que as contas bancárias eram sacrossantas. Eles sempre prometeram que não tocariam nelas. Com o anúncio desta medida a ser adotada no Chipre, os eurocratas estão dizendo "nós mentimos". No entanto, estes mesmos eurocratas estão assegurando a todos os correntistas da zona do euro que isso não acontecerá novamente, que se trata de uma medida excepcional, a ser implementada uma única vez. "Confiem em nós".

Os relatos são de que o presidente do Chipre, na reunião de domingo, implorou ao parlamento do país para que implantasse as taxas. O mais curioso é que, durante sua campanha eleitoral, ele havia prometido aos eleitores que jamais, em hipótese alguma, iria tributar suas contas bancárias. E ele reforçou este compromisso em seu discurso de posse: "Não será tolerada absolutamente nenhuma referência a tributação de depósitos ou calote parcial na dívida". Para se certificar de que havia sido perfeitamente claro, ele acrescentou: "Este assunto nem sequer está em discussão".

Tradução: sempre que um político promete enfaticamente que não fará algo, tenha a certeza de que esse algo já está em fase final de planejamento.

Os rumores de que este plano estava sendo analisado nos corredores do quartel-general da União Europeia já circulavam na imprensa havia mais de um mês. Os correntistas cipriotas poderiam ter transferido seus euros para bancos alemães. Eles poderiam ter sacado seu dinheiro. Mas o presidente havia dito que as contas bancárias eram sacrossantas. E as massas acreditaram. E ficaram quietas. 

É isso o que acontece quando você deixa seu bom senso de lado e aceita as promessas de políticos.

O parlamento cipriota decidirá a respeito das taxas na tarde desta terça-feira. Se o parlamento recusar, o presidente será um pato manco pelo resto de seu mandato.

O governo fechou os bancos para impedir que os correntistas movimentassem suas contas e sacassem dinheiro. A imprensa se refere a esta medida como um "feriado" bancário.

Caso o governo do Chipre postergue a imposição destes tributos, está claro o que qualquer cipriota racional deveria fazer: ligar para seu banco e transferir seus euros para um banco alemão assim que o "feriado" bancário acabar.

O governo pode abrir os bancos sem ainda ter aprovado os impostos. Boom! Haverá uma corrida bancária. Para evitar isso, ele terá de manter os bancos fechados. Mas isso irá paralisar a economia, podendo gerar uma depressão. Ou ele pode aprovar os impostos e só então abrir os bancos. Ainda assim, a tendência é que haja uma corrida bancária. "Engane-me uma vez, que vergonha para você. Engane-me duas vezes, que vergonha para mim." 

Os eurocratas que, em conjunto com o FMI, criaram este plano durante o fim de semana certamente sabiam que ele desencadearia uma corrida bancária. Se eles não previram isso, então eles são economicamente ignaros. Será que eles creem que o rebanho ficará quieto uma segunda vez, pacificamente esperando ser tosado? É difícil de acreditar.

Mas eles também não imaginavam que o governo fosse postergar a implantação dos impostos.

Minha opinião: creio que tudo isso é deliberado. Eles sabiam que toda essa reação, com ameaça de corrida bancária e tudo mais, iria ocorrer. Os eurocratas estão enviando um recado para todos os outros políticos dos PIIGS: "Salvem vocês os seus próprios bancos. Caso contrário, preparem-se para uma corrida bancária igual à do Chipre". O objetivo deles é justamente gerar uma corrida bancária no Chipre. Eles querem enviar uma mensagem para todos os outros governos da zona do euro que estão acomodados e tranquilos, operando sob a pressuposição de que a zona do euro irá sempre socorrer suas dívidas ou socorrer seus bancos. Não irá. Não tem como. Ela não tem o dinheiro. Os eleitores dos países mais solventes não permitirão que seus respectivos governos transfiram seu dinheiro para o governo dos países mais pródigos.

Os eurocratas escolheram o Chipre para servir de exemplo porque se trata de uma ínfima nação insular, responsável por apenas 0,2% do PIB europeu. Se os bancos do Chipre quebrarem, e daí? Se seus políticos resolverem sair da zona do euro, e daí? Uma crise bancária no Chipre é exatamente o que os banqueiros do norte precisam para enviar um recado: "Não haverá mais tolerância. Coloquem suas contas em ordem. Cuidem de seus bancos". Isso irá assustar os políticos mediterrâneos.

No entanto, é uma medida bastante arriscada. Ela pode ter o efeito colateral de deixar os correntistas da zona do euro ainda mais assustados que seus políticos. Isso pode desencadear corridas bancárias na Espanha, na Itália e em Portugal. Se eu tivesse dinheiro nos bancos de qualquer um destes países, transferiria para um banco alemão.

Mohammed El-Erian, CEO da Pimco, o maior fundo de investimentos do mundo voltado para títulos governamentais, disse o seguinte: "Na Europa, esta ocorrência pode perfeitamente solapar o até então tranquilo comportamento dos correntistas e dos credores em outras vulneráveis economias europeias — em particular na Grécia, na Itália, em Portugal e na Espanha. Não obstante as repetidas garantias dadas por burocratas europeus de que o caso do Chipre é 'excepcional' e de que as medidas adotadas são 'singulares', as políticas criadas neste fim de semana aumentaram o prêmio de risco sobre os títulos das dívidas destes países".

Foi um ato de desespero dos burocratas da zona do euro. Eles estão arriscando fomentar uma corrida bancária na Itália e na Espanha. Aqueles correntistas que não quiserem ser tratados como os cipriotas têm apenas uma saída: transferir seu dinheiro para bancos alemães.

Os burocratas da zona do euro têm de estar realmente muito desesperados para anunciar uma política tributária sobre contas bancárias que não pode ser impingida pela zona do euro, mas apenas pelos governos nacionais. Se um determinado governo deixar claro que irá obedecer, as corridas bancárias serão inevitáveis. Se ele disser que não irá obedecer, ainda assim pode haver corridas bancárias. Apenas se o sujeito for muito frio e confiar plenamente em seu governo é que ele deixará seu dinheiro no banco de seu país em vez de transferi-lo para um banco alemão.

Tudo isso mostra quão desesperados estão os líderes da zona do euro. Eles fingem que tudo está calmo. Eles pretendem que o sistema não está ruindo. E então eles fazem um anúncio que é racional apenas sob a hipótese de que a situação fiscal e bancária dos países europeus está em frangalhos. O estado de bem-estar social europeu está com seus dias contados.

Gary North , ex-membro adjunto do Mises Institute, é o autor de vários livros sobre economia, ética e história. Visite seuwebsite.

sábado, 30 de março de 2013

A VOLTA DO MERCADO

Quase não apareceu no noticiário, mas foi um sinal importante. Faz alguns dias, o governo americano informou que vendera mais um lote de ações da GM, papéis que havia adquirido em 2009 para capitalizar a companhia e, assim, impedir o colapso da indústria automobilística. A General Motors se tornara Government Motors, no feliz achado da revista “Economist”. Agora, está sendo reprivatizada, e isso depois de ter passado por uma dura reestruturação imposta pelo acionista então dominante, o governo.


Considerando que a administração federal também adquiriu ações de bancos e companhias seguradoras à beira da falência e sem esquecer que o Federal Reserve (Fed, o banco central) saiu comprando todo tipo de títulos, inclusive podres, não há dúvida: o governo interveio, gastou dinheiro do contribuinte e controlou a crise, que teria sido muito pior sem a intervenção estatal na economia.

Estão vendo? Eis a prova da falência do mercado bem no coração do capitalismo — foi o comentário comum na ocasião.

Segue a crise, passa o tempo e o que se passa? Hoje, quando se pergunta quem pode ameaçar a recuperação da economia americana, a resposta sai na hora: o governo ou, melhor, Washington na acepção ampla do conceito, incluindo a Casa Branca e o Congresso.

Durante meses, os políticos americanos deixaram o mundo em suspense. Sucederam-se datas fatais. Se o Congresso não votasse até amanhã esta ou aquela lei, o governo ou daria calote nos seus títulos da dívida, estocados nas reservas financeiras de todos os países; ou não poderia gastar um centavo a mais, e assim daria o cano nos funcionários e fornecedores; ou ainda entraria em vigor um drástico corte de gastos e aumento de impostos. Era o abismo fiscal, lembram-se?

É verdade que Congresso e Executivo nunca deixaram a coisa acontecer. No último momento, deputados e senadores, republicanos e democratas, mais os assessores do presidente Obama, conseguiam um arranjo. Foram tantas datas fatais superadas que o mundo até se acostumou.

Mas é verdade também que nada está resolvido. Foi tudo empurrado para mais uma data fatal. As questões estruturais, os crescentes e insustentáveis gastos públicos com aposentadorias e saúde, mal têm sido tocadas. Segue o impasse entre republicanos e democratas sobre como lidar com os contas governamentais.

Ainda recentemente, o Fed reduziu suas previsões de crescimento, citando a falta de um programa de ajuste de médio e longo prazo.

