domingo, 30 de novembro de 2014

METAFÍSICA

Imagine, caro leitor, se você pegasse uma nave espacial e viajasse pelo universo na certeza de que não existe qualquer outra vida inteligente nele?

Imagine que ninguém existisse no Universo que pudesse trocar uma única palavra com você? Agora pense, em seguida, que quando você morresse, só restaria pedra, areia e estrelas (feitas de pedra e areia), em todo o Universo, coberto pela mais fina indiferença e silêncio.

Agora pense que você representa aqui, neste pequeno experimento cósmico, a humanidade. Esta possibilidade causa em você angústia? Tristeza? Solidão? Vazio? Indiferença? Uma sensação de beleza?

Confesso que estou mais próximo da última hipótese acima: a ideia de que somos a única espécie inteligente no universo me causa uma estranha sensação de beleza. Pensar que em nenhum outro recanto do universo exista alguém semelhante a nós, inteligentes, indagadores e desgraçados, pode ser uma experiência muito arrasadora daquilo que Kant chamava de sublime. A mais vasta solidão consciente jamais imaginada. E o mais avassalador desespero por isso mesmo.

Mas, sei que, normalmente, buscamos outras inteligências no Universo. Preferivelmente, mais avançadas e capazes de dar respostas esclarecedoras para perguntas do tipo "por que estamos aqui?", "de onde viemos?", "para onde vamos?", "vale a pena fazer o bem?" (sei que o filósofo relativista perguntaria "o que é o bem?", mas hoje não vou responder essa pergunta para ele).

Muita gente espera que essa inteligência seja algo divina. Sei mesmo que alguns aceitam que esse divino pode ser um astronauta, seguindo os delírios do velho livro de Erich Von Däniken, dos anos 60, "Eram os Deuses Astronautas?".

Sei que muita gente crê mesmo que exista vida inteligente fora da Terra. Num universo deste tamanho, só haver vida na Terra, como dizia o cientista Carl Sagan (que não acreditava em nenhum relato de contato com vida extraterrestre), seria "um enorme desperdício de espaço".

Mas, ainda assim, após ler a obra de Carl Sagan, em especial, "O Mundo Assombrado pelos Demônios", tendo a crer que todos os relatos de contatos com vida extraterrestre são alguma forma de combate à solidão e à terrível insignificância que nos assola.

Da cama vazia, mergulhada na solidão de vidas fracassadas afetivamente, ao dia a dia mergulhado na banalidade da vida do dinheiro, tocando mesmo as raias do desespero por saber se existe ou não vida após a morte, suspeito que a crença em vida inteligente fora da Terra seja feita da mesma substância da crença religiosa: busca de algum significado para a banalidade de nossas vidas anônimas. Não é à toa que todo mundo que diz ter um contato deste tipo se sente um tanto profeta ou vidente.

A Nasa, recentemente, disse que deverá preparar cientistas para este tipo de contato. Eu, pessoalmente, suspeito que a Nasa esteja fazendo um reposicionamento da marca porque a agência espacial americana não dá uma dentro há muito tempo. Resolveu concorrer com a Disney. Pra minha geração, que considerava um astronauta um herói absoluto, a ideia de que a Nasa "passou a acreditar em ET", é o fim do mundo.

Entendo que grande parte da humanidade se angustie com a questão metafísica se existe vida após a morte. Eu, sobre este assunto, estou mais próximo do que Freud disse numa entrevista cujo título, se não me engano, é "A Transitoriedade". Perguntado se ele não se preocupava com o que aconteceria com ele depois da morte, ele teria respondido: "Estou tão preocupado com isso quanto com o destino do botão do meu casaco".

Sei que uma resposta dessa parece blasé diante da suposta importância da questão em jogo. Mas, para mim, é a mesma coisa. Não me importa o que vai acontecer comigo depois da morte. Acho mesmo que este tipo de angústia é algo que se tem ou não se tem. Nunca penso na morte. Não porque, como todo mundo, não tenha medo dela, mas sim porque acabo me ocupando com alguma outra coisa mais urgente.

Suspeito, enfim, como o sábio poeta português Fernando Pessoa, que a metafísica seja uma forma de indisposição.
 Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

CINZAS DE IGUALA

O México, como o Brasil, não é para principiantes. A tragédia de Iguala, no estado de Guerrero, está coberta por uma espessa neblina de desinformação. Perfurando-a, descortina-se um panorama de crises empilhadas ""e uma encruzilhada crucial na política internacional hemisférica.


Na escala local, o episódio envolve três atores: a prefeitura, uma máfia do narcotráfico e os 43 estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa, assassinados com requintes de crueldade. O prefeito da cidade ordenou a detenção policial das vítimas, que foram entregues aos criminosos da gangue Guerreros Unidos e "desapareceram", incinerados e lançados a um rio. Barbárie.

A associação entre autoridades locais e chefes do tráfico, e a consequente infiltração de policiais municipais pelo crime organizado, é um fenômeno dos últimos 15 anos. Mais antigo é o fenômeno da radicalização de estudantes de pedagogia no México meridional, região mais pobre do país. As escolas normais, criadas pelo Estado para integrar os filhos de indígenas na estrutura do funcionalismo, como professores de escolas públicas, converteram-se em incubadoras de movimentos sociais e focos de difusão do extremismo político. O massacre de 26 de setembro foi um ato destinado a aterrorizar os militantes que incomodam o poder local e, de algum modo, parecem ter se interposto no caminho dos negócios do narcotráfico.

Na escala nacional, o episódio evidencia a disfuncionalidade do aparato de segurança do Estado mexicano, posto à prova pela "guerra contra o tráfico". A mobilização das Forças Armadas na repressão direta às gangues, iniciada no governo de Felipe Calderón (2006-2012), não surtiu os efeitos previstos, mas provocou uma escalada de violência pontuada por denúncias de torturas sistemáticas e pela descoberta de inúmeras sepulturas clandestinas.

As responsabilidades diretas do governo federal não devem ser minimizadas, mas o núcleo do desastre deriva de responsabilidades indiretas. No México, as polícias municipais, controladas pelos prefeitos, tornaram-se ferramentas de alianças entre autoridades locais e o crime organizado. Iguala marca o ápice de uma trajetória de infiltração desses aparelhos pelos narcotraficantes. A cidade é um reduto do PRD, partido de centro-esquerda de oposição ao governo federal. O estado de Guerrero é governado pelo mesmo PRD desde 2005. As manifestações contra o PRI, partido do presidente Enrique Peña Nieto, inscrevem-se no tabuleiro da manipulação oportunista do massacre. Peña Nieto cortou a espiral de violências descontroladas. Mesmo assim, não tem o direito de circundar a crise desatada em setembro. A punição dos assassinos e de seus sócios políticos não encerrará o assunto. Depois de Iguala, o México não pode mais esconder sua "guerra suja" atrás dos tapumes coloridos de uma relativa prosperidade econômica.

Na escala hemisférica, o episódio revela a falência estratégica da "guerra às drogas". O Plano Colômbia, de 1998, transferiu as rotas do tráfico do Caribe para o Istmo Centro-Americano, corroendo as instituições estatais e os aparelhos policiais na América Central e no México. De lá para cá, a teia do narcotráfico ampliou-se pela incorporação definitiva do Brasil, na dupla condição de grande mercado consumidor (como os EUA) e, cada vez mais, de importante rota de passagem (como o México). Contudo, desgraçadamente, ainda nem começou um debate interamericano sobre as alternativas ao fracasso da abordagem militar.

SEM INTRIGA

Janio de Freitas alegou que o interpretei mal (Folha, 9/11). Mas não ofereceu as indicações que permitem consultar as colunas em questão, tornando tudo "muito intrigante". Como não aprecio a intriga, aí vão elas: o texto dele saiu na Folha de 26/10; o meu, em "O Globo" de 6/11. Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

500 ANOS DE CORRUPÇÃO

De repente, como um raio no céu claro, o governo foi tomado por extraordinário interesse pela corrupção –no passado. Na Austrália, Dilma Rousseff ensaiou "listar uma quantidade imensa de escândalos no Brasil que não foram investigados". A historiadora amadora, porém, só fingia falar sobre o passado: "Talvez esses escândalos que não foram investigados sejam responsáveis pelo que aconteceu na Petrobras". Ah, sim!, trata-se, então, do presente.


Governantes deveriam exercitar a prudência ao especular sobre corrupção em governos anteriores. Se têm conhecimento de denúncias fundamentadas, a lei os obriga a deflagrar uma investigação policial e judiciária. Se não o fazem, a fim de manipular halos de suspeita em seu benefício político, incorrem no crime de prevaricação. Os áulicos, por outro lado, não sendo autoridades, podem especular alegremente. Nesses dias de Lava Jato, é fácil identificá-los por seus frêmitos de indignação moral com a corrupção pregressa.

