terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O LADO OCULTO DA LUA

Blefe: 1. Mostrar falsamente confiança ou agressividade para enganar ou intimidar alguém. 2. Mostrar agressivamente os dentes como meio de intimidar outro animal.

- The Free Dictionary

Chantagem nuclear é uma modalidade de estratégia nuclear em que um agressor usa a ameaça do uso de armas nucleares para forçar um adversário a tomar alguma atitude ou fazer algumas concessões. É um tipo de extorsão.
- Wikipédia

Durante a Conferência de Segurança de Munique na sexta-feira, o ministro da Defesa da Grã-Bretanha, Michael Fallon, falou à Reuters sobre um triplo problema. Primeiro ele disse que os russos “podem ter baixado o limiar [de tolerância]” para o uso de armas nucleares. Em segundo lugar, disse que os russos estão “integrando forças convencionais e nucleares de maneira bastante ameaçadora...”. E em terceiro, “em tempo de pressão fiscal eles continuam a gastar na modernização das forças nucleares”. (v. a matéria em inglês UKb concerned over ‘threatening’ Russian nuclear strategy.)

A manchete do Guardian na sexta-feira mostrou uma imagem do presidente russo Vladimir Putin com a chanceler alemã Angela Merkel e o presidente François Hollande da França. A manchete é “Temor a Vladimir Putin nas capitais da UE diante do fantasma da‘guerra total’”, que inclui um perturbador comentário de um diplomata da UE em Bruxelas dizendo que armar a Ucrânia pode significar o desencadeamento de uma guerra com a Rússia, e a Rússia está fadada a ganhar a guerra.

Eis nosso destino: viajamos uma longa estrada acreditando nas mentiras russas, e agora chegamos. Ajudamos os russos a atingir um novo patamar de supremacia. Ajudamos eles a dar todos os passos para esse caminho. Acreditamos na perestroika e na glasnost. Lisonjeamo-nos ao alegar vitória na Guerra Fria. Mordemos a isca do 11 de setembro e caímos no ataque diversionista dos islâmicos e aqui estamos: incapazes de se opor à Rússia e (como logo veremos) aos chineses. Acerca desse assunto o desertor Anatoliy Golitsyn já nos alertou em 1984 com o livro New Lies for Old [As novas mentiras pelas velhas]:

A estratégia da tesoura daria lugar à estratégia “de um só punho fechado”. Nesse ponto, a mudança na balança político-militar seria evidente para todos. A convergência não se daria entre dois lados iguais, mas conforme os termos ditados pelo bloco comunista. O argumento a favor da acomodação com a força esmagadora e irresistível do comunismo, tornar-se-ia virtualmente irrespondível. Cresceriam as pressões por mudanças no sistema político e econômico americano... Conservadores tradicionais seriam isolados e levados ao extremismo. Eles podem se tornar as vítimas de um novo “macartismo” de esquerda.

T.S. Elliot outrora escreveu sobre a União Soviética em um prefácio para um livro anonimamente escrito cujo título é O lado oculto da lua. O livro é sobre a Polônia oriental sob ocupação soviética após 17 de setembro de 1939. Os invasores russos sujeitaram os civis poloneses a deportações e execuções em massa e confisco de propriedades. Tudo isso esteve escondido sob a face mais visível que era Adolf Hitler, cuja invasão à Polônia no dia 1 de setembro de 1939 havia tido maior repercussão. Da mesma maneira, terroristas árabes começaram uma guerra mais famosa no dia 11/09/2001. Após esse fato, deixamos totalmente de estar a par de quê a Rússia estava fazendo. De novo foi um caso de “o lado oculto da lua”.

É interessante agora ver como a história se repete (e por que ela não deveria se repetir?). Especialmente se tratando de estratégias que podem ser usadas de novo e de novo, sem que ninguém perceba. Fomos manipulados em 1939-45 e fomos manipulados no período 2001-2014. Evidentemente isso não significa que Hitler ou Bin Laden fossem os mocinhos. Apenas nos permitimos gastar todas nossas energias em combater o inimigo menor e perdemos totalmente a noção de quem é o inimigo maior. Pior: esse inimigo maior manipulou-nos de maneiras que são vergonhosas demais para se permitir. De novo fizemos vistas grossas para os preparativos russos que visavam tomar a Europa; isto é, preparativos para tomar vantagem total da nossa distração.

