sexta-feira, 31 de maio de 2013

AS FALHAS, INCOERÊNCIAS E FALÁCIAS DO ARCABOUÇO INTELECTUAL DE KARL MARX

O principal trabalho teórico de Marx é sua grande obra em três volumes, sobre o capital. Os fundamentos de sua teoria da exploração estão expostos no primeiro destes volumes, o único a ser publicado em vida do autor em 1867. O segundo, editado postumamente por Engels, em 1885, está em total harmonia com o primeiro, quanto ao conteúdo. Menos harmônico é sabidamente o terceiro volume, publicado novamente após um intervalo de vários anos, em 1894. Muitas pessoas, entre elas o autor destas linhas, acreditam que o conteúdo do terceiro volume seja incompatível com o do primeiro, e vice-versa. Mas, como o próprio Marx não admitiu isso e, ao contrário, também no terceiro volume exigiu que se considerassem totalmente válidas as doutrinas do primeiro, a crítica deve considerar as teses expostas nesse primeiro livro expressão da verdadeira e permanente opinião de Marx. Mas é igualmente válido — e necessário — abordar no momento adequado as doutrinas do terceiro volume, como ilustração e crítica.

A teoria de Marx sobre o valor

Marx parte do principio de que o valor de toda mercadoria depende unicamente da quantidade de trabalho empregada em sua produção. Marx coloca este princípio no ápice de sua teoria, dedicando-lhe uma explicação extensa e fundamentada.

O campo de pesquisa que Marx se propõe a examinar para entender a origem do valor dos bens fica limitado originalmente às mercadorias, o que, para Marx, não significa todos os bens econômicos, mas apenas os produtos de trabalho criados para o mercado. Ele começa com uma análise da mercadoria. A mercadoria é, por um lado, uma coisa útil cujas qualidades satisfazem algum tipo de necessidade humana, um valor de uso; por outro, constitui o suporte material do valor de troca. A análise passa agora para este último. 

O valor de troca aparece de imediato como a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de um tipo se trocam com valores de uso de outro tipo, relação essa que muda constantemente, conforme tempo e lugar.

Portanto, parece ser algo casual. Mas nessa troca deveria haver algo de permanente, que Marx trata de pesquisar. E faz isso na sua conhecida maneira dialética:

Tomemos duas mercadorias, por exemplo, trigo e ferro. Seja qual for a sua relação de troca, pode-se representá-la sempre numa equação segundo a qual uma quantidade dada de trigo é igualada a uma quantidade de ferro, p. ex., um moio de trigo x quintais de ferro. O que significa essa equação? Que existe algo de comum, do mesmo tamanho, em duas coisas diferentes, ou seja, em um moio de trigo e x quintais de ferro. Portanto, as duas coisas se equiparam a uma terceira, que em si não é nem uma nem outra. Cada uma das duas, portanto, na medida em que tem valor de troca, deve ser reduzível a essa terceira.

Dialética do valor em Marx

Esse elemento comum não pode ser uma característica métrica, física, química, ou outra característica natural das mercadorias. Suas características corporais, aliás, só entram em consideração na medida em que as tornam úteis, e são, portanto, valores de uso. Mas, por outro lado, a relação de troca das mercadorias aparentemente se caracteriza por se abstrair dos valores de uso dessas mercadorias. Segundo ela, o valor de uso vale tanto quanto qualquer outro, desde que apareça na proporção adequada. Ou, como diz o velho Barbon: "... Um tipo de mercadoria é tão bom quanto outro, quando seu valor de troca for igual. Não existe distinção entre coisas do mesmo valor de troca.' Como valores de uso, as mercadorias são principalmente de qualidades diferentes, como valores de troca só podem ser de quantidades diferentes e, portanto, não contêm um átomo sequer de valor de uso.

Abstraindo o valor de uso das mercadorias, elas guardam ainda uma característica, a de serem produtos de trabalho. No entanto, também o produto de trabalho já se transformou em nossas mãos. Se abstrairmos o seu valor de uso, também estaremos abstraindo os elementos e formas corporais que o tornam valor de uso. Não se trata mais de mesa, ou casa, ou fio, ou outra coisa útil. Todas as suas características sensoriais estão apagadas. Ele também já não é o produto da marcenaria, ou da construção, ou da tecelagem, ou de qualquer trabalho produtivo. Com o caráter utilitário dos produtos de trabalho, desaparece o caráter utilitário dos trabalhos neles efetuados, e somem também as diversas formas concretas desses trabalhos. Eles já não se distinguem entre si [p.283]: reduziram-se todos ao mesmo trabalho humano, trabalho humano abstrato.

Consideremos agora o que restou dos produtos de trabalho. Nada resta deles senão aquela mesma objetualidade espectral, mera gelatina de trabalho humano indistinto, ou seja, o gasto de forças de trabalho humanas sem consideração pela forma desse dispêndio. Essas coisas apenas nos dizem que na sua produção se gastou força de trabalho humano, se acumulou trabalho humano. Como cristais dessa substancia social comum, eles são valores.

Assim se define e se determine o conceito de valor. Segundo a teoria dialética, ele não é idêntico ao valor de troca, mas relaciona-se com ele de maneira íntima e inseparável: ele é uma espécie de destilado conceitual do valor de troca. Para usar as palavras do próprio Marx, ele é "a parte comum que aparece na relação de troca ou valor de troca das mercadorias". O reverso é igualmente válido: "o valor de troca é a expressão necessária ou a manifestação do valor".

O "tempo de trabalho socialmente necessário" de Marx

Marx passa da determinação do conceito de valor para a exposição de sua medida e grandeza. Como o trabalho é a substância do valor, consequentemente a grandeza do valor de todos os bens se mede pela quantidade de trabalho neles contido, ou seja, pelo tempo de trabalho. Mas não aquele tempo de trabalho individual, que aquele indivíduos que produziu o bem casualmente precisou gastar, mas o "tempo de trabalho necessário para produzir um valor de uso, nas condições sociais normais de produção disponíveis, e com o grau de habilidade e intensidade do trabalho possíveis nessa sociedade".

Só a quantidade de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir um valor de uso é que determina o seu valor. A mercadoria isolada vale aqui como exemplo médio da sua espécie. Mercadorias contendo igual quantidade de trabalho, ou que podem ser produzidas no mesmo tempo de trabalho, têm por isso o mesmo valor. O valor de uma mercadoria relaciona-se com o valor de outra mercadoria, da mesma forma que o tempo de trabalho necessário para a produção de uma delas se relaciona com o tempo de trabalho necessário para a produção da outra. Como valores, todas as mercadorias são apenas medidas de tempo de trabalho cristalizado.

A "lei do valor" de Marx

De tudo isso, deduz-se o conteúdo da grande "lei de valor", que é "imanente à troca de mercadorias" e que domina as condições de troca. Essa lei significa — e só pode significar — que as mercadorias se trocam entre si segundo as condições de trabalho médio, socialmente necessário, incorporado nelas. Há outras formas de expressão da mesma lei: nas palavras de Marx, as mercadorias "se trocam entre si conforme seus valores" ou "equivalente se troca com equivalente".

É verdade que, em casos isolados, segundo oscilações momentâneas de oferta e procura, também aparecem preços que estão acima ou abaixo do valor. Só que essas "constantes oscilações dos preços de mercado (...) se compensam, se equilibram mutuamente e se reduzem ao preço médio, que é sua regra interna". Porém, no longo prazo, "nas relações de troca casuais e sempre variáveis", "o tempo de trabalho socialmente necessário acaba sempre se impondo à força, como lei natural imperante".

Marx considera essa lei como sendo a "eterna lei de troca de mercadorias", como "racional", como "a lei natural do equilíbrio". Os casos eventuais em que mercadorias são trocadas a preços que se desviam do seu valor são considerados "casuais" em relação à regra, e os próprios desvios devem ser vistos como "infração da lei de troca de mercadorias".

A "mais-valia" de Marx

Sobre essa base da teoria do valor, Marx ergue a segunda parte de sua doutrina, a sua famosa doutrina da mais-valia. Ele examina a origem dos ganhos extraídos pelos capitalistas dos seus capitais. Os capitalistas tomam determinada soma em dinheiro, transformam-na em mercadorias, e, por meio da venda, transformam as mercadorias em mais dinheiro — com ou sem um processo intermediário de produção. De onde vem esse incremento, esse excedente da soma de dinheiro obtida em relação à soma originalmente aplicada, ou, como diz Marx, essa mais-valia"?

Marx começa limitando as condições do problema, na sua peculiar maneira de exclusão dialética. Primeiro, ele explica que a mais-valia não pode vir do fato de que o capitalista, como comprador, compra as mercadorias regularmente abaixo do seu valor e, como vendedor, regularmente as vende acima do seu valor. Portanto, o problema é o seguinte: "Nosso ( ... ) dono do dinheiro tem de comprar as mercadorias pelo seu valor, e vendê-las pelo seu valor, mas, mesmo assim, no fim do processo, tem de extrair delas um valor mais alto do que o que nelas aplicou. . . Essas são as condições do problema. Hic Rhodus, hic salta!" [Aqui é Rodes, então salte aqui!" (N. do T.)]