O passado que preferem é o recente: o governo FHC. Do nada, adoradores do estatismo começaram a honrar a memória do incauto Paulo Francis privatista de 1996, submetido a processo intimidador depois de afirmar que "os diretores da Petrobras" constituíam "a maior quadrilha que já atuou no Brasil". Mas, num tour de force, os neo-historiadores da corrupção já se aventuram em tempos anteriores, reavivando a memória da ditadura militar, que converteu em potências a Odebrecht, a Camargo Corrêa, a Mendes Júnior e a Queiroz Galvão, além de servir de berço para a OAS e a UTC. Logo, sua ira santa nos conduzirá ao estouro da bolha do Encilhamento, sob Deodoro da Fonseca, e às aquisições de escravos traficados ilegalmente por Paulino José de Souza, então ministro do Exterior, no Segundo Reinado.

O foco nos "500 anos de corrupção" não se destina a recordar que a corrupção nasceu antes de 2003, pois o óbvio dispensa explicação. A finalidade é entorpecer-nos, normalizando o escândalo em curso. Eles almejam dissolver a corrupção investigada na corrupção falada e o presente singular (a colonização partidária da Petrobras) no genérico histórico (a captura do poder público por interesses privados). Somos assim, sempre fomos, sussurram, inoculando-nos o soro da letargia, enquanto o ministro da Justiça critica a "politização" do escândalo (não a da Petrobras!). A corrupção mora na índole do povo brasileiro: "Cada um de nós tem um dedão na lama", assegura um célebre empresário, enquanto a presidente antecipa que pretende violar a lei sobre declaração de inidoneidade ("A gente não vai colocar um carimbo na empresa").

Não há lei que puna a corrupção da linguagem. Nos tempos bons, o lulopetismo anuncia-se como o Ato Inaugural: "Nunca antes na história deste país". Nos tempos ruins, exibe-se como vítima da Tradição: "Nunca foi diferente na história deste país". Mas a contradição sempre tem o potencial para se superar como dialética. Na Austrália, Dilma se esqueceu do tão recente "mensalão" para rotular o "petrolão" como o "primeiro escândalo da nossa história que é investigado". Os áulicos já a seguem (afinal, é para isso que existem), saudando o Ano Zero da guerra à corrupção.

"Dilma agora lidera a todos nós", anuncia o empresário dos dedos sujos de lama –que, casualmente, tem como maior cliente a estatal Correios. A narrativa do Ano Zero descortina possibilidades ilimitadas. Dilma "não sabia de nada"? Esqueça. Nos 12 anos em que dirigiu a Petrobras diretamente (como presidente do Conselho de Administração) ou indiretamente (como ministra e presidente da República), os partidos da "base aliada" privatizaram a estatal, desviando dezenas de bilhões de reais. Não é que a Líder dos Imundos "não sabia". Sabia –mas, sábia, deixou a operação se alastrar para, no Ano Zero, pegar todos os bandidos juntos. Ah, bom! Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

MULHERES QUE APANHAM

Todas as mulheres gostam de apanhar. Só as neuróticas é que reagem. Assim falava Nelson Rodrigues. E assim falo eu, em jeito de provocação, ao meu auditório feminino lá em casa.


Sem sucesso: rodeado por mulheres mais inteligentes do que eu, elas tratam de responder às provocações com outras provocações de igual calibre, irreproduzíveis num jornal de família.

Eu, sovado e acabrunhado, encerro a discussão, fugindo para a primeira premissa: "Estão vendo? Neuróticas, todas vocês".

Brinco, claro. Mas depois, com o café da manhã, vou lendo notícias que ressuscitam o velho Nelson e conferem "gravitas" aos seus aforismos.

Uma delas vem no "Sunday Times" e parece inventada por uma jornalista (neurótica): o americano Julien Blanc vem a caminho do Reino Unido. Pior: Blanc pode já estar em Londres, pronto para organizar os seus "workshops". Quem é Julien Blanc?

A julgar pelo tom da notícia, parece que o rapaz é um descendente de Jack, o Estripador, pronto para arruinar mulheres de boa ou má fama.

Mas depois lemos que o talento dele é ensinar os homens, em cursos de três dias pelo preço de R$ 5.200, a seduzir, usar e destruir emocionalmente uma donzela. "O meu brinquedo sexual favorito", diz o pensador Blanc, "é a minha namorada." O sucesso tem sido planetário.

Se a coisa ficasse pelos jornais, nada a declarar: a crise da imprensa também é uma crise de inteligência. O pior é que a sombra do temível Blanc já chegou aos governos. A Austrália o expulsou do território como quem expulsa o conde Drácula. O Brasil, que em princípio seria visitado pelos seus caninos em janeiro, já avisou que não há visto para ninguém.

Igual posição é assumida pela ministra do Interior britânica, Theresa May, partindo do pressuposto de que o monstro ainda não chegou às ilhas britânicas. Blanc não terá autorização para entrar porque ele é um "perigo público" e os seus cursos podem "incitar ao abuso e à violência".

Uma pessoa lê essas coisas e pergunta, como um velho dinossauro fora do seu parque jurássico, que mundo é esse em que as mulheres precisam da proteção dos governos para não caírem na cantiga do bandido.

Serei o único a pensar que o comportamento da Austrália, do Brasil e do Reino Unido trata as mulheres como crianças –e um idiota americano qualquer, como um voraz mentor de pedófilos?

Os conselhos de Julien Blanc –como manipular uma mulher; como humilhá-la; como chantageá-la– são de um primitivismo infantil, é certo.

Mas transformá-lo em "perigo público" e impedi-lo de viajar, para além de duvidoso do ponto de vista legal, é retirar às mulheres, sobretudo a mulheres adultas, qualquer estatuto de autonomia ou racionalidade.

Claro que existem sempre vozes de compaixão para quem nem todas as mulheres possuem esse grau de autonomia ou racionalidade (belo paternalismo!). Mulheres sem instrução; mulheres sem independência econômica; mulheres com baixa autoestima (grotesca palavra) –todas elas são presas fáceis para predadores difíceis.

O problema é que a realidade, às vezes, desmente tais piedades. Por ironia cósmica, o mesmo "Sunday Times", na sua revista dominical, publica extratos da autobiografia da atriz Anjelica Huston, mulher de Jack Nicholson durante duas décadas.

E, durante essas duas décadas, Huston foi fazendo uma longa lista de todas as mulheres que Jack Nicholson foi devorando nas horas livres e que provocaram na pobre Anjelica angústias sem nome.

O próprio Jack, aliás, raramente negava esses casos. Quando muito, dizia apenas que era "sexo por compaixão", sem importância ou continuidade.

Confrontado com tal benemérito, um dinossauro perguntará o que fez Anjelica Huston perante tanto abuso e humilhação durante 20 longos anos. No fundo, qual foi a atitude de uma mulher econômica e socialmente independente ante as terríveis infidelidades do seu amado vilão.

A ministra Theresa May, ou o Ministro das Relações Exteriores do Brasil, talvez dissessem que o amor tem razões que a razão desconhece –e que é exatamente por isso que as mulheres devem ser protegidas em "habitat" apropriado. Como certos pandas no jardim zoológico.

Nelson Rodrigues discordaria. Para ele, Anjelica Huston era perfeitamente saudável, não neurótica. Por isso gostava de apanhar. 
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

terça-feira, 25 de novembro de 2014

HERBERT MARCUSE E A ESCOLA DE FRANKFURT

OS SAFANÕES E A AUTORIDADE

Na segunda passada, foram divulgados os resultados de uma pesquisa que a Fundação Getúlio Vargas realizou para o Fórum de Segurança Pública. Nada surpreendente: 81% dos brasileiros concordam com a ideia de que, no Brasil, é fácil desobedecer às leis, e 57% acreditam que há poucos motivos para segui-las.


Há diferenças segundo a renda e os Estados, mas nada que altere a sensação de que existe, em geral, uma desconfiança do cidadão em relação à Justiça, à polícia e à autoridade pública.

Alguns dirão que ainda é um efeito da exclusão social: por que eu seguiria as regras de um clube que não me deixa frequentar sua sede? Outros, para explicar essa desconfiança, colocarão o acento na impunidade (embora talvez ela seja menos manifesta do que no passado).

Entendo. Às vezes me encontro numa fila infinita de carros, e um espertinho ultrapassa todo mundo pelo acostamento. Rezo para que, lá na frente, meus colegas de fila não deixem ele voltar para a pista –ou, então, para que, na próxima curva, haja um policial. Mas acontece o oposto: aos poucos, meus colegas de fila começam a seguir o exemplo do espertinho. Logo, o acostamento se torna mais uma pista, engarrafada e parada como as outras –com sorte, nenhuma ambulância precisará passar por lá.

Será que eu respeito a lei porque sou "do bem" ou porque me falta coragem, mesmo na óbvia ausência de fiscalização? Será que nós, os que ficamos na fila, somos apenas otários?

Enfim, a pesquisa da FGV levanta uma questão clássica e cotidiana: qual é o fundamento da autoridade da lei? Se você duvida que seja uma questão cotidiana, pergunte para qualquer jovem pai, quando ele é acusado pela mulher de não saber "colocar limites" nos filhos (essa expressão volta, aliás, como se todas as jovens mães tivessem lido o mesmo livro).

