quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O MUNDO ENCANTADO DOS KEYNESIANOS

O caleidoscópio de Lachmann e o mundo encantado de keynesianos, monetaristas e novos clássicos
Obs: o artigo a seguir é a primeira parte de um texto escrito especialmente para a futura revista acadêmica do IMB.
1. Introdução

Uma das questões mais instigantes da teoria econômica é a discussão sobre a existência ou ausência de equilíbrio nos mercados. As diversas abordagens alternativas são para todos os gostos: há as que negam qualquer possibilidade de equilíbrio nos mercados, as que asseguram que os mercados sempre estão em equilíbrio e as que se colocam como um meio termo, tratando o equilíbrio como uma tendência para a qual tendem os mercados.

Entre os que negam peremptoriamente qualquer possibilidade de equilíbrio nos mercados o mais conhecido é o economista da Escola Austríaca Ludwig Lachmann, nascido na Alemanha, com sua sociedade caleidoscópica; entre os que tratam o equilíbrio como algo permanente — e imediato — o mais famoso é Robert Lucas, o principal mentor da chamada Escola de Expectativas Racionais; e entre os que enxergam os mercados como tendendo para o equilíbrio, mas sem que esse equilíbrio seja atingido, em razão de mudanças de circunstâncias de tempo e espaço, encontramos a maioria dos economistas austríacos, desde Carl Menger e especialmente Mises, Hayek e Kirzner. O objetivo deste paper é mostrar essas três visões, passando em revista a questão do equilíbrio.

2. Ludwig Lachmann e a negação do equilíbrio nos mercados

Ludwig Lachmann (1906-1990) acreditava que a Escola Austríaca havia se desviado da visão original de Menger, descurando-se de seu subjetivismo original e defendia que ela deveria ser baseada em uma perspectiva evolucionária, ou "genético-casual", como contraponto ao equilíbrio e às hipóteses de conhecimento perfeito da economia neoclássica. Mudou-se para a Inglaterra em 1933 e foi aluno e colega de Hayek na London School of Economics, o que aumentou seu interesse pela Escola Austríaca. A LSE na época era um centro de economia famoso, que abrigava, além de Hayek, o próprio Keynes e outros economistas de renome, que viriam a se tornar keynesianos. Em 1948, se mudou para Joanesburgo, onde foi aceito como professor na Universidade de Witwatersrand e onde viveu até o fim de seus dias.

A posição de Ludwig Lachmann difere radicalmente das demais, tanto austríacas como neoclássicas: sua visão do processo de mercado representa uma forte crítica, seja ao conceito neoclássico de equilíbrio, seja à explicação alternativa de Mises, Hayek e Kirzner. Lachmann foi bastante influenciado pelo pensamento de George Lennox Sharman Shackle (1903-1992), um keynesiano ultra-subjetivista que descartava tanto o equilíbrio como a existência de qualquer tendência coordenadora no mercado. Para ele, as forças que levam os mercados a desequilíbrios merecem o mesmo tratamento que o dispensado pelos economistas às forças que promovem o equilíbrio, pelo motivo de que os processos de mercado são formados por ambas, o que implica que, de acordo com circunstâncias diferentes, umas prevaleçam sobre as outras, gerando, assim, processos com características diferentes.

A idéia central de Lachmann é que o conceito de mercado em equilíbrio deve ser inteiramente abandonado, uma vez que pressupõe que as forças "equilibradoras" ou "coordenadoras" prevaleçam sempre sobre as forças "desequilibradoras" ou "descoordenadoras". Segundo sua visão, o mercado deve ser, portanto, interpretado como "um processo econômico, isto é, um processo em marcha, impulsionado pela diversidade de objetivos e recursos e pela divergência das expectativas, variando em um mundo de mudanças inesperadas". Ou, como escreveu em outra ocasião, o mercado deve ser considerado como "um processo sem princípio nem fim". Nisto, sem dúvida, ele não diferia da tendência prevalecente entre a maioria dos austríacos.

Observemos que os agentes econômicos, na concepção lachmaniana, agem em um mundo de características muito diferentes das que são normalmente consideradas: o subjetivismo radical está em um polo diametralmente oposto ao do equilíbrio geral, caracterizando-se por considerar que as variáveis são extremamente voláteis e as mudanças contínuas e incessantes. Shackle descreveu essa ordem econômica como um "processo caleidoscópico", marcado por avalanches sucessivas de reajustes em busca de novos, precários e efêmeros "pseudoequilíbrios".

A figura 1 ilustra a evolução desse mercado caleidoscópico para um determinado bem ao longo de vários momentos do tempo, que é representado no eixo diagonal. No gráfico, p é o preço, q a quantidade, S a oferta e D a demanda pelo bem. O tempo atual é tj e tm; ts e tu representam instantes futuros ao longo do tempo. Não há como conhecer o futuro, daí os pontos de interrogação nas curvas de demanda e oferta futuras, isto é, em tm, ts e tu.



Temos, assim, duas tendências na Escola Austríaca, que refletem duas abordagens diferentes do mercado: a de Lachmann e Shackle (embora este último não possa ser considerado, a rigor, um austríaco), que encara os mercados como processos simplesmente ordenados e que não vê necessidade em se postular uma tendência ao equilíbrio para que os processos de mercado sejam inteligíveis e a de Mises, Hayek, Kirzner e a maioria dosaustríacos, que enxerga os mercados como processos de coordenação, que tendem ao equilíbrio, embora não o alcancem, rechaçando tanto o extremo do equilíbrio geral quanto o do subjetivismo extremado, com base no argumento — bastante plausível — de que os indivíduos, ao atuarem nos mercados, se defrontam com circunstâncias que nem são fixas nem, tampouco, mudam incessantemente, o que lhes permite descobrir gradualmente quais as alternativas que tendem a aumentar sua utilidade, superando assim paulatinamente a limitação de seu conhecimento.

Esse às vezes denominado "fundamentalismo austríaco" (no sentido do subjetivismo levado às últimas consequências) de Lachmann era raro. Ele ressaltou a distinção de sua visão em alguns temas como o subjetivismo inerente à economia, o conhecimento imperfeito, a heterogeneidade do capital (foi um estudioso da obra de Böhm-Baverk e escreveu bastante sobre a teoria do capital), os ciclos econômicos, o individualismo metodológico e o processo de mercado, que via, tal como Shackle, como um caleidoscópio. Seu pensamento serve hoje como base de uma vertente de "subjetivismo radical" da Escola Austríaca de Economia.

Não é difícil intuir que toda a nossa discussão deverá necessariamente enfatizar a maneira como o fator tempo é incluído ou considerado em cada teoria. Para Lachmann, introduzir o tempo na análise econômica é o mesmo que introduzir sua proposição fundamental, a do desconhecimento (unknowability). Ora, ao fazer isso, ele coloca imediatamente dúvidas quanto à existência, ou pelo menos a eficácia de forças que operam ao longo do tempo para efetuar um equilíbrio intertemporal. Não podemos saber o futuro, e não temos razão para acreditar que o mercado vai se comportar como se o futuro fosse conhecido. Nós não temos nenhuma razão para acreditar que o mercado, por exemplo, de pneus de hoje é coordenado com o mercado de automóveis de amanhã.

Notemos que o conceito relevante de tempo aqui não é o de tempo newtoniano ou estático, associado a um eixo que correlaciona espaço e tempo, mas o de tempo subjetivo ou dinâmico, que significa um fluxo contínuo de novas experiências, as quais não estão no tempo, mas são o próprio tempo.

A incognoscibilidade fundamental associada com o elemento tempo fica mais fácil de ser entendida se olharmos para as expectativas dos participantes do mercado e como estes afetam o desenrolar do processo de mercado e são afetados por ele. Na microeconomia e na macroeconomia, as expectativas representam um problema sempre que acontece uma mudança em alguma condição de mercado, seja na oferta ou na demanda. Podemos deduzir que mudanças de preço e quantidades acontecerão sob as novas condições de mercado apenas apelando para a famosa suposição ceteris paribus. Mas o estado de expectativas não pode ser apreendido desta suposição. A mudança de uma condição de mercado pode causar expectativas sobre as condições futuras do mercado — e, portanto, sobre os preços futuros, que a levem a mudar novamente. Nós não podemos prever, no entanto, como estas expectativas serão formadas e reformuladas. Mudanças nas expectativas, então, não são nem uma variável exógena nem uma variável endógena.

Embora não possamos afirmar com segurança que as expectativas sejam consistentes com os preços concorrentes, podemos imaginar que sejam: o futuro não apenas é desconhecido, ele é desconhecível mas nada impede que possa ser imaginado. Se as expectativas podem ser assim consideradas, a análise usual de oferta e demanda á aplicável. Mas também podemos imaginar que as expectativas sobre um determinado preço, por exemplo, mudem e podemos supor que a mudança seja em qualquer sentido. Suponha que um aumento na oferta de pneus provoque uma queda no preço dos pneus. As expectativas de que o preço médio do pneu voltará logo a seu nível anterior fará com que a demanda de pneus aumente, pois os compradores tentarão tirar vantagem de uma oportunidade que é percebida como temporária.