Marx encontra a solução dizendo que existe uma mercadoria cujo valor de uso tem a singular faculdade de ser uma fonte de valor de troca. Essa mercadoria é a 'capacidade de trabalho', ou seja, a força de trabalho. Ela é posta à venda no mercado sob dupla condição: a primeira, de que o trabalhador seja pessoalmente livre — caso contrário não seria a força de trabalho o que ele estaria vendendo, mas ele próprio, sua pessoa, como escravo; e a segunda, de que o trabalhador seja destituído "de todas as coisas necessárias para a realização de sua força de trabalho", pois, se delas dispusesse, ele preferiria produzir por conta própria, pondo à venda seus produtos, em vez de sua força de trabalho. 

Pela negociação com essa mercadoria, o capitalista obtém a mais-valia. O processo se dá da seguinte forma:

O valor da mercadoria "força de trabalho" depende, como o de qualquer outra mercadoria, do tempo de trabalho necessário para sua produção, o que, nesse caso, significa que depende do tempo de trabalho necessário para produzir todos os alimentos que são indispensáveis à subsistência do trabalhador. Se, por exemplo, para os alimentos necessários para um dia for preciso um tempo de trabalho de seis horas, e se esse tempo de trabalho corporificar três moedas de ouro, a força de trabalho de um dia poderia ser comprada por três moedas de ouro. Caso o capitalista tenha efetuado essa compra, o valor de uso da força de trabalho lhe pertence, e ele a concretiza fazendo o trabalhador trabalhar para ele. Se o fizesse trabalhar apenas as horas diárias corporificadas na força de trabalho pelas quais ele teve de pagar quando comprou essa força de trabalho (seis horas), não existiria a mais-valia.

Ou seja, as seis horas de trabalho não podem atribuir ao produto em que elas se corporificam mais do que três moedas, uma vez que foi isso que o capitalista pagou como salário. Contudo, os capitalistas não agem dessa maneira. Mesmo que tenham comprado a força de trabalho por um preço que corresponde só a seis horas de trabalho, fazem o trabalhador trabalhar o dia todo. Então, no produto criado durante esse dia, se corporificam mais horas de trabalho do que as que o capitalista pagou, o que faz o produto ter valor mais elevado do que o salário pago. A diferença é a "mais-valia", que fica para o capitalista.

Tomemos um exemplo: suponhamos que um trabalhador possa tecer em seis horas cinco quilos de algodão em fio, com o valor de três moedas. Suponhamos, também, que esse algodão tenha custado vinte horas de trabalho para ser produzido e que, por isso, tem um valor de dez moedas; suponhamos, ainda, que o capitalista tenha despendido, por meio de sua máquina de tecer utilizada para estas seis horas de tecelagem, o correspondente a quatro horas de trabalho, que representam um valor de duas moedas. Assim, o valor total dos meios de produção consumidos na tecelagem (algodão + máquina de tecer) equivalerá a doze moedas, correspondentes a vinte e quatro horas de trabalho. Se acrescentarmos a isso as seis horas do trabalho de tecelagem, o tecido pronto será pois, no total, produto de trinta horas de trabalho, e terá, por isso, valor de quinze moedas. Se o capitalista deixar o trabalhador trabalhar apenas seis horas por dia, a produção do fio vai custar-lhe 15 moedas: 10 pelo algodão, 2 pelo gasto dos instrumentos, 3 em salário. Não existe mais-valia.

Muito diferente seriam as circunstâncias se este mesmo capitalista fizesse o trabalhador cumprir 12 horas diárias. Nestas 12 horas, o trabalhador processaria 10 quilos de algodão, nos quais já teriam sido corporificadas, anteriormente, 40 horas de trabalho, com um valor de 20 moedas. Os instrumentos teriam consumido o produto de 8 horas de trabalho, no valor de 4 moedas, mas o trabalhador acrescentaria ao material bruto um dia de 12 horas de trabalho, ou seja, faria surgir um valor adicional de 6 moedas. As despesas do capitalista — 20 moedas pelo algodão, 4 moedas pelo gasto dos instrumentos, e 3 pelo salário — somariam apenas 27 moedas. Iria, então, sobrar uma "mais-valia" de 3 moedas.

Portanto, para Marx, a mais-valia é uma consequência do fato de o capitalista fazer o trabalhador trabalhar para ele sem pagamento durante uma parte do dia. O dia de trabalho se divide, assim, em duas partes: na primeira, o "tempo de trabalho necessário", o trabalhador produz seu próprio sustento, ou o valor deste; por essa parte do trabalho, ele recebe o equivalente em forma de salário. Durante a segunda parte, o "superávit em tempo de trabalho", ele é "explorado", e produz a "mais-valia", sem receber qualquer equivalente por ela. 

Portanto, o capital não é apenas controle sobre o trabalho, como diz Adam Smith. É essencialmente controle sobre o trabalho não-pago. Toda a mais-valia, seja qual for a forma em que vá se cristalizar mais tarde — lucro, juro, renda etc. — é, substancialmente, materialização de trabalho não pago. O segredo da autovalorização do capital reside no controle que exerce sobre determinada quantidade de trabalho alheio não pago.

Marx escolheu um método de análise defeituoso

Alguém que busque uma verdadeira fundamentação da tese em questão poderá encontrá-la por meio de dois caminhos naturais: o empírico e o psicológico. O primeiro caminho nos leva a simplesmente examinar as condições de troca entre mercadorias, procurando ver se nelas se espelha uma harmonia empírica entre valor de troca e gasto de trabalho. O outro — com uma mistura de indução e dedução muito usada em nossa ciência — nos leva a analisar os motivos psicológicos que norteiam as pessoas nas trocas e na determinação de preços, ou em sua participação na produção. Da natureza dessas condições de troca poderíamos tirar conclusões sobre o comportamento típico das pessoas. Assim, descobriríamos, também, uma relação entre preços regularmente pedidos e aceitos, de um lado, e a quantidade de trabalho necessária para produzir mercadorias de outro. Mas Marx não adotou nenhum desses dois métodos naturais de investigação. É muito interessante constatar, em seu terceiro volume, que ele próprio sabia muito bem que nem a comprovação dos fatos nem a análise dos impulsos psicológicos que agem na "concorrência" teriam bom resultado para a comprovação de sua tese.

Marx opta por um terceiro caminho de comprovação, aliás, um caminho bastante singular para esse tipo de assunto: a prova puramente lógica, uma dedução dialética tirada da essência da troca.

Marx já havia encontrado no velho Aristóteles que "a troca não pode existir sem igualdade, e a igualdade não pode existir sem a comensurabilidade". Marx adota esse pensamento. Ele imagina a troca de duas mercadorias na forma de uma equação, deduz que nas duas coisas trocadas — portanto igualadas — tem de existir "algo comum da mesma grandeza", e conclui propondo-se a descobrir o que é essa coisa em comum, à qual as coisas equiparadas podem ser reduzidas como valores de troca.

Fatos que antecedem uma troca devem evidenciar antes desigualdade do que igualdade

Gostaria de intercalar aqui um comentário. Mesmo a primeira pressuposição — a de que na troca de duas coisas existe uma "igualdade" das duas, igualdade essa que se manifesta, o que, afinal, não significa grande coisa — me parece um pensamento muito pouco moderno e também muito irrealista, ou, para ser bem claro, muito precário. Onde reinam igualdade e equilíbrio perfeitos não costuma surgir qualquer mudança em relação ao estado anterior. Por isso, quando no caso da troca tudo termina com as mercadorias trocando de dono, é sinal de que esteve em jogo alguma desigualdade ou preponderância que forçou a alteração.

Exatamente como as novas ligações químicas que surgem a partir da aproximação entre elementos de corpos: muitas vezes o "parentesco" químico entre os elementos do corpo estranho aproximado não é forte, mas é mais forte do que o "parentesco" existente entre os elementos da composição anterior. De fato, a moderna ciência econômica é unânime em dizer que a antiga visão escolástico-teológica da "equivalência" de valores que se trocam é incorreta. Mas não darei maior importância a esse assunto, e volto-me agora ao exame crítico daquelas operações lógicas e metódicas através das quais o trabalho termina por surgir como aquela coisa em "comum" à qual as coisas equiparadas se poderiam reduzir.

Método intelectual errôneo de Marx

Para a sua busca desse algo em "comum" que caracteriza o valor de troca, Marx procede da seguinte maneira: coteja as várias características dos objetos equiparados na troca e, depois, pelo método de eliminação das diferenças, exclui todas as que não passam nessa prova, até restar, por fim, uma única característica, a de ser produto de trabalho. Conclui, então, que seja esta a característica comum procurada.

É um procedimento estranho, mas não condenável. É estranho que, em vez de testar a característica de modo positivo — o que teria levado a um dos dois métodos antes comentados, coisa que Marx evitava —, ele procure convencer-se, pelo processo negativo, de que a qualidade buscada é exatamente aquela, pois nenhuma outra é a que ele procura, e a que ele procura tem de existir. Esse método pode levar à meta desejada quando é empregado com a necessária cautela e integridade, ou seja, quando se tem, escrupulosamente, o cuidado necessário para que entre realmente, nessa peneira lógica, tudo o que nela deve entrar para que depois não se cometa engano em relação a qualquer elemento que porventura fique excluído da peneira.

Mas como procede Marx?