E entretanto, a economia americana continua apresentando o melhor desempenho entre os desenvolvidos. O Produto Interno Bruto se expande ao ritmo pouco acima de 2% ao ano, podendo alcançar 3% em 2014, com o desemprego em queda. Pode não ser brilhante, mas comparem com a Europa.

O que explica isso? “A América que funciona” — diz a capa da “Economist” da semana anterior.

O setor privado funciona. No meio dessa confusão toda, produziu, por exemplo, uma mudança drástica — a extração comercial de petróleo e gás das rochas de xisto. É um clássico do empreendedor privado: investimento em pesquisa, transformação de conhecimento em tecnologia efetiva e a capacidade de colocar o negócio para funcionar.

Isso já trouxe uma novidade global e, pois, geopolítica: a China ocupou o lugar dos EUA como a maior importadora mundial de óleo.

Outro fator da recuperação americana está nos governos estaduais e prefeituras. Como cita a reportagem de “Economist”, administrações locais tratam de ajustar suas contas e turbinar investimentos em infraestrutura. Alguns estados aplicaram reduções expressivas de impostos para atrair empresas e trabalhadores qualificados. Outros combinaram cortes e aumentos de impostos e tarifas (como pedágios e contas de água e luz). Para financiar investimentos, encontra-se de tudo: privatização direta, Parcerias Público Privadas e gasto estatal, ora com fundos privados, remunerados, claro, ora direto com o dinheiro do contribuinte.

Tem coisa que dá certo, coisa que não funciona, mas parece que o conjunto de iniciativas locais cria um movimento nacional no sentido de mais intensa atividade econômica.

Certamente, há questões estruturais que continuam dependendo da política de Washington, mas há uma lição a tirar do que já se viu. Primeiro, que o governo é decisivo em determinados momentos. Segundo, que é no setor privado que se encontra o tal “espírito animal”. E terceiro, que vale especialmente para o Brasil de hoje, o governo não pode querer dizer aos empresários quando, onde e como devem investir. Se os negócios dependem do governo, o empreendedor esquece essas coisas de inovação, risco, aplicação de capital próprio, para buscar o favor oficial. Não decola. Por:  Carlos Alberto Sardenberg

O GLOBO - 28/03

'AQUELA SENHORA ESTÁ TORNANDO IMPOSSÍVEL INVESTIR NO BRASIL'

Parceiro de George Soros nos anos 70, americano diz que não investe mais no País porque governo Dilma é contra o capital

O economista James B. Rogers ou Jim Rogers, como prefere ser chamado, é um dos emblemáticos investidores americanos das últimas décadas. Prestes a fazer 71 anos, Rogers se juntou ao amigo George Soros nos anos 70 para fundar o Quantum Fund. Fez fortuna, largou tudo e foi dar a volta ao mundo de moto. Pelas façanhas como viajante, entrou duas vezes para o Guinness Book.

Com suas gravatas borboletas coloridas e a língua afiada para críticas, Rogers é figura constante no noticiário econômico da TV e jornais dos Estados Unidos. Ele está pessimista em relação às perspectivas para os Estados Unidos, o Chipre e toda a zona do euro e mais crítico do que nunca em relação ao Brasil. "Aquela senhora está tornando impossível investir no Brasil", diz, referindo-se à presidente Dilma Rousseff.

Em entrevista por telefone concedida de Santiago, no Chile, Rogers disse que o Brasil poderia ser aquele país promissor que muitos imaginaram. Mas não é, por causa dos erros do governo, especialmente no que diz respeito a tentar controlar a entrada de capitais.

"Ela (Dilma) está tornando ilegal investir no Brasil", critica, dizendo ainda que não investe mais no País - nem pretende voltar a fazê-lo tão cedo.

Autor de várias obras, Rogers lançou este ano o livro Street Smarts: Adventures on the Road and in the Markets (em tradução livre, Os inteligentes das ruas: Aventuras nas Estradas e nos Mercados), ainda inédito no Brasil. No livro, ele fala de suas experiências em Wall Street e nos mercados asiáticos. Entusiasta das commodities, escolheu viver com a família em Cingapura em 2002 para que sua filha pudesse aprender chinês. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Que saída o Brasil tem para conseguir um bom desempenho econômico? O que nossa presidente pode fazer?

Ela poderia parar de impedir capital novo de entrar no País. Aquela senhora que governa o País está promovendo guerra cambial, tornando impossível investir no Brasil, tornando ilegal para os estrangeiros investirem no País. Ela coloca obstáculos para chineses e coreanos, aqueles que são grandes clientes do Brasil. Ela tem de tornar o País mais acessível! Ela tem de parar com o controle da moeda. Ela não está ajudando o Brasil, está prejudicando. Deveria haver uma abertura maior do País, uma abertura maior para o capital. Desse modo, o Brasil poderia ser um dos grandes países do mundo. Mas esta senhora é uma das muitas pessoas que têm impedido que o Brasil seja uma das principais economias do mundo.

O senhor não tem dinheiro no Brasil?

Não. Já tive, mas não tenho agora. Já houve tempos de investir no Brasil. Mas, quando você tem alguém que é contra expertise, contra capital, que ataca seus parceiros, alguém com esse tipo de atitude, não dá para investir no Brasil. Mas, se isso mudar, voltarei a colocar meu dinheiro aí.

Como vê o resgate do Chipre?

É ultrajante o que está acontecendo lá. As pessoas falam que vão colocar dinheiro no banco, porque é garantido. De repente, o governo está roubando o dinheiro deles. Espero que todos estejam mesmo preocupados com o que estão fazendo, pois isso cria um precedente. Na próxima vez que isso acontecer a outro país, eles vão dizer: o FMI, a União Europeia disseram que a gente pode tirar dinheiro dos bancos. É preciso muito cuidado, senão isso vai acontecer de novo e de novo.

Esse resgate vai evitar o contágio para outros países da zona do euro?

Claro que não. Isso não resolve o problema da zona do euro. Todos os países da Europa vão ter déficits maiores este ano do que tiveram no ano passado, e esses déficit vão continuar crescendo até que os problemas sejam resolvidos. Os problemas estão sendo postergados, mas não resolvidos.

Quem se beneficiaria com a saída do Chipre da zona do euro?

Ninguém se beneficiaria. Talvez alguns investidores espertos encontrassem modos de ganhar dinheiro às custas disso. Mas, se o Chipre deixar o euro, não será bom para o Chipre nem para a zona do euro. Isso só pioraria as coisas. Com certeza não ajudaria o Chipre. Ninguém vai querer investir no Chipre se estiver fora da zona do euro. Ninguém vai investir na moeda que eles tiverem.

Como vê a situação global?

Cada vez pior. A América está em declínio e a China será o país que mais impressionará nos próximo século.

Isso significa que vamos ter essa crise global por muito mais tempo do que se pensava?

Bom, no Japão a crise dura 23 anos. Sim, é claro que vai durar muitos anos.

Nos momentos de nervosismo nos mercados, os investidores continuam correndo para o dólar americano e o ouro. Eles ainda são um porto seguro?

Não existe isso de porto seguro. Gostaria de conhecer algo que fosse seguro e, se você souber, por favor, me diga. Mas, de qualquer modo, é para onde todo mundo vai e eu também tenho dólares no momento.

Quais serão as commodities mais promissoras?

Estou mais otimista em relação às commodities agrícolas do que todas as demais. Por: LUCIANA XAVIER - O Estado de S.Paulo

sexta-feira, 29 de março de 2013

EMPREENDER É UMA ARTE OU CIÊNCIA?




Professor já mudou algumas de suas crenças sobre empreendedorismo


Empreendedorismo é uma palavra nova no Brasil. Apareceu nos dicionários na década de 2000. Alguns livros publicados no país já utilizam o termo na década de 1980 e 1990. Antes disso, o termo entrepreneur era traduzido como empresário e empreendedorismo, às vezes, aparecia como empresarização como ocorreu no livro Prática da Administração de Empresas de Peter Drucker publicado pela primeira vez no Brasil em 1955.

Mas até hoje, o uso do termo ainda gera debates polêmicos. Só porque o sujeito abriu um negócio, é empreendedor? É possível ser empreendedor mesmo sendo empregado? Há empreendedorismo por oportunidade e por necessidade? É possível “fabricar” empreendedores em salas de aula? A pessoa “nasce” empreendedora? Empreendedorismo é uma ciência? Ou é uma arte?

Há respostas que concordam e discordam para todas estas questões, daí o debate! Há muita pesquisa e muito achismo sobre o assunto, daí a polêmica. Eu também tenho as minhas convicções e os meus achismos sobre o empreendedorismo e já mudei algumas das minhas crenças diante de algumas constatações.
No campo da ciência, de tempos em tempos aparece algo que muda a crença vigente. Thomas Kuhn chamou isto de quebra de paradigma, termo que depois de popularizou e virou sinônimo de qualquer tipo de alteração de parâmetro.