Ano passado Moscou tomou uma parte da Criméia ucraniana. Hoje a batalha se intensifica pelo controle do leste e do sul da Ucrânia. Enquanto as tropas da OTAN chegam de maneira cautelosa em relação à Rússia, há preocupações de que não tenhamos forças suficientes, especialmente se os russos resolverem usar suas armas nucleares táticas. Essas pequenas (porém poderosas) armas mudam qualquer cenário de combate. Uma força convencional sem artilharia nuclear tática não pode com uma força que possui tal artilharia. Esse é um fato que o Ministro da Defesa da Grã-Bretanha observou e que o obrigou a acalmar o empenho dos líderes europeus [em combater os russos].

Enquanto isso na Rússia, propagandas antiamericanas e anti-OTAN seguem um padrão pré-guerra que visa “preparar a opinião pública” para a guerra. Culpam os americanos pela luta em Donbas. Culpam os americanos de tentarem destruir a Rússia. No final das contas, foram as maquinações americanas que derrubaram o presidente legalmente eleito Victor Yanukovych [segundo propagandas]. A ideia tomou tal popularidade, que até mesmo o famoso George Freeman da STRATFOR disse que a derrubada de Yanukovych foi o “mais flagrante golpe da história”. George, pelo visto, jamais entendeu os eventos da ex-União Soviética, tampouco ele entende a situação de Washington. Pergunte a si mesmo honestamente: Obama é um imperialista determinado a destruir a Rússia?

Dificilmente pode-se pensar na ideia de Obama conseguindo fazer algo como derrubar um governo estrangeiro. Isso é risível quando nos damos conta que o número de agentes russos na Ucrânia deve estar na casa dos milhares. E o que a CIA tem na Ucrânia? Talvez eles tenham uns cinquenta agentes, ou talvez uns 200 se você contar os falsos agentes-duplos russos. Por favor, não sejamos tão ignorantes ao ponto de nos equivocar acerca da natureza da realidade ucraniana pós-soviética e o quanto a CIA deve estar em desvantagem em todo o território “outrora” soviético.

Quando observamos o comportamento atual da dita “junta” de Kiev, vemos que eles, não obstante, agem de maneira que corriqueiramente beneficia a Rússia e não a Ucrânia — e menos ainda os Estados Unidos. Com efeito, pode-se pegar uma publicação como a Veterans for Peace e constatar que os perversos vilões corporativos da Monsanto estão tomando a área rural de cultivo da Ucrânia (ou algo do tipo). Pode-se até basear sua análise — como fez Eugene Chausovsky na STRATFOR — na opinião ‘especializada’ de três mecânicos de etnia russa que conheceu numa viagem à noite de trem de Sevastopol para Kiev. “Eles consideraram terroristas os manifestantes acampados na praça central de Kiev [...] completamente organizados e financiados pelos Estados Unidos e pela União Europeia” disse Chausovsky.

E o que devemos dizer da garota ucraniana que, um ano atrás, clamou por ajuda para libertar seu país? “Quero que você saiba porque, disse ela,milhares de pessoas por todo meu país estão nas ruas. Há apenas um motivo. Queremos nos livrar da ditadura... Somos pessoas civilizadas... não uma União Soviética. Queremos que nossas cortes não sejam corruptas. Queremos ser livres.”

Isso é tão difícil de acreditar?

“Sei que amanhã talvez não tenhamos telefone ou internet, e assim ficaremos sozinhos aqui, explicou a garota ucraniana. E talvez policiais nos assassinem aos montes quando estiver escuro. É por isso que eu peço que nos ajudem agora. Temos essa liberdade no coração... Você pode nos ajudar compartilhando isso com seus amigos... Mostre que você nos apoia.”