Desde o começo, ele só coloca na peneira aquelas coisas trocáveis que têm a característica que ele finalmente deseja extrair como sendo a "característica em comum", deixando de fora todas as outras que não a têm. Faz isso como alguém que, desejando ardentemente tirar da urna uma bola branca, por precaução coloca na urna apenas bolas brancas. Ele limita o campo da sua busca da substância do valor de troca às "mercadorias". Esse conceito, sem ser cuidadosamente definido, é tomado como mais limitado do que o de "bens" e se limita a produtos de trabalho, em oposição a bens naturais. Consequentemente, fica óbvio que, se a troca realmente significa uma equiparação que pressupõe a existência de algo "comum da mesma grandeza", esse "algo comum" deve ser procurado e encontrado em todas as espécies de bens trocáveis: não só nos produtos de trabalho, mas também nos dons da natureza, como terra, madeira no tronco, energia hidráulica, minas de carvão, pedreiras, jazidas de petróleo, águas minerais, minas de ouro etc.

Excluir, na busca do algo "comum" que há na base do valor de troca, aqueles bens trocáveis que não sejam bens de trabalho é, nessas circunstâncias, um pecado mortal metodológico. É como se um físico que quisesse pesquisar o motivo de todos os corpos terem uma característica comum, como o peso, por exemplo, selecionasse um só grupo de corpos, talvez o dos corpos transparentes, e, a seguir, cotejasse todas as características comuns aos corpos transparentes, terminando por demonstrar que nenhuma das características — a não ser a transparência — pode ser causa de peso, e proclamasse, por fim, que, portanto, a transparência tem de ser a causa do peso.

A exclusão dos dons da natureza (que certamente jamais teria ocorrido a Aristóteles, pai da ideia da equiparação na troca) não pode ser justificada, principalmente porque muitos dons naturais, como o solo, são dos mais importantes objetos de fortuna e comércio. Por outro lado, não se pode aceitar a afirmação de que, em relação aos dons naturais, os valores de troca são sempre casuais e arbitrários: não só existem preços eventuais para produtos de trabalho, como também, muitas vezes, os preços de bens naturais revelam relações nítidas com critérios ou motivos palpáveis. É conhecido que o preço de compra de terras constitui um múltiplo da sua renda segundo a porcentagem de juro vigente. É também certo que, se a madeira no tronco ou o carvão na mina obtêm um preço diferente, isso decorre da variação de localização ou de problemas de transporte e não do mero acaso.

Marx se exime de justificar expressamente o fato de haver excluído do exame anterior parte dos bens trocáveis. Como tantas vezes, também aqui sabe deslizar sobre partes espinhosas de seu raciocínio com uma escorregadia habilidade dialética: ele evita que seus leitores percebam que seu conceito de "mercadoria" é mais estreito do que o de "coisa trocável". Para a futura limitação no exame das mercadorias, ele prepara com incrível habilidade um ponto de contato natural, através de uma frase comum, aparentemente inofensiva, posta no começo do seu livro: "A riqueza das sociedades em que reina a produção capitalista aparece como uma monstruosa coleção de mercadorias." Essa afirmação é totalmente falsa se entendermos o termo "mercadoria" no sentido de produto de trabalho, que o próprio Marx lhe confere mais tarde. Pois os bens da natureza, incluindo a terra, são parte importante e em nada diferente da riqueza nacional. Mas o leitor desprevenido facilmente passa por essas inexatidões, porque não sabe que mais tarde Marx usará a expressão "mercadoria" num sentido muito mais restrito.

Aliás, esse sentido também não fica claro no que se segue a essa frase. Ao contrário, nos primeiros parágrafos do primeiro capitulo fala-se alternadamente de "coisa", de "valor de uso", de "bem" e de "mercadoria", sem que seja traçada uma distinção nítida entre estes termos. "

A utilidade de uma coisa", escreve ele na p. 10, "faz dela um valor de uso". "A mercadoria. . . é um valor de uso ou bem". Na p. 11, lemos: "o valor de troca aparece... como relação quantitativa... na qual valores de uso de uma espécie se trocam por valorem de uso de outra."

Note-se que aqui se considera primordialmente no fenômeno do valor de troca também a equação 'valor de uso = bem'. E com a frase "examinemos a coisa mais de perto", naturalmente inadequada para anunciar o salto para outro terreno, mais estreito, de análise, Marx prossegue: "Uma só mercadoria, um 'moio' de trigo, troca-se nas mais diversas proporções por outros artigos." E ainda: "tomemos mais duas mercadorias" etc. Aliás, nesse mesmo parágrafo ele volta até com a expressão "coisas", e logo num trecho muito importante, em que diz que "algo comum da mesma grandeza existe em duas coisas diferentes" (que são equiparadas na troca).

A falácia de Marx consiste em uma seleção tendenciosa de evidências

No entanto, na p. 12, Marx prossegue na sua busca do "algo comum" já agora apenas para o "valor de troca das mercadorias", sem chamar a atenção, com uma palavra que seja, para o fato de que isso estreitará o campo de pesquisa, direcionando-o para apenas uma parcela das coisas trocáveis. 

Logo na página seguinte (p. 13), ele abandona de novo essa limitação, e a conclusão, a que há pouco havia chegado para o campo mais restrito das mercadorias, passa a ser aplicada ao círculo mais amplo dos valores de uso dos bens. "Um valor de uso ou bem, portanto, só tem um valor, na medida em que o trabalho humano abstrato se materializa ou se objetiva nele!"

Se, no trecho decisivo, Marx não houvesse limitado sua pesquisa aos produtos de trabalho, mas tivesse também procurado o "algo comum" entre os bens naturais trocáveis, ficaria patente que o trabalho não pode ser o elemento comum. Se Marx houvesse estabelecido essa limitação de maneira clara e expressa, tanto ele quanto seus leitores infalivelmente teriam tropeçado nesse grosseiro erro metodológico. Teriam sorrido desse ingênuo artifício, através do qual se "destila", como característica comum, o fato de "ser produto de trabalho", pesquisando num campo do qual antes foram indevidamente retiradas outras coisas trocáveis que, embora comuns, não são "produto do trabalho". 

Só seria possível lançar mão deste artifício da maneira como o fez — ou seja, sub-repticiamente — com uma dialética ríspida, passando bem depressa pelo ponto espinhoso da questão. Expresso minha admiração sincera pela habilidade com que Marx apresentou de maneira aceitável um processo tão errado, o que, sem dúvida, não o exime de ter sido inteiramente falso.

Continuemos.

Por meio do artifício acima descrito, Marx conseguiu colocar o trabalho no jogo. Através da limitação artificial do campo de pesquisa, o trabalho se tomou a característica "comum". No entanto, além dele, há outras características que deveriam ser levadas em conta, por serem comuns. Como afastar essas concorrentes?

Marx faz isso por meio de dois raciocínios, ambos muito breves, e ambos contendo um gravíssimo erro de lógica

No primeiro, Marx exclui todas as "características geométricas, físicas, químicas ou quaisquer outras características naturais das mercadorias". Isso porque "suas características físicas só serão levadas em conta na medida em que as tornam úteis, portanto as transformam em valores de uso. Mas por outro lado, a relação de troca das mercadorias aparentemente se caracteriza pela abstração de seus valores de uso". Pois "dentro dela (da relação de troca) um valor de uso cabe tanto quanto outro qualquer, desde que exista aí em proporção adequada".

O que diria Marx do argumento que segue? Em um palco de ópera, três cantores, todos excelentes — um tenor, um baixo e um barítono —, recebem, cada um, um salário de 20.000 moedas por ano. Se alguém perguntar qual é a circunstância comum que resulta na equiparação de seus salários, respondo que, quando se trata de salário, uma boa voz vale tanto quanto outra: uma boa voz de tenor vale tanto quanto uma boa voz de baixo, ou de barítono, o que importa é que a proporção seja adequada. Assim, por poder ser, "aparentemente", afastada da questão salarial, a boa voz não pode ser a causa comum do salário alto.

É claro que tal argumentação é falsa. É igualmente claro também que é incorreta a conclusão a que Marx chegou, e que foi por mim aqui transcrita. As duas sofrem do mesmo erro. Confundem a abstração de uma circunstância em geral com a abstração das modalidades específicas nas quais essa circunstância aparece. Em nosso exemplo, o que é indiferente para a questão salarial é apenas a modalidade específica da boa voz, ou seja, se se trata de voz de tenor, baixo ou barítono. Mas não a boa voz em si.

Da mesma forma, para a relação de troca das mercadorias, abstrai-se da modalidade específica sob a qual pode aparecer o valor de uso das mercadorias, quer sirvam para alimentação, quer sirvam para moradia ou para roupa. Mas não se pode abstrair do valor de uso em si. Marx deveria ter deduzido que não se pode fazer abstração desse último, pelo fato de que não existe valor de troca onde não há valor de uso. Fato que o próprio Marx é forçado a reconhecer repetidamente.

Mas coisa pior acontece com o passo seguinte dessa cadeia de argumentação. "Se abstrairmos do valor de uso das mercadorias", diz Marx textualmente, "resta-lhes só mais uma característica: a de serem produtos de trabalho". Será mesmo? Só mais uma característica? Acaso bens com valor de troca não têm, por exemplo, outra característica comum, qual seja, a de serem raros em relação à sua oferta? Ou de serem objetos de cobiça e de procura? Ou de serem ou propriedade privada ou produtos da natureza?

E ninguém diz melhor nem mais claramente do que o próprio Marx que as mercadorias são produtos tanto da natureza quanto do trabalho: Marx afirma que "as mercadorias são combinação de dois elementos, matéria-prima e trabalho", e conclui dizendo que "o trabalho é o pai (da riqueza) e a terra é sua mãe".