Por outro lado, se as expectativas forem de que o preço dos pneus vai continuar a cair, a demanda vai diminuir, porque os compradores assim esperam para tirar proveito de uma oportunidade ainda melhor no futuro. Como Lachmann reconhece várias vezes, é possível classificar as expectativas como sendo "elásticas" ou "inelásticas" com respeito às alterações de preços, mas prever qual será o caso em uma situação particular é outro problema. Aqui devemos notar que a recomendação de Keynes de que preços e salários não podem cair em resposta ao desemprego generalizado foi baseada na suposição de que as expectativas seriam perversamente elásticas, ou seja, em um caso particular.

Sobre a questão do mercado de bens de capital de longo prazo, a visão de Lachmann está em perfeito acordo com a discussão de Keynes de expectativas de longo prazo. O preço atual de um iPhone reflete as expectativas sobre o preço do iPhone, tanto agora como no futuro. Mas o fato de que o objeto das expectativas está, em parte, no futuro distante é que é o problema, uma vez que os preços no futuro distante são inerentemente mais difíceis de serem previstos pelos participantes do mercado. Os preços atuais e as mudanças nos preços atuais podem — e muitas vezes isso acontece — proporcionar pouca ou nenhuma base para tais previsões. E, ainda, mais tempo terá que passar antes que as previsões atuais, formadas em qualquer base, posam ser demonstradas como corretas ou incorretas. Em que base alguém pode alegar que essas expectativas tendem a ser corretas e que a ação humana nos mercados ao longo do tempo com base nessas expectativas tendem a conduzir o mercado ao equilíbrio? Este é o ponto de Lachmann.

O problema das expectativas pode ser reformulado em um contexto macroeconômico simplesmente pela extrapolação dos pneus para os bens de consumo e de automóveis para bens de investimento ou de capital. Os investidores devem investir hoje, com base em suas expectativas atuais sobre os gastos de consumo em futuro relativamente distante. Essas expectativas podem ser baseadas em parte no nível atual (ou em mudanças neste) das despesas de consumo. Mas não é possível especificar como as despesas correntes são transplantadas em expectativas sobre as despesas futuras.

Podemos imaginar que uma redução nos gastos de consumo corrente seja considerada como uma indicação de que os consumidores estão poupando agora, a fim de poderem consumir mais no futuro. Tais expectativas, é claro, estimulariam os gastos de investimento atual, de modo a se produzir uma quantidade maior de bens de consumo disponíveis exatamente no tempo que os consumidores estarão dispostos a consumir mais. [Notemos que este caso é um exemplo claro da famosa Quarta Proposição de John Stuart Mill: "demanda por bens de consumo não é o mesmo que demanda por trabalho"].

Poderíamos também supor que a abstinência de gastos de consumo está servindo apenas para atingir um nível mais elevado permanentemente de saldos monetários. Se isso for corretamente refletido nas expectativas, este aumento na demanda de moeda teria apenas um efeito transitório no produto real e no consumo real. Ou poderíamos imaginar que uma redução nos gastos do consumidor é tomada como uma indicação de que os consumidores pretendem usufruir mais tempo de lazer. Se esse for o caso, as expectativas retardariam os investimentos até o ponto em que a disponibilidade de bens de consumo caísse para um nível compatível e consistente com o nível mais baixo de gastos de consumo.

Se imaginarmos que as expectativas dos investidores coincidem com as intenções dos consumidores, estaremos descartando o importante problema da coordenação intertemporal. Se considerarmos, como Keynes, que os gastos de consumo corrente são sempre o melhor indicador dos gastos de consumo futuro, estaremos assumindo a inevitabilidade da descoordenação intertemporal. Quando os consumidores consomem menos agora, a fim de poderem consumir mais no futuro, eles encontrarão, nesse futuro, uma disponibilidade menor, em vez de maior, de bens de consumo

Lachmann se abstém de afirmar alguma perversidade inerente ao processo de mercado: ele simplesmente deixa a questão sobre se podemos ou não contar com forças de equilíbrio para atingir a coordenação intertemporal em aberto, para ser considerada em algum momento futuro. Então, mesmo a afirmação de uma tendência para o equilíbrio intertemporal tem que ser qualificada e este é para Lachmann um entre outros problemas subjacentes à noção de equilíbrio.

3. Robert Lucas e a existência permanente de equilíbrio nos mercados

Lachmann faz uma distinção categórica entre o presente, em que os participantes do mercado sabem o suficiente para encontrar o equilíbrio em cada mercado, e o futuro, que é incognoscível. Já Robert Lucas nega essa distinção, pela maneira particular de tratar o problema das expectativas. O futuro, tanto o próximo como o distante, é considerado como se fosse analiticamente equivalente ao presente. Para Lucas, o problema da coordenação intertemporal, então, não é diferente do problema da, por exemplo, coordenação interespacial. Tempo e o espaço podem ser dimensionalmente diferentes para o físico, mas não para o economista, na visão de Lucas. Essas visões polares da distinção entre o presente e o futuro e do significado da passagem do tempo são os elementos que colocam Lachmann e Lucas em polos opostos em relação à questão das tendências ao equilíbrio nos mercados.

Na chamada "revolução das expectativas racionais", os modelos econômicos trabalham com três hipóteses fundamentais: a primeira é que todos os agentes econômicos estão permanentemente em seus pontos "ótimos", ou seja, os consumidores maximizando sua satisfação, os empresários os seus lucros, os poupadores o seu retorno, etc.; o segundo é que todos os preços são inteiramente flexíveis, tanto para cima como para baixo (daí os economistas da Escola de Expectativas Racionais serem conhecidos também como "novos clássicos"; e a terceira é a hipótese de que as expectativas dos agentes econômicos são racionais, o que pode ser traduzido como a suposição de que, na média, eles formulam expectativas para o período t+1 para uma variável qualquer, no final do período precedente, t, com base nas informações disponíveis neste período e, quando chega o período t+1, a esperança matemática (média) dessas expectativas se revela como correta.

Isto revolucionou a teoria econômica, especialmente a macroeconomia, a partir dos anos 70 e foi um duro golpe contra o keynesianismo, porque, com a hipótese de expectativas racionais, as políticas keynesianas de sintonia fina não produzem nenhum efeito sobre as variáveis reais, nem mesmo no curto prazo (os monetaristas acreditavam e ainda creem que no curto prazo essas políticas tinham e têm algum êxito, embora temporário e osneokeynesianos acreditam piamente que seus efeitos podem ser permanentes).

Esta conclusão de Lucas de que as políticas de expansão da demanda são ineficazes mesmo no curto prazo ficou conhecida como a proposição da invariância. Além disso, expansões na taxa de crescimento monetário também não produziriam nenhum efeito sobre a taxa de crescimento da economia, resultado conhecido como a superneutralidade da moeda.

Na figura 2, podemos comparar os resultados de uma política keynesiana de expansão da demanda nos modelos de Milton Friedman e dos monetaristas (com expectativas adaptativas) com os dos modelos de expectativas racionais de Bob Lucas e dos novos clássicos. No gráfico, P representa o "nível de preços", y o "PIB", S a oferta "agregada" e D a demanda "agregada"; yn, por sua vez, é o nível normal ou natural do produto e admite-se que a economia esteja no ponto A, com as expectativas ajustadas e que o nível de preços seja P0. Suponhamos que o governo expanda a demanda agregada (por exemplo, emitindo moeda) de D0 para D1.

No modelo monetarista, a economia iria de A para A', o PIB subiria de yn para y' e os preços também subiriam de P0 para P'. O governo, transitoriamente, conseguiria aumentar o PIB. Mas, com o decorrer do tempo os agentes econômicos perceberiam que o nível de preços observado, P', já era maior do que o esperado inicialmente, P0. Isso provocaria reajustes de custos, deslocando paulatinamente, por um processo de revisão das expectativas de preços (adaptativas, ou seja, mediante consertos nos erros do passado), a oferta agregada para a esquerda e para cima, de S0 para S1, eliminando assim o efeito positivo inicial da expansão monetária. A linha vertical que passa por yn representa, para os monetaristas a "curva de oferta agregada de longo prazo", definida como o lugar geométrico dos pares (y, P) em que as expectativas de preços estão corretas.

Já com expectativas racionais a expansão monetária levaria imediatamente a economia do ponto A para o ponto B, porque os agentes antecipariam o resultado final da política expansionista do governo. É a proposição da invariância a que aludimos, ou seja, o produto real (y) não varia em resposta a políticas anti-cíclicas.