Mas uma quebra de paradigma kuhneriana no campo do empreendedorismo foi a proposição da Teoria do Effectuation proposto pela Professora Saras em 2001. O Effectuation questionou a abordagem vigente daquele empreendedor que planeja tudo antes, identifica a melhor oportunidade de negócio, mede o risco e o retorno detalhadamente. É claro que este empreendedor existe (em número cada vez maior), mas a imensa maioria das pessoas começa um negócio a partir daquilo que ela é, quem ela conhece e o que sabe fazer. Este é a primeira parte do ciclo do Effectuation. Quando escolhe algo que sabe fazer, passa a interagir com pessoas do seu relacionamento.

Eventualmente, estas duas primeiras etapas podem ocorrer de forma simultânea, quando alguém da sua rede de relacionamento pede algo que você sabe fazer. Mas o negócio passa, literalmente, a ganhar corpo quando pessoas conhecidas ou conhecidas das conhecidas passam a fazer pedidos. Mais pessoas entram em contato com o seu produto ou serviço e pessoas totalmente desconhecidas tornam-se clientes. O Effectuation tende a ser algo óbvio e pode não explicar tudo, mas foi uma contribuição científica para avançarmos o conhecimento do empreendedorismo. Novas abordagens como Lean Startup e Customer Development se alinham ao Effectuation.

Mas o empreendedorismo também pode ser uma arte, uma expressão da genialidade individual que, muitas vezes, a ciência ainda não consegue explicar. E a arte empreendedora está associada a muitas capacidades como empatia, visão, execução, design, simplicidade, entre outras.

Nesta semana, meus colegas empreendedores blogueiros postaram dilemas e desafios que podem ser discutidos a partir da ciência ou da arte empreendedora. Pedro Chiamulera da ClearSale falou da importância de uma tecnologia simples e amigável para os clientes e citou sua inspiração na Teoria do Fluxo proposto pelo psicólogo de sobrenome impronunciável , Mihály Csíkszentmihályi. A Teoria do Fluxo, apesar de não ser muito conhecida no Brasil, tem influenciado muitas pessoas no Vale do Silício, inclusive David Kelley, o celebrado fundador da Ideo.

Juliana Motter da Maria Brigadeiro apresentou um exemplo de “telefone sem fio” na sua empresa, uma situação em que ela fala algo que é compreendido de forma totalmente diferente pelos seus colaboradores. Como fazer com que os colaboradores entendam o que o empreendedor realmente disse? Há muitas teorias sobre comunicação eficaz, mas aqui pode entrar um pouco da arte empreendedora, mais especificamente a sabedoria empreendedora.

Bernardo Hees, quando ainda era presidente da América Latina Logística, implementou a Regra dos 7 na qual, qualquer comunicado para os colaboradores deveria ser simples e direta a ponto de uma criança de 7 anos entender. Alberto Saraiva, do Habib’s, foi mais direto: criou um sistema de provas em que todos os colaboradores, incluindo os diretores, deveriam prestar. Assim garantiu que todos estudassem e demonstrassem seu conhecimento sobre a empresa.

Adriane Silveira da Nanny Dog apresentou suas reflexões obtidas durante o primeiro ano de vida da sua empresa. E reconheceu que a empresa tem muitos pontos fortes, mas precisa melhorar a capacidade de planejamento. É uma ótima constatação! Muitos empreendedores começam pela lógica do Effectuation, mas depois se dão conta de que precisam planejar formalmente o negócio. É o momento em que o empreendedor se vê na necessidade de ter capacidades de gestor.

Em alguns casos, o empreendedor se torna um bom gestor, mas quando isto não ocorre, é preciso ter um sócio ou colaborador que execute muito bem esta função. Material para ajudar o empreendedor nesta situação não falta. No Brasil, Vicente Falconi é um dos grandes pensadores (e executores) do planejamento estratégico. Seu livro O Verdadeiro Poder pode ser muito útil para empreendedores que estão se tornando gestores.

Por fim, o desafio que considero o mais difícil e narrado pelo Renato Steinberg da Fashion.me. Como ter bons colaboradores na sua empresa? Jim Collins, um dos poucos que conseguem alinhar ciência e arte da administração, expande este questionamento colocando outros: Quantas pessoas certas vocês têm na sua empresa? Quantas estão nos cargos-chave? Quantos cargos-chave existem na companhia? São questionamentos que acompanharão o empreendedor durante toda a sua trajetória profissional. E no final descobrirão que o que realmente importa é o foco e as pessoas que o ajudaram a atingir seus objetivos.

Mas o questionamento do Renato ainda permanece sem uma boa resposta para boa parte dos empreendedores. Por mais que haja muita teoria sobre o recrutamento de pessoas, ainda me alinho, humildemente, ao que defende Beto Sicupira, empreendedor da AB/Inbev e de tantas outras empresas: “Contrate pessoas melhores do que você, com qualidades e conhecimentos diferentes dos seus!”. Para empreendedores chegarem a esta consideração, precisam antes ter a sabedoria de reconhecer e apostar em talentos que sabem que não têm.

Por: Marcelo NaKagawa, Insper    O Estado de SP

quinta-feira, 28 de março de 2013

"O BIGODE DE ANGELA MERKEL"

"Saia de nosso país", lia-se no cartaz, sob uma foto do rosto de Angela Merkel, ao qual se acrescentara um bigode à Hitler. Diante do Parlamento cipriota, em Nicósia, a manifestante - uma pacata senhora de meia-idade - repetia um gesto banalizado nas praças de Atenas, Lisboa, Madri e até Roma. Entre os manifestantes, a chefe de governo da Alemanha personifica a "Europa", essa entidade geopolítica ainda mais abstrata que um Estado-nação. A identificação esclarece as raízes da crise da União Europeia (UE).

Chipre é um caso singular, mas também uma lição eloquente sobre o que está em jogo. Seu setor financeiro, que faliu em decorrência da quebra grega, possuía ativos oito vezes maiores que o PIB e operava como lavanderia do dinheiro sujo das máfias russas. Por isso a UE se desviou dos modelos aplicados nos demais países endividados, exigindo como contrapartida do pacote de resgate um confisco parcial dos depósitos bancários no país. A solução original, contudo, implicava a violação da promessa solene, anunciada no início da crise do euro, de preservar os direitos dos depositantes, em valores inferiores a 100 mil euros. O precedente conta: se euros podem ser confiscados na ilhota do Mediterrâneo oriental, o que impede que sejam confiscados em Portugal ou na Espanha?

"Este é um ato indisfarçável de expropriação - em outras palavras, algo do arsenal da luta de classes dos bolcheviques, não da política econômica civilizada", reagiu o Moskovskiy Komsomolets. O jornal, um porta-voz quase explícito do Kremlin numa Rússia que realizou o sonho petista do "controle social da mídia", defendia cinicamente os interesses das máfias russas, mas tocava no nervo sensível da confiança.

Confiança é o outro nome do dinheiro: o verdadeiro lastro de todas as moedas do mundo. Em Chipre, o cristal da confiança no euro foi trincado pela segunda vez. A primeira, na Grécia, derivou da "expropriação" das instituições financeiras detentoras de títulos da dívida pública. No país insular, o plano original, rejeitado pelos parlamentares, era mais grave: atingia cidadãos comuns, junto com mafiosos estrangeiros. Já o plano definitivo, que expropria massivamente os grandes depositantes russos e nem mesmo foi submetido a voto no Parlamento, equivale à destruição do motor da economia cipriota. Nenhum investidor voltará a colocar dinheiro naquela ilha em futuro previsível - e muitos pensarão duas vezes antes de comprar ativos financeiros denominados em euros.

Angela Merkel maneja, de fato, o timão da "Europa" abalada pela crise do euro. Sua estratégia deflacionária de austeridade provoca implosões sucessivas nos pilares que sustentam o edifício europeu. O bigode de Hitler, contudo, não lhe cai bem: a "ditadura" exercida pela "troika" - UE, Banco Central Europeu (BCE) e FMI - sobre os governos nacionais eleitos não deriva da vontade da Alemanha, mas precisamente da frustração da vontade alemã na hora do tratado da união econômica e monetária.

O ano era 1990, meses depois da queda do Muro de Berlim e apenas semanas antes da reunificação alemã. Do presidente François Mitterrand emergira a proposta da união monetária, um preço que a Alemanha deveria pagar pela restauração da unidade nacional. Cedendo à posição francesa, o primeiro-ministro Helmut Kohl contrariou o BundesBank, o banco central de seu país, que não escondia o temor causado pela lendária irresponsabilidade fiscal dos países do Mediterrâneo. A moeda comum serviria para soldar os destinos alemães aos da "Europa", um objetivo geopolítico que valia a dolorosa renúncia ao marco.

Kohl conhecia os riscos e tinha uma solução. "A união política é a contrapartida essencial da união econômica e monetária", explicou numa sessão do Bundestag, o Parlamento alemão, em novembro de 1991, durante as negociações do Tratado de Maastricht. "A História recente, e não apenas da Alemanha, ensina-nos que é absurdo imaginar que se possa manter a união econômica e monetária, a longo prazo, sem uma união política". União política era sua senha para a criação de um organismo europeu de fiscalização e controle dos orçamentos dos governos nacionais. A ideia, todavia, quebrou-se de encontro ao rochedo da oposição de Mitterrand. A França almejava partilhar o controle sobre a moeda alemã, mas não contemplava a hipótese de ceder à Alemanha o controle sobre o orçamento francês. Do impasse nasceu o euro, uma "criança enferma", na expressão de Timothy Garton Ash, embalada no berço dos "critérios de convergência" de Maastricht, o nome pomposo de uma promessa vazia de responsabilidade fiscal.