Por que, pergunto eu, o princípio do valor não poderia estar em qualquer uma dessas características comuns, tendo de estar só na de ser produto de trabalho? Acresce que, a favor dessa última hipótese, Marx não apresenta qualquer tipo de fundamentação positiva. A única razão que apresenta é negativa, pois diz que o valor de uso, abstraído, não é princípio de valor de troca. Mas essa argumentação negativa não se aplica, com igual força, a todas as outras características comuns, que Marx ignorou?

E há mais ainda! Na mesma p. 12, em que Marx abstraiu da influência do valor de uso no valor de troca, argumentando que um valor de uso é tão importante quanto qualquer outro, desde que exista em proporção adequada, ele nos diz o seguinte sobre o produto de trabalho:

Mas também o produto de trabalho já se transformou em nossas mãos. Se abstrairmos do seu valor de uso, abstrairemos também dos elementos materiais e das formas que o tornam valor de uso. Ele já não será mesa, casa ou fio, ou outra coisa útil. Todas as suas características sensoriais serão eliminadas. Ele não será produto de trabalho em marcenaria, construção ou tecelagem, ou outro trabalho produtivo. O caráter utilitário dos trabalhos corporificados nos produtos de trabalho desaparece se desaparecer o caráter utilitário destes produtos de trabalho, da mesma forma que desaparecem as diversas formas concretas desse trabalho: elas já não se distinguem; são reduzidas a trabalho humano igual, a trabalho humano abstrato.

Será que se pode dizer, de modo mais claro e explícito, que, para a relação de troca, não apenas um valor de uso, mas uma espécie de trabalho, ou produto de trabalho, "vale tanto quanto qualquer outro, desde que exista na proporção adequada"? E que se pode aplicar ao trabalho exatamente o mesmo critério em relação ao qual Marx antes pronunciou seu veredito de exclusão contra o valor de uso? Trabalho e valor de uso têm, ambos, um aspecto quantitativo e outro qualitativo. Assim como o valor de uso é qualitativamente diverso em relação a mesa, casa ou fio, assim também são qualitativamente diferentes os trabalhos de marcenaria, de construção ou de tecelagem. Por outro lado, trabalhos de diferentes tipos podem ser diferenciados em função de sua quantidade, enquanto é possível comparar valores de uso de diferentes tipos segundo a magnitude do valor de uso. É absolutamente inconcebível que circunstâncias idênticas levem, ao mesmo tempo, à exclusão de alguns elementos e à aceitação de outros!

Se, por acaso, Marx houvesse alterado a sequência de sua pesquisa, teria excluído o trabalho com o mesmo raciocínio com que exclui o valor de uso. Com o mesmo raciocínio com que premiou o trabalho, proclamaria, então, que o valor de uso, por ser a única característica que restou, é aquela característica comum tão procurada. A partir daí poderia explicar o valor como uma "cristalização do valor de uso".

Creio que se pode afirmar, não em tom de piada, mas a sério, que nos dois parágrafos da p. 12 onde se abstrai, no primeiro, a influência do valor de uso e se demonstra, no segundo, que o trabalho é o "algo comum" que se buscava, esses dois elementos poderiam ser trocados entre si sem alterar a correção lógica externa. E que, sem mudar a estrutura da sentença do primeiro parágrafo, se poderia substituir "valor de uso" por "trabalho e produtos de trabalho", e na estrutura da segunda colocar, em lugar de "trabalho", o "valor de uso"!

Assim é a lógica e o método com que Marx introduz em seu sistema o princípio fundamental de que o trabalho é a única base do valor. Julgo totalmente impossível que essa ginástica dialética fosse a fonte e a real justificativa da convicção de Marx. Um pensador da sua categoria — e considero-o um pensador de primeiríssima ordem —, caso desejasse chegar a uma convicção própria, procurando com olhar imparcial a verdadeira relação das coisas, jamais teria partido por caminhos tão tortuosos e antinaturais. Seria impossível que ele tivesse, por mero e infeliz acaso, caído em todos os erros lógicos e metodológicos acima descritos, obtendo, como resultado não conhecido nem desejado, essa tese do trabalho como única fonte de valor.

Creio que a situação real foi outra. Não duvido de que Marx estivesse sinceramente convencido de sua tese. Mas os motivos de sua convicção não são aqueles que estão apresentados em seus sistemas. Ele acreditava na sua tese como um fanático acredita num dogma. Sem dúvida, foi dominado por ela por causa das mesmas impressões vagas, eventuais, não bem controladas pelo intelecto, que antes dele já tinham desencaminhado Adam Smith e David Ricardo, e sob influência dessas mesmas autoridades. E ele, certamente, jamais alimentou a menor dúvida quanto à correção dessa tese. Seu princípio tinha, para ele próprio, a solidez de um axioma. No entanto, ele teria de prová-lo aos leitores, o que não conseguiria fazer nem empiricamente nem segundo a psicologia que embasa a vida econômica.

Voltou-se, então, para essa especulação lógico-dialética que estava de acordo com sua orientação intelectual. E trabalhou, e revolveu os pacientes concertos e premissas, com uma espécie de admirável destreza, até obter realmente o resultado que desejava e que já de antemão conhecia, na forma de uma conclusão externamente honesta.

Conforme vimos acima, Marx teve pleno sucesso nessa tentativa de fundamentar convincentemente sua tese, enveredando pelos caminhos da dialética. Mas será que teria obtido algum amparo se tivesse seguido aqueles caminhos específicos que evitou, ou seja, o empírico e o psicológico?

Karl Knies objeta com muito acerto contra Marx: "Na exposição de Marx não há nenhum motivo pelo qual a equação 1 "moio" de trigo = x quintais de madeira produzida na floresta não permita uma segunda equação, também válida, que diga: 1 "moio" de trigo = w quintais de madeira virgem = y acres de terra virgem = z acres de terra cultivada com prados naturais." (Das Geld, Iª ed. p. 121;1 2ª ed p. 157).

 Por exemplo, na p. 15, final: "Por fim, nenhuma coisa pode ter valor sem ser objeto de uso. Se for inútil, o trabalho nela contido será inútil, não valerá como trabalho (sic!), e por isso não constituirá valor."

Já Karl Knies chamara atenção para o erro lógico do texto. Veja-se Das Geld, Berlim, 1873, p. 123 ss. (2ª ed. p. 160 ss). Estranhamente, Adler (Grundlagen der Karl Marxschen Kritik, Tübingen, 1887, p. 211 ss) entendeu mal meu argumento, quando me censura dizendo que "boas vozes" não são mercadorias no sentido marxista. Para mim, não se tratava de considerar "boas vozes" como bens econômicos, segundo a lei marxista de valor, mas sim de dar o exemplo de um silogismo que revela o mesmo erro de Marx. Eu poderia muito bem escolher outro exemplo, que não tivesse nenhuma relação com o terreno econômico. Por exemplo, poderia ter demonstrado que, segundo a lógica marxista, o "algo comum" está em haver colorido em sabe-Deus-o-quê, mas não em haver uma mistura de várias cores. Pois uma mistura de cores — por exemplo, branco, azul, amarelo, preto, violeta — vale para a qualificação "colorido" o mesmo que a mistura de verde, vermelho, laranja, azul etc., desde que as cores apareçam em proporção adequada. Portanto, vamo-nos abstrair, no momento, das cores e das misturas de cor!

Por: Eugen von Böhm-Bawerk (1851-1914) foi um economista austríaco da Universidade de Viena e ministro das finanças. Desvendou a moderna teoria intertemporal das taxas de juros em sua obra Capital and Interest. Em seu segundo livro, The Positive Theory of Capital, ele continuou seus estudos sobre a acumulação e a influência do capital, argumentando que há um período médio de produção em todos os processos produtivos. Sua ênfase na importância de se pensar claramente sobre taxas de juros e sua natureza intertemporal alterou para sempre a teoria econômica. Böhm-Bawerk tornou-se famoso por ser o primeiro economista a refutar de forma completa e sistemática a teoria da mais-valia e da exploração capitalista. 

UM PEQUENO HISTÓRICO DAS POLÍTICAS MONETÁRIAS DO REAL - E POR QUE ESTAMOS EM UMA SINUCA DE BICO


O real entrou em circulação em julho de 1994. Embora seja louvado como a moeda que trouxe estabilidade econômica para o Brasil, a realidade é menos auspiciosa. De julho de 1994 a março de 2013, a inflação de preços acumulada pelo IPCA está em 330%. Pelo IGP-M, a situação fica ainda mais tenebrosa: 458%.

Neste mesmo período, a inflação de preços da Austrália — país de dimensões e economia semelhantes ao Brasil — foi de 65%. Na Nova Zelândia, 53%. No Chile, 126%. No final, nosso histórico é semelhante ao da Colômbia (459%), país que até 2003 vivenciou algo muito semelhante a uma guerra civil.

Por que esse histórico tão desanimador? O que pretendo mostrar neste artigo é que, dentre todas as opções de política monetária que se mostraram possíveis a cada momento, sempre escolhemos a pior. E, no atual arranjo, isso tem gerado distorções com um potencial trágico.


Sim, é fácil e confortável fazer acusações olhando em retrospecto, mas tal comodidade não deve ser um impeditivo para absolver as autoridades monetárias de suas culpas.