Subentendida nessas acusações está a ideia de que o marido, se não conseguir controlar as crianças, não deve ser homem de verdade. Mas, obviamente, a maioria das mães não está pedindo que o marido e pai conquiste a obediência das crianças à força de safanões e porradas. O que se pede é que alguém imponha uma autoridade "simbólica", ou seja, que alguém faça que as crianças obedeçam aos pais –por ele ser o pai e por ela ser a mãe. Cá entre nós: se você leu essa última frase sem rir (ou, no mínimo, sorrir), é porque você não tem filhos.

Em suma, é uma pergunta cotidiana: qual é a origem da autoridade? Existe uma autoridade que não comece com o safanão ou a ameaça do safanão?

Há muitas respostas possíveis a essa pergunta. Aponto dois caminhos divergentes.

Primeira resposta: não. Em última instância, a violência ou a ameaça da violência real seria a única fonte de qualquer autoridade. Claro, o mistério é que a autoridade sustentada pela violência real deve se transformar, aos poucos, em autoridade simbólica. Se a autoridade continuar fundada apenas na violência, o que acontecerá, por exemplo, quando os filhos crescerem e se tornarem mais fortes do que os pais? Os pais vão apanhar?

Outra resposta: sim, a autoridade pode se fundar sem violência e sem ameaça. Por exemplo, ela pode ser o efeito de uma dívida: estamos em dívida com os que nos oferecem amor e cuidados, e portanto obedecemos, escolhemos respeitá-los. Isso valeria tanto para os pais provedores quanto para o Estado, do qual seguiríamos as leis na medida em que ele nos ampara. A autoridade, em suma, seria fundada na gratidão. Os partidários da violência como origem da autoridade comentarão (com ironia) que para eles também a gratidão funda a autoridade: por exemplo, cada um reconhece a autoridade de quem poupa sua vida.

Enfim, uma famosa observação de Max Weber: existe Estado quando só UMA autoridade pode exercer a violência. Se alguém estiver exposto a várias violências de origens diferentes e conflitantes, nenhuma delas tem chance de se transformar em autoridade reconhecida espontaneamente.

Acabo de ler um artigo de Joanna Wheeler ("Accord", nº 25) sobre autoridade e cidadania em várias favelas cariocas. Entre as razões pela falta de uma autoridade simbólica, Wheeler aponta, justamente, a variedade das fontes da violência (tráfico, milícia, polícia) e, portanto, a dificuldade de os cidadãos enxergarem uma legitimidade qualquer. Por: Contardo Calligaris Publicado na Folha de SP

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

POR QUE DEVEMOS FICAR LONGE DOS CONSERVADORES

Há uma discussão em voga no Thoughts on Liberty e no Cato Unbound sobre se o fusionismo, ou a aliança entre conservadores e libertários, é efetivamente boa para a liberdade. Eu não sou um fusionista, mas se existe algo que posso conceder aos libertários fusionistas, é que uma disputa sectária interna entre libertários e conservadores realmente compromete o sucesso das ideias de liberdade.


A questão é que não estou focando no curto prazo. Eu não sou a favor de sacrificar a liberdade futura em prol da eleição atual. O fusionismo faz isso de duas formas. Primeiro, o processo político em si coage as pessoas; se o seu objetivo é maior liberdade, chegar lá através da força não parece a forma correta. Segundo, o fusionismo faz com que as ideias de livre mercado estejam alinhadas com a tirania pessoal na mente das pessoas. Enquanto a repressão social continua a perder popularidade entre os jovens, nós não queremos que a liberdade econômica seja prejudicada por isso.

A política é agressão. A maioria das pessoas considera tal fato como reminiscência de um anarco-capitalismo. E, de certa forma, eu não os culpo.

Nós nascemos fazendo parte de estados. Nós aprendemos a usar os processos políticos para tentar afirmar algum controle sobre nossas próprias vidas, e se temos êxito, acabamos controlando as vidas de outrem no processo. Nós chamamos isso de “democracia” e, pelo que sabemos, é a forma menos terrível de coerção governamental.

Mas o que a democracia significa, em última instância, é que mudar as coisas através do processo político requer controlar outrem por meio dos votos. Contudo, a liberdade é o contrário do controle.

Isso é o quero dizer quando digo que estou focando no longo prazo. Eu não me vendo para coagir pessoas de maneira a alcançar meus objetivos, não importando quão louváveis possam ser.

A outra razão pela qual eu não sou um fusionista é que a demografia muda. Novas gerações possuem visões que diferem das de seus antepassados. A atual direita é formada principalmente por pessoas velhas cujas visões nas chamadas “questões sociais” não rimam com as visões sustentadas pelas novas gerações.

Os conservadores têm saudades de um tempo quando a desigualdade de gênero era mais severa (e agora chamam tal período de “feminismo liberal”) e um tempo quando os gays não podiam se casar. Os conservadores não querem ver progresso na legalização das drogas, na prostituição e até mesmo na imigração. Isso significa o governo chegando e dizendo às pessoas como suas propriedades são taxadas, o que elas podem “colocar” em seus corpos, como podem usar seus corpos e se podem ou não se moverem livremente. Isso não é liberdade, e os jovens sabem disso.

O problema com o fusionismo é que faz com defensores de livre mercado alinhem-se com as posições que estão rapidamente saindo de moda. Ok, você vencerá as eleições hoje. Mas os jovens agora rejeitam a liberdade econômica ligada à repressão social, o que é um problema crescente para o progresso do livre mercado.
Por: Cathy Reisenwitz, uma escritora e comentarista política. Ela comanda o "Sex and the State" e escreve regularmente para a revista Doublethink bem como para o Thoughts on Liberty.
Tradução de Matheus Pacini. Revisão de Adriel Santana. | Artigo original

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

'A ESCOLA PERDEU SUA FUNÇÃO SOCIAL NO BRASIL"

Para especialista, missão primordial de transmitir conhecimento vem sendo esmagada pela ideologia que reduz a educação a ferramenta de dominação


Pouca gente discorda que é papel da escola transmitir os conhecimentos imprescindíveis ao desenvolvimento do indivíduo e, por tabela, do país. Para o estudioso João Batista Oliveira, contudo, a missão vem sendo esmagada no Brasil por políticas mais interessadas em propagandear números grandiosos e por ideologias cujo interesse passa longe da educação. O resultado é o fracasso do ensino no país. "Perdemos a noção da função social da escola. Ela deixou de ser cobrada pelo cumprimento de suas obrigações essenciais e passou a ser cobrada por milhares de coisas que ela não tem condição de fazer, como cuidar da educação sexual, educação para o trânsito, para o consumo etc.", diz Oliveira. A história de como se deu esse processo é dissecada no livro Repensando a Educação Brasileira, que chega às livrarias nesta semana, em que o pesquisador discute qual é, enfim, a função da escola e propõe medidas para recolocar nos trilhos professores e escolas. Oliveira atuou durante vinte anos como consultor do Banco Mundial e da Organização Internacional do Trabalho e ajudou a implantar projetos de educação em mais de sessenta países. No Brasil, foi secretário executivo do Ministério da Educação e, desde 2006, está à frente do Instituto Alfa e Beto, organização não governamental que promove a alfabetização em redes públicas de ensino. Em dezembro, a ONG vai realizar pela primeira vez o Prêmio Prefeito Nota 10, iniciativa que vai identificar e recompensar o município brasileiro que mantém a melhor rede de ensino do país. Confira a seguir a entrevista que ele concedeu a VEJA.com.

Como o senhor vê o atual debate sobre educação no Brasil? Em nosso país, não há debate. A educação é tratada somente do ponto de vista de leis, regulamentos, aumento de vagas, interesses de professores e sindicatos. A política de educação sempre foi pautada pela ideia de crescimento. Ou seja, mesmo que país esteja vendo sua taxa de natalidade cair, ainda se vendem promessas de mais vagas, além de mais tempo na escola, mais disciplinas no currículo, mais regulamentação. É uma estratégia que interessa aos políticos, porque gera emprego para professores e mais construções para somar ao orçamento, que caem bem em período eleitoral. De certo modo, essa visão distorceu o debate, que virou um discurso de carências: falta isso, falta aquilo. As políticas governamentais induziram a essa situação e eliminaram os espaços para discutir outras questões, como a aprendizagem do aluno. No quadro atual, o estudante é mais um subproduto desse debate. Na outra ponta, existe a responsabilidade da academia, com professores e pesquisadores que rechaçam qualquer ideia contrária a suas ideologias. Eles fazem uma doutrinação ideológica e antiquada de que educação é um objetivo de dominação e de controle e que a pedagogia não interessa.