Esses modelos — tanto o de Friedman como o de Lucas — pecam essencialmente, para não nos alongarmos muito, em cinco pontos: o primeiro é que trabalham com "agregados", algo inexistente no mundo real; o segundo é que em ambos a moeda nova "entra" na economia de maneira uniforme, como se em cada m2 do país um helicóptero do Banco Central despejasse, digamos, uma cédula de 50 reais; o terceiro é que se baseiam em uma metodologia positivista, completamente inadequada para uma ciência como a economia; o quarto é que ambos carecem de uma teoria do capital (qualquer que esta viesse a ser) e isto é fatal para sua invalidação como ferramenta que possa descrever o mundo dos negócios; e o quinto é que mudanças na oferta monetária (bem como nos gastos do governo) não afetam os preços relativos, o que é um verdadeiro absurdo em se tratando da economia real, já que a moeda nova "cai" em pontos específicos da estrutura de capital da economia e daí vai se espalhando como os círculos que se formam quando jogamos uma pedrinha em um lago. 

Adotando o termo expectativas racionais, cunhado por John Muth em 1961 e o aprofundando, Robert Lucas conseguiu a mágica de trazer todo o futuro para o presente. Racionalidade, para Muth, Lucas e os que o seguiram, como Thomas Sargent e Neil Wallace, não significa a usual "transitividade das funções de preferência", nem a ideia de comportamento intencional de estirpe austríaca (ação humana), mas ao resultado estatístico de que as expectativas são ditas racionais quando a probabilidades subjetivas na percepção dos participantes do mercado coincidem com as verdadeiras probabilidades de ocorrência dos eventos em estudo.

A figura 3 mostra como, sob a hipótese de expectativas racionais, o futuro é trazido imediatamente para o presente: tu, ts e tm, que são instantes de tempo no futuro, são trazidos para tj, que é o período atual. Assim, todas as decisões podem ser tomadas agora, sem necessidade de esperar pelo futuro. Pode-se, por exemplo, resolver comprar hoje um imóvel, porque você já sabe com certeza que seu valor em, digamos, quinze anos, será fantástico. É evidente que modelos desse tipo podem ser elegantes sob o ponto de vista matemático e estatístico, mas, em termos de explicar o mundo real, são uma brincadeira de faz-de-conta.



Para Lucas, a hipótese de expectativas racionais se aplica a todos os campos da teoria econômica. Sob condições de incerteza genuína, nmhum participante do mercado tem uma base para a formação de probabilidades subjetivas, Mas, sob tais condições, nenhum economista tem qualquer sustentação para a aplicação de qualquer argumento econômico. Em todas as outras condições, o raciocínio econômico é aplicável e as expectativas são consideradas como racionais. Sendo assim, as hipóteses seriam capazes de incorporar tanto os preços reais como as expectativas de preços, em perfeita igualdade.

Para Lachmann, naturalmente, essa visão está absolutamente equivocada.. Na ausência de incerteza genuína, a análise econômica reduz-se a um conjunto de exercícios de maximização de funções que estão mais para a engenharia do que para a economia. O processo de mercado — contrariamente aos seus resultados finais sob a condição assumida de ausência de incerteza, ou seja, de expectativas racionais — está sempre se modificando com a passagem do tempo e, portanto, sempre existem incertezas genuínas. No mundo real, os participantes do mercado são obrigados a tomar decisões sem saberem quais dentre as probabilidades relevantes são verdadeiras e também sem conhecerem todo o espectro de resultados possíveis. Roger Garrison afirma que, se Lachmann tivesse que adotar a terminologia de Lucas, ele provavelmente diria que as expectativas, em seu próprio ponto de vista, são desprovidas de racionalidade ("arrational").

Observemos que a noção de expectativas racionais não fornece uma base útil para a identificação de teorias alternativas que se baseiem em algum comportamento explícita ou implicitamente tido como irracional por parte dos agentes. Resultados teóricos que dependem de trabalhadores sistematicamente sobrestimando o seu salário real ou investidores sobrestimando seus ganhos perdem credibilidade, a não ser que tais erros sistemáticos possam ser explicados em termos de conhecimento e restrições enfrentadas pelos participantes do mercado. A visão crítica das expectativas racionais, para efeito de compará-las com as visões de Lachmann e a de Mises, Hayek e Kirzner não pretende discutir comportamentos irracionais desses vários tipos, mas sim enfatizar o aspecto de ausência de racionalidade ("arrationality") exigidos pela hipótese de incerteza genuína, que é fundamental para o subjetivismo da Escola Austríaca.

Lachmann é completamente cético sobre a existência de efetivas tendências equilibrantes, ao passo que Lucas toma como certos os resultados finais dessas tendências. Em suas construções teóricas, mesmo as voltadas para explicar os ciclos econômicos, ele admite que preços e quantidades sempre estão em equilíbrio. Dessa forma, Lucas não deixa qualquer possibilidade para a ausência de coordenação intertemporal, que é justamente o que, na formulação austríaca, o que caracteriza os ciclos. Para irmos além, em Lucas e nos novos clássicos não há qualquer possibilidade de ausência de coordenação de qualquer espécie..

Lucas não deixa claro se os "modelos de equilíbrio dos ciclos de negócios" ("equilibrium models of business cycles")consideram os ciclos econômicos como sendo um "problema" em algum sentido. Mas o fato de Lucas tratar os ciclos como um fenômeno de equilíbrio constitui mais um motivo para localizá-lo no polo oposto ao de Lachmann. Para este, quando o passar do tempo é levado em conta, as tendências de equilíbrio são postas em xeque, enquanto para Lucas nem mesmo o decorrer do tempo atravessando um ciclo completo e até mesmo além deste nos obriga a relaxarmos o pressuposto de equilíbrio. Entre o caleidoscópio de Lachman e a economia do faz-de-conta das expectativas racionais há visões intermediárias sobre as perspectivas de possibilidade de se alcançar a coordenação intertemporal. As visões de Mises, Hayek e Kirzner são bastante interessantes, exatamente por causa da importância que esses autores — bem como a maioria dos austríacos — devotam ao problema da coordenação intertemporal.

Elas serão analisadas na parte final deste artigo.  (Clique aqui para ir para a parte final)

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Referências bibliográficas
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Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).  Visite seu website.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA

A questão da obsolescência programada - quanto tempo as coisas devem durar?


John Kenneth Galbraith, aquele insuportável moralista, escreveu em 1958 um bizarro livro intitulado A Sociedade Afluente, o qual exerceu uma enorme influência sobre várias gerações de ativistas anti-mercado. A ideia do livro era a de descaradamente alterar os termos do debate sobre socialismo e capitalismo. Se antes os socialistas argumentavam que o capitalismo produzia muito pouco, agora eles haviam mudado de ideia, utilizando a nova retórica de Galbraith, passaram a dizer que o capitalismo na verdade produz de forma excessiva as coisas erradas (coisas para serem consumidas) e muito pouco das coisas certas (bens públicos, igualdade etc.).

Um dos vários alvos do livro era a chamada "obsolescência programada" — a prática dos fabricantes de criar e desenvolver seus produtos de modo que eles se desgastem rapidamente e estraguem em um determinado momento no futuro, o que obrigaria os consumidores a terem de sair para comprar um novo e similar produto. Segundo esta teoria, para disfarçar esta obsolescência programada, estes espertos fabricantes fazem algumas mudanças cosméticas no produto para dar a impressão de que houve algum aprimoramento, mas tudo não passa de um mero truque para enganar o consumidor e fazê-lo crer que vale a pena pagar por este item remodelado, quando na verdade ele estaria apenas sendo espoliado, pois estaria pagando duas vezes por aquilo que deveria ser comprado apenas uma vez.

O problema é que há várias pressuposições artificiais e insustentáveis nesta premissa. Primeiro, o modelo presume que os fabricantes são muito mais espertos do que os consumidores, que são tratados como vítimas passivas e inanimadas dos poderosos interesses dos capitalistas. Com efeito, no mundo real, são os fabricantes que estão sempre implorando para que os consumidores sejam mais fieis às marcas e menos instáveis, imprevisíveis, minuciosos, discriminadores e exigentes. Tudo que um fabricante quer é que seu consumidor não abandone seu produto em prol de outros sem nenhum motivo racional ou aparente.

Segundo, o modelo pressupõe, de forma excêntrica e normativa, que os produtos devem durar o máximo de tempo possível. Mas a realidade é que não existe nenhuma preferência de mercado predefinida acerca de quanto tempo os bens devem durar. Esta é uma característica de fabricação que é determinada totalmente pela demanda dos consumidores. 

E sempre vale lembrar que, na medida em que os fabricantes possuem algum poder de impor seus gostos aos consumidores, isso ocorre apenas em economias fechadas (cujas importações são dificultadas pelo governo) e em economias excessivamente reguladas e burocratizadas, em que não há livre entrada de concorrentes no mercado.