Mesmo em nosso melhor momento, que foi durante a primeira etapa do Plano Real (1994-1998), as coisas não foram feitas como deveriam ser.

Para acabar com uma hiperinflação

Um país que está vivenciando uma hiperinflação e que quer estabilizar sua economia — como o Brasil no início da década de 1990 — não tem muita opção: ele não apenas tem de trocar sua moeda, como tem também de mostrar para todo o mundo que está genuinamente disposto a, dali em diante, "levar as coisas mais a sério". Caso não transmita essa confiança aos investidores internacionais, sua nova moeda simplesmente não terá nenhuma aceitação no mercado internacional — e, consequentemente, sua população não terá nenhum poder de compra fora do país.

Adicionalmente, dado que a causa de todas as hiperinflações da história sempre estiveram no hiperativismo de seus Bancos Centrais — que, até a década de 1990, podiam imprimir dinheiro para financiar diretamente o governo federal —, a primeira medida a ser tomada pelo país é mostrar que esta instituição operará de agora em diante de maneira bastante contida.

Sendo assim, não basta apenas trocar a moeda — afinal, nada garante que o Banco Central não continuará desvairado. É preciso deixar claro que a nova moeda terá "qualidade", isto é, que ela será lastreada por uma moeda mundialmente reconhecida como forte. Apenas isso pode gerar confiança no novo regime que está sendo adotado. E uma maneira bastante eficaz de se fazer isso é adotando um regime de câmbio fixo.

Existem três tipos de política cambial: há o câmbio fixo, há o câmbio atrelado e há o câmbio flutuante.

Câmbio fixo e câmbio atrelado

O câmbio fixo — e aqui me refiro ao câmbio estritamente fixo, cujo valor nunca se modifica — só ocorre quando uma economia opera sob um Currency Board. O Currency Board nada mais é do que uma agência de conversão de moeda que, por definição, tem de manter reservas internacionais em um volume que seja igual ou maior que a base monetária da moeda nacional. A função do Currency Board é trocar moeda nacional pela moeda estrangeira escolhida para servir de "âncora cambial" a uma taxa de câmbio fixa. Normalmente, essa moeda é o dólar. Mas, ao longo da história, a libra, o marco alemão e, atualmente, o euro já desempenharam e seguem desempenhando essa função.

Sob este arranjo, quando um empreendedor exporta produtos, ele recebe como pagamento uma moeda estrangeira — no caso, o dólar. Ato contínuo, o Currency Board emite moeda nacional a uma taxa de câmbio fixa em relação ao dólar e deposita o valor na conta deste exportador. Os dólares ficam com o Currency Board. Inversamente, quando um empreendedor importa produtos, a moeda nacional é trocada por dólares a uma taxa fixa no Currency Board, que então fica com a moeda nacional e envia os dólares para fora. 

Note que, sob um Currency Board, a variação da base monetária é completamente passiva. Ela aumenta e diminui estritamente de acordo com a entrada e saída de moeda estrangeira. O Currency Board não faz política monetária. Ele não pode criar moeda nacional e injetá-la na economia em troca de um ativo qualquer. Ele só pode emitir moeda nacional se receber um valor equivalente em moeda estrangeira. 

Sob este regime de câmbio estritamente fixo e de política monetária totalmente passiva, quando há um superávit no balanço de pagamentos, a base monetária se expande. Isso gera uma redução nos juros e, consequentemente, uma expansão no crédito e uma elevação nos preços. Ato contínuo, as importações aumentam, o que gera uma saída de reservas do país. Tal saída de reservas reduz a base monetária. Os juros sobem, a economia se desacelera e o balanço de pagamentos volta ao equilíbrio. Tal arranjo funciona exatamente como funcionaria um padrão-ouro, com uma moeda estrangeira fazendo o papel do ouro. (Com o tempo, o balanço de pagamentos tende ao equilíbrio, de forma que tais flutuações econômicas sejam mínimas.)

O Currency Board gera confiança na moeda doméstica justamente porque ele mantém reservas internacionais em um volume igual ou maior que a base monetária da moeda nacional. Em teoria, quando a operação do Currency Board é obedecida ortodoxamente, ataques especulativos não geram resultados — afinal, seria impossível exaurir as reservas internacionais (a base monetária teria de ser toda mandada pra fora, algo por definição impossível). Essa é a principal atratividade do sistema: ele dá segurança aos investidores estrangeiros, que deixam de temer uma súbita desvalorização da moeda nacional, o que causaria enorme prejuízo para eles quando fossem repatriar seus lucros.

Uma explicação mais detalhada sobre o funcionamento de um Currency Board já foi feita neste artigo. A intenção aqui é apenas ressaltar que tal arranjo não apenas é o mais eficiente para se aniquilar rapidamente uma hiperinflação, como também é o arranjo que realiza tal feito com o mínimo de efeitos colaterais: ele aniquila uma hiperinflação sem deixar de herança juros estratosféricos, como ocorreu no Brasil. Um país que adota um Currency Board passa a operar com juros semelhantes aos juros vigentes no país emissor da moeda utilizada como âncora.

O melhor exemplo histórico deste fenômeno é fornecido pela Bulgária. Em 1996, sucessivas trapalhadas econômicas fizeram com que o país decretasse moratória em sua dívida externa. Em 1997, o país entrou em hiperinflação e vários protestos nas ruas quase levaram o país a uma revolução social.

Em março de 1997, o país apresentava uma inflação anual de 2.019%. A legislação para a implantação de um Currency Board foi então apresentada e o Currency Board, que teria marcos alemães como reserva, foi criado no dia 1º de julho. Em um ano e meio, a inflação de preços caiu de 1.500% para 1,4%. 

Gráfico 1: taxa de inflação de preços na Bulgária, janeiro de 1997 a dezembro de 1998

Ainda mais espantosa foi a queda dos juros do mercado interbancário (equivalente à nossa SELIC): de 555% no auge da hiperinflação para apenas 3,56% no mesmo mês em que o Currency Board passou a operar.

Gráfico 2: taxa de juros do mercado interbancário na Bulgária, janeiro de 1997 a janeiro de 1998.

A Bulgária foi apenas o mais extremo dos exemplos. Mas todos os outros países que também adotaram um Currency Board — Hong Kong, Estônia, Lituânia e Argentina — vivenciaram este mesmo fenômeno: queda abrupta na inflação de preços e, principalmente, drástica redução nas taxas de juros, que caíram para apenas um dígito.

E isso vale ser ressaltado: com a exceção de Hong Kong, todos os países acima citados estavam na mais completa baderna. Não obstante, a criação de um Currency Board logrou fazer com que suas economias — até então completamente avacalhadas — se tornassem repentinamente civilizadas, com inflação de preços e taxas de juros iguais às de países desenvolvidos. 

Agora comparemos esse histórico ao que fez o Brasil. 

Ao contrário do que é dito até hoje com muita frequência, o Plano Real nunca se baseou um uma "âncora cambial" ou em um "câmbio fixo". Desde que o real foi introduzido em primeiro de julho de 1994, o câmbio nunca foi fixo, sequer por um dia. O Brasil adotou o regime de "câmbio atrelado ao dólar". Neste sistema, o Banco Central faz intervenções diárias no mercado de câmbio (comprando ou vendendo dólares) com o intuito de manter a cotação do dólar próxima a um valor por ele estipulado.

Veja a evolução da taxa de câmbio de julho de 1994 até dezembro de 1998, último mês antes da alteração do regime cambial.

Gráfico 3: evolução da taxa de câmbio durante a primeira fase do real, julho de 1994 a dezembro de 1998

O principal problema em se utilizar um câmbio atrelado é que há uma contradição entre a política monetária e a política cambial. Com uma taxa de câmbio fixa — no caso, um Currency Board —, não há política monetária; as variações no balanço de pagamento determinam as variações da base monetária da economia. Com uma taxa de câmbio flutuante — a ser analisada mais abaixo —, não há política cambial; o Banco Central se preocupa apenas em fazer política monetária. Já com um câmbio atrelado, o Banco Central tenta fazer as duas coisas ao mesmo tempo: determinar uma política monetária e uma política cambial, sendo que ambas são mutuamente excludentes, impossíveis de serem efetuadas simultaneamente. Inevitavelmente, a política cambial acaba entrando em choque com a política monetária, e os ataques especulativos são a consequência inevitável. 

Quando se trabalha com um câmbio atrelado, o Banco Central tem de, diariamente, fazer intervenções no mercado de câmbio de para fazer com que o dólar fique próximo à cotação determinada pelo Banco Central. Sendo assim, quando ocorre uma entrada "excessiva" de dólares no país, há uma tendência de apreciação do câmbio. Para evitar isso, o Banco Central compra estes dólares criando reais, o que gera um aumento da base monetária. Ato contínuo, para evitar este súbito aumento da base monetária, o Banco Central vende títulos públicos para retirar da economia os reais que ele próprio acabou de criar quando fez a conversão de dólares para real (esse processo é tecnicamente chamado de "esterilização").

Já quando ocorre uma saída de dólares, o fenômeno inverso é observado: há uma tendência de depreciação do câmbio devido à maior procura por dólares. Para evitar isso, o Banco Central vende dólares para satisfazer esse aumento da demanda por dólares. Essa venda de dólares pelo Banco Central gera uma redução da base monetária. Para evitar essa redução, algo que tende a gerar uma recessão, o Banco Central cria reais e compra títulos públicos em posse dos bancos.