O poder de emitir dinheiro é inseparável do poder de emitir dívida. O Tratado de Maastricht, porém, separou um do outro, entregando o primeiro ao BCE e conservando o segundo nas mãos dos governos nacionais. A cisão, que Kohl qualificava como "absurda", reflete a tensão entre o projeto supranacional da "Europa" e a persistência dos Estados nacionais europeus. A crise do euro, derivada daquela cisão, pode ser descrita como uma dupla recusa: a rejeição alemã a uma "união da dívida" e a rejeição dos demais países à cessão do poder soberano de emitir dívida.

A UE foi concebida em 1952, quando a Alemanha aceitou compartilhar a soberania sobre seus recursos siderúrgicos, e assumiu a forma atual em 1992, quando a Alemanha aceitou compartilhar a soberania sobre sua moeda. Os dois passos, separados por quatro décadas, obedeceram ao imperativo político de construir uma "Alemanha europeia", conjurando para sempre o espectro de uma "Europa alemã". Ironicamente, porém, o fruto final deles foi o surgimento de uma "Alemanha europeia" no timão de uma "Europa alemã". Desenhar um bigode em Angela Merkel pode não ser justo, mas expressa emblematicamente a frustração provocada por esse fruto inesperado do projeto supranacional europeu. Por: Demétrio Magnoli O Estado de SP

quarta-feira, 27 de março de 2013

SOBRE FALSOS HERÓIS

Que heróis são esses que ergueram massasPregando o fim de alheias propriedades?
Tramando golpes com base em mentiras,
Ideologias de falsa igualdade.

Que heróis fajutos, que com mil falácias
Organizaram hordas de iludidos.
Disseminando ódio entre as classes
Com seus conceitos falsos e falidos.

Que heróis de araque que até hoje guiam
Servos que travam inúteis contendas;
E assim militam por ruas e becos,
E cortam cercas pra invadir fazendas.

Que heróis bandidos que pregaram roubo
E caridade com dinheiro alheio.
Mas cujo os bolsos de seus seguidores
Não se abstende a se manterem cheios.

Legado tosco o destes heróis,
Que greves tolas vão influenciando.
Pelas escolas, poluindo livros;
Nas faculdades, mitos se tornando.

E os seguidores dos heróis de barro,
Que alcançando pleno poder,
Confiscam armas do povo que, assim,
Nem mais a vida pode defender.

Sagaz macabras as destes heróis,
Cujos ideais, pátrias degeneram.
Destroem jovens, corrompendo mentes
Com utopias que nunca prosperam.

São cultuados em todas as partes;
Cidades, campus e universidades.
E assim, aos poucos, seus servis soldados
Calam as vozes que falam verdades.

Triste destino o dos que lutaram
Nas intentonas dos heróis falsários.
Fortalecendo o perigo vermelho,
Feito de ódio e rancor proletário.

Pobre cabeça que acata as ideias
De um falso herói mal-intencionado.
Pobre do homem, que iludido entrega
Sua devoção aos heróis errados.

Letra da música; Sobre Falsos Heróis de José Fiqhera Salgado

PIB, OLHANDO PARA A FRENTE

Não se deve esperar medida mais heroica do governo no sentido de enfrentar os desafios estruturais


Em nosso encontro passado, chamei a atenção do leitor para o medíocre crescimento da economia em 2012 e fiz uma previsão de dias melhores para este ano. Os dados já disponíveis sobre o comportamento da economia neste primeiro trimestre caminham nessa direção.

O Banco Central divulgou recentemente que o PIB que mede mensalmente, relativo ao mês de janeiro passado, cresceu 1,3% em relação ao mês anterior. Embora a correlação entre esse número e o PIB calculado pelo IBGE tenha sido muito baixa no período recente, esse índice IBC-BR ainda faz parte de um grupo de indicadores utilizados pelo mercado para estimar o crescimento da economia.

Outros números que funcionam como indicadores antecedentes do PIB apontam também para um crescimento mais forte neste trimestre que se encerra. Dois deles me chamaram a atenção e devem ser destaques quando o número oficial for conhecido: o crescimento da produção agrícola e o da produção e da venda de caminhões.

Fernando Montero, um dos analistas que acompanho regularmente, prevê para 2013 um crescimento do PIB agrícola de 8%. Mas, para o primeiro trimestre, em razão da sazonalidade da agricultura, o crescimento pode chegar a 13% em relação ao mesmo período de 2012.

Como o peso da agricultura no PIB é da ordem de 5%, somente esse item deve gerar um crescimento de cerca de 0,6%.

Outro setor da economia que vem mostrando um crescimento elevado, neste início de ano, é o de caminhões, bom indicador da formação bruta de capital, nome complexo do investimento nas contas nacionais do IBGE.

Com isso, mantendo o crescimento do setor de serviços na faixa dos 2,5% ao ano e projetando uma recuperação da indústria da ordem de 3%, chegamos a um crescimento no trimestre -em relação ao trimestre anterior- da ordem de 1,3%, ou seja, 5,2% anuais.

Mas, com a sazonalidade da agricultura, a taxa de crescimento dos trimestres seguintes deve se reduzir para algo como 0,8%, ou seja, 3,2% ao ano. Com isso, o número final de crescimento do PIB em 2013 será -se suas avaliações estiverem corretas- de 3,3%, com os serviços crescendo 2,6%, a indústria, 3,0%, e a agropecuária, 8,3%.

Outro economista que acompanho nas avaliações de conjuntura de curto prazo é Fabio Ramos, da Quest Investimentos. Suas previsões estão na mesma direção de Fernando Montero, mas com uma velocidade de crescimento mais baixa. Seus números hoje são 1% de crescimento para o primeiro trimestre deste ano e 2,9% a 3,2% para o ano como um todo.

Se confirmadas essas previsões, dois comentários se impõem: o primeiro é que, dado o crescimento medíocre de 2012, esses números ainda mostram uma economia com extrema dificuldade de retomar a velocidade de crescimento do período de ouro de Lula.

A segunda observação é a que essa velocidade de crescimento será suficiente para manter a geração de emprego no nível mínimo necessário para perenizar o nível atual do desemprego.

Portanto, a correção dos salários nos próximos meses deve se manter acima da inflação, garantindo aumentos reais aos trabalhadores.

Como já entramos no radar das eleições presidenciais do próximo ano, não se deve esperar nenhuma medida mais heroica do governo no sentido de enfrentar os desafios estruturais que dominam a economia brasileira hoje. Essa velocidade de crescimento e a manutenção da situação de quase pleno emprego devem ser suficientes para garantir a reeleição da presidente.

Por isso vamos continuar a ver -e a conviver- por muito tempo ainda as filas absurdas de caminhões nos principais portos do país, bem como os atrasos de dias para que os navios possam embarcar suas cargas, onerando nossas exportações.

Também as pressões inflacionárias que começam a crescer em razão de descompassos de oferta em mercados importantes serão enfrentadas com medidas paliativas, como redução de impostos na ponta do consumo. Até mesmo a política de superavit fiscais primários, que têm permitido uma redução continuada da dívida pública, será imolada no altar da reeleição. Por: Luiz Carlos Mendonça de Barros Folha de SP

terça-feira, 26 de março de 2013

DEZ ANOS DE GUERRA DO IRAQUE


Kofi Annan da ONU cumprimenta Saddam Hussein

Dez anos de Guerra do Iraque. O que você "sabe" é que Bush mentiu para ir à guerra e terminar o serviço começado pelo pai, certo? O que você talvez não saiba é que Saddam Hussein ignorou o acordo de inspeção com a ONU após anos brincando de "gato e rato" com os inspetores; que Hans Blix foi feito de idiota e a ONU tinha a obrigação de agir para não ser desmoralizada; que Saddam abrigou o terrorista que atacou o WTC em 1993; que deu proteção a outros terroristas como Abu Abbas e Abu Nidal; que financiou ataques suicidas no Oriente Médio; que usou gás de mostarda contra população indefesa; que tinha esquema de corrupção com gente graúda da própria ONU (no programa “Oil for Food”); que o presidente Bill Clinton, antes de Bush, assinou a autorização para o país buscar remover Saddam do poder e substituí-lo por um regime democrático; que tal medida contou com aprovação maciça da maioria do Congresso, incluindo do Partido Democrata (157 a favor x 20 contra); que o governo Clinton efetivamente iniciou ação militar, ainda sob pressão pelo escândalo Monica Lewinsky, bombardeando intensamente por quatro dias instalações iraquianas na Operação Raposa do Deserto (na Wikipedia não aparece o nome do presidente Clinton!).