Estes "argumentos" galbraithianos voltaram com força total recentemente, pois vários comentaristas da mídia observaram que utensílios de cozinha e outros aparelhos elétricos, bem como vários outros produtos, simplesmente parecem não durar tanto quanto duravam antigamente. Naqueles bons e velhos tempos, você ganhava um liquidificador de presente de casamento e, dali a vários anos, a sua filha ainda o utilizaria sempre que chegasse da faculdade. Nos dias de hoje, temos sorte se um liquidificador ou uma batedeira durarem alguns poucos anos. O mesmo parece ser válido para máquinas de lavar e secadoras, roupas e equipamentos eletrônicos, amoladores e cortadores de grama, e até mesmo imóveis. Nada dura o mesmo tanto ou possui a mesma robustez que antigamente.

Mas seria isso um argumento contra o mercado ou seria meramente um reflexo da preferência dos consumidores por valores (preços baixos, tecnologia de última geração, e várias outras amenidades) em detrimento da longevidade? Sugiro que seja esta última. Com a acentuada inovação tecnológica que vivenciamos, vários processos de produção se tornaram mais eficientes e, logo, mais baratos. Consequentemente, faz mais sentido substituir continuamente um produto do que criar um que dure para sempre. Você prefere um liquidificador de $200 que dure 30 anos ou um liquidificador de $10 que dure cinco anos? Aquilo que os consumidores preferem no longo prazo será aquilo que irá dominar o mercado.

Como podemos estar certos disso? Concorrência. Digamos que todos os fabricantes produzam liquidificadores que durem apenas 5 anos, e que este fato seja amplamente desprezado pelos consumidores. Um fabricante poderia roubar vários clientes da concorrência ao ofertar um produto que enfatize a longevidade em detrimento de outros aspectos. Se os consumidores realmente valorizam a longevidade, eles estarão dispostos a pagar a diferença. A mesma lógica se aplica a automóveis, computadores, apetrechos eletrônicos, imóveis e tudo mais. Podemos saber qual é a preferência dominante (em um livre mercado) ao simplesmente olharmos qual prática é a mais comum no mercado.

Imagine que um fabricante de computadores produzisse uma máquina que fosse comercializada como sendo um computador de duração vitalícia, o último computador que você necessitaria ter enquanto vivesse, completo com softwares que irão similarmente durar para sempre. Qualquer pessoa com algum conhecimento seria cética quanto a essa proposta, pois é fácil perceber que este arranjo é a última coisa que você realmente quer. Idealmente, o seu computador deve durar o tempo que você quiser que ele dure até você estar pronto para adquirir um modelo superior. Longe de ser uma espoliação, portanto, a obsolescência é um sinal de crescente prosperidade.

Em uma época de maciços e frequentes aprimoramentos tecnológicos, seria um enorme desperdício se os fabricantes direcionassem recursos caros e escassos para a manufatura de produtos que durassem muito além de sua utilidade. No caso de computadores, por exemplo, fazer com que todos eles durassem mais de 6 anos seria um grande erro no ambiente de hoje. Ele seria caro e rapidamente já estaria obsoleto. O mesmo, inclusive, pode ser dito sobre casas. Todos sabem que casas antigas podem ser charmosas, mas também são extremamente difíceis de serem manuseadas em termos de aquecimento, refrigeração, encanamento, fiação e todas as outras amenidades. Em determinados casos, a solução mais eficiente pode ser simplesmente a de derrubar a casa antiga e construir uma nova em vez de tentar implementar várias melhorias na antiga.

Existe desperdício apenas quando você força o quesito longevidade em detrimento do aperfeiçoamento tecnológico. Um indivíduo consumidor é livre para querer isso e buscar produtos que tenham essa configuração, mas não há nenhuma base para se declarar que tal preferência é a melhor e, por isso, deveria ser fixa e imutável para todos. Não vivemos, e nem queremos viver, em um mundo estático, no qual o desenvolvimento jamais ocorre, onde o que existe sempre existiu e sempre irá existir.

Pense em termos de vestuário, mobílias e outros bens. À medida que a renda disponível das pessoas vai aumentando, elas querem ser capazes de substituir o que usam de acordo com sua mudança de gostos. Uma sociedade em que as roupas fossem sempre remendadas, os aparelhos eletrônicos fossem sempre consertados, e todos os produtos sofressem a famosa "gambiarra" para que pudessem se arrastar o máximo de tempo possível não seria uma sociedade rica. Poder descartar o que está desgastado e quebrado é um sinal de crescente riqueza e prosperidade.

É comum as pessoas olharem para uma porta oca ou para uma mesa simples de madeira compensada e dizer: "Que coisa barata e fajuta! Antigamente, os marceneiros e artesãos se preocupavam com a qualidade do que faziam! Já hoje ninguém se importa com nada, e acabamos rodeados por coisas baixa qualidade!" Bem, a verdade é que aquilo que chamamos de 'alta qualidade do passado' não estava disponível para as massas com a mesma facilidade que está hoje. Automóveis, casas e alguns outros utensílios podiam até ser mais duráveis no passado, mas eram muito poucas as pessoas capazes de adquirir aqueles produtos, pois eles eram muito mais caros (em termos reais). Hoje, um mesmo produto está disponível para todas as classes sociais, sua qualidade variando exatamente de acordo com seu preço. Nada é mais inclusivo do que isso.

Em uma economia de mercado, aquilo que é chamado de 'qualidade' é algo que está sempre sujeito a mudanças de acordo com as preferências do público consumidor. Se os produtos devem ser vitalícios (como alianças de casamento) ou devem durar apenas um dia (pão fresco) é algo que não pode ser determinado fora do arcabouço de uma economia de mercado. Nenhum planejador central pode dizer com certeza e exatidão. É algo constantemente sujeito a mudanças.

Se o seu livro se despedaça, se suas roupas se rasgam com facilidade ou se a sua máquina de lavar repentinamente pára de funcionar, resista à tentação de denunciar o declínio da civilização. Lembre-se de que você pode substituir todos estes itens a uma fração do preço que sua mãe ou sua avó tiveram de pagar por eles. E você pode fazer isso rapidamente, com o mínimo de aborrecimento e transtorno. Você pode até comprar pela internet, sem ter de sair de casa. E é bastante provável que as novas versões do produto que você comprar tenham mais apetrechos e amenidades do que as antigas.

Pode chamar isso de obsolescência programada caso queira. Ela é programada pelos fabricantes porque os consumidores preferem o aperfeiçoamento à continuidade, a disponibilidade à longevidade, a substitutibilidade à reparabilidade, o progresso e a mudança à durabilidade. Não se trata de desperdício justamente porque estão sendo utilizados os processos de produção de menor custo possível. Ademais, não há um padrão eterno e imutável por meio do qual podemos mensurar e avaliar a racionalidade econômica por trás do uso de recursos na sociedade. Isso é algo que pode ser determinado e julgado somente por indivíduos utilizando recursos escassos em um arranjo de mercado.

É claro que uma pessoa deve ser livre para morar em uma gélida casa de pedra, para ouvir música em uma vitrola, para lavar roupas sobre uma tábua com um esfregão, para marcar as horas com um relógio de sol ou com uma ampulheta, e para fazer as próprias roupas com sacos de farinha. Hoje, tudo isso ainda é possível. Uma pessoa deve ser livre para ser completamente obsoleta. Mas, por favor, não igualemos este comportamento à riqueza, e não aspiremos a viver em uma sociedade na qual todos são obrigados a preferir coisas permanentes em detrimento de coisas aperfeiçoadas.

Lew Rockwell é o presidente do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State.  Tradução de Leandro Roque

O FUTURO TRAIDOR

Anos atrás, quando Ingrid Betancourt foi resgatada da selva colombiana, o Partido Comunista Português recusou-se a saudar o feito. Motivo?

A sra. Betancourt tinha sido salva pelo presidente Álvaro Uribe das mãos das FARC. E entre Uribe e o "comandante" Enrique, os comunistas lusos não escondiam as suas simpatias.

Na altura, no jornal "Expresso", ainda perguntei aos camaradas se a sra. Betancourt deveria ser jogada de volta à selva. Sobretudo se se provasse que o resgate tinha sido feito com o intolerável apoio americano. O PCP, essa deliciosa relíquia stalinista que persiste na Europa Ocidental, não chegou a responder.

Felizmente, vejo com bons olhos que Portugal não é caso único em matéria de atraso político e até intelectual. Era Eça de Queirós quem dizia, com piada, que os brasileiros eram portugueses inchados pelo calor. O que significa que os vícios portugueses, no Brasil, também incham com a temperatura.

Assim foi com a blogueira cubana que, em visita ao Brasil, foi acusada de mil torpezas por uma parte da esquerda local. Mas, entre todos os insultos, um deles dominou a minha atenção: a sra. Yoani Sánchez denuncia os abusos da ditadura castrista porque existe dinheiro americano por detrás. Ela é, resumindo, uma traidora do seu próprio país.