Adicionalmente, vale enfatizar que, durante toda essa primeira fase do Plano Real, houve déficits na balança comercial (mais importações do que exportações). Para compensar esses déficits, o Banco Central tinha de manter juros bastante altos para atrair dólares e fazer com que o balanço de pagamentos pudesse se equilibrar. 

Observe que este comportamento ativo do Banco Central é totalmente distinto do comportamento de um Currency Board, que permite que a base monetária varie automaticamente de acordo com o saldo do balanço de pagamentos.

E é exatamente por isso que a opção por um regime de câmbio atrelado custa caro: como o regime não inspira confiança nos investidores internacionais — pois uma desvalorização pode ocorrer a qualquer momento — e dada a contínua necessidade de estar sempre atraindo dólares para se fechar o balanço de pagamentos e para manter o câmbio dentro do intervalo especificado pelo Banco Central, as taxas de juros têm de ser bastante elevadas. O gráfico abaixo mostra a evolução da SELIC de agosto de 1994 até o final de dezembro de 1998. Compare com os juros da Bulgária, no gráfico 2.

Gráfico 4: evolução dos juros do mercado interbancário brasileiro (taxa SELIC), de agosto de 1994 a dezembro de 1998.

E esta foi justamente a "mácula" da primeira fase do Plano Real: a necessidade de manter juros altos para atrair dólares e, com isso, manter a confiança da comunidade internacional no Plano. Não bastasse isso, o governo ainda apresentava um déficit orçamentário de aproximadamente 7% do PIB (não havia sequer superávit primário). Tamanha necessidade de financiamento contribuía ainda mais para a elevação dos juros.

No final, o que vale ser ressaltado é que esta postura do Banco Central — de ficar vendendo e comprando dólares para manter o câmbio dentro de um intervalo especificado e de ficar arbitrando juros para atrair dólares para fechar o balanço de pagamentos — gera um descasamento entre a quantidade de dólares nas reservas internacionais e a base monetária do país: haverá um momento em que a quantidade de dólares nas reservas internacionais será bem menor do que a base monetária. Quando isto ocorre, é apenas uma questão de tempo para que os especuladores descubram esta contradição entre política cambial e política monetária e forcem uma desvalorização da moeda — ou a imposição de controle de capitais.

Este tipo de ataque especulativo varreu a América Latina e o sudeste asiático ao longo da década de 1990. A crise do México em 1994, a crise asiática em 1997 e 1998, a crise do real em janeiro de 1999 e a crise da Argentina em dezembro de 2001 (cujo Currency Board havia sido praticamente abolido em junho daquele ano) — todas ocorreram de acordo com este mecanismo. Com efeito, até mesmo o ataque perpetrado por George Soros à libra esterlina em 1992 se deu por causa deste arranjo, uma vez que o Banco Central da Inglaterra vinha mantendo a libra atrelada ao marco alemão.

Veja a evolução das reservas internacionais do Brasil, e observe a queda súbita ocorrida no segundo semestre de 1998 em decorrência do ataque especulativo que culminou com a abolição do regime de câmbio atrelado:

Gráfico 5: evolução das reservas internacionais durante a primeira fase do real, julho de 1994 a dezembro de 1998

Sendo assim, surge a pergunta inevitável: se um Currency Board é estável e se um regime de câmbio atrelado sempre se esfacela, por que então a opção pelo último é quase que universal? Há várias respostas, mas duas se sobressaem: o regime do câmbio atrelado não abole a moeda nacional e, principalmente, o governo mantém sua autonomia para fazer política monetária, algo de extrema importância para financiar seus déficits via inflação. O preço desse nacionalismo e dessa autonomia governamental são juros altos, instabilidade e crise no balanço de pagamentos.

Por outro lado, para não dizer que só há críticas ao arranjo brasileiro, houve um fator positivo: o comportamento da inflação de preços. Como o Banco Central tinha de manter a expansão monetária contida para evitar uma súbita desvalorização do real perante o dólar, a inflação de preços apresentou um continuado declínio. Não tão súbito quanto o da Bulgária e da Argentina, mas ainda assim substancial.

Gráfico 6: evolução da inflação de preços durante a primeira fase do real, junho de 1995 a dezembro de 1998



A adoção do câmbio flutuante e o problema com o sistema de metas de inflação

Após a inevitável série de ataques especulativos (detalhados aqui) ocorrida no final de 1998, que reduziu abruptamente a quantidade de reservas internacionais do Banco Central, o regime de câmbio atrelado foi abolido logo no início de 1999.

A partir daquele ano, adotou-se aquilo que é conhecido hoje como 'tripé macroeconômico': câmbio flutuante, superávit primário e metas de inflação.

Em tese, adotar um câmbio flutuante significa que o Banco Central irá se preocupar exclusivamente com a política monetária — isto é, irá se preocupar apenas em controlar a evolução da base monetária e dos agregados monetários (M1, M2, M3 e M4) visando a atingir uma determinada meta de inflação de preços, sem olhar para o câmbio. O comportamento da taxa de câmbio ficará exclusivamente por conta das forças de mercado. Justamente por não se preocupar com a taxa de câmbio, um regime de câmbio flutuante não sofre crises no balanço de pagamentos, como ocorre com o regime de câmbio atrelado.

O problema é que, na prática, tal teoria nunca foi de fato implantada. Em primeiro lugar, o Banco Central brasileiro nunca se preocupou exclusivamente com a política monetária, deixando a taxa de câmbio flutuar ao sabor do mercado. Ele sempre tentou controlar as duas variáveis, que são incompatíveis. Consequentemente, ao tentar fazer duas coisas mutuamente excludentes — política monetária e política cambial —, o resultado final foi uma inflação de preços continuamente acima da meta (a qual, diga-se de passagem, sempre foi muito alta).

O gráfico abaixo detalha este descasamento. A linha azul mostra como seria a inflação de preços acumulada de 1999 caso o Banco Central de fato conseguisse manter a inflação de preços dentro da meta por ele próprio estipulada. Já a linha vermelha mostra a verdadeira inflação de preços acumulada. (Veja os valores anuais aqui).

Gráfico 7: inflação de preços acumulada de acordo com a meta estipulada pelo Banco Central (linha azul); inflação de preços observada (linha vermelha)

Mas o principal problema desse atual tripé macroeconômico nem chega a ser o conflito entre política monetária e política cambial: o problema está justamente no formato escolhido para a política monetária.

O modelo de política monetária utilizado pelo Banco Central brasileiro se resume a estipular uma meta para a taxa de juros do mercado interbancário (a SELIC) e, em seguida, fazer injeções de dinheiro no mercado interbancário para tentar manter essa taxa de juros estipulada. Por meio de cálculos econométricos sofisticadíssimos (e sempre errados), o Banco Central estipula qual é o valor da SELIC que, na crença dos burocratas, fará com que a inflação de preços fique próxima do valor tido pelo Banco Central como 'desejável'.

Tal prática — a qual, segundo a imprensa, foi unanimemente testada e aprovada ao redor do mundo — não apenas gerou um legado desastroso para o Brasil, como também, ao contrário do que se imagina, é utilizada por apenas um outro grande Banco Central em todo o mundo: o Fed.

Um pequeno histórico do sistema de metas para a taxa de juros

Essa política de metas para a taxa de juros foi adotada pela primeira vez nos EUA no final dos anos 1970. O então presidente do Fed e criador desta política foi um cavalheiro chamado G. William Miller, que, de tão desastrado, durou no cargo apenas de janeiro de 1978 a agosto de 1979. O resultado de sua criação foi tão pavoroso, que Jimmy Carter teve de tirar o sujeito do comando do Fed e colocar o durão Paul Volcker em seu lugar. 

O problema desta política criada por Miller — e hoje adotada pelo Brasil — é que, quando você estipula uma determinada taxa de juros como alvo, você perde totalmente o controle do crescimento da base monetária e dos agregados monetários, os quais passam a se comportar de forma totalmente errática. O M2 americano, sob o comando de Miller, passou a crescer a uma taxa de dois dígitos (12%), algo até então inédito na história do país. Foi isso que aniquilou Miller e provocou a inflação galopante americana daquela época. Para se ter uma ideia, em novembro de 1978, apenas 11 meses após implantar sua nova política, Miller fez com que o dólar se desvalorizasse 34% em relação ao marco alemão e 42% em relação ao iene japonês. Já no início de 1980, o "IPCA" americano estava em 15%.

Gráfico 8: evolução da inflação de preços nos EUA, janeiro de 1977 a março de 1980


Quando Miller foi retirado, Paul Volcker assumiu o comando e disse que essa prática de determinar uma meta para a taxa de juros não mais seria a política do Fed, e passou a controlar diretamente o crescimento da base monetária e dos agregados monetários, desconsiderando totalmente as taxas de juros resultantes, as quais passaram a flutuar alucinadamente. De início, isso aniquilou a inflação de preços, que caiu de 15% em 1980 para 2,5% em 1983. 

Gráfico 9: evolução da inflação de preços nos EUA, março de 1980 a julho de 1983

Abaixo, a variação da taxa básica de juros americana neste período.

Gráfico 10: variação da taxa básica de juros americana. De meados de 1979 ao final de 1983, o Fed se preocupou exclusivamente em controlar os agregados monetários, gerando aquelas desenfreadas variações nos juros.

