sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O CRIME DESORGANIZADO

Vale ainda, hoje mais do que nunca, aquilo que escrevi há quase duas décadas: “A única diferença entre a educação brasileira e o crime organizado é que o crime é organizado”


Em qualquer estudo erudito, o passo primeiro e indispensável é descobrir o status quaestionis, isto é, a evolução histórica das discussões sobre o assunto desde os tempos mais remotos até o seu estado atual. Essa investigação, por sua vez, toma como pano de fundo a visão mais abrangente possível da história das idéias em geral.

Só assim o estudioso fica sabendo onde está, em que ponto do diálogo erudito ele entrou na conversa, a quem está se dirigindo e em que lugar do mapa civilizacional está plantando a sua contribuição, se chega a tanto a sua interferência no caso.

Um exemplo característico é a História da Literatura Ocidental, em que Otto Maria Carpeaux, após narrar com mestria exemplar a evolução dos estilos, dos temas e dos gêneros, encerra o livro com uma revisão das principais histórias – e teorias da história -- da literatura, para situar a sua obra no devido contexto temporal e marcar a diferença específica que norteou o seu projeto de escrevê-la.

Só quando um escritor, um historiador, um cientista social ou um filósofo tem essa visão abrangente e consegue situar-se a si próprio dentro dela é que se pode dizer que ele sabe do que está falando. É ela, mais que qualquer outro fator, que marca a diferença entre o profissional e o amador, entre o estudioso sério e o palpiteiro assanhado.

O primeiro a enfatizar esse requisito dos estudos superiores foi Aristóteles, que iniciava sistematicamente as suas investigações por uma revisão das “opiniões dos sábios” sobre o tema em questão.

Essas opiniões, naturalmente, não eram somente respostas diversas dadas a uma mesma pergunta, mas diferentes maneiras de articular a questão mesma, de modo que a sua simples exposição histórica adquiria o sentido dramático de uma formulação dialética do problema em todos os seus aspectos incomensuráveis e contraditórios.

Desde então os recursos para a realização dessa tarefa evoluíram de tal modo, com o advento do sistema bibliográfico internacional, das traduções em massa, da indexação científica e da informação computadorizada, que hoje ninguém mais pode alegar, como desculpa para deixar de cumpri-la, a dificuldade de acesso às fontes.

Status quaestionis e contexto histórico são tão importantes para qualquer investigação em história, ciências humanas, letras e filosofia, que em grande parte dos casos o simples esforço de adquiri-los já traz, implícita, a solução do problema a ser investigado.

Não há exercício melhor nem mais indispensável para o adestramento da inteligência nas grandes questões da cultura, da política, da história e assim por diante.

Também não é preciso dizer que esse é o aspecto mais negligenciado na educação universitária brasileira.

Sem temor de errar, testemunho que, em três décadas de atividade pedagógica destinada substancialmente a uma platéia de estudantes e diplomados das universidades brasileiras, nunca, nem uma única vez, encontrei um aluno que viesse com um conhecimento histórico suficiente da evolução da sua própria área de estudos acadêmicos.

O indício material mais evidente desse estado de coisas era a sua ignorância completa e rasa de autores fundamentais cujas obras e idéias haviam marcado o trajeto evolutivo da disciplina supostamente estudada nos seus cursos universitários. Estudantes de Direito que nunca tinham ouvido falar de Icilio Vanni, Georges Rippert ou Igino Petrone – às vezes nem de Rudolf von Jhering, porca miséria!

Bacharéis em filosofia que nas minhas aulas ouviam pela primeira vez mencionar Louis Lavelle, Xavier Zubiri, Bernard Lonergan, Vladimir Soloviev ou Félix Ravaisson; cientistas sociais para os quais nada significavam os nomes de Pitirim Sorokin, Thorstein Veblen, Luigi Sturzo ou Othmar Spann; mestrandos em literatura brasileira – brasileira, vejam só! -- que nada sabiam de José Geraldo Vieira, Alphonsus de Guimaraens Filho, Cyro dos Anjos ou Amando Fontes.

Todos esses faziam até bela figura em comparação com os alunos de psicologia, para os quais sua disciplina pouco ou nada mais continha além de psicanálise e behaviorismo...

Mas os estudantes, é claro, não seriam tão incultos assim se não tivessem aprendido a sê-lo com seus professores.