A acusação é interessante porque existem vários equívocos nela.

A primeira, evidente, é imaginar o que diria essa esquerda fanática e pró-castrista se a sra. Yoani Sánchez, sem dinheiro americano
(como, aliás, parece ser o caso), continuasse as suas críticas ao regime de Havana. Será que assim, descontaminada de qualquer corrupção "imperialista", os críticos que a
insultaram perdoariam a traição à pátria?

Obviamente que não. E "obviamente" porque existe um segundo equívoco na acusação, próprio do pensamento totalitário: a ideia funesta de que um país se confunde com um regime que fala em nome do povo.

Da União Soviética comunista à Alemanha nazista, sem esquecer as atrocidades cometidas por Mao (na China) ou pelo pequeno Fidel (em Cuba), não houve ditador que não tenha cometido esse abuso, digamos, epistemológico: "O Estado sou eu", para citar a famosa frase do absolutista Luís 14. Ou, em alternativa, Cuba são os Castro.

Acontece que não são. Cuba pertence aos cubanos, atraiçoados por Fidel em 1959. E o mais irônico é que as promessas do ditador eram outras: acabar com o "bordel" de Fulgencio Batista, realizar eleições livres no curto prazo e até, pasme-se, abrir a ilha ao mundo.

Todos sabemos o resto da história, feito de fuzilamentos no "paredón", presos políticos, restrição das mais básicas liberdades (como a de sair do país) e uma miséria material que os turistas ocidentais, em viagens quase zoológicas, tomam por exótica. De fato, não há nada mais exótico do que visitar seres humanos em cativeiro.

E quem acredita que essa miséria material se explica com o "embargo americano", das duas, uma: ou é ignorante, ou é simplesmente um fanático. O "embargo americano" existe, sem dúvida, e deve ser condenado pelo seu óbvio anacronismo (como a própria blogueira o faz). Mas é preciso acrescentar a segunda parte da frase: só existe o embargo americano.

Que o mesmo é dizer: todo mundo que é mundo mantém relações com Cuba e nem assim a ilha se converteu numa espécie de Suécia do Caribe. Economicamente, Cuba falhou como falharam todas as experiências coletivistas da história. Com ou sem embargos.

Yoani Sánchez é uma traidora dos fabulosos irmãos Castro? Brindo a ela. Como brindo a todos os traidores que lutaram contra todas as ditaduras. E aqui incluo o velhinho PC português, que lutou (e bem) contra a ditadura de Salazar. Mesmo que o tenha feito em nome de uma ditadura moscovita de sentido inverso.

Porque este é o ponto: no dia em que o meu país for tomado de assalto por um torcionário qualquer, seja ele de esquerda ou de direita, e a democracia deixar de existir em Portugal, agradeço antecipadamente todo o apoio estrangeiro para derrubar esse regime.

E publicamente declaro: aceito dinheiro brasileiro, armas americanas e até espionagem israelense.

Nesse dia, eu serei um "traidor da pátria". E com todo o prazer.

Por: João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

À SOMBRA DO AUTORITARISMO

Duas décadas após o fim da Guerra Fria, tornou-se lugar comum dizer que a democracia virara um regime consolidado em toda a América Latina, com exceção de Cuba. Não haveria mais golpe preventivo de direita, e a esquerda finalmente aderira ao regime democrático.


Episódios como o golpe de Fujimori no Peru e de Chávez na Venezuela, ambos em 1992, seriam os estertores de um passado de atentados institucionais já superado. Agora haveria apenas um jogo sob regras democráticas: The Only Game in Town , como chama a literatura especializada no assunto.

Aliás, 1992 foi mesmo um divisor de águas. Alguns países como o Brasil pós-impeachment institucionalizaram sua democracia e economia ano a ano. Outros como a Venezuela enveredaram por uma sequência de crises de institucionalidade política e econômica, recuando um passo atrás do outro.

Seria possível assegurar que a região é hoje mais democrática do que há dez anos? Há razões para duvidar.

Neste momento, a Venezuela é a principal marca do retrocesso que aflige a região. O golpe de 10 de janeiro de 2013 ungiu ao poder uma pessoa que simplesmente não recebeu voto algum. Nicolás Maduro se transformou no primeiro presidente biônico de fato do século 21 na América Latina. Chávez voltou para Caracas, mas o problema continua. Nada apaga o golpe. Além disso, Maduro ainda governa por delegação dada por alguém que está em um leito de hospital, sem condições de exercer a Presidência como deveria.

Vale dizer que a virtude da democracia não está em um só homem e seu partido, mas na natureza das instituições do sistema político.

Recentemente, houve também ruptura democrática (também "temporária") em Honduras e no Paraguai, bem como inúmeras tentativas de censurar a imprensa, controlar as pesquisas e o livre pensamento nas universidades, anular os contrapesos institucionais e inibir a oposição em muitos outros países.

Nem mesmo o Brasil escapou dessa onda golpista. O atentado institucional levou aqui o nome de mensalão. O Supremo, no entanto, demonstrou independência e condenou pessoas poderosas. Gerou preocupação o último pronunciamento em rádio e TV da presidente Dilma. Foi mais próximo ao estilo chavista, dividindo a nação entre governistas e opositores.

Segundo a presidente, quem pensa diferentemente dela não tem fé no país, fazendo lembrar o slogan da ditadura "Brasil, ame-o ou deixe-o", mesmo com crescimento econômico agora similar ao da década perdida nos anos 1980.

Pouco a pouco, o pesadelo do autoritarismo volta a assombrar a América Latina. Talvez simbólica seja a ascensão de Cuba à presidência da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe (Celac). Justamente um regime autoritário muito antigo estará à frente da nova organização regional.

Nos últimos tempos, os países mais dinâmicos como Chile, Peru, Colômbia e México fazem uma aposta no aprofundamento das instituições democráticas e de mercado, elaborando inclusive uma área de livre comércio. É difícil classificá-los de neoliberais porque investem progressivamente em políticas sociais em um novo contexto internacional.

Em compensação, os governos do Mercosul não sabem o que fazer para reverter a tendência de desintegração econômica já observada nos indicadores. A importância relativa do bloco decresceu para nós mesmos. As supostas esquerdas e grupos nacionalistas no poder não têm agenda de desenvolvimento e ampliam a dependência em relação à China, que de comunista só restou a ditadura.

Isso não quer dizer que o Mercosul deva ser descartado. Ao contrário, precisa ser reabilitado no seu comércio e espírito democrático. Uma coisa que faria muito bem a todos seria a alternância de poder.

Uma perigosa rota continuísta se estabeleceu. Uma parte considerável de partidos sul-americanos já está há mais de dez anos no poder, e sem qualquer perspectiva de saírem de lá. O voto que define as democracias sofre com sucessivas violações sobre o que o torna livre.

O antídoto que as sociedades têm para preservar suas instituições pluralistas é substituir um partido por outro, elegendo grupos diferentes. Não há outro remédio. Por: Marcelo Coutinho O Globo


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

QUANDO A SENSATEZ NÃO TEM VEZ


Na Suíça de hoje, parece que os relógios são os únicos que se portam previsivelmente. Ao longo dos últimos quatro anos, políticos suíços e seu Banco Central passaram a comprar reservas internacionais a um ritmo sem precedentes. Em 2012, as reservas internacionais do país, formadas por várias moedas, já totalizavam US$420 bilhões. A moeda mais volumosa em suas reservas é o euro. Este montante é sete vezes maior do que o de 2008, e equivale a 70% do PIB anual do país. Tal soma equivale a US$200.000 para cada família suíça de quatro pessoas.

As autoridades suíças alegarão que o dinheiro foi "investido" visando ao futuro, mas o que elas de fato fizeram foi empobrecer todo o país no presente. Embora tal decisão pareça perversa, ela faz perfeito sentido quando vista através da lente daquilo que hoje passou a ser o pensamento econômico dominante.

Durantes suas últimas gerações, a Suíça desfrutou um dos mais robustos fundamentos econômicos do mundo. O país ostenta uma alta taxa de poupança, baixos impostos, um vibrante setor exportador, uma baixa razão dívida/PIB, e um orçamento governamental equilibrado. E, antes dos últimos dois anos, uma das mais responsáveis políticas monetárias do mundo. Estes atributos tornaram o franco suíço um dos poucos "portos seguros" do mundo. Porém, na economia global atual, os sensatos não têm vez.