Porém, como havia vários distintos e complexos agregados monetários, ninguém se entendia a respeito de "o que era dinheiro" e qual agregado monetário deveria ser seguido: o M1, o M1-A, o M2, o M3 ou o M4?

Consequentemente, mais tarde, no final de 1983, o Fed retornou à política de determinar uma meta para os juros, sendo até então o único Banco Central do mundo a fazer isso. Dez anos depois, o Banco Central da Austrália passaria a imitá-lo. Quinze anos depois, mais especificamente a partir de 1999, o Banco Central brasileiro também viria a imitá-lo. Hoje, estes são os únicos grandes bancos centrais do mundo a fazer este tipo de política monetária.

Como tal afirmação parece estranha, vale a pena enfatizá-la: dentre os grandes, apenas o Fed e o Banco Central brasileiro utilizam este mecanismo de continuamente injetar dinheiro no mercado interbancário — chamado de operações de mercado aberto — para manter a taxa básica de juros em um determinado nível. O Banco Central Europeu, o Banco Central suíço, o Banco Central da Inglaterra, o Banco Central japonês, o Banco Central canadense, o Banco Central australiano e o Banco Central neozelandês estipulam os juros por meio da janela de redesconto, um mecanismo muito mais punitivo para os bancos. 

Já o Banco Central de Cingapura não estipula juros nenhum. Ele apenas controla a taxa de câmbio do dólar cingapuriano em relação a uma cesta formada pelas moedas dos principais parceiros comerciais do país.

Não é o objetivo deste artigo especificar como funcionam os mecanismos utilizados por estes outros bancos centrais; basta dizer que mercado aberto (Brasil e EUA) é dar dinheiro para os bancos em troca de títulos públicos, ao passo que janela de redesconto é empréstimo.

Como aqui os economistas só leem literatura americana, eles adotaram o Fed e suas operações de mercado aberto como modelo a ser seguido.

Consequências

As duas principais consequências deste modelo de política monetária adotada pelo Banco Central brasileiro são o estímulo maior à inflação monetária e ao endividamento das pessoas.

Se o Banco Central está continuamente injetando dinheiro no mercado interbancário para tentar manter os juros próximos a um valor específico, ele irá estimular os bancos a concederem mais empréstimos. Consequentemente, a expansão do crédito — isto é, a expansão da quantidade de dinheiro na economia — será mais intensa e mais errática. 

O gráfico abaixo mostra a evolução da quantidade de títulos públicos em posse do Banco Central. Ele mostra a quantidade de dinheiro que o Banco Central brasileiro já criou e entregou ao sistema bancário com o intuito de manter a taxa básica de juros, a SELIC, próximo do valor por ele estipulado.



Gráfico 11: títulos públicos comprados do sistema bancário pelo Banco Central brasileiro

A consequência desta maciça injeção de dinheiro no mercado interbancário foi a volumosa expansão do volume de crédito na economia. Quando bancos concedem crédito, eles criam dinheiro eletrônico para emprestar a pessoas e empresas. O gráfico abaixo mostra a evolução do crédito concedido pelos bancos ao setor privado da economia (pessoas físicas, indústrias, setor rural, comércio e serviços).



Gráfico 12: total do crédito concedido pelo sistema bancário brasileiro ao setor privado

E a consequência desta expansão do crédito foi a desordenada, errática e colossal expansão da quantidade de dinheiro na economia. O gráfico abaixo mostra a expansão do M2 brasileiro (cédulas e moedas metálicas, depósitos em conta-corrente, depósitos em poupança e depósitos a prazo).



Gráfico 13: evolução do M2 brasileiro

No final, essa política monetária adotada pelo Banco Central que se resume a injetar dinheiro no mercado interbancário para controlar a taxa de juros gerou uma inflação de preços sistematicamente maior do que a vivenciada durante a era do câmbio atrelado. Observe no gráfico abaixo que, ao passo que a inflação de preços apresentava uma tendência claramente declinante até 1998 (sendo que o IPCA daquele ano foi de saudosos 1,65%), houve uma súbita e pronunciada inversão desta tendência a partir de 1999. A tendência de alta apresentada desde 2007 é preocupante.



Gráfico 14: evolução do IPCA acumulado em 12 meses

Porém, ainda pior do que a inflação de preços é o grau de endividamento da população brasileira. E isso era inevitável. Se você cria um sistema monetário que se baseia completamente no controle artificial dos juros e no estímulo ao crédito, o incentivo ao endividamento se torna irresistível. E as consequências podem ser trágicas.

O gráfico abaixo mostra o nível de endividamento das famílias em relação à sua renda acumulada nos últimos doze meses (linha azul) e os gastos das famílias com o serviço de suas dívidas — ou seja, juros e amortização — em relação à sua renda mensal (linha vermelha). De acordo com as últimas estatísticas, o endividamento das famílias é de quase 43,75% da sua renda acumulada em doze meses, e os gastos das famílias para cumprirem o serviço de suas dívidas é de 21,70% de sua renda mensal.



Gráfico 15: nível de endividamento das famílias em relação à sua renda acumulada nos últimos doze meses (linha azul); gastos das famílias com o serviço de suas dívidas — juros e amortização — em relação à sua renda mensal (linha vermelha).

A título de comparação, como é possível ver no gráfico deste artigo, esta mesma variável (linha vermelha) para os americanos é de apenas 11%.

Tal nível de endividamento levou a uma inadimplência total de R$85 bilhões, um recorde.



Gráfico 16: inadimplência dos brasileiros junto ao sistema financeiro

Conclusão

Eis aí a nossa sinuca de bico. O endividamento e a inadimplência estão em alta, o que reduz a propensão ao consumo futuro e, consequentemente, restringe novos investimentos. A atual contração do setor industrial, que se expandiu acentuadamente durante os anos de 2010 e 2011, época da farra do crédito, é uma consequência inevitável desta nova realidade.

Enquanto estas duas variáveis (endividamento e inadimplência) não forem equacionadas, não há grandes perspectivas para o crescimento econômico. E caso a SELIC mantenha sua trajetória de alta — o que pode se traduzir em um aumento dos juros do crediário —, o endividamento e a inadimplência podem piorar, afetando ainda mais a economia e a situação financeira dos bancos, das empresas e das indústrias.

Adicionalmente, a quantidade de dinheiro na economia (gráfico 13) tem apresentado um acentuado arrefecimento no seu ritmo de crescimento, muito provavelmente porque os bancos estão mais contidos em seu ritmo de concessão de empréstimos — certamente estão mais cautelosos com o nível de endividamento e com a inadimplência. Esse fenômeno foi analisado em detalhes neste artigo.

Essa combinação entre desaceleração do ritmo de crescimento da quantidade de dinheiro na economia e inflação de preços ainda em alta está afetando sensivelmente a renda real das pessoas. Em outras ocasiões em que inflação de preços também estava alta, como em meados de 2011, não havia esta sensação de renda afetada porque a quantidade de dinheiro na economia também estava crescendo acentuadamente, o que gerava um certo alívio. Agora, no entanto, o arranjo é outro: a inflação de preços está em alta, mas a quantidade de dinheiro na economia está crescendo bem mais contidamente, o que gera esta sensação — real — de aperto financeiro. Este atual arranjo dificulta ainda mais a capacidade das pessoas de honrarem suas dívidas. 

E caso os juros aumentem (ou caso desemprego suba), tanto os gastos com o serviço da dívida quanto a inadimplência podem piorar, afetando ainda mais a receita das empresas e o balancete dos bancos.

Tudo isso é uma consequência natural do nosso atual sistema monetário e financeiro, no qual tecnocratas a serviço de políticos populistas — que só pensam em popularidade e em alguns décimos de PIB — estimulam os bancos a expandirem o crédito e a patrocinar o consumismo e o endividamento. Isso pode acabar mal.

Por: Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

AS DEFINIÇÕES CORRETAS DE MONOPÓLIO E CONCORRÊNCIA - E POR QUE A CONCORRÊNCIAS PERFEITA É ILÓGICA

Muito se fala, principalmente nos meios acadêmicos, sobre concorrência e monopólio. O problema é que as definições utilizadas para estes termos estão quase sempre erradas. E se o conceito utilizado é errado, então as políticas sugeridas para lidar com ambos também serão erradas. Pior ainda: gerarão resultados distintos dos esperados.

Concorrência

Comecemos pela concorrência. Seria a concorrência uma 'situação' ou um 'processo'? 

A função empreendedorial é, por sua natureza intrínseca, sempre competitiva. O termo 'competitivo' vem do latim cumpetitio, que significa uma concorrência múltipla de reivindicações sobre um determinado bem ao qual um proprietário deve ser atribuído.

A concorrência é um processo dinâmico que envolve rivalidade. Trata-se de um processo dinâmico em que empreendedores rivalizam entre si para descobrir oportunidades de lucro e se aproveitar delas antes que outros empreendedores o façam. O objetivo de um empreendedor é descobrir, antes dos demais, oportunidades latentes de lucro que existem no processo empresarial. Uma vez descoberta uma oportunidade de lucro, ele terá de atuar em harmonia com outros empreendedores — pois o mercado é uma rede de trocas altamente complexa e interativa — para se aproveitar dela.

Por isso, diz-se que a concorrência é um processo de emulação, um processo em que se busca superar seus rivais, em todos os âmbitos, criando e se aproveitando de oportunidades de lucros antes deles. 