Biblioteca

Repensando a Educação Brasileira

Divulgação/VEJARepensando a Educação Brasileira

Repensando a Educação Brasileira

O livro, que chega às livrarias nesta semana, faz uma análise histórica dos fatores que moldaram o sistema educacional brasileiro desde a criação das primeiras escolas nacionais até as políticas públicas mais recentes. Na obra, o autor apresenta ainda propostas para corrigir rumos em áreas como formação de professores e financiamento público

Autor: João Batista Oliveira

Editora: Salta

De onde surgiu essa ideia? Nas décadas de 1970 e 1980, sob a influência dos movimentos populares que cresceram na França em 1968, houve uma inflexão no discurso pedagógico brasileiro. Até então, ele era razoavelmente formalista, sempre com uma parte legal muito forte, assim como a atuação marcante do Conselho Nacional de Educação. Do ponto de vista pedagógico, era razoável. Era normal falar em currículo, cobrar do professor conhecimento de sua disciplina, aprovar o aluno que sabe e reprovar o que não sabe, tudo dentro de uma concepção acrítica e ingênua. Isso era natural, como o é dizer que a mãe deve amar e amamentar seus filhos. Ideias apoiadas nas teorias de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, na França, e de Paulo Freire, no Brasil, que afirmavam que a escola reproduz desigualdades sociais porque ensina só aquilo que os burgueses querem. Com eles, ou não se ensina nada ou se ensina a fazer revolução. Enquanto os demais países passaram pela constestação e mudaram o discurso, no Brasil a ideia se tornou uma crítica hegemônica e permanente.

Como esse pensamento chegou à sala de aula? As faculdades que formam professores foram dominadas por essas pessoas. Eu tenho amigos que ainda atuam nas faculdades de educação e a vida deles é um inferno, porque não há espaço para diálogo. Tiraram dos currículos dos cursos de pedagogia métodos quantitativos e aulas de estatística, porque as pessoas que dominaram os cursos eram contra essas ideias. Enquanto isso, muitos países avançaram e passaram a medir o ensino e atacar as deficiências baseados em dados empíricos. Ao mesmo tempo, temos uma sociedade de baixa renda que não cobra melhorias, porque segue o discurso político de que mais é melhor. Segundo esse discurso, há mais escolas, uniforme, transporte, merenda, mais chances de ir à universidade: logo, não se poderia dizer que a educação está uma porcaria. Não há, contudo, contestação da qualidade. Já para as classes média e alta, é confortável essa situação, porque elas precisam fazer muito pouco para competir com a mediocridade. Não há, por exmeplo, disputa de vaga na USP com o mercado internacional. A elite deita em berço esplêndido e é acomodada.

Pensando do ponto de vista econômico, não seria mais interessante pleitear melhor educação e garantir desenvolvimento para o país? Com certeza. É tão necessário que eu não consigo entender por que os empresários são tão bonzinhos em relação à questão da educação brasileira. Todo mundo sabe que o maior recurso das economias modernas são as pessoas, ou seja, seu conhecimento e competências. Isso vale mais que soja, ouro, pré-sal. Os países com que competimos vão ganhar a competição na medida em que tiverem gente mais bem preparada. Gente capacitada é dinheiro, e os empresários sabem disso. Não dá para entender essa vocação suicida das elites empresariais. Só reclamar por mais cursos técnicos não adianta, porque não é só a mão de obra treinada que importa. Quanto mais gente bem formada tiver no país, independente do curso, melhor será para a economia. Talvez seja fruto do bom mocismo daqueles que esperam o apoio do BNDES sem criticar nada. O empresariado seria o principal ator para forçar uma mudança. Eles têm recursos, bons modelos de gestão, conseguem influenciar leis no Congresso, reduzir impostos. Enfim, têm uma força brutal que, se colocada para cobrar mudanças na educação, faria uma revolução.

O que é possível fazer para mudar esse quadro? Além de contar com a influência do empresariado, também é preciso rever a tônica do debate. Precisamos ir mais fundo, nos perguntar o que é a educação. Afinal, perdemos essa noção. A escola deixou de ser cobrada pelo cumprimento de suas obrigações essenciais e passou a ser cobrada por milhares de coisas que ela não tem condição de fazer, como cuidar da educação sexual, educação para o trânsito, para o consumo etc. A escola perdeu sua função social.

Qual é, afinal, essa função? A meu ver, a função histórica e antropológica é transmitir conhecimento. Conhecimento que é relevante para o desenvolvimento das pessoas, ou seja, aquele proveniente das disciplinas básicas: matemática, instrumentos da lógica, linguagem, ciências. Mas os professores são contra ensinar, são contra transmitir conhecimento, tudo naquela lógica da ideologia que já citei. Por isso, há movimentos tão fortes contra a implantação de um currículo nacional. Esses grupos são contra currículo não só por uma questão pedagógica: trata-se de um problema ideológico. Eles acham que a escola não pode definir o que deve ser ensinado. Mas, sem isso, o Brasil sai perdendo. Se não há um currículo, não dá para saber o que ensinar e como avaliar e formar o professor. Nós perdemos o fio da meada enquanto os outros países, que também passaram por mudanças, mantiveram o foco no que deve ser ensinado. O conceito do que é educação precisa ser recomposto, mas isso é difícil, porque os que manipulam a sociedade seguem apenas uma linha de pensamento hegemônico e não estão abertos a discussão.

Como o senhor avalia as mais recentes políticas que tratam do ensino, como o Plano Nacional de Educação (PNE), sancionado pela presidente Dilma Rousseff em junho? Como não temos a cultura da educação, onde se cria a definição de escola, nós não temos também as instituições que compõem o sistema educacional. Nós não temos uma ideia clara do papel do professor, do gestor, do currículo. Nós temos, se muito, uma ideia de avaliação, como Enem e Prova Brasil, e uma ideia de financiamento, ou seja, quem paga a conta. No mais, nenhuma outra instituição. Na falta disso, a política educacional se baseia em planos como o PNE, sujeitos a descontinuidade e que fracassam em 70% dos casos, como já foi comprovado por outros estudiosos. É tudo feito no vácuo cultural, sem as instituições, que também são parte da cultura. A educação no Brasil é uma terra arrasada.

No livro, o senhor propõe mudanças na avaliação e financiamento do ensino. Como? A primeira delas é uma mudança na avaliação do ensino. A interpretação dos índices educacionais do país é feita como em uma tabela de campeonato, mirando em quem tem a melhor ou pior nota. E na educação não se pode fazer isso. Aquela escola que tem a melhor nota não é, necessariamente, a que tem o melhor ensino. Isso depende do aluno, da família, do DNA, não só da escola. É preciso descontar esses fatores para encontrar o efeito diferencial. Há inúmeros estudos nesse sentido, um deles do atual presidente do Inep (órgão do Ministério da Educação responsável pelas avaliações), Francisco Soares. Ele diz que a melhor escola é aquela que acrescenta mais conhecimento ao aluno, descontando todos os fatores que não são da escola. É importante ressaltar o efeito escola e não só dizer que uma ou outra é melhor. O segundo ponto é o financiamento. Dado que temos uma mudança na demografia e um índice de repetência muito alto, uma abordagem de choque seria fazer investimentos em educação proporcionais à sua população do Estado ou município, e não ao número de alunos, como é feito hoje. Isso daria mais flexibilidade para os entes da federação escolherem como querem dividir investimebntos nos diferentes níveis do ensino. Um caminho é incentivar a política de municipalização do ensino, que entrou em debate, mas não foi levada adiante.

O senhor também trata da questão da formação do professor. O que fazer? Não podemos pensar o professor em partes, temos que olhar o todo. É preciso repensar os meios de contratação, a formação inicial, os planos de carreira, de estágio probatório e de avaliação. Tem que ser uma equação para atrair os melhores profissionais, oferecer bons curso, bons estágios, carreiras interessantes e, é claro, colher resultados na aprendizagem do aluno. Um plano que se concretiza a longo prazo. Enquanto isso, no curto prazo, é preciso pensar em políticas de transição. O Brasil insiste em pegar qualquer pessoa sem formação e acha que vai prepará-la para o magistério oferecendo-lhe um curso de 30 horas. Não vai. A transição tem que estar associada à mudança, pensando em mecanismos de contratação e demissão e, acima disso, pensando no que esses professores sem formação vão ensinar enquanto isso.

Como se define isso? Com sistema de ensino estruturado e consistente. Imagine que o professor da sala A ensina fração de um jeito e o da sala B, de outro. É um caos. Como isso é de fundo ideológico, baseado no discurso de que o professor tem que ter autonomia total para definir o que ensina, pior fica. Os professores não tem condição de exercer autonomia. Escola boa tem que ser autônoma e poder desenhar seu próprio currículo, mas tem que ter articulação para fazer isso. O que vemos são pessoas exigindo o controle de tudo. Sou a favor de o professor só ter autonomia quando tiver condições necessárias para exercê-la. Você só dá a chave de casa para a criança que tem juízo. Pensando do ponto de vista do aluno, como a categoria central do sistema educativo, o resto se perverte. Não faz sentido pensar no direito do professor, do interesse da categoria, se o aluno está diante de um professor que não foi bem formado. O que é melhor: dar autonomia ou orientar para que ele faça algo que ajude o aluno?