ISSO tudo você sabia? Mas a imagem que ficou foi a de um cowboy beligerante resolvendo issues familiares ou em busca do petróleo (e então, como anda a colonização no Iraque hoje?). Criticar a guerra é absolutamente legítimo. O que NÃO é legítimo é ignorar todo o contexto e acusar somente Bush sem entender o que estava em jogo. Vale notar que a reação estridente veio ANTES até da guerra do Afeganistão, essa sim, absolutamente justa pela ótica americana, quando lembramos que o Talibã dava guarida aos terroristas do ataque de 11 de setembro. Compare isso com a reação após Pearl Harbor em 1941! E entenda que a máquina de propaganda esquerdista tomou conta da América, em uma estranha e nefasta simbiose com os radicais islâmicos.

Leitura recomendada: Unholy Alliance: RadicalIslam And the American Left, de David Horowitz. Por: Rodrigo Constantino



O MITO DA PRESIDENTE WORKAHOLIC

Ao longo dos últimos dois anos, os propagandistas de Dilma Rousseff construíram vários figurinos, todos fracassados pela dura realidade dos fatos. O último foi o da presidente workaholic. Trabalharia diuturnamente, seria superexigente, realizaria constantes reuniões com os ministros, analisaria detidamente os projetos e cobraria impiedosamente resultados. Porém, os dados oficias da sua agenda, disponibilizados na internet, provam justamente o contrário.


Em agosto despachou com 17 ministros. Um terço deles, apenas uma vez (como Aldo Rebelo e Celso Amorim). Deu preferência a Paulo Sérgio Passos, Gleisi Hoffman e especialmente para Guido Mantega, recebido 9 vezes. Se a a maioria deles não teve um minuto de atenção da presidente, o mesmo não se aplica a Rui Falcão, presidente do PT, e até ao presidente da UNE, Daniel Iliescu, que foram ouvidos a 9 e 22 de agosto, respectivamente.

Dilma pouco se deslocou de Brasília. Numa delas foi a São Paulo, no dia 6. Saiu às 11h30m direto para o escritório da Presidência da República na capital paulista, à época ainda sob a responsabilidade de Rosemary Noronha. Dilma foi se encontrar com Lula. Passaram horas discutindo política. Às 18h40m, retornou a Brasília. Foi a única atividade do dia.

Em setembro recebeu 14 ministros. Os mais assíduos foram os que despacham no Palácio do Planalto (Miriam Belchior, Gleisi Hoffman e Ideli Salvatti; as duas últimas, quatro vezes, e a primeira, três) e Aldo Rebelo (Esportes), três vezes. Uma sequência de 12 dias com pouquíssima atividade chama a atenção. No dia 5 recebeu um ministro (Edison Lobão) às 9h e não há mais qualquer registro. No dia seguinte trabalhou das 10h às 12h. E só. No feriado compareceu ao tradicional desfile. Na segunda-feira, dia 10, só registrou duas audiências, uma às 10h e outra às 15h.

Dois dias depois, foi uma espécie de “quarta maluca”. A presidente teve apenas dois compromissos e nenhum administrativo: às 15h, recebeu o presidente do PCdoB, “o partido do socialismo”, Renato Rabelo, e uma hora depois, mostrando o amplo arco de apoio do governo – e haja arco! -, o megaempresário Jorge Gerdau. E mais nada. No dia seguinte compareceu à posse de um ministro e ao lançamento de um programa de incentivo do esporte de alto rendimento. Na sexta-feira (14), anotou na agenda às 10h um despacho interno e rumou, no início da tarde, para Porto Alegre, onde permaneceu o fim de semana e a segunda-feira – neste dia visitando dois estaleiros.

Nada mudou em outubro. Despachou com 19 ministros. Fez uma breve viagem ao Peru, visitou São Luís e São Paulo (duas vezes: uma delas novamente ao escritório da Presidência da República e para mais um encontro com Lula). Se muitos ministros, em três meses, não foram recebidos pela presidente, o mesmo não ocorreu com Renato Rabelo. O presidente do PCdoB teve mais uma audiência, a segunda em dois meses. Dilma teve tempo para ouvir Fernando Haddad, prefeito eleito de São Paulo, no dia 29, e, dois dias depois, o de Goiânia. Ambos do PT.

Curiosamente a agenda não registrou – caso único – onde a presidente esteve nos dias 27 e 28, fim de semana.

Dilma manteve em novembro sua estranha rotina de trabalho. Recebeu 15 ministros. Dois pela primeira vez, nos últimos 4 meses: Paulo Bernardo e Antonio Patriota. Concedeu duas audiências a prefeitos eleitos: de Niterói, Rodrigo Neves, do PT; e Curitiba, Gustavo Fruet, do PDT e apoiado pelo PT. Fez uma longa viagem à Espanha e uma breve à Argentina. Mas três dias se destacam pelas curiosas prioridades: 21, 22 e 23. Na quarta-feira (21), a presidente não recebeu nenhum ministro e não efetuou qualquer despacho administrativo. Dedicou o dia a José Sarney, Gim Argello, Eduardo Braga e ao seu vice-presidente, Michel Temer.

Como ninguém é de ferro, à noite assistiu o filme “O palhaço”. No dia seguinte, a agenda registrou três compromissos, um só com ministro (o dos Portos), a posse do presidente e vice-presidente do STF e um encontro com a apresentadora Regina Casé. E na sexta-feira? Somente duas audiências e no período da tarde.

Dilma incorporou o péssimo hábito de que o mês de dezembro é “de festas”. Fez duas viagens ao exterior (França e Rússia) e despachou com apenas 9 ministros. Antecipou o réveillon para o dia 28, suspendendo as atividades por 13 dias, até 9 de janeiro.

Iniciou o novo ano com a mesma disposição do anterior: pouquíssimos despachos, audiências ou reuniões de trabalho. Em janeiro, despachou com 11 ministros. Lobão foi o recordista: quatro vezes. E, por incrível que pareça, e sempre de acordo com a agenda oficial, concedeu pela primeira vez em um semestre uma audiência para o ministro da Saúde, Alexandre Padilha. Melhor sorte teve o ex-jornalista Franklin Martins: esteve duas vezes, em apenas quatro meses, com Dilma.

Nesse semestre (agosto de 2012/janeiro de 2013), nove ministros – cerca de um quarto do ministério – nunca foram recebidos pela presidente: Marcelo Crivella, Aguinaldo Ribeiro, Garibaldi Alves Filho, Brizola Neto, Gastão Vieira, Maria do Rosário, Eleonora Menicucci, José Elito e Alexandre Tombini (presidente do Banco Central, mas com status de ministro). Outros não mais que uma vez. Uma reunião entre a presidente e alguns ministros de áreas correlatas nunca foi realizada. Em alguns dias (como a 16 de janeiro), não concedeu nenhuma audiência e nem efetuou despachos internos. Pior ocorreu duas semanas depois, a 30 de janeiro, uma quarta-feira: está sem nenhum compromisso. É uma agenda de uma workahloic? Por: Marco Antonio Villa O globo

segunda-feira, 25 de março de 2013

IGUALDADE: O IDEAL DESCONHECIDO


Todos os homens são criados iguais.

Quando Thomas Jefferson, na Declaração de Independência dos EUA, enunciou os princípios filosóficos que fundamentaram a Revolução Americana, este foi o primeiro princípio que ele anunciou. Tal princípio seria a base e a justificativa para todo o resto. Igualdade — e não liberdade, como seria de se esperar.

A versão original da Declaração dava ênfase à importância da igualdade de forma ainda mais percuciente. A versão final e mais conhecida declara:

Consideramos estas verdades como auto-evidentes: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.

Mas o que Jefferson originalmente escreveu foi isso:

Consideramos estas verdades sagradas e inegáveis: que todos os homens são criados iguais e independentes; que desta criação igual resulta que eles possuem direitos inerentes e inalienáveis, dentre os quais estão a preservação da vida e da liberdade, e a busca da felicidade.

Até onde sei, as palavras foram alteradas não por motivos substantivos, mas sim estilísticos. A versão final de fato flui mais suavemente. Porém, a versão original é mais filosoficamente precisa. Em comparação à versão final, em que igualdade e liberdade são apresentados como sendo apenas dois princípios fundamentais — sendo que a relação de um com o outro é vaga e obscura —, na versão original o valor da liberdade é explicitamente formulado como sendo secundário ao valor da igualdade. Mais ainda: é formulado como sendo derivado da igualdade.

No entanto, nós libertários não falamos tão frequentemente, ou tão calorosamente, sobre igualdade. Em vez disso, falamos sobre liberdade; é por isso que nos chamamos de libertários, e não de igualitários. Por outro lado, aqueles que com mais frequência invocam a questão da igualdade nos discursos políticos atuais tendem a ser inimigos dos princípios libertários que nós esposamos. Sendo assim, e tomando por base as palavras de Jefferson, como pode a igualdade ser nosso ideal, se é também o ideal deles?