Outro dia tive, por internet, uma discussão com um professor de física que brandia contra mim a autoridade de Ernst Mach, sem nem de longe se dar conta de que meus argumentos, no episódio, repetiam quase ipsis litteris os desse autor, do qual assim ele provava não saber absolutamente nada além do nome.

Nada digo das dúzias de colegas dele, todos eles senhores doutores, que, vendo-me questionar as noções newtonianas de “espaço absoluto” e “tempo absoluto”, saíram alardeando que eu negava a lei da gravidade: muitos acrescentam, à devota incultura, o mais perfeito analfabetismo funcional.

Esse estado de coisas manifesta-se de três maneiras principais:

(1) Os estudantes repetem a palavra de seus professores semiletrados como se fosse a autoridade do consenso universal. Quando confrontados a alguma idéia desconhecida, mesmo que tenha alguns séculos de idade ou que seja banal e corrente no exterior, escandalizam-se como crentes devotos repentinamente expostos a uma heresia intolerável.

(2) Reforça-os nessa atitude o prestígio de uns poucos autores, não raro de importância periférica, lidos fora de todo contexto histórico e sem pontos de comparação, cuja palavra é tomada, pelo simples fato de ser recente, como se fosse o cume insuperável da evolução humana, ainda que seja a cópia de alguma idéia milenar ou uma tolice já refutada há séculos.

(3) Apegam-se às crenças correntes no seu campo especializado de estudos como se fossem universalmente explicativas, como se não existissem outras ciências e outras perspectivas capazes de, articuladas ou uma a uma, esclarecer melhor o assunto em debate.

Somados, esses três fenômenos reduzem a produção soi disant científica das nossas universidades a uma caricatura disforme que não exerce, no quadro do mundo civilizado, senão a função de um anti-exemplo grotesco e patético, cuja escassez de citações na bibliografia internacional reflete menos o desprezo dos estrangeiros do que a sua caridosa recusa de contemplar a miséria alheia.

Na mais otimista e rara das hipóteses, encontramos trabalhos escolares quase aceitáveis, que mostram alguma leitura atenta da bibliografia citada mas nada acrescentam ao já arqui-sabido, exceto os erros de gramática, cuja presença nesses escritos é praticamente infalível.

Acrescente-se a esse panorama deprimente o fanatismo político onipresente, fruto ele próprio da ignorância, que reage com exclamações histéricas e ameaças de morte a qualquer argumento adverso mal compreendido, ao mesmo tempo que clama por “diversidade”, “tolerância” e “respeito às idéias divergentes”, sem notar nessa dupla atitude a mais leve contradição – um fenômeno que ultrapassa as fronteiras do puro desastre cultural e entra em cheio no terreno da psicopatologia coletiva.

É de espantar que tantos estudantes, sem jamais ter pensado nos seus deveres de estado ou na dívida de gratidão que têm para com quem paga os seus estudos, gastem tempo e energias preciosas na busca de toda sorte de prazeres fúteis e ainda considerem que é obrigação do Estado fornecer-lhes, de graça, os meios para a satisfação das suas fantasias sexuais mais pueris e grosseiras?

Quando se sabe que todo esse festival de ignomínias é sustentado com o dinheiro suado do trabalhador brasileiro, chega a ser espantoso que tantos observadores se revoltem com a corrupção de políticos e administradores, sem notar que, pelo tamanho e pela constância das suas atividades, a maior máquina de exploração do povo neste país é aquilo que, com otimismo delirante, continua a chamar-se de “educação”.

Vale ainda, hoje mais do que nunca, aquilo que escrevi há quase duas décadas: “A única diferença entre a educação brasileira e o crime organizado é que o crime é organizado.”

Por: Olavo de carvalho Do site: http://www.dcomercio.com.br

A DOÇURA COMO VIRTUDE

Muita gente já observou e comentou a respeito do clima tenso e até violento dos comentários na internet. Um xinga de cá, outro devolve num tom acima de lá. Um texto opinativo suscita desafetos e serve de motivo para ataques a quem o escreveu. Uma posição política não partidária dificilmente passa ilesa, e assim por diante.


Acontece que esse clima duro, agressivo e hostil que encontramos na rede tem se manifestado também nos relacionamentos interpessoais na realidade. Em muitas empresas, funcionários reclamam da maneira áspera com que são tratados por colegas e chefes, e também dos gritos que ouvem quando cometem alguma falha ou deslize. Nunca se soube de tantos gritos, palavrões e choros em ambientes organizacionais.