Evidentemente há muitos ucranianos do leste e do sul que não compartilham de tais sentimentos. No leste da Ucrânia as mentiras russas foram aceitas por medo do desconhecido e de um deturpado orgulho étnico. Obviamente os estrategistas russos não estão de folga na Ucrânia. Os agentes de Moscou têm estado muito ocupado desacreditando aqueles que querem verdadeira liberdade. Ao chamar os manifestantes de Kiev de “nazis” e dizendo que o objetivo deles era matar os de etnia russa, constatamos a desonestidade do “outro” lado. Precisa-se apenas de um momento de reflexão para perceber que não há como existir um movimento na Ucrânia que vise matar pessoas de etnia russa. Na verdade, a diferença entre ucranianos e russos é tão desprezível que tal campanha seria impraticável, senão risível.

A América estava enviando bilhões para ajudar os ucranianos a ganharem sua liberdade? Pode até ser verdade, embora a origem do dinheiro do Ocidente não seja invariavelmente os ‘perversos malfeitores’ da CIA. Muitos no Ocidente preferem uma economia ucraniana livre dos grilhões pós-soviéticos. Muitos querem ver verdadeira liberdade em todos os países do mundo. Contudo, encontramos esse entusiasmo na Casa Branca de Obama? Na verdade, podemos duvidar que a Casa Branca queira qualquer problema com a Rússia. Obama não odeia a Rússia. Ele não faz uma pressão por um enorme rearmamento. Ele nunca foi particularmente resiliente na causa da liberdade dos povos russo e ucraniano. A CIA também não teve um retrospecto positivo operando nessa parte do mundo. Seja quanto for que os milionários deram ou sejam quais forem os conselhos que os diplomatas deram para a Euromaidan, foi tudo de coração (i.e., daqueles que quiseram algo de bom para o povo ucraniano). Entretanto, podemos admitir que essas pessoas generosas nunca entenderam a verdadeira situação na Ucrânia, pois eles provavelmente não entenderam que Moscou sempre viu como ficção uma Ucrânia “independente”. Como explicou David Remnick, “Na cabeça de Putin, a Ucrânia não é uma nação...”, ou como disse Putin a Bush, “Você tem de entender, George. A Ucrânia sequer é um país.”

Esse é um ponto de vista que encontramos até mesmo na obra de Aleksandr Solzehnitsyn. Por outro lado, se você perguntar a um ucraniano do oeste, receberá uma resposta completamente diferente, pois dinheiro nenhum pode comprar essa resposta. Nenhum círculo de conspiradores em Langley ou no porão da Casa Branca poderia evocar essa resposta nas ruas de Kiev. Com efeito, esse movimento foi orgânico na Ucrânia. Não é um produto do dinheiro americano, mesmo que ele tenha sido usado. Declarar que o sentimento ucraniano tem algo de mercenário é mais que ignorância; envolve um cinismo cego e uma prontidão a acreditar nas novas mentiras russas. Peço que o leitor lembre que a América é signatária do Memorando de Budapeste e, portanto, está obrigada a defender a independência nacional da Ucrânia.

Considere também o rotineiro suborno dos oficiais ucranianos pela Gazprom e pelas velhas estruturas da KGB. Quantos milhões foram gastos para comprar políticos em Kiev? Quanto veneno foi usado para destruir aqueles políticos que se recusaram a receber suborno? Em relação a esse assunto: foram os americanos que derrubaram Yanukovych ou foi o Kremlin que derrubou e sequestrou-o porque ele não era o poodle que os russos imaginaram ser? Coloquemos as coisas no devido lugar. Fiquemos de olho em Julia Tymoshenko e seus cúmplices (cujos rastros levam à Gazprom). Dificilmente seria justo dizer, em última análise, que a revolta na Ucrânia foi o resultado de interferência americana. Foi o resultado de décadas de confusão provocada pelos agentes secretos russos e pelas estruturas secretas soviéticas, além de décadas de economia controlada e capitalismo de compadres.