A resposta está no fato de que é necessário especificar conceitos: igualdade de quê? Igualdade em relação a quê? Nossos oponentes igualitários defendem a igualdade socioeconômica — algumas vezes interpretada como igualdade de oportunidades socioeconômicas, e algumas vezes interpretada como igualdade de resultadossocioeconômicos. (Nos dias de hoje, a diferença entre as duas está cada vez mais obscura, uma vez que a desigualdade de resultados é interpretada como evidência indiscutível da desigualdade de oportunidades). Que tipo de igualdade nós defendemos?

Com alguma frequência, sugere-se que a versão libertária de igualdade refere-se à igualdade legal — isto é, igualdade perante a lei. De fato, é verdade que o ideal de igualdade legal é constantemente invocado por libertários contra vários programas que apresentam uma linhagem socioeconomicamente igualitária (tais como leis trabalhistas e leis antidiscriminação que dão aos empregados, ao mesmo tempo em que negam aos empregadores, o direito de terminar a relação empregador-empregado de acordo com sua vontade).

Porém, uma igualdade legal deste tipo é muito limitada para constituir o ideal libertário. Assim como os igualitários socioeconômicos consideram que a igualdade legal é inadequada porque (na memorável frase de Anatole France) proíbe tanto os ricos quanto os pobres de dormir embaixo de viadutos, os libertários também não ganhariam muitos aplausos caso, por exemplo, ampliassem a injustiça do recrutamento militar obrigatório também para as mulheres — isso seria um avanço em termos de igualdade legal, mas dificilmente um avanço em termos de liberdade. Como disse Murray Rothbard,



A justiça da igualdade de tratamento depende acima de tudo da própria justiça deste tratamento. Suponhamos, por exemplo, que João, com sua comitiva, proponha-se a escravizar um grupo de pessoas. Devemos afirmar que a "justiça" exige que cada um seja escravizado igualmente? E suponhamos que alguém tenha a sorte de escapar. Devemos condenar este fugitivo pelo fato de ele ter se esquivado da 'igualdade de justiça' dada aos seus companheiros?

Similarmente, o conceito de igualdade de liberdade também é incapaz de capturar todo o ideal libertário. Um mundo no qual todos os indivíduos tivessem uma ínfima e idêntica quantia de liberdade não seria um mundo libertário. Podemos falar, como fez Herbert Spencer, sobre uma lei que estipulasse uma liberdade idêntica para todos (Lei de Igual Liberdade), mas tal lei especificaria não apenas a equalização da liberdade, mas também a suamaximização; não é o quesito 'igual' quem efetua o verdadeiro trabalho. A lei da liberdade idêntica trata a igualdade como sendo, na melhor das hipóteses, uma restrição sobre a liberdade máxima, e não a sua base.

Digo "na melhor das hipóteses" porque a liberdade idêntica para todos é uma consequência lógica da liberdade máxima, e não algum tipo de restrição sobre ela. Citando Rothbard novamente:

Caso uma pessoa deseje obrigar todos os homens a comprar um carro, ela pode formular tal objetivo da seguinte maneira: "Todo homem deve comprar um carro", em vez de usar termos como: "Todos os homens devem ter igualdade na compra de um carro". . . . A Lei de Igual Liberdade de Spencer é redundante. Pois, se cada homem tem a liberdade de fazer tudo o que queira, infere-se desta mesma premissa que a liberdade de nenhum outro homem foi infringida ou invadida. . . . O conceito de "igualdade" não tem lugar legítimo na "Lei de Igual Liberdade", podendo ser substituído pelo determinante lógico "todo". A "Lei de Igual Liberdade" poderia muito bem ser renomeada "Lei da Liberdade Total".

Mas se nem a igualdade legal e nem a igualdade de liberdade são suficientes para uma sociedade livre, então em que sentido podemos deduzir que temos o direito à liberdade do mero fato de termos sido criados iguais?

Para obtermos a resposta a esta questão, temos de ir à fonte de Jefferson, John Locke, que nos diz exatamente o que é "igualdade" no sentido libertário: mais especificamente, trata-se de uma condição onde a reciprocidade determina todo o poder e toda a jurisdição, ninguém tendo mais que os outros; evidentemente, seres criados da mesma espécie e da mesma condição, que, desde seu nascimento, desfrutam juntos de todas as vantagens comuns da natureza e do uso das mesmas faculdades, devem ainda ser iguais entre si, sem subordinação ou sujeição. . . .

Em suma, a igualdade de que Locke e Jefferson falam é a igualdade de autoridade: a proibição de qualquer "subordinação ou sujeição" de um indivíduo a outro. Dado que qualquer interferência de A na liberdade de B constitui uma subordinação ou sujeição de B a A, o direito à liberdade advém diretamente da igualdade de "poder e jurisdição". Como explica Locke:

Sendo todos iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens. . . . Dotados de faculdades similares, dividindo tudo em uma única comunidade da natureza, não se pode conceber que exista entre nós uma "hierarquia" que nos autorizaria a nos destruir uns aos outros, como se tivéssemos sido feitos para servir de instrumento às necessidades uns dos outros, da mesma maneira que as ordens inferiores da criação são destinadas a servir de instrumento às nossas.

Esta é uma notável declaração pré-kantiana do princípio de que seres humanos não devem ser tratados como meros meios para a consecução dos fins almejados por outros. (Observe, também, como tanto Locke quanto Jefferson invocam a independência como sendo um corolário de igualdade de autoridade).

Podemos entender agora por que tanto a igualdade socioeconômica quanto a igualdade legal são insuficientes para se chegar ao radicalismo da igualdade lockeana. Nenhuma destas duas formas de igualdade questiona a autoridade daqueles que administram o sistema legal; tais administradores são requeridos meramente para garantir igualdade entre os administrados. Assim, comparada à igualdade legal, a igualdade socioeconômica, não obstante as arrojadas alegações de seus partidários, não representa nenhum desafio adicional ao poder vigente. Ambas as formas de igualdade apelam a esta estrutura de poder para que ela tome determinadas medidas; e, ao fazerem isso, ambas pressupõem — na verdade, pedem por — uma desigualdade de autoridade entre aqueles que administram o arcabouço legal e aqueles que são os administrados.

A versão libertária da igualdade não é limitada desta maneira. Na visão de Locke, igualdade de autoridade significa negar aos administradores do sistema legal — e consequentemente ao próprio sistema legal — quaisquer poderes além daqueles em posse dos indivíduos comuns:

Cabe a cada um, neste estado, assegurar a "execução" da lei da natureza, o que implica que cada um tem o direito de punir os transgressores desta lei com uma severidade tal que venha a impedir sua violação. . . . Pois nesse estado de perfeita igualdade, onde naturalmente não há superioridade ou jurisdição de um sobre o outro, o que um pode fazer para garantir essa lei, todos devem ter o direito de fazê-lo.

A igualdade lockeana envolve não apenas uma igualdade perante os legisladores, os juízes e a polícia, como também, e de maneira ainda mais crucial, uma igualdade junto aos legisladores, juízes e policiais.

Por este critério, Murray Rothbard, em sua defesa do anarcocapitalismo, acaba se revelando um dos mais consistentes e completos teóricos igualitários de nossa era. Sendo ele o autor do ensaio O igualitarismo é uma revolta contra a natureza, Rothbard pode muito bem estar se revirando em seu túmulo ao ouvir tal descrição a respeito de si próprio. Porém, como veremos, aquilo que Ayn Rand costumava dizer sobre o capitalismo — que o capitalismo é um ideal desconhecido — se aplica a fortiori para a igualdade: o conceito de igualdade, propriamente entendido, é também de várias maneiras um ideal desconhecido — desconhecido tanto para seus defensores quanto para seus detratores.

Desde a época de Locke, libertários têm se dividido em dois campos. Alguns, como Rothbard, adotaram a igualdade lockeana como sendo um padrão absoluto para todo e qualquer sistema legal. Outros, seguindo o próprio Locke, consideraram que a igualdade lockeana pura gera uma restrição impraticável sobre um sistema legal. Sendo assim, eles defenderam abrir mão de uma determinada quantidade de igualdade lockeana com o intuito de tornar praticável a proteção legal da igualdade lockeana que restasse.

Minha afinidade está com o primeiro grupo. Da maneira como vejo, os argumentos de Locke para a incompatibilidade da igualdade lockeana com uma ordem legal operante incorrem na falácia da composição ou na falácia da reificação. Por exemplo, da alegação de que todo mundo deveria submeter suas contendas a uma entidade externa, Locke falaciosamente infere que deveria haver uma entidade externa para quem todo mundo submeteria suas contendas. Isso é semelhante a dizer que da afirmação todo mundo gosta de pelo menos um programa de TV, pode-se inferir que existe apenas um programa de TV do qual todo mundo gosta.

No entanto, mesmo que o segundo grupo esteja certo, e de fato fosse necessário abrir mão de uma determinada quantidade de igualdade lockeana com o intuito de proteger o que restasse, ainda assim seria verdade que quaisquer poderes exclusivos do governo que fossem além do que é estritamente necessário para o funcionamento de um sistema legal constituiriam uma injustificável afronta à igualdade humana. Ambos os grupos procuram, de qualquer forma, minimizar qualquer afastamento da igualdade lockeana. Sendo assim, os libertários tradicionalmente direcionam sua ira contra as desigualdades de autoridade que existem entre, de um lado, o cidadão comum, e, do outro, os administradores do sistema legal (bem como os grupos de interesses privados que, por meio de lobbies e contratos, se beneficiam com os privilégios concedidos pelo governo).