Nos relacionamentos impessoais -os que ocorrem nos espaços públicos entre pessoas que não se conhecem- acontece a mesma coisa. O trânsito, talvez, seja o exemplo mais didático sobre tal clima. Até parece que motoristas e pedestres são inimigos entre si e uns dos outros e, em estado de guerra, andam sempre armados e prontos para rebater o que consideram desaforo. Uma única barbeiragem ou indecisão é suficiente para provocar uma saraivada de impropérios.

Os relacionamentos pessoais e afetivos também têm sofrido dessa dureza na convivência: amigos se destratam por motivos banais e demoram para perdoar uns aos outros; casais, quando enfrentam conflitos e desavenças, perdem o controle de seus impulsos e usam tom e palavras que provocam intenso sofrimentos a ambos.

E nas famílias -claro!- isso se repete. Muitas mães e pais que vivem declarando amor incondicional aos filhos, quando precisam usar a firmeza para dar uma bronca, chamar a atenção ou mesmo cobrar algo deles, perdem a delicadeza e se tornam demasiadamente ásperos. Entre as crianças percebemos com clareza o resultado dessas lições que elas têm aprendido com os adultos: à medida que crescem, cresce também a hostilidade que manifestam a seus pares na convivência. Tem faltado doçura nos relacionamentos interpessoais e no trato com as crianças.

A doçura é uma virtude. Ela, portanto, pode -e deve- ser ensinada. Não é grande, porém, o número de pais que se ocupam com os ensinamentos de virtudes a seus filhos. Muitas, hoje, são confundidas com fraqueza e, por esse motivo, muitos pais hesitam em ensiná-las aos filhos. A própria doçura é uma delas! Já ouvi um pai reclamar com o filho de pouco mais de nove anos por ele não ter respondido em tom agressivo a uma provocação de um colega, dizendo: "Você tem sangue de barata!".

É possível ensinar o que for preciso aos filhos com doçura. Mesmo em situações estressantes -quando os filhos desobedecem, transgridem, agridem, desrespeitam, fazem manha, birra e tudo o mais que eles sabem muito bem fazer- é possível ter e manter a calma, o que possibilita que o que for preciso ser dito seja feito com suavidade e doçura. Mesmo os pais que se identificam como "muito chatos" com os filhos ou bem rigorosos na educação que praticam podem manifestar ternura em seus atos.

As reclamações sobre os estilos dos relacionamentos nesse mundo são tantas, que muitos pais tentam proteger seus filhos, colocando-os em verdadeiras "redomas" que, no entanto, se arrebentam quando os filhos chegam à adolescência. Talvez seja mais efetivo se esforçarem, com o uso e o ensinamento das virtudes -hoje, da doçura em especial- para que essa realidade mude.
Por: Rosely Sayão Publicado na Folha de SP

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

50 RISOS PARA GREY

Saio de casa para assistir a "Cinquenta Tons de Cinza", fenômeno na Inglaterra e, claro, no globo inteiro. E então imagino: uma sala lotada com centenas de senhoras de meia-idade, dispostas a conhecer o amado Grey que despertou nelas todos os sonhos esquecidos, reprimidos, adormecidos.


Primeiro choque: sábado à tarde e a sala está quase vazia. Segundo choque: o público presente é composto de adolescentes que vieram em grupo para provar a natureza transgressiva da história. Terceiro choque: eu sou provavelmente o espectador mais velho da sala.

A situação exige medidas drásticas. Sento-me junto a duas amigas, tiro o bloco de notas do bolso e depois, sorrindo, ofereço uma desculpa: "Trabalho". Elas sorriem de volta -e murmuram: "Pois, pois". Afundo na cadeira.

O filme vale a pena. Mas somente se você, leitor, for a uma sala com adolescentes. Eles são o coro perfeito para o que sucede na tela: por cada cena de sexo, por cada gemido, por cada açoite- e a gargalhada é geral.

Entendo. Essa é a geração que, na internet, encontra pornografia "hardcore" instantânea e grátis. As cenas "transgressivas" de "Cinquenta Tons de Cinza" são, para eles, brincadeira de crianças. Literalmente.

Uma das amigas, aliás, comentou com a outra: "Parece que estão brincando aos médicos e pacientes." Anotei o comentário. O sadomasoquismo do filme é tão perverso que também eu descobri ter começado a praticá-lo ainda na infância. Quando a professora da escola primária usava a régua para corrigir os meus erros de matemática.