Recentemente, um grupo de professores no Quênia passou a utilizar roteiros de aula que devem ser seguidos à risca. Como parte da metodologia, o docente não pode ampliar a aula para além do roteiro. Um estudo mostrou avanços significativos no desempenho dos alunos. O senhor acha que, em casos extremos, essa seria uma alternativa? Claro, o ensino estruturado é isso. Há estudos que mostram que os países com pior desempenho educacional são os que mais demonstram melhorias quando adotam materiais estruturados para as aulas. Óbvio que são medidas curativas, mas é o tipo de estratégia adequada enquanto se conserta a base do sistema. Até lá, não se pode dar autonomia para quem não tem condições. Contudo, o que se nota pelas revoluções educacionais dos países que hoje estão no topo lista do Pisa (avaliação de educação mundial feita pela OCDE) é que eles seguem as mesmas práticas, que incluem currículo, mas vão além, envolvendo formação de professores, definição de estrutura escolar, organização do sistema de ensino, orientações para cursos superiores que formam docentes. No Brasil, cada um pensa de um jeito e não vejo caminhos para melhorias a partir da lógica atual.

Bianca Bibiano entrevista João Batista Oliveira: "a função histórica e antropológica da escola é transmitir conhecimento" (Pedro Franca/Agência Camara /VEJA)

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

COMO VENCER AS ELEIÇÕES

Que delícia: tenho passado os últimos tempos na companhia de Quintus Tullius Cicero. O nome talvez acenda uma luz na cabeça do leitor. Cuidado: é a luz errada.


Quintus era o irmão mais novo do famoso Marcus Cicero. E em 64 a.C., quando Marcus se candidatou ao lugar de cônsul (o mais importante cargo no "cursus honorum" da República Romana), Quintus decidiu escrever um pequeno manual –pelo menos, a maioria dos especialistas atribui-lhe a autoria– em que explicava ao irmão como ter sucesso em política.

O manual dá pelo nome latino de "Commentariolum Petitionis" e existe tradução inglesa de Philip Freeman intitulada "How to Win an Election" (como vencer uma eleição, Princeton University Press, 99 págs.).

Começa em tom suave: o caçula elogia a inteligência, a oratória e a integridade de Marcus. Mas depois acrescenta, como um Maquiavel "avant la lettre", que a política não trata de verdades. Trata de aparências. Quem ganha a batalha das aparências, ganha a batalha pelo poder.

Essa guerra começa logo no estudo dos adversários. Não das suas "propostas" (só amadores perdem tempo com as propostas dos outros), mas das suas fraquezas mundanas.

No caso de Marcus Cicero, ele teria que explorar as fraquezas de um adversário como Antonius (que teve a propriedade confiscada por dívidas; que foi expulso do Senado; que até comprou uma escrava para satisfazer os seus apetites, informa Quintus); e as fraquezas de Catilina (que cresceu em luxúrias com a própria irmã; que assassinou o cunhado; e que também tinha uma queda por rapazinhos).

Fazer chegar esses escândalos à opinião pública é o primeiro dever de um candidato responsável.

Mas a política não vive apenas de "campanhas negativas", avisa Quintus. É preciso uma "campanha positiva" –e essa campanha começa em casa.

O candidato deve ter o apoio da família, dos amigos, dos vizinhos, dos clientes, dos antigos escravos e dos atuais servos. "Os rumores que se tornam públicos", esclarece Quintus, "começam na família e nos amigos".

E, depois da família e dos amigos, é preciso o apoio dos desconhecidos. Como? Prometendo, prometendo. O candidato vencedor é aquele que promete tudo a toda a gente. Ou, melhor dizendo, é aquele que promete o que diferentes públicos querem escutar.

Claro que é humanamente impossível satisfazer o mundo inteiro quando se chega ao poder. Mas esse não é o ponto, escreve Quintus, levemente exasperado.

O ponto é que "o povo prefere uma mentira graciosa a uma recusa imediata". Por outras palavras: um político que proclame, com toda a honestidade, que não pode prometer o que não tem a certeza de cumprir, é um candidato acabado.

Depois, quando finalmente ascende ao poder, o político poderá sempre dizer que as circunstâncias mudaram e que as promessas de ontem, infelizmente, não podem ser cumpridas hoje. Talvez amanhã.

Finalmente, é importante ter o apoio dos poderosos. E "poderosos", aqui, significa múltiplas coisas: aristocratas, comerciantes ricos, artistas, jovens ilustres –há várias formas de poder.

E o importante, conclui Quintus, é lembrar a alguns desses poderosos os favores que lhes fizemos; e aos outros, que ainda não estão em dívida para conosco, declarar que seremos nós a estar em dívida para com eles. Nada funciona tão bem como apelar para a ambição alheia.

Escusado será dizer que os conselhos de Quintus tiveram sucesso: Marcus seria eleito cônsul; dois anos depois, o próprio Quintus seria pretor (uma espécie de administrador judiciário) e, posteriormente, governador da atual Turquia. O sucesso político dos irmãos Cicero só teria fim com a queda da República e a emergência do Império: foram ambos condenados à morte.

E hoje? Hoje, hipocrisias à parte, não há político de sucesso que não siga os conselhos de Quintus: na forma como destrata os adversários; como usa e abusa da família para compor um quadro de respeitabilidade moral; como faz promessas e mais promessas, sem a mais vaga intenção de as cumprir; e como tece relações de dependência e favores mútuos com os poderosos do seu tempo.

O livrinho de Quintus é hilariante e arrepiante. E difícil de engolir. Razão tinha o poeta: os seres humanos nunca suportaram demasiada realidade. 
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

LIBERTÁRIOS, MAQUIAVEL E O PODER DO ESTADO


À medida que o movimento libertário e as ideias associadas a ele vão ganhando maior proeminência ao redor do mundo, o surgimento de ataques, calúnias e caricaturas passa a ser inevitável. Libertários, dizem nossos críticos, são antissociais e preferem o isolamento à interação com terceiros. São gananciosos e indiferentes para com os pobres. São ingênuos quanto a terroristas e inimigos externos, e se recusam a apoiar invasões de "países perigosos" (e a subsequente chacina de populações inocentes).

Estas caricaturas e concepções errôneas podem ser refutadas pela simples definição do próprio conceito de libertarianismo. Todo o ideal libertário se baseia em um princípio moral fundamental: a não-agressão de inocentes. Ninguém deve iniciar força física contra um inocente. Muito radical.

É óbvio que, não apenas não há nada de antissocial nesta ideia, como também ela representa a própria negaçãode tudo o que é antissocial, pois a interação pacífica é justamente o cerne de uma sociedade civilizada.

À primeira vista, praticamente ninguém pode se opor ao princípio da não-agressão. São poucas as pessoas que abertamente defendem atos de agressão contra pessoas pacíficas e inocentes. A diferença é que os libertários são francos e eloquentes quanto a isso, e aplicam este princípio em todas as esferas da vida, para todas as pessoas. Nossa visão vai muito além de meramente sugerir que o estado não pode incorrer em violações grosseiras das leis morais. Nós afirmamos que o estado não pode efetuar nenhum ato que seria proibido a qualquer indivíduo. Não há meio termo para as normas morais: ou elas existem ou não existem.

Exatamente por isso não podemos defender o sequestro estatal apenas porque o governo rotula esta prática de "alistamento militar obrigatório". Não podemos defender o encarceramento de pessoas que ingeriram as substâncias erradas apenas porque o governo rotula esta prática de "guerra contra as drogas". Não podemos defender o roubo e a espoliação apenas porque o governo rotula esta prática de "tributação". Não podemos defender homicídios em massa só porque o governo rotula esta prática de "política externa". Não podemos defender privilégios para grandes empresas só porque o governo rotula esta prática de "políticas de proteção à indústria". Não podemos defender a destruição do poder de compra da moeda só porque o estado rotula esta prática de "política monetária". Não podemos defender restrições à liberdade de empreendimento só porque o governo rotula esta prática de "regulamentação". E não podemos defender o parasitismo só porque o governo rotula esta prática de "políticas de bem-estar social".

Murray Rothbard, que era Ph.D. pela Universidade de Columbia, NY, dizia que você pode descobrir qual é a posição libertária a respeito de qualquer questão ao simplesmente imaginar uma quadrilha de criminosos efetuando a ação analisada.

Em outras palavras, o libertarianismo pega certos critérios morais e políticos que são defendidos por todas as pessoas decentes, e simplesmente os aplica de forma consistente e inflexível.

Por exemplo, as pessoas se opõem a monopólios porque temem o aumento de preços, a redução na qualidade dos produtos e serviços, e toda a centralização de poder decorrentes deste arranjo. O libertário apenas aplica esta preocupação em relação a monopólios ao próprio estado. Afinal, empresas privadas operando no mercado — um arranjo que supostamente devemos temer — não podem simplesmente sair cobrando o quanto quiserem por bens e serviços. Os consumidores podem simplesmente trocar de ofertante, ou deixar de usar um determinado produto e passar a usar um substituto mais próximo. Da mesma maneira, empresas não podem reduzir a qualidade de seus produtos sem perder consumidores, os quais poderão encontrar concorrentes ofertando bens e serviços mais satisfatórios.

Já o estado pode, por definição, cobrar do público o quanto ele quiser pelos "serviços" que ele oferta. Os cidadãos — os súditos do estado — têm de aceitar qualquer nível de qualidade que o estado se digne a ofertar. E jamais pode existir, por definição, qualquer concorrente ao estado, uma vez que o estado é definido como o detentor do monopólio da compulsão e da coerção em seu território.