A escritora Wendy McElroy pesquisou a interação dentro do movimento feminista de três ideais igualitários distintos: um ideal "convencional" — igualdade perante a lei — e dois ideais mais "radicais" — igualdade socioeconômica, a qual McElroy identifica como sendo um ideal socialista ou marxista, e aquilo que venho chamando de 'igualdade de autoridade', o qual McElroy identifica como sendo um ideal individualista ou libertário:

O significado de igualdade diverge dentro do movimento feminista. Ao longo de grande parte de sua história, o feminismo convencional considerou a igualdade como sendo tratamento igualitário sob as leis vigentes e representação igualitária dentro das instituições vigentes. O objetivo não era mudar o status quo, mas sim ser incluído nele. As feministas mais radicais protestaram dizendo que as leis e as instituições vigentes eram a fonte de todas as injustiças, e, sendo assim, não poderiam ser reformadas. [...] 

Seus conceitos de igualdade refletiam isto. Para o individualista, igualdade era um termo político que se referia à proteção dos direitos individuais; ou seja, proteção da jurisdição moral que todo ser humano possui sobre seu corpo. Para as feministas-socialistas, era um termo sócio-econômico. ... Ao passo que a análise de classe marxista utiliza como ponto de referência a relação de uma determinada classe para com o modo de produção, a análise de classe libertária utiliza como critério a relação de uma determinada classe para com os meios políticos. A sociedade é dividida em duas classes: aqueles que utilizam os meios políticos — que é a força — para adquirir riqueza e poder, e aqueles que utilizam os meios econômicos, os quais requerem interação voluntária. A primeira classe é a classe dominante, que vive à custa do trabalho e da riqueza da outra classe.

De uma perspectiva libertária, os igualitários socioeconômicos acabam se revelando, de forma muito embaraçosa, apologistas da classe dominante.

A resistência libertária a propostas socioeconomicamente igualitárias é ela própria baseada em um ideal igualitário. Isso é algo raramente reconhecido, mas é uma verdade. O único igualitário socioeconômico que sei que reconhece isto é Amartya Sen. Não obstante, Sen é a exceção que comprova a regra. Pois ele também não entendeu o ponto: ele interpreta igualdade libertária com igualdade de liberdade, uma interpretação que já vimos ser inadequada. Eis como Sen vê a questão:

Os pensadores libertários [...] não apenas são vistos como anti-igualitários, como também são considerados anti-igualitários precisamente por causa do seu interesse prioritário na liberdade. ... [E]ste modo de ver a relação entre a igualdade e a liberdade é completamente inadequada. Os libertários devem considerar importante que as pessoas devam ter liberdade. Dado isso, imediatamente surgem perguntas como:quem, quanto, distribuída como, quão igual? Por isso, o problema da igualdade aparece imediatamente como um complemento da afirmação da importância da liberdade. A proposta libertária tem de ser complementada passando-se a caracterizar a distribuição de direitos entre as pessoas envolvidas. Com efeito, as demandas libertárias por mais liberdade tipicamente incluem características importantes de "liberdade igual", por exemplo, a insistência na igual imunidade à interferência de terceiros. ... A liberdade está entre os possíveis campos de aplicação da igualdade, e a igualdade está entre os possíveis padrões de distribuição da liberdade.

A análise de Sen é confusa neste ponto, e por dois motivos. Primeiro, como já vimos, igualdade de liberdade não é um complemento ao valor da liberdade, mas simplesmente advém do ideal de liberdade total. (A incapacidade de Sen de reconhecer isto pode ser devido ao fato de ele pensar a liberdade em termos positivos, como liberdade de fazer isso ou aquilo, em cujo caso a necessidade de se respeitar a liberdade de terceiros seria uma limitação à própria liberdade do indivíduo, desta forma fazendo com que a liberdade para todos seja impossível. Porém, se a liberdade for entendida em termos negativos, ou seja, liberdade de não sofrer interferências coercivas, então a liberdade total para todos é perfeitamente possível). Segundo, Sen trata a liberdade como sendo algo que os libertários valorizam por algum acaso, e à qual subsequentemente aplicam considerações igualitárias — não reconhecendo que a própria liberdade está fundamentada em uma preocupação com a igualdade no sentido lockeano.

Como já dito, o argumento contra legislações socioeconomicamente igualitárias é, por si mesmo, igualitário; tais legislações invariavelmente envolvem a coerciva subordinação ou sujeição de indivíduos dissidentes aos tributos e regulamentações impostos pelas autoridades estatais, e desta forma pressupõem uma desigualdade de autoridade entre governantes e governados. Como escreveu Ludwig Von Mises:

É importante lembrar que intervenção do governo significa sempre ou ação violenta ou ameaça de ação violenta. Os fundos gastos pelo governo em qualquer de suas atividades são obtidos por meio de impostos. E os impostos são pagos porque os contribuintes não se atrevem a desobedecer aos agentes do governo; eles sabem que qualquer desobediência ou resistência seria inútil. Enquanto perdurar esse estado de coisas, o governo tem a possibilidade de arrecadar tanto quanto queira para suas despesas.

Governo é, em última instância, o emprego de homens armados, de policiais, guardas, soldados e carrascos. A característica essencial do governo é a de impingir os seus decretos por meio do espancamento, do encarceramento e do assassinato. Quem pede maior intervenção estatal está, em última análise, pedindo mais coerção e menos liberdade.

Tampouco iria uma versão anarquista de socialismo funcionar melhor; enquanto algumas pessoas detiverem o privilégio de impor políticas redistributivas à força ou pela ameaça da força sobre terceiros que discordam de tal ideia, haverá desigualdade de autoridade entre os repressores e os coagidos, não importando se aqueles que estão praticando a coerção são cidadãos públicos ou indivíduos privados, e independentemente de eles representarem uma maioria ou uma minoria. Tampouco iria uma selva hobbesiana, na qual qualquer um está livre para impor seu desejo sobre todos os outros, representar a igualdade de autoridade. Pois sempre que uma pessoa for bem sucedida em subjugar uma outra, estará havendo uma desigualdade de autoridade.

A selva hobbesiana pode representar uma igual oportunidade de autoridade, mas neste contexto o libertário defende a igualdade de resultados. (Incidentalmente, é por isso que o direito à liberdade é inalienável). Somente o uso defensivo de força é justificável, uma vez que tal uso, em vez de violar, restaura a igualdade de autoridade. Da mesma maneira, uma democracia idealizada, na qual cada cidadão possui a mesma chance de ascender a uma posição de poder político, também representa apenas uma igual oportunidade de autoridade, e não uma igualdade de resultados; sendo assim, seria também uma afronta à igualdade lockeana. Para um libertário, o ditado "qualquer um pode se tornar presidente", se fosse verdadeiro, teria o mesmo sentido de "qualquer um pode ser o próximo a assaltar você."

Desigualdade de autoridade é muito mais ofensivo, do ponto de vista moral, do que a mera desigualdade socioeconômica; logo, sempre que demandas por igualdade socioeconômica entrarem em conflito com demandas por igualdade libertária — algo que geralmente ocorre —, deve-se dar preferência a esta última.

Os igualitários socioeconômicos comprovam — se não por suas palavras, por suas ações — que eles consideram a desigualdade de autoridade um mal maior do que a desigualdade socioeconômica. A maioria dos igualitários socioeconômicos que conheço certamente ficaria mais ultrajada em ser assaltada por um colega do que em saber que tal colega está recebendo um salário maior. Logo, na prática, eles claramente reconhecem qual destas desigualdades é um mal maior. Com efeito, a maioria dos igualitários socioeconômicos conduz suas interações pessoais diárias de acordo com uma escrupulosa aderência a princípios libertários, e espera receber o mesmo tratamento em retorno.

Os igualitários socioeconômicos também dizem que a desigualdade socioeconômica é em si mesma uma forma de desigualdade de autoridade, tendo portanto de ser proibida. Porém, como afirmou Rothbard, esta combinação de ideias é inconsistente:

O indivíduo A recusa-se a realizar uma troca com B. O que devemos dizer ... caso B mostre uma arma e ordene A a realizar a troca? ... B está cometendo violência; não há dúvidas quanto a isso. ... [E]ssa violência tanto é invasiva e, portanto, injusta, ou defensiva, e portanto, justa. Caso adotemos o argumento do "poder econômico", devemos escolher a última postura. Caso o rejeitemos, temos de adotar a primeira. ... O estatista "moderado" não pode logicamente dizer que há "muitas formas" de coerção injustificada. Ele deve escolher uma ou outra, e manifestar-se conforme a postura escolhida. Ou ele deve dizer que há uma única forma de coerção ilegal — a violência física evidente — ou deve dizer que só há uma forma de coerção ilegal: a recusa de se fazer uma troca.