Os principais bancos centrais do mundo, particularmente aqueles localizados em Washington, Frankfurt, Londres e Tóquio, se entregaram gostosamente a uma maciça e coordenada campanha de desvalorização de suas moedas para combater a recessão. No entanto, por alguns anos os suíços se recusaram a se juntar a essa marcha da insensatez. Como consequência, os investidores ao redor do mundo sabiamente decidiram proteger sua poupança comprando o confiável franco suíço. De dezembro de 2008 a agosto de 2011, o franco suíço se apreciou assombrosos 59% em relação ao dólar americano e aproximadamente 30% em relação ao iene japonês. Ainda mais importante, o franco ganhou 42% em relação ao euro. Dado que a zona do euro literalmente cerca toda a Suíça, seu comércio com estes países representa a esmagadora maioria de suas transações internacionais.

Durante este acentuado processo de apreciação de sua moeda, a economia suíça continuou prosperando. Os salários e o poder de compra dos suíços aumentaram, e o PIB do país cresceu consistentemente mais do que o de outros países da Europa ocidental. Adicionalmente, a apreciação de sua moeda ajudou a conter a inflação de preços, dando à Suíça uma taxa de inflação consistentemente baixa, com ocorrências ocasionais de deflação de preços.

No entanto, não obstante as majoritariamente positivas estatísticas do setor exportador, alguns exportadores suíços começaram a reclamar que, em determinados momentos, um franco suíço robusto os colocava em desvantagem em relação aos concorrentes internacionais. E, como em qualquer outro país do mundo, o setor exportador possui um lobby poderoso. E o Banco Central suíço, assim como os principais bancos centrais do mundo, possui seu ranço mercantilista. Logo, embora a Suíça fosse uma ilha de saúde em meio a um mar de problemas, a nova ortodoxia econômica dominante convenceu as autoridades suíças de que sua moeda forte era não uma benção mas sim um fardo. Mais especificamente, a apreciação do franco era vista como um repúdio às políticas monetárias expansionistas que estavam ocorrendo em todos os outros países. E então, repentinamente, o governo suíço decidiu se juntar à farra da destruição da moeda.

No início de agosto de 2011, o Banco Central suíço adotou uma série de medidas para reverter a apreciação do franco. Em termos simples, ele começou a imprimir francos para comprar moedas estrangeiras, mais notavelmente o euro. O anúncio incluía a promessa de comprar quantias ilimitadas de moeda estrangeira com o intuito de manter um piso de 1,20 francos por euro. Em outras palavras, o Banco Central suíço estava dizendo que faria a política monetária que fosse necessária para impedir que sua moeda continuasse se valorizando. Ao fazer isso, os suíços essencialmente terceirizaram sua política monetária para a zona do euro. Qualquer medida expansionista feita pelo Banco Central Europeu teria de ser imitada pelo Banco Central suíço. Ironicamente, era justamente o medo desta perda de soberania monetária que fez com que os suíços se recusassem a adotar o euro. Não obstante a milenar tradição de independência e neutralidade do país, os suíços acabaram, em vias indiretas, adotando o euro. 

Desde aquela data, o franco suíço já se desvalorizou 16% em relação ao dólar, as reservas suíças explodiram, e os investidores estrangeiros que compraram francos como meio de fugir da desvalorização de suas moedas foram traídos.

Nações de economia robusta e mão-de-obra produtiva geram bens e serviços em excesso em relação ao volume que é demandado pela população nacional, o que permite que este excedente seja exportado sem prejudicar a qualidade de vida da população. Esta robustez e estabilidade econômica atrai investimentos estrangeiros. Tais fundamentos econômicos tendem a aumentar a demanda pela moeda deste país, o que significa uma apreciação de sua taxa de câmbio. Uma moeda forte mantém baixos os custos dos insumos e dos bens de capital, o que permite que os trabalhadores produtivos ganhem salários reais cada vez maiores.

Entretanto, de acordo com a maioria dos economistas, ter uma moeda forte é algo trágico para uma economia porque irá destruir a competitividade internacional deste país e poderá — pavor dos pavores — gerar uma deflação de preços, algo que eles veem como uma areia movediça. Foram estes temores que deram início à "guerra cambial global", em que os países estão destruindo suas poupanças para garantir que suas moedas se mantenham baratas, para deleite dos exportadores. Na lógica econômica atual, temos de fracassar para sermos bem-sucedidos.

Mas é muito fácil ter uma moeda fraca. Basta uma ilimitada disposição para imprimir dinheiro. Já uma moeda forte requer uma grande disciplina fiscal e uma genuína capacidade produtiva. No entanto, como naqueles programas de TV em que as pessoas têm de perder peso, economistas acreditam que o vencedor de uma guerra cambial é o maior perdedor. Você vence não por ter eliminado seus concorrentes, mas por ter se suicidado! É como um estudante convencendo seus pais de que tirar 3 é melhor do que tirar 10. E se um boletim escolar repleto de notas baixas começa a gerar elogios paternos em vez de reprimendas, os estudantes perderão qualquer incentivo para melhorar seus desempenhos. Similarmente, se nações aplicadas como a Suíça começam a se esforçar para reduzir suas próprias notas, as outras nações mais relaxadas terão ainda menos incentivos para alterar seus hábitos de estudo. Se as nações mais disciplinadas não entrassem nessa guerra cambial e não depreciassem suas moedas, aquelas nações que estão destruindo suas moedas veriam uma enorme escalada nos preços de seus bens de consumo. A resultante queda no padrão de vida obrigaria várias reformas estruturais e produtivas.

Estou naquela posição minoritária que acredita que, assim como é melhor ser rico a ser pobre, uma moeda forte é preferível a uma moeda fraca. Embora vários economistas renomados estejam se empenhando para criar confusão nesta discussão, o fato é que a falácia de um argumento pode ser vista quando sua lógica é levada a extremos. Se uma moeda mais fraca é preferível a uma mais forte, então a lógica nos levaria a concluir que uma moeda sem valor nenhum será preferível a uma moeda de valor infinito. Seria preferível, por exemplo, ter uma cédula de $1.000.000 que não compra absolutamente nada a ter uma moedinha de $0,01 que compra um automóvel.

E como funcionariam economias com moedas tão drasticamente diferentes assim?

É verdade que o país com a moeda de valor zero tenderia a apresentar pleno emprego e robustas exportações. Óbvio. Com o custo da mão-de-obra relativamente baixo, a população poderia ser facilmente empregada até mesmo nas mais inúteis atividades. E pelo fato de a população não possuir poder de compra nenhum, todo e qualquer produto seria exportado para aqueles países cuja população possui uma moeda com maior poder de compra. Adicionalmente, as importações seriam nulas, pois a população local seria incapaz de adquirir qualquer coisa produzida em outros países de moeda mais forte. Como consequência, o nível de consumo neste país seria extremamente baixo e o padrão de vida desta população seria lamentável. Essencialmente, essa economia seria parecida com aquelas economias pobres que funcionam em nível de subsistência, como as da Bolívia, do Zimbábue e do Haiti.

Por outro lado, um país com uma moeda de valor infinito vivenciaria o melhor dos mundos possíveis. Mesmo a mais ínfima quantidade de dinheiro permitiria a seus cidadãos comprarem volumosas quantias de bens estrangeiros. O dinheiro ganhado em um bico qualquer, como trabalhar de babá por apenas uma tarde, daria mais poder de compra do que meses de trabalho duro em países mais pobres. A moeda forte permitiria que o consumo aumentasse ao mesmo tempo em que as horas de trabalho diminuíssem. A poupança aumentaria continuamente de valor, as pessoas poderiam viajar com cada vez mais frequência e dedicar muito mais tempo ao lazer. Essencialmente, é assim que funciona uma economia rica.

Quando vista sob esta perspectiva, é fácil entender por que os defensores da ortodoxia dominante fogem ao debate. Aqueles que acreditam nos benefícios de uma moeda fraca nunca especificam quando uma moeda em depreciação se torna algo ruim. É óbvio que tem de haver um ponto de virada, um ponto em que a perda do poder de compra passa a sobrepujar os supostos ganhos em crescimento econômico e emprego. No entanto, há apenas silêncio em relação a isso. já a minha posição é que uma moeda em contínua apreciação sempre será algo bom. Neste quesito, nenhum ponto de virada precisa ser identificado.

O problema é que os economistas politicamente corretos de hoje acreditam que o objetivo de uma economia é fornecer emprego a todos, e não produzir bens e serviços de qualidade e em abundância. Eles veem um emprego como o objetivo final de tudo, e não como um meio que possibilita às pessoas produzir coisas genuinamente demandadas, e cuja remuneração por este serviço genuíno permitirá que elas possam obter o que querem. Ademais, se podemos conseguir tudo o que queremos sem ter de trabalhar muito, por que se importar com empregos? Uma moeda forte nos leva para o mais próximo possível deste ideal. O fato de este objetivo ter sido amplamente esquecido mostra com perfeição a miséria intelectual da atual "ciência" econômica.

E é justamente esse tipo de ciência tosca que está aniquilando o crescimento real do mundo. Enquanto essa ideologia do "preto é branco" continuar prosperando, os maiores depreciadores continuarão a ser os maiores perdedores reais.