Com suas guerras, seus genocídios, suas atrocidades totalitárias e toda a miséria criada por suas políticas intervencionistas, o estado já demonstrou ser, de longe, a mais letal instituição da história. Seus crimes menores incluem todo o seu endividamento, cujo pagamento dos juros ele impôs à população; as burocracias que se auto-perpetuam e se alimentam da fatia produtiva da população; e todo o desperdício de recursos escassos — os quais poderiam ter sido utilizados para melhorar o padrão de vida da população por meio da formação de capital — em obras e projetos arbitrários e de motivação política.

No entanto, o estado, apesar de todos os seus fracassos, consistentemente usufrui aquele benefício da dúvida que ninguém concederia a pessoas e empresas no setor privado. Por exemplo, a educação estatal produziu resultados que, na mais complacente das hipóteses, podem ser classificados de deploráveis, não obstante o crescente volume de dinheiro direcionado para este setor. Houvesse o setor privado gerado um desastre semelhante, a gritaria e as denúncias contra "os empresários ricos que estão tornando nossas crianças ignorantes" jamais acabariam. Porém, quando é o setor público quem gera resultados medonhos, tudo o que ouvimos é o silêncio. E o silêncio só é interrompido pelas demandas de que os pagadores de impostos deem ainda mais dinheiro e recursos para o estado. Se uma empresa privada fracassa, ela vai à falência. Se o estado fracassa, ele pede (e ganha) mais dinheiro.

Se uma empresa privada comete um erro grave, o mundo vem abaixo. Investigações aprofundadas, reportagens histéricas da mídia e indignações públicas parecem não ter fim. Já quando o estado faz lambança, não há absolutamente nenhum interesse na história, e quase ninguém ouve nada a respeito.

Da mesma forma, quando os tribunais estatais obrigam pessoas inocentes a ter de tolerar atrasos intermináveis e a arcar com gastos infindáveis, não há investigações, não há denúncias e não há apelos por justiça. Quando os ricos e famosos são obviamente favorecidos pelo sistema, as pessoas resignadamente aceitam o fato como corriqueiro, uma inevitabilidade. Enquanto isso, empresas de arbitragem privada, rápidas e eficientes, prosperam na surdina, silenciosamente preenchendo o vazio criado pelo péssimo sistema estatal — e dificilmente alguém nota ou se importa, muito menos aprecia estas melhoras geradas em nosso bem-estar.

Quando o estado fracassa abjetamente em cumprir com a mais mínima qualidade aceitável algum serviço que ele se propôs a fazer — como a segurança —, as pessoas veem isso como algo rotineiro. Se pessoas morrem em decorrência da falta de segurança — inclusive na área de infraestrutura — gerada pelo estado, são apenas coisas da vida. Mas quando uma empresa privada oferece um serviço que deixa a desejar, todos os tipos de impropérios e ameaças judiciais são proferidos por seus desapontados clientes.

No fundo, esta assombrosa diferença entre os padrões morais e éticos exigidos do estado e do setor privado tem suas raízes não apenas nos homens que compõem o aparato estatal, mas também naqueles que lhes dão sustentação intelectual e ideológica.

Os moralistas romanos da antiguidade, e os humanistas da Renascença que vieram depois, preconizavam abertamente que os governantes tinham de possuir um arranjo especial de virtudes morais. Tais virtudes eram, acima de tudo, as quatro virtudes cardinais (cardinal vem do latim e significa "essencial"; logo, todas as outras virtudes dependiam destas quatro): coragem, justiça, temperança e sabedoria. Embora todos os homens fossem exortados a cultivar estas virtudes, os príncipes, em particular, deveriam ir além e apresentar outras mais, como nobreza e generosidade. Estes temas foram desenvolvidos por Cícero em seu ensaio De Officiis e por Sêneca em seus ensaios Sobre a Clemência e Sobre Benefícios.

Os humanistas anteciparam a tese que futuramente viria a ser defendida por Maquiavel: a de que tem de haver uma divisão entre, de um lado, a moralidade e, do outro, qualquer postura e atitude que seja conveniente para o príncipe. Os humanistas responderam a esta tese alertando que, mesmo que a perversidade principesca não fosse punida em vida, a punição divina na próxima vida seria certa e cruel.

O que fez com que Maquiavel se destacasse tão incisivamente foi o seu radical rompimento com esta visão tradicional das obrigações morais do príncipe. Como afirmou Quentin Skinner, o grande estudioso de Maquiavel, "É só quando analisamos detidamente O Príncipe que descobrimos como estes tradicionais aspectos da moralidade humanista foram violentamente subvertidos".

O príncipe, diz Maquiavel, tem sempre de "estar preparado para agir imoralmente sempre que for necessário". E "para manter seu poder", ele — não apenas algumas vezes, mas sim frequentemente — será obrigado a "agir traiçoeiramente, cruelmente e impiedosamente".

Dado que a maioria das pessoas jamais irá interagir pessoalmente com o príncipe, Maquiavel forneceu o seguinte conselho ao governante: "Todo mundo vê aquilo que você aparenta ser", mas "poucos sabem diretamente quem você realmente é". "Um habilidoso enganador", continuou Maquiavel, "sempre encontrará uma multidão de pessoas que se deixarão ser enganadas". 

Já dá para imaginar que tipo de pessoa o príncipe será.

A visão de Maquiavel frequentemente é resumida como "os fins justificam os meios". Embora tal destilação não capture todos os aspectos do pensamento de Maquiavel, é fato que esta concisa descrição irrita os professores de teoria política. Ademais, se o fim em questão é a preservação do poder do príncipe, então "os fins justificam os meios" não é uma caracterização injusta do conselho de Maquiavel.

E é exatamente a este princípio que o estado e seus ideólogos recorrem para justificar seu não cumprimento de todas aquelas práticas que as pessoas decentes consideram morais e boas. Friedrich Hayek certa vez escreveu que,



Na ética individualista, o princípio de que o fim justifica os meios é considerado a negação de toda a moral. Na ética coletivista, ele se torna a regra suprema; não há literalmente nada que o coletivista coerente não deva estar pronto para fazer, desde que contribua para o "bem da comunidade", porque o "bem da comunidade" é para ele o único critério que justifica a ação. A ética coletivista não conhece outros limites que não os da conveniência — a adequação do ato particular ao objetivo que se tem em vista.

Praticamente todas as pessoas hoje aceitam, ao menos implicitamente, a alegação de que o estado opera em uma dimensão moral paralela, na qual as regras morais tradicionais não são aplicáveis. Outros vão além e afirmam que o estado está acima da moralidade que conhecemos. Mesmo que tais pessoas não utilizem as formulações verbais de Maquiavel, de alguma forma elas creem ser desarrazoado exigir que o estado e seus funcionários se comportem da mesma maneira que o resto de nós. O estado pode se defender e se preservar recorrendo a métodos que nenhuma empresa privada, nenhuma organização, nenhuma família e nenhum indivíduo poderiam utilizar para sua própria preservação. E aceitamos isso como algo normal.

Esta é simplesmente uma formulação mais geral do fenômeno descrito anteriormente, que diz que poucas pessoas se espantam quando o estado incorre em um comportamento que seria considerado uma monstruosidade moral caso fosse efetuado por qualquer indivíduo ou entidade.

Por fim, algumas pessoas poderão discordar e contra-argumentar dizendo que o aparato coercivo do estado é essencial para manter a ordem na sociedade, de modo que não podemos insistir fortemente no purismo libertário ao analisarmos seu comportamento. Afinal, algumas vezes o estado tem de fazer aquilo que ele tem de fazer.

Só que absolutamente todos os "serviços" que estado fornece já foram no passado ofertados de maneira não-coerciva. A questão é que nós simplesmente não somos estimulados a estudar e a aprender esta história, e a estrutura de ensino que involuntariamente adotamos desde os nossos primeiros dias na escola tornou nossa imaginação estreita e tacanha demais para conceber essa possibilidade.

Maquiavel lançou uma revolução em prol do estado. A nossa revolução é contra, mas sempre a favor da paz, da liberdade e da prosperidade.

Lew Rockwell é o chairman e CEO do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State


Tradução de Leandro Roque


terça-feira, 18 de novembro de 2014

TODO ESQUERDISTA PRECISA SER UM FRANCISCANO?


“O vício intrínseco do capitalismo é a partilha desigual do sucesso; o vício intrínseco do socialismo é a partilha equitativa do fracasso.” (Winston Churchill)


A expressão “esquerda caviar”, que não inventei mas ajudei a popularizar, pegou e tem incomodado muita gente. Afinal, expõe a hipocrisia daqueles que defendem o socialismo de suas coberturas luxuosas, que pregam a igualdade material de cima de seus helicópteros, que defendem até o modelo cubano de Nova York ou Paris, que condenam a ganância enquanto juntam mais e mais dinheiro. Tamanha incoerência incomoda mesmo, quando exposta.

Pegos na contradição, vários desses ícones da esquerda caviar têm se defendido da seguinte maneira: então é preciso ser um franciscano para defender os mais pobres? Segundo eles, o que querem é distribuir melhor a riqueza, que todos se tornem igualmente ricos, tenham acesso aos mesmos bens materiais. Implícito nesse discurso está o monopólio da virtude típico da esquerda, e uma enorme falácia.