Para expandir este argumento de Rothbard: uma proibição sobre todos — ou mesmo sobre quase todos — os casos de desigualdade lockeana não é consistente com o fato de que tanto a desigualdade socioeconômicaquanto a iniciação de força são formas de desigualdade lockeana, pois um banimento efetivo da desigualdade socioeconômica requer o endosso de uma sistemática iniciação de força em escala maciça. Logo, igualitários socioeconômicos, caso queiram ser consistentes, podem oferecer seu ideal somente como um substituto para a igualdade lockeana, e não como uma extensão dela. (O mesmo ponto se aplica àqueles estatistas que dizem que direitos negativos são muito bons, mas que precisamos também de direitos positivos — como se cada direito positivo acrescentado não significasse um direito negativo removido).

Dada a vasta desigualdade de autoridade entre o aparato estatal e seus súditos — ou seja, dada a vasta desigualdade socioeconômica entre eles —, como é possível que aqueles que se consideram tão dedicados à igualdade humana prontamente se tornem apologistas do estado? Isso é algo que atordoa os libertários. Não dá para entender como é que aqueles que demonstram tamanha sensibilidade em relação a restrições de escolha e a diferenças de poder de barganha, quando estas derivam de fatores de mercado, se tornam tão incrivelmente cegos para as restrições de escolha e os desiguais poderes de barganha gerados pelo braço armado do estado, o qual tem plenos poderes para impingir suas demandas por meio da violência legalizada.

O filósofo chinês do século V a.C., Mo-tzu, certa vez observou que, se alguém é capaz de reconhecer um ato de agressão injusta quando este é perpetrado por um indivíduo contra outro, mas não é capaz de reconhecer a mesma injustiça quando o mesmo ato é perpetrado por um grupo organizado de indivíduos, então tal pessoa deve ter uma mente confusa em relação ao que é certo e ao que é errado. Igualitários socioeconômicos, portanto, devem viver sob algum tipo de confusão mental. Mas por quê?

Um cínico poderia responder dizendo que os igualitários socioeconômicos não são de modo algum confusos; sua suposta devoção à igualdade seria simplesmente um disfarce para se conseguir mais poder, sendo que eles isentam o estado de suas críticas porque planejam algum dia estar em seu comando, ou pelo menos estar em boas relações com quem está no comando. Essa me parece ser uma análise sensata de alguns — mas somente de alguns — igualitários socioeconômicos. A maioria dos igualitários socioeconômicos que conheço pessoalmente é sincera em seu igualitarismo e bem intencionada em seu estatismo.

Não estou com isso querendo dizer que eles são totalmente inocentes; afinal, um estatista inocente seria aquele que dissesse: "Eu reconheço — e quem não reconheceria? — que a coerciva subjugação de indivíduos ao estado por meio da violência legalizada ou da ameaça dela é um grande mal. Mas este mal, infelizmente, é necessário para se prevenir males ainda maiores". Um estatista que assumisse este ponto de vista não poderia se sentir jubiloso em relação ao seu estatismo; ao contrário, ele teria de se comportar com a trágica solenidade de Agamenon, que sacrificou sua filha para salvar a frota.

Igualmente, o inocente estatista dificilmente poderia se permitir chegar a esta lúgubre conclusão sem antes investigar as possíveis alternativas — as quais, para um estatista na academia, teria de envolver pesquisas cuidadosas e tentativas de refutação de (e ele desesperadamente esperaria não conseguir refutar) toda a rica literatura libertária que argumenta que a maioria dos outros males que ele cita pode ser evitada por meios não-estatistas. Por estes critérios, poucos estatistas se qualificam como inocentes. Buscar por alternativas à desigualdade de autoridade seria reconhecer que o estatismo envolve tal desigualdade. Pior ainda: seria reconhecer isso antes de se certificar de que existem alternativas. Isso forçaria o estatista a ter de fazer uma desagradável escolha, a qual ele prefere evitar. Logo, considero o estatismo como sendo, pelo menos na maioria dos casos, um vício moral, e não um mero erro cognitivo, da mesma maneira que o racismo e o sexismo são vícios morais, e não meros erros cognitivos.

Porém — e, novamente, assim como o racismo e o sexismo —, o estatismo é um tipo de vício moral que tende a adentrar a alma por meio do auto-engano, por meio de uma osmose semi-consciente. O estatismo é um tipo de banalidade arendtiana. Não é algo que você abraça por meio da aceitação direta. É uma forma de cegueira espiritual que pode, e de fato consegue, infectar até mesmo aqueles são realmente sinceros e bem intencionados (Não estou aqui sugerindo que libertários são geralmente mais virtuosos do que estatistas. A justiça é apenas uma virtude dentre várias, e o libertarianismo é apenas uma aplicação da justiça; portanto, a única moral autocongratulatória que podemos nos permitir é que somos melhores do que nossos colegas em um aspecto de uma virtude).

Qual forma essa cegueira espiritual assume? De um lado, a ideologia estatista tem de fazer com que a violência do estado se torne invisível. Somente assim a afronta à igualdade que tal ideologia diz representar será encoberta. Assim, estatistas tendem a tratar as ordens governamentais como se fossem feitiçarias, algo que passa diretamente do decreto para o resultado, sem a inconveniência dos meios; dado que, no mundo real, o principal meio empregado pelo governo é a violência — tanto sua ameaça quanto sua efetivação —, encarar os decretos estatais e sua violenta implantação como uma espécie de magia serve para disfarçar tanto a imoralidadequanto a ineficiência do estatismo, uma vez que tal postura simplesmente ignora todo o estrago deixado no caminho entre o decreto e o resultado.

No entanto, por outro lado, a efetividade de decretos governamentais depende exatamente de as pessoas estarem perfeitamente cientes da força que está por trás destes decretos. Sendo assim, o estatismo pode manter sua plausibilidade somente ao implicitamente projetar um tipo de paródia grotesca da doutrina católica da transubstanciação: assim como o pão e o vinho devem ser transformados em sua essência no corpo e no sangue de Cristo para desempenharem seu papel espiritual necessário, ao mesmo tempo em que devem manter a aparência externa de pão e vinho para efetuarem seu papel prático necessário, a violência do estado, para ser justificada, tem de ser transubstanciada em sua essência em uma pacífica feitiçaria, ao mesmo tempo em que, para ser efetiva, deve manter a aparência externa de violência. (Esta sacralização da violência do estado explica como, por exemplo, os defensores do desarmamento se consideram genuínos oponentes da violência ao mesmo tempo em que ameaçam maciça e sistemática violência contra cidadãos pacíficos.)

Porém, ignorar ou mascarar a violência sobre a qual a legislação socioeconômica necessariamente se baseia é aquiescer à injusta subjugação e sujeição que tal violência personifica. É tratar aqueles subjugados e sujeitados como meros meios para os fins almejados por aqueles que fazem a subjugação, e assim pressupor que há uma desigualdade legítima de poder e de jurisdição entre os dois grupos. A repulsa libertária contra tal arrogante pressuposição é ipso facto um impulso igualitário. Aqueles que não sentem nenhuma repulsa não devem esperar que suas credenciais igualitárias não sejam questionadas; eles podem até reverenciar a igualdade na teoria, mas são incapazes de reconhecê-la na prática.

Pois, à medida que passávamos, e contemplávamos a devoção daquelas pessoas, vimos um altar com esta inscrição: PARA O IDEAL DESCONHECIDO. Aquilo que eles ignorantemente veneravam, era aquilo que nós havíamos imposto a eles. Por muito tempo, permitimos que nossos confusos oponentes monopolizassem a bandeira da igualdade. Temos mais direito a ela do que eles. Já passou da hora de tomarmos essa bandeira de volta.

[1] Murray N. Rothbard, Governo e Mercado: a economia da intervenção estatal (Instituto Mises Brasil, 2012), p. 160.[2] Rothbard, Governo e Mercado, p. 233
[3] John Locke, Segundo Tratado sobre o Governo II. 4.
[4] John Locke, Segundo Tratado sobre o Governo II. 6.
[5] John Locke, Segundo Tratado sobre o Governo II. 7.
[6] "Introduction: The Roots of Individualist Feminism in 19th-Century America," pp. 3, 23, in Wendy McElroy, ed., Freedom, Feminism, and the State, 2nd ed. (New York: Holmes & Meier, 1991), pp. 3-26.
[7] Amartya Sen, Inequality Reexamined (Cambridge: Harvard University Press, 1992), pp. 21-23.
[8] Ludwig von Mises, Ação Humana XXVII. 2.
[9] Rothbard, Governo e Mercado, pp. 245-246
[10] Burton Watson, ed. & trans., Mo Tzu: Basic Writings (New York: Columbia University Press, 1963), pp. 50-51.

Roderick T. Long é membro sênior do Ludwig von Mises Institute, professor de filosofia na Universidade de Auburn, Alabama, e autor do livro Reason and Value: Aristotle Versus Rand. Ele preside o Molinari Institute e a Molinari Society.