E isso deve ser contrastado ao chamado "modelo de concorrência perfeita". Este é o modelo que a esmagadora maioria dos manuais de economia aponta como sendo o ideal máximo de concorrência. Este modelo enxerga a concorrência como sendo uma situação. É como se a concorrência fosse analisada como uma fotografia instantânea. Os defensores deste modelo são os economistas matemáticos que acreditam na tese de que uma economia sempre pode estar em 'equilíbrio'.

Nos modelos matemáticos de concorrência perfeita, a concorrência é definida como perfeita quando, ao se fazer esta fotografia instantânea de um determinado processo de mercado, observa-se nesta foto — que nada mais é do que uma situação estática, sem nenhum movimento — a existência de múltiplos ofertantes, todos eles vendendo o mesmo produto, com exatamente as mesas características e ao mesmo preço.

Esta situação estática — sem nenhum movimento, sem nenhum processo empreendedorial, em que há uma multiplicidade de ofertantes que fazem exatamente a mesma coisa, que ofertam exatamente o mesmo produto e que vendem a exatamente o mesmo preço — ser classificada de concorrência perfeita representa o ápice do escárnio.

Logo, é fácil observar que estes dois conceitos de concorrência são praticamente opostos: de um lado temos a concorrência como um processo dinâmico de rivalidade, que é o conceito correto de concorrência; de outro temos a burla, que supõe uma concorrência jocosamente chamada de perfeita, que é caracterizada por uma situação em que todos os empreendedores fazem absolutamente o mesmo — e portanto ninguém compete com ninguém.

Disso, surge a inevitável pergunta: como é possível que legiões de economistas catedráticos, de enorme distinção e com impecáveis credenciais acadêmicas, tenham feito do modelo de concorrência perfeita — isto é, desta concepção estática de concorrência — a base de todas as suas teorias? 

É aqui que podemos constatar, novamente, um dos exemplos mais claros do nefasto efeito gerado pelo uso da matemática na ciência econômica. Dado que a ciência econômica nada mais é do que a ciência da ação humana, os fenômenos estudados dependem totalmente da interação voluntária entre bilhões de indivíduos, algo que por definição não pode ser matematizado.

E, justamente para se tornar possível a matematização de algo que é impossível de ser matematizado, a concorrência, que é um processo dinâmico passa a ser analisada como uma situação, um estado de equilíbrio, que é o único matematizável. E o empenho em se aplicar uma metodologia errônea oriunda do mundo das ciências naturais — onda há constantes, não existe tempo e nem criatividade — ao âmbito das ciências sociais protagonizada por seres humanos pode apenas gerar múltiplos erros, dentre eles o mais importante é o fato de se endeusar um conceito tão absurdo quanto o conceito estático de concorrência perfeita.

Monopólio

Assim como ocorre com a concorrência, há também dois conceitos distintos e opostos para monopólio. E cada um destes conceitos de monopólio está de acordo com os respectivos conceitos de concorrência. Ou, falando mais claramente, ao conceito correto de concorrência está relacionado um conceito correto de monopólio, e ao conceito errôneo de concorrência está relacionado um conceito também errôneo de monopólio.

Comecemos por este último. 

O conceito errôneo de concorrência é aquele que vê a concorrência como uma situação, um estado de equilíbrio em que há uma multiplicidade de ofertantes que produzem exatamente o mesmo produto e vendem exatamente ao mesmo preço — ou seja, não há competição nenhuma entre eles. 

E qual o conceito errôneo de monopólio? Se a característica essencial para se classificar uma situação como sendo de concorrência perfeita é que haja um grande número de ofertantes naquela fotografia instantânea, a característica essencial para se caracterizar uma situação como sendo de monopólio é que nesta fotografia instantânea — ou seja, neste estado de equilíbrio — exista apenas um único vendedor.

Do mesmo conceito errôneo de concorrência perfeita surge o conceito errôneo de monopólio, que é visto como uma situação estática em que há apenas um vendedor de um produto. Estes "monopolistas", segundo os economistas matemáticos, podem impor os preços que desejarem, preços artificialmente altos, em prejuízo dos consumidores.

Uma situação intermediária seria a de oligopólio, na qual há apenas alguns poucos vendedores (oligo vem do grego e significa poucos).

Porém, tendo por base a perspectiva da teoria dinâmica dos processos de cooperação social protagonizada por empreendedores, este conceito de monopólio e de oligopólio é completamente sem sentido. Se a definição correta de concorrência é a de um processo dinâmico de rivalidade na qual os empreendedores competem entre si para descobrir, antes dos demais, oportunidades de lucro para se aproveitar delas antes que outros empreendedores o façam, então o conceito correto de monopólio tem de levar em conta se é possível ou não que outros empreendedores possam ter legal acesso a este processo dinâmico de rivalidade.

E a conclusão lógica é que só existe um monopólio genuíno quando o estado sistematicamente impede, por meio da força ou da ameaça de violência, a liberdade de acesso a um determinado mercado ou o livre exercício do empreendedorismo em algum setor da economia.

Logo, o relevante não é se há apenas um ou alguns poucos ofertantes; o relevante é se é legalmente possível ter acesso — se há liberdade de entrada ou não — a um determinado setor da economia. O relevante é analisar se, em decorrência de alguma coerção sistemática do governo — seja por meio de agências reguladoras, de burocracias volumosas ou de decretos —, há algum impedimento ao exercício da livre iniciativa em qualquer setor da economia.

Notem que este conceito de monopólio e oligopólio é radicalmente distinto daquele que é tido pela academia como a definição correta.

Monopólio X Concorrência

Ainda utilizando a metáfora da fotografia, imagine uma sucessão de fotogramas que constituem o celulóide de um filme. Imagine que este filme represente o processo dinâmico da concorrência. Sendo assim, se escolhermos arbitrariamente um fotograma e constatarmos que há apenas um vendedor neste fotograma escolhido, um economista matemático imediatamente gritará "Monopólio! Exploração dos consumidores! O governo tem de intervir e perseguir!" Já um economista da Escola Austríaca, que entende a perspectiva dinâmica do mercado como sendo um processo marcado pelo empreendedorismo, dirá que é irrelevante que em um ou em vários fotogramas apareçam apenas um único vendedor. Pois o que tem de ser levado em consideração não é um fotograma avulso, mas sim todo o processo dinâmico contido neste filme, bem como se, ao longo deste filme, há liberdade de entrada nos mercados, isto é, se há um livre exercício do empreendedorismo.

Se ao longo do processo dinâmico houver liberdade de entrada nos mercados, então existe concorrência no sentido dinâmico. É irrelevante se, em determinados momentos, existe no mercado apenas um ofertante de bens e serviços. 

Mais ainda: se em um determinado momento existe apenas um ofertante, mas há liberdade de entrada neste mercado, então, o fato de existir apenas um ofertante, longe de ser uma comprovação de que há monopólio e exploração dos consumidores, indica apenas que tal ofertante está satisfazendo os desejos e necessidades de seus consumidores de forma bastante eficaz.

Falando de outra maneira: se o processo dinâmico é livre e os empreendedores participam dele emulando-se e concorrendo entre si, então, se em um determinado momento existir somente um empreendedor, isso significa que ele preponderou justamente por ter se mostrado mais apto que seus concorrentes a atender as necessidades dos consumidores.

Logo, a existência de uma única empresa em um determinado setor econômico cuja entrada seja livre para os concorrentes não é prejudicial para os consumidores; significa apenas que esta empresa está ofertando um bom serviço para os consumidores. Havendo uma ausência de barreiras legais para se entrar no mercado, há concorrência. Se o mercado é servido por uma única empresa, isso não configura monopólio. A concorrência existe a partir do momento em que o estado não proíbe legalmente outras empresas de entrar no mercado. 

Em um âmbito de plena liberdade empreendedorial, existir apenas um ofertante significa que este soube como atender aos desejos dos consumidores de forma mais eficaz e satisfatória do que todos os outros. No livre mercado, não há direitos adquiridos. 

E exatamente por não haver direitos adquiridos, um empreendedor jamais pode se acomodar no livre mercado. O fato de ele haver triunfado hoje não significa que ele continuará triunfando amanhã. Se ele deixa de estar alerta e se torna menos perspicaz que seus concorrentes, ou se ele deixa de satisfazer as necessidades de seus consumidores de maneira satisfatória e a preços baixos, surgirá em pouco tempo um exército de concorrentes — reais e potenciais — que colocará em perigo sua situação de predomínio. Estes concorrentes tentarão lucrar em cima deste seu desleixo.

A IBM, por exemplo, chegou a deter 70% do mercado de computadores. Converteu-se em uma empresa mastodôntica e arrogante. Quando lhe apresentaram um projeto sobre computadores portáteis, de uso pessoal, ela desprezou, dizendo que era besteira. Como resultado desta desconsideração para com as genuínas demandas dos consumidores, esta empresa outrora tão rica e poderosa quase foi à bancarrota.

Portanto, é irrelevante — de uma perspectiva dinâmica — que em uma fotografia apareça apenas um único ofertante. O próprio processo dinâmico faz com que, ao amanhecer de cada dia, este ofertante tenha de se reinventar diariamente. Caso não o faça, surgirão concorrentes que se apropriarão de uma fatia de seu mercado.

Por: Jesús Huerta de Soto , professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo libertário ao redor do mundo. Ele é o autor da monumental obra Money, Bank Credit, and Economic Cycles.