Para essas pessoas, ser de esquerda significa automaticamente se preocupar com os pobres. Ou seja, eles estão dizendo que os liberais capitalistas ou os conservadores de direita não ligam para os pobres, querem mantê-los na pobreza. Reparem que são as supostas intenções que eles atacam, justamente para não debater quais meios ajudariam, de fato, os mais pobres a sair da pobreza. O esquerdismo não seria, então, uma ideologia sobre meios de produção ou organização social, mas sim uma seita religiosa que concede de imediato o status de sensível abnegado ao membro.

Claro que não é nada disso. Claro que é possível ter tanto esquerdistas como direitistas legitimamente preocupados com os mais pobres. Por isso mesmo o debate sério, honesto, será voltado para quais meios devem ser adotados para mitigar a pobreza. Foi o capitalismo liberal americano ou o socialismo real cubano que beneficiou os mais pobres? Foi o livre comércio da globalização ou o protecionismo dos países fechados que melhorou a vida dos mais pobres?

Quando colocamos a coisa desta forma, fica claro o motivo pelo qual a esquerda caviar foge do debate. O problema não é ser mais rico e defender a esquerda, e sim ser um usuário de todas as benesses que só o capitalismo pode oferecer enquanto defende o socialismo, que jamais permitiu aos mais pobres algo parecido. Por essa falha de argumentos, a esquerda caviar precisa monopolizar os fins nobres: querem os pobres mais ricos, e ponto! Mas… como?

Criticando o livre mercado, o lucro, até mesmo a ganância, enquanto na prática foram sempre o livre mercado, o lucro e a ganância que possibilitaram o enriquecimento das sociedades capitalistas? Onde foi que a simples distribuição de riqueza melhorou de fato a vida dos mais pobres de forma sustentável? Qual modelo podem oferecer como exemplo disso?

A desigualdade material é indissociável da liberdade individual. Afinal, somos diferentes em muitas coisas, em nossas vocações, dons, habilidades, sorte, mérito, etc. Se pegarmos um milhão de reais e distribuirmos igualmente entre mil pessoas numa comunidade, em poucos meses haverá gente com muito mais dinheiro do que os outros. A única forma de preservar a igualdade é abolindo de vez a liberdade, impedindo as trocas voluntárias.

No mais, riqueza não é jogo de soma zero, onde João precisa tirar de Pedro para ficar rico. A história do capitalismo é a história do enriquecimento geral, só que com desigualdade. O ganho de produtividade permitiu a melhoria na qualidade de vida de praticamente todos, mas uns mais do que os outros. Quando Steve Jobs cria a Apple, beneficia a vida de milhões de pessoas, mas fica bem mais rico no processo, como deve ser.

A esquerda caviar ignora tudo isso, fala apenas em distribuir melhor as riquezas, como se caíssem do céu ou brotassem do solo, como se não houvesse escassez, como se bastasse o estado distribuir recursos para todos comprarem seu iPhone. Não funciona assim. Quem não sabe, é vítima de desconhecimento. Quem sabe e mesmo assim insiste na falácia, não tem honestidade intelectual.

Portanto, o sujeito não precisa ser um franciscano para ser de esquerda. Mas ele precisa ignorar como a economia funciona. E adotar doses cavalares de hipocrisia para condenar sempre a ganância alheia, o lucro dos outros, enquanto pensa só em acumular mais dinheiro para viver como os magnatas capitalistas, tudo isso enquanto repete que só quer mais igualdade material e ajudar os pobres. Não cola.
Por: Rodrigo Constantino

A REDISTRIBUIÇÃO É UMA IDEIA ECONOMICAMENTE INSENSATA


Redistribuição de renda

Todas aquelas pessoas que falam com assombrosa desenvoltura sobre redistribuição de renda normalmente agem como se os indivíduos de uma sociedade fossem meros objetos inertes, os quais podem ser comandados e controlados como peças em um tabuleiro de xadrez, com o objetivo de servirem de peões para a realização de algum projeto grandioso.

Porém, se considerarmos que os seres humanos são dotados de livre-arbítrio e têm respostas instintivas e particulares a toda e qualquer política adotada pelo governo, então simplesmente não faz sentido pressupor que as políticas do governo terão o efeito pretendido.

A história do século XX está repleta de exemplos de países que se propuseram a redistribuir riqueza e acabaram redistribuindo pobreza. Os países comunistas foram um exemplo clássico, mas não são de modo algum o único exemplo.

De acordo com a teoria defendida pelos adeptos da redistribuição de renda, confiscar a riqueza das pessoas mais bem-sucedidas e redistribuí-la para os mais pobres fará com que toda a sociedade se torne mais próspera. Entretanto, quando a União Soviética confiscou a riqueza de fazendeiros bem-sucedidos, os alimentos se tornaram escassos e o resultado foi a inanição. Sob o regime de Stalin, durante a década de 1930, o número de mortos de fome foi praticamente igual ao número de mortos no Holocausto de Hitler na década de 1940.

Por que isso acontece? Realmente, não é nada complicado. No mundo real, só é possível confiscar a riqueza que já existe em um dado momento. Não é possível confiscar a riqueza futura; e é menos provável que essa riqueza futura seja produzida quando as pessoas se derem conta de que ela também será confiscada.

Os agricultores da União Soviética, tão logo perceberam que o governo iria confiscar uma grande parte da colheita futura, simplesmente reduziram a quantidade de tempo e esforço investidos no cultivo de suas plantações. Eles passaram a abater e a comer animais ainda jovens, os quais, em circunstâncias normais, seriam mantidos e alimentados até se tornarem prontos para a venda.

Na indústria, no comércio e nos serviços, as pessoas também não são objetos inertes. Os industriais, por exemplo, e ao contrário dos agricultores, não estão amarrados ao solo de nenhum país. O russo Igor Sikorsky, pioneiro da aviação de seu país, pôde levar a sua experiência para os EUA e, com isso, produzir seus aviões e helicópteros a milhares de quilômetros de distância de sua terra natal. Os financistas são ainda menos amarrados à sua terra, especialmente hoje, quando vastas somas de dinheiro podem ser enviadas eletronicamente, a um simples toque no computador, a qualquer parte do mundo.

E, sobre confiscar a riqueza que já existe, o economista Ludwig von Mises, ainda na década de 1920, disse o seguinte:



A maioria das pessoas que exige a maior igualdade possível de rendas não percebe que o objetivo que elas desejam só pode ser alcançado pelo sacrifício de outros objetivos. Elas imaginam que a soma de todas as rendas permanecerá inalterada e que tudo o que elas precisam fazer é apenas distribuir a renda de maneira mais uniforme do que a distribuição feita pela ordem social baseada na propriedade privada. 

Os ricos abdicarão de toda a quantia auferida que estiver acima da renda média da sociedade, e os pobres receberão tanto quanto necessário para compensar a diferença e elevar sua renda até a média. Mas a renda média, imaginam eles, permanecerá inalterada. 

É preciso entender claramente que tal ideia baseia-se em um grave erro. [...] Não importa qual seja a maneira que se conjeture a equalização da renda — tal medida levará, sempre e necessariamente, a uma redução extremamente considerável da renda nacional total e, consequentemente, da renda média. 

Quando se compreende isto, a questão assume uma complexidade bem distinta: agora temos de decidir se somos a favor de uma distribuição equânime de renda a uma renda média mais baixa, ou se somos a favor da desigualdade de renda a uma renda média mais alta.

No que mais, se as políticas confiscatórias podem produzir repercussões contraproducentes em uma ditadura, elas são ainda mais difíceis de lograr algum êxito em uma democracia.

Uma ditadura pode repentinamente se apossar do que quiser. Já uma democracia — pelo menos nas mais avançadas, nas quais as instituições são fortes — exige que primeiro haja discussões e debates públicos. Aqueles que sabem que serão o alvo preferencial dos futuros confiscos podem imaginar o que está por vir e, consequentemente, agir de acordo — normalmente, enviando seu dinheiro para o exterior ou simplesmente saindo do país.

Entre os ativos mais valiosos de qualquer país estão o conhecimento, as habilidades práticas e a experiência produtivas — aquilo que os economistas chamam de "capital humano". Quando pessoas bem-sucedidas e com um grande capital humano deixam o país — seja voluntariamente, seja por causa de governos hostis ou por causa de multidões bárbaras que foram intelectualmente excitadas por demagogos que exploram a inveja —, haverá um estrago duradouro na economia desse país.

As políticas confiscatórias de Fidel Castro fizeram com que vários cubanos bem-sucedidos fugissem para a Flórida, vários deles deixando grande parte da sua riqueza física para trás. Mesmo refugiados e completamente destituídos, eles cresceram e voltaram a prosperar na Flórida, tornando-se uma das comunidades mais ricas daquele estado. Já a riqueza que eles deixaram para trás em Cuba não impediu que as pessoas de lá se tornassem indigentes no governo de Fidel. A riqueza duradoura que os refugiados levaram consigo era o seu capital humano. A riqueza material que ficou para trás foi consumido e não foi replicada.