Mas de que trata "Cinquenta Tons de Cinza"? Não li o livro. Comprei-o. Dez páginas depois, reparei que passara as últimas cinco com pensamentos intrusivos ("cortar as unhas", "comprar leite", "marcar almoço com"). Desisti.

De modos que: avancei para o filme no mesmo estado da protagonista Anastasia. Em estado virgem.

Esse é o primeiro momento surreal do filme: quando sabemos que Anastasia permanece ignorante em matéria de flores e abelhas. (O segundo momento é quando ela confessa uma paixão literária por Thomas Hardy.)

A inocência dura pouco: depois de conhecer Grey, o milionário propõe-lhe um contrato para que ela seja o seu brinquedo sexual. Não li o contrato, mas passei alguns minutos a fantasiar o que aconteceria se o dito cujo fosse parar a tribunal por incumprimento de uma das partes.

Imaginei discussões legais ("segundo o artigo 2º da cláusula 5ª a sra. Anastasia comprometia-se a receber seis chibatadas, e não apenas quatro"), tudo sob o olhar reprovador do juiz. Mas divago.

No fim, Anastasia está cansada das tareias porque ama Grey. E Grey, incapaz de amar, prefere continuar com as tareias. Um clássico: expectativas divergentes sempre foram um veneno nas relações.

De regresso a casa, consulto bibliografia secundária para compreender o apelo que "Cinquenta Tons de Cinza" teve na imaginação feminina. E descubro, em artigos que parecem cópias uns dos outros, que a história virou fenômeno porque incontáveis mulheres suspiravam por homens como Grey: alguém capaz de usar o cinto para muito mais do que simplesmente segurar as calças.

No fundo, a história seria uma denúncia dos machos "flácidos" (digamos assim) que a cultura feminista promoveu. "Dureza" e "firmeza", eis os quesitos básicos para as mulheres do século 21.

Nada a dizer, tudo a respeitar. Mas, se um pouco de violência é aquilo que falta em muitos lares, a única coisa que se lamenta é a falta de comunicação entre os casais. Se o livro contribuir para mais abertura e mais equimoses, substituindo pontos de ruptura por pontos de sutura, a autora E.L. James já terá dado seu contributo para o amor pós-moderno.

Infelizmente, o filme talvez não esteja à altura do livro. Porque olhando para a figura de Grey -para o seu patético embotamento afetivo- é duvidoso acreditar que aquilo é príncipe que se apresente para qualquer donzela arfante.

Pelo contrário: as suas fragilidades são tão absolutamente efeminadas que nunca sabemos se ele vai entrar em cena de chicote -ou de fraldas.

Fosse eu o autor da história e teria salvado a relação entre Anastasia e Grey. Bastaria que a primeira conquistasse o coração do segundo oferecendo-lhe o conforto de uma chupeta. Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

CREDIBILIDADE: CREDENCIAL PARA SER CHEFE


O caminho para uma chefia se inicia no primeiro minuto do primeiro dia do primeiro emprego. Vamos então começar com uma palavra que acompanhará uma carreira do princípio ao fim, não importe quantos anos a carreira irá durar:credibilidade. 

O grau de sucesso de um profissional depende diretamente de quanto as pessoas acreditam nele. As carreiras empacam no exato ponto em que colegas ou superiores perdem essa confiança.

Mas é importante não confundir credibilidade apenas com sinceridade. Ser sincero é um dos pilares que sustentam a credibilidade, mas não é o único. Há outros dois. 

O segundo é o pilar do conhecimento. É preciso que você demonstre que possui plenas condições técnicas para fazer o seu trabalho. E isso significa nunca deixar de estudar, de aprender, de se atualizar e se aperfeiçoar.

E o terceiro pilar é o da execução. O profissional adquire credibilidade ao fazer mais do que se espera dele, termos de tempo e de objetivos. Essa capacidade, de executar bem, é o que faz a fama de profissionais que dão a impressão de serem capazes de resolver qualquer problema que lhes for passado, e sem a necessidade de cobranças superiores durante o processo.

Finalmente, é bom ter em mente que ser um profissional com credibilidade não significa que todo mundo irá concordar com ele o tempo todo. E no início da carreira, pode ser que bem poucas pessoas estejam dispostas, sequer, a escutá-lo. Por isso, e para começar a merecer a confiança geral, ele deve começar prestando muita atenção ao terceiro pilar, o da execução, porque é o mais fácil de ser avaliado com dados concretos.
Max Gehringer, para CBN, 05/02/2015.