Por: Peter Schiff -  presidente da Euro Pacific Capital e autor dos livros The Little Book of Bull Moves in Bear Markets, Crash Proof: How to Profit from the Coming Economic Collapse e How an Economy Grows and Why It Crashes. Ficou famoso por ter previsto com grande acurácia o atual cataclisma econômico. Veja o vídeo. Veja também sua palestra definitiva sobre a crise americana -- com legendas em português 
Tradução de Leandro Roque

AUTORITARISMO

O maior perigo para a humanidade: nossa recorrente paixão pelo autoritarismo


É inegável que, nos dias de hoje, ditadura, intervencionismo e socialismo são extremamente populares. Nenhum argumento lógico parece conseguir enfraquecer essa popularidade. O fanatismo impede que os ensinamentos da teoria econômica sejam ouvidos, a teimosia impossibilita qualquer mudança de opinião e a experiência histórica não serve de base para nada. 

Para compreender as raízes dessa rigidez mental, devemos nos lembrar de que as pessoas sofrem e se sentem infelizes e frustradas porque as coisas nem sempre se passam da maneira como elas gostariam. O homem nasce como um ser egoísta, um ser não-sociável, e é só com a vida que ele aprende que sua vontade não é a única nesse mundo; existem outras pessoas que também têm suas vontades. A vida e a experiência irão lhe ensinar que, para realizar os seus planos, ele terá de encontrar o seu lugar na sociedade, terá de aceitar as vontades e os desejos de outras pessoas como um fato consumado, e terá de se ajustar a esses fatos se quiser chegar a algum lugar. 

A sociedade não é aquilo que o indivíduo gostaria que fosse. Todo indivíduo tem a respeito de seus conterrâneos uma opinião menos favorável do que a que tem sobre si próprio. Ele se julga possuidor do direito natural de ocupar na sociedade um lugar melhor do que aquele que efetivamente ocupa. Ele se julga digno de estar em uma classe social mais elevada. Só que diariamente o presunçoso — e quem está inteiramente livre da presunção? — sofre novas decepções. E diariamente ele aprende, nem sempre de maneira pacífica e corriqueira, que existem outras vontades além da sua. 

Para se blindar dos efeitos mentalmente devastadores destas seguidas decepções, o neurótico se refugia em sonhos encantados. Mais especificamente, ele sonha com um mundo no qual apenas a sua vontade é decisiva e é implantada sem restrições. Neste seu mundo onírico, ele é o ditador. Só aquilo que tiver a sua aprovação pode acontecer. Somente ele pode dar ordens; os outros apenas obedecem. Sua razão é suprema.

Neste mundo secreto de ilusões, o neurótico pensa ser um César, um Genghis Khan ou um Napoleão. Mas, na vida real, quando fala com os seus conterrâneos, tem de abaixar a cabeça e ser mais modesto. Sendo assim, perante essa sua irremediável insignificância, ele tem de se contentar em apoiar uma ditadura comandada por outra pessoa. Não importa se tal ditadura seja em seu próprio país ou em um outro distante: em sua mente, este ditador está ali apenas para efetuar as suas (do neurótico) vontades. Trata-se de uma mistura de psicopatia com megalomania.

Nenhum indivíduo jamais apoiou uma ditadura que fizesse coisas opostas às que ele considera certas. Quem apóia uma ditadura o faz por achar que o ditador está fazendo o que, na opinião deste indivíduo, tem de ser feito. Quem apóia ditaduras tem sempre em mente o desejo irrefreável de dominar seus conterrâneos de forma irrestrita, e impor a eles todas as suas vontades — ainda que tal serviço seja feito por outra pessoa. 


O defensor de ditaduras costuma ter um carinho específico pela expressão "planejamento econômico" — ou "economia planejada" —, a qual, particularmente nos dias de hoje, é um pseudônimo de socialismo. Neste arranjo, qualquer coisa que as pessoas queiram fazer tem de ser primeiramente aprovada e planejada. Estes que, assim como Marx, rejeitam a "anarquia da produção" e pretendem substituí-la pelo "planejamento", desprezam profundamente a livre iniciativa, as vontades e os planos das outras pessoas. Somente uma vontade deve prevalecer, somente um plano deve ser implementado: aquele que tem a aprovação do neurótico; o plano que ele considera correto, o único plano. Qualquer resistência deve ser subjugada e sobrepujada; nada deve impedir o neurótico de tentar ordenar o mundo de acordo com seus próprios planos. Todos os meios que façam prevalecer a suprema sabedoria do lunático devem ser utilizados. 

Essa é a mentalidade das pessoas que, certa vez, em uma exposição das pinturas de Manet em Paris, exclamaram: "a polícia não deveria permitir isso!" Essa é a mentalidade das pessoas que constantemente bradam: "deveria haver uma lei contra isso!"

E, quer elas admitam ou não, esta é exatamente a mentalidade de todos os intervencionistas, socialistas e defensores das ditaduras. Há apenas uma coisa que eles odeiam mais do que o capitalismo: um intervencionismo, um socialismo ou uma ditadura que não corresponda a todas as suas vontades. Daí a briga apaixonada entre comunistas e nazistas; entre os partidários de Trotsky e os de Stalin; entre os seguidores de Strasser e os de Hitler. 

A liberdade e o sistema econômico 

O principal argumento contra a proposta de se instituir um regime socialista é o de que, no sistema socialista, não há espaço para a liberdade individual. Socialismo, argumenta-se, é o mesmo que escravidão. Não há como negar a veracidade desse argumento. Onde o governo controla todos os meios de produção, onde o governo é o único empregador e tem o direito de decidir que treinamento as pessoas deverão receber, onde e como deverão trabalhar, o indivíduo não é livre. Tem o dever de obedecer e não tem direitos. 

Os defensores do socialismo nunca conseguiram apresentar uma refutação efetiva a esse argumento. Retrucam dizendo apenas que, na economia de mercado, há liberdade apenas para os ricos, e não para os pobres; e que, por uma liberdade desse tipo, não valeria a pena renunciar às supostas vantagens do socialismo. 

Ocorre que os homens são diferentes, desiguais. E sempre o serão. Alguns são mais dotados em determinado aspecto, menos em outro. E há os que têm o dom de descobrir novos caminhos, de mudar os rumos do conhecimento. Nas sociedades capitalistas, o progresso tecnológico e econômico é promovido por esses homens. Quando alguém tem uma ideia, procura encontrar algumas outras pessoas argutas o suficiente para perceberem o valor de seu achado. Alguns capitalistas que ousam perscrutar o futuro, que se dão conta das possíveis consequências dessa ideia, começarão a pô-la em prática. Outros, a princípio, poderão dizer: "são uns loucos", mas deixarão de dizê-lo quando constatarem que o empreendimento que qualificavam de absurdo ou loucura está florescendo, e que toda gente está feliz por comprar seus produtos.

No sistema ditatorial marxista, por outro lado, o corpo governamental supremo deve primeiro ser convencido do valor de uma ideia antes que ela possa ser levada adiante. Isso pode ser algo muito difícil, uma vez que o grupo detentor do comando — ou o ditador supremo em pessoa — tem o poder de decidir. E se essas pessoas — por razões de indolência, senilidade, falta de inteligência ou de instrução — forem incapazes de compreender o significado da nova ideia, o novo projeto não será executado.

Para analisar essas questões devemos, em primeiro lugar, entender o verdadeiro significado da palavra liberdade. Liberdade é um conceito sociológico. Não há, na natureza ou em relação à natureza, nada a que se possa aplicar esse termo. Liberdade é a oportunidade concedida ao indivíduo pelo sistema social para que ele possa modelar sua vida segundo sua própria vontade. Que as pessoas tenham que trabalhar e produzir para poder sobreviver é uma lei da natureza; nenhum sistema social pode alterar esse fato. Que o rico possa viver sem trabalhar não diminui em nada a liberdade daqueles que não tiveram a sorte de estar nessa posição afortunada. Em uma economia de mercado, naquela em que há liberdade de empreendimento, e ausência de privilégios e protecionismos estatais, a riqueza de um indivíduo representa a recompensa concedida pela sociedade pelos serviços prestados aos consumidores no passado. E esta riqueza só pode ser preservada se ela continuar a ser utilizada — isto é, investida — no interesse dos consumidores. 

Que a economia de mercado recompense generosamente aquele que se mostrou capaz de bem servir aos consumidores é algo que não causa nenhum dano aos consumidores. Ao contrário, só os beneficia. Nada, nesse processo, é tomado do trabalhador, e muito lhe é proporcionado, o que lhe permite aumentar sua produtividade do trabalho. A liberdade do trabalhador que não tem propriedades está no seu direito de escolher o local e o tipo de seu trabalho que quer. Ele não está sujeito às arbitrariedades de um senhor de engenho que o tem como vassalo. Ele simplesmente vende os seus serviços no mercado. Se um empreendedor se recusar a lhe pagar o salário correspondente às condições do mercado, ele encontrará outro empregador disposto a, no seu próprio (do empregador) interesse, lhe pagar o salário de mercado. O trabalhador não deve subserviência e obediência ao seu empregador; ele deve ao seu empregador apenas a prestação de serviços. Ele recebe seu salário não como um favor, mas sim como uma recompensa de que é merecedor. 