Todos nós já ouvimos o velho ditado que diz que dar a um homem um peixe irá alimentá-lo por apenas um dia, ao passo que ensiná-lo a pescar irá alimentá-lo por toda a vida. Os partidários da redistribuição querem dar a cada indivíduo um peixe para assim deixá-lo dependente do governo, sempre à espera de mais peixes no futuro.

Se esses "redistribucionistas" realmente fossem sérios, o que eles iriam querer distribuir seria a capacidade de pescar, ou a capacidade de ser produtivo de outras maneiras. O conhecimento é uma das poucas coisas que podem ser distribuídas para todas as pessoas sem que isso reduza o montante detido por algumas.

Isso serviria perfeitamente aos interesses dos pobres. Mas não serviria aos interesses de políticos que querem exercer o poder, e que recorrem à redistribuição para obter os votos de pessoas que maliciosamente se tornaram dependentes deles.

Para as várias pessoas que não querem pensar mais detidamente, a redistribuição é uma política humana e decente. E gera muitos votos.


Thomas Sowell , um dos mais influentes economistas americanos, é membro sênior da Hoover Institution da Universidade de Stanford.  Seu website: www.tsowell.com.

Tradução de Leandro Roque

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O QUE NOS AGUARDA PARA AS OLIMPÍADAS


Restaram apenas dois países interessados em sediar os jogos olímpicos de inverno de 2022: China e Cazaquistão. 

Sobraram apenas estes dois porque a Noruega desistiu da disputa após seus cidadãos pagadores de impostos se rebelarem e dizerem que não estão a fim de dar o dinheiro necessário para fazer dos jogos olímpicos um mero parque de diversões para os empresários corporativistas, políticos e burocratas mais ricos do mundo.

Em teoria, as Olimpíadas são uma organização privada. Na prática, trata-se de uma organização corporativista gerida por plutocratas cuja única missão é extrair dos pagadores de impostos do país-sede o máximo possível de receitas. Em todas as Olimpíadas, os vencedores são sempre os mesmos: as empreiteiras que fazem obras superfaturadas, os políticos que recebem propinas dessas empreiteiras, as redes de hotéis e a própria mídia. 

No Brasil, os jogos Pan-americanos de 2007 foram orçados em R$ 400 milhões e acabaram custando R$ 4 bilhões. Boa parte do dinheiro foi utilizada para fortalecer a máquina política carioca e para enriquecer os empresários com boas conexões políticas. O mesmo vai acontecer nas Olimpíadas de 2016, só que, obviamente, em escala olimpicamente maior.

Após as Olimpíadas de Atlanta, em 1996, o COI (Comitê Olímpico Internacional) alterou as regras e determinou que dali em diante todas as futuras Olimpíadas teriam de ser empreendimentos geridos exclusivamente pelos governos. O COI, uma entidade dominada por socialistas europeus ricaços, nunca viu com bons olhos a ideia de as Olimpíadas serem geridas por organizações privadas, pois considera que isso estaria "abaixo do ideal olímpico" (seja lá o que isso signifique). Alguns desses burocratas chegaram inclusive a reclamar que durante os Jogos Olímpicos de Atlanta havia muitas tendas e barracas na cidade vendendo penduricalhos relacionados às Olimpíadas. Tais demonstrações de iniciativa privada eram "inaceitáveis", pois feriam o espírito olímpico (de novo, seja lá o que isso signifique).

A política olímpica, portanto, passou a ser de puro e completo socialismo — embora, é óbvio, o COI fique bastante contente em adquirir receitas pra lá de capitalistas com a transmissão dos jogos. Os lucros são privados e os prejuízos, socializados.

Os Jogos Olímpicos de Montreal, realizados em 1976, até hoje são famosos pelo seu desastre financeiro. Pelo motivo oposto, tornaram-se famosos também os Jogos Olímpicos de 1984, sediados em Los Angeles: esta foi a única Olimpíada que de fato trouxe lucro para a cidade que a realizou, o que foi uma grande surpresa. (O engraçado é que na época de se escolher a cidade-sede, logo após o desastre canadense de 1976, nenhuma outra cidade se apresentou, temerosas que estavam de repetir o fiasco canadense. Isso deixou Los Angeles sozinha na disputa.) 

Um dos motivos desse lucro é que a cidade utilizou o Los Angeles Memorial Coliseum, que fora construído para as Olimpíadas de 1932 (outra época em que ninguém queria sediar os jogos). Sendo assim, a cidade não precisou gastar tanto dinheiro na construção de novas instalações — algo que não ocorrerá no Rio, onde toda uma vila olímpica está sendo construída e a qual acabará, inevitavelmente, se transformando em um elefante branco. (Veja as fotos das instalações olímpicas de Atenas, todas abandonadas).

Mas as coisas são ainda mais escabrosas. Como relatou a imprensa norueguesa, além de extrair dinheiro dos pagadores de impostos para construir modernas (e futuramente inúteis) instalações olímpicas, o COI também exige várias mordomias para seus membros, como as melhores comidas e as mais finas bebidas existentes, bem como o privilégio de usufruírem faixas de trânsito exclusivas em ruas e estradas.

Ao se depararem com todas as demandas de luxo listadas pelo COI em um dossiê de nada menos que 7.000 páginas, a Noruega simplesmente se retirou. Dentre essas várias exigências de luxo — "típicas de uma diva de cinema", segundo a impressa norueguesa — destacavam-se as seguintes:
Os membros do COI exigem um encontro com o rei antes da cerimônia de abertura. Após a cerimônia, exigem serem recepcionados com um faustoso coquetel.
As bebidas deverão ser pagas pelo Palácio Real ou pelo comitê organizador local.
Faixas de trânsito exclusivas deverão ser criadas em todas as ruas e estradas pelas quais os membros do COI irão trafegar, sendo que estas não deverão em hipótese alguma ser utilizadas pelos cidadãos comuns ou pelo transporte público.
Nos quartos de hotel dos membros do COI deverá haver uma saudação de boas vindas feita pelo chefe olímpico local e pelo gerente do hotel, junto com doces, bolos e frutas frescas da estação (encontrar frutas da estação em Oslo em fevereiro será um desafio interessante...).
O bar do hotel deverá estender suas horas de serviço sem um limite pré-determinado, e os minibares dos quartos devem estar repletos de Coca-Cola.
O presidente do COI deve ser recebido cerimoniosamente na pista do aeroporto quando ele chegar.
Os membros do COI devem utilizar entradas e saídas exclusivas no hotel e no aeroporto.
Durante as cerimônias de abertura e de encerramento, um bar completamente estocado de bebidas e alimentos deve estar à disposição dos membros do COI. Durante os dias de competição, vinhos e cerveja devem ser servidos nas salas exclusivas dos estádios.
Os membros do COI deverão ser recebidos com um sorriso quando chegarem a seus hotéis.
As salas de reunião deverão ser rigorosamente mantidas a exatamente 20ºC, a todo e qualquer momento.
As refeições quentes oferecidas nas salas de estar dos estádios deverão ser continuamente substituídas e renovadas em intervalos regulares de tempo, dado que os membros do COI correm "o risco" de ter de comer várias refeições na mesma sala durante as Olimpíadas.

Se tudo isso estivesse sendo financiado privadamente, não haveria motivos para protesto. No entanto, como dito acima, o COI não é exatamente uma entidade do setor privado. Essa controvérsia norueguesa serviu para ressaltar o fato de que, de acordo com o jornal canadense The National Post, "o Comite Olímpico Internacional é uma organização notoriamente ridícula gerida por corruptos e por aristocratas hereditários [leia-se: descendentes de ladrões altamente bem-sucedidos do passado]".

Não é de se surpreender, portanto, que apenas Cazaquistão e China, esses grandes bastiões da liberdade, continuem competindo pela gloriosa chance de sediar os jogos de 2022. 

Esse relato, aliás, confere ainda mais verossimilhança à alegação de que os jogos olímpicos — além de terem se transformado em um enorme exercício de prestígio internacional — não passam de fantasias experimentais sobre o multiplicador keynesiano, segundo o qual os burocratas e planejadores centrais pressupõem que é muito melhor obrigar as pessoas a pagarem por estádios e pistas de atletismo a simplesmente permitirem que elas gastem seu dinheiro livremente com roupas, comida, viagem ou educação.

Um dos motivos de a Noruega ter se retirado é que seu governo pelo menos ainda é obrigado a prestar contas aos seus cidadãos pagadores de impostos, ao passo que os governos de Cazaquistão e China não são. A retirada da Noruega ocorre após as retiradas de Suécia, Polônia e Ucrânia.

Os noruegueses, que são extremamente ricos, disseram que não irão bancar as mordomias do COI e nem irão financiar seus aliados no governo e nas empreiteiras. Eles já perceberam que todo o discurso politicamente correto de "espírito fraterno" utilizado pelo COI é mera distração para tomar seu dinheiro.

E os brasileiros? Continuarão aplaudindo e mostrando orgulho de serem saqueados?

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Participaram deste artigo:

Ryan McMaken, editor do Mises Institute americano.

Leandro Roque, editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.