Para se adquirir verdadeiro conhecimento da situação na Ucrânia, é necessário primeiro conhecer algo da história russa e algo da Chechênia (e sobre os primeiros eventos acontecidos na Iugoslávia). A dissolução de um país e a divisão do seu território em dois ou mais campos hostis é uma velha técnica que vem bem a calhar [para alguns]. Os britânicos usaram para governar a Índia. Os russos agora empregam o método para vencer a Ucrânia. Mas não se trata de um simples jogo de “dividir e conquistar”. É muito mais complexo e envolve outros jogos de regiões distantes da Terra. A questão trata-se também de dividir a Europa — especialmente dividir a OTAN. Deixe que tremam alemães, franceses e italianos perante o que a Rússia está preparando. Deixe que eles rompam com os americanos. Deixem que eles tracem o próprio caminho e façam seus próprios acordos. [É disso que se trata.]

Então veja e aprenda no que consiste estratégia. Ela não é simples ou óbvia no começo. Só no fim do jogo que as primeiras jogadas são entendidas. Também é importante que se olhe para outros países do mapa, como a Síria.

Da Ucrânia para a Síria
Marius Laurinavicius é analista sênior no Eastern Europe Studies Center em Vilnius, Lituânia, e sua obra merece atenção especial. No último mês ele escreveu um artigo intitulado “A Rússia de Putin: Vestígios da KGB, FSB e GRU levam ao Estado Islâmico?”. Nele são estabelecidos fatos suspeitos sobre o movimento de ressurgimento wahhabista (islâmico) na União Soviética. O autor nos provê com insights importantes sobre a relação entre Estado Islâmico (EI) e KGB/GRU, incluindo seus objetivos estratégicos; constata-se então que o movimento é uma criação da KGB, modelada nos falsos movimentos anticomunistas de outros tempos e lugares. Assim como na Operação Trust dos anos 1920, os anos 1970 (até os anos 1990) viram a criação de organizações de fachada antissoviéticas controladas pela própria KGB. Elas iam desde a Carta 77 na Tchecoslováquia até o Partido Liberal Democrático da Rússia criado por Vladimir Zhirinovsky.

Criar falsos movimentos de oposição na Rússia é uma jogada antiga. É de se esperar que Moscou criaria um ou mais fronts islâmicos controlados pela KGB. Esses fronts mostraram-se especialmente úteis a Moscou, especialmente se tratando do álibi checheno em 1999 e na situação da Síria atual.

De acordo com Laurinavicius, o EI é parte do plano moscovita. Ele cita detalhadamente uma entrevista feita em 4 de junho de 2013 com Akhmed Khalidovich Zakayev, ex-Primeiro Ministro checheno. Nessa entrevista ficamos sabendo de líderes islâmicos voltando à vida (Dokka Umarov), agentes duplos e complexas provocações. Também ficamos sabendo de islâmicos controlados pela KGB aparecendo na Síria sob a bandeira do Estado Islâmico. Alguém pode perguntar o que isso significa; Zakayev coloca a estratégia de Moscou em perspectiva com a seguinte pergunta: “Você pode imaginar em que posição os líderes ocidentais que tomaram a decisão de suspender o embargo de armas à oposição de Assad ficarão?” Subitamente, terroristas piores ainda aparecem na Síria minando efetivamente a oposição ocidental ao regime de Assad (que por sua vez é controlado pela Rússia).

O entrevistador de Zakayev, supondo que isso fosse uma paranóica teoria da conspiração, perguntou incredulamente se Dokka Umarov estava realmente conectado com os serviços especiais russos. Zakayev respondeu: “Dissemos isso tantas vezes. Em 2007, Umarov declarou guerra à América, Grã-Bretanha e Israel. Antes dessa afirmação Dokka estava sob custódia dos serviços especiais russos, porém foi solto por algum milagre... Umarov está totalmente sob comando dos serviços russos.”

Como explica Laurinavicius em seu artigo, Umarov não emergiu como o aparente líder do EI na Síria. Omar al-Shishani (também conhecido por Tarkhan Batirashvili) era o homem da vez, embora al-Shishani admita que ele tenha vindo à Síria sob ordens de Umarov. Laurinavicius também mostra os antecedentes de Shishani. O homem não era um mero soldado da Georgia que estava combatendo os russos, mas sim um agente terrorista provocador que na verdade estava ajudando os russos a justificar a anexação da Abecásia. De acordo com o pai ortodoxo cristão de al-Shishani/