Os pobres também têm a possibilidade, em uma sociedade capitalista, de se fazer pelo seu próprio esforço. Isso não ocorre apenas às atividades comerciais. A maioria das pessoas que hoje ocupa uma posição de destaque nas profissões liberais, nas artes e na ciência começou a carreira na pobreza. Entre os líderes e os vencedores, muitos são originários de famílias pobres. Quem quer ser bem-sucedido, qualquer que seja o sistema social, terá que vencer a apatia, o preconceito e a ignorância. Não se pode negar que o capitalismo oferece essa oportunidade. 

Em uma economia capitalista, o mercado é um corpo social; é o corpo social por excelência. Todos agem por conta própria; mas as ações de cada um procuram satisfazer tanto as suas próprias necessidades como também as necessidades de outras pessoas. Ao agir, todos servem seus concidadãos. Por outro lado, todos são por eles servidos. Cada um é ao mesmo tempo um meio e um fim; um fim último em si mesmo e um meio para que outras pessoas possam atingir seus próprios fins.

Todos os homens são livres; ninguém tem de se submeter a um déspota. O indivíduo, por vontade própria, se integra num sistema de cooperação. O mercado o orienta e lhe indica a melhor maneira de promover o seu próprio bem estar, bem como o das demais pessoas. O mercado comanda tudo; por si só coloca em ordem todo o sistema social, dando-lhe sentido e significado.

O mercado não é um local, uma coisa, uma entidade coletiva. O mercado é um processo, impulsionado pela interação das ações dos vários indivíduos que cooperam sob o regime da divisão do trabalho.

A reiteração de atos individuais de troca vai dando origem ao mercado, à medida que a divisão de trabalho evolui numa sociedade baseada na propriedade privada. 

A economia de mercado, em princípio, não respeita fronteiras políticas. Seu âmbito é mundial. O mercado torna as pessoas ricas ou pobres, determina quem dirigirá as grandes indústrias e quem limpará o chão, fixa quantas pessoas trabalharão nas minas de cobre e quantas nas orquestras filarmônicas. Nenhuma dessas decisões é definitiva: são revogáveis a qualquer momento. O processo de seleção não para nunca.

Atribuir a cada um o seu lugar próprio na sociedade é tarefa dos consumidores, os quais, ao comprarem ou absterem-se de comprar, estão determinando a posição social de cada indivíduo. Os consumidores determinam, em última instância, não apenas os preços dos bens de consumo, mas também os preços de todos os fatores de produção. Determinam a renda de cada membro da economia de mercado. São os consumidores e não os empresários que basicamente pagam os salários ganhos por qualquer trabalhador.

Se um empreendedor não obedecer estritamente às ordens do público tal como lhe são transmitidas pela estrutura de preços do mercado, ele sofrerá prejuízos e irá à falência. Outros homens que melhor souberam satisfazer os desejos dos consumidores o substituirão.

Os consumidores prestigiam as lojas nas quais podem comprar o que querem pelo menor preço. Ao comprarem e ao se absterem de comprar, os consumidores decidem sobre quem permanece no mercado e quem deve sair; quem deve dirigir as fábricas, as fornecedoras e as distribuidoras. Enriquecem um homem pobre e empobrecem um homem rico. Determinam precisamente a quantidade e a qualidade do que deve ser produzido. São patrões impiedosos, cheios de caprichos e fantasias, instáveis e imprevisíveis. Para eles, a única coisa que conta é sua própria satisfação. Não se sensibilizam nem um pouco com méritos passados ou com interesses estabelecidos.

A economia de mercado, ou capitalismo, como é comumente chamada, e a economia socialista são mutuamente excludentes. Não há mistura possível ou imaginável dos dois sistemas; não há algo que se possa chamar de economia mista, um sistema que seria parcialmente socialista. A produção ou é dirigida pelo mercado, ou o é por decretos de um czar da produção, ou de um comitê de czares da produção. A economia de mercado é o produto de um longo processo evolucionário. É o resultado dos esforços do homem para ajustar sua ação, da melhor maneira possível, às condições dadas de um meio ambiente que ele não pode modificar. É, por assim dizer, a estratégia cuja aplicação permitiu ao homem progredir triunfalmente do estado selvagem à civilização.

O progresso é sempre um deslocamento do velho pelo novo. Progresso sempre quer dizer mudança. Nenhum planejamento econômico pode planejar o progresso, nenhuma organização pode organizá-lo. O progresso é a única coisa que desafia quaisquer limitações e controles. A sociedade e o estado não podem promover o progresso. O capitalismo também não pode fazer nada pelo progresso. Porém, e isso é já bastante, o capitalismo não coloca barreiras intransponíveis ao progresso. Uma sociedade socialista se tornaria absolutamente rígida, pois tornaria o progresso impossível. 

O intervencionismo não abole por completo todas as liberdades dos cidadãos. Porém, a cada nova medida intervencionista implantada, uma fatia importante de liberdade individual é abolida e, consequentemente, a atividade econômica é restringida. 

O fato inegável

O que tem melhorado a situação das pessoas, o que tem dado a elas melhores condições de vida, e o que tem criado todas aquelas coisas que hoje consideramos como o orgulho das realizações humanas, não foram declamações de nobres intenções, nem discursos sobre justiça social, e nem sonhos sobre um mundo melhor — e muito menos efetivos esforços para se implantar o "mundo melhor" pela força das armas. O que possibilitou todas estas coisas foi o empenhado trabalho diário das pessoas, cujos esforços foram direcionados para melhorar suas próprias condições de vida por meio do trabalho duro, fazendo coisas que eram desconhecidas em épocas passadas e que eram desconhecidas até mesmo por elas próprias em tempos anteriores recentes. 

A história da tecnologia e do comércio fornece inúmeros exemplos que confirmam isso. No passado, havia um considerável intervalo de tempo entre o surgimento de algo até então completamente desconhecido e sua popularização no uso cotidiano. Algumas vezes, passavam-se vários séculos até que uma inovação se tornasse amplamente aceita por todos — ao menos dentro da órbita da civilização ocidental. Pense na lenta popularização do uso de garfos, sabonetes, lenços, papeis higiênicos e inúmeras outras variedades de coisas.

Desde seus primórdios, o capitalismo demonstrou uma tendência de ir encurtando esse intervalo de tempo, até ele finalmente ser eliminado quase que por completo. Tal fenômeno não é uma característica meramente acidental da produção capitalista; trata-se de algo inerente à sua própria natureza. A essência do capitalismo é a produção em larga escala para a satisfação dos desejos das massas. Sua característica distintiva é a produção em massa

Os discípulos de Marx sempre se mostraram muito ávidos para descrever em seus livros os "inenarráveis horrores do capitalismo", os quais, como seu mestre havia prognosticado, resultam "de maneira tão inexorável como uma lei da natureza" no progressivo empobrecimento das "massas". O preconceito anticapitalista deles impedia que percebessem o fato de que o capitalismo tende, com o auxílio da produção em larga escala, a eliminar o notável contraste que há entre o modo de vida de uma elite afortunada e o modo de vida de todo o resto da população de um país. O abismo que separava o homem que podia viajar de carruagem e o homem que ficava em casa porque não tinha o dinheiro para a passagem foi reduzido à diferença entre viajar de avião e viajar de ônibus.

Que jamais nos aconteça

Não permitamos jamais que aquelas pessoas que dizem que tudo neste arranjo é ruim, que a propriedade privada é a origem de todos os malefícios e desigualdades, e que a única ação correta a ser tomada é a busca do "mundo melhor" pela imposição de medidas coercivas e ditatoriais adquiram poder.

Se há uma coisa que a história pode nos ensinar é que nenhuma nação jamais conseguiu criar uma civilização superior sem a propriedade privada dos meios de produção. E a prosperidade só pode ser encontrada onde prevalece a propriedade privada dos meios de produção. 

Se algum dia a nossa civilização desaparecer, não terá sido por uma inevitabilidade; não terá sido porque ela já estava fadada a esse trágico desfecho. Terá sido, isso sim, porque as pessoas se recusaram a aprender com a teoria e com a história. Não é o destino que determina o futuro da sociedade humana, mas sim o próprio homem. O declínio da civilização ocidental não é uma manifestação da vontade divina, algo que não pode ser evitado. Se ocorrer, terá sido o resultado de uma política que nunca deveria ter sido sequer cortejada. 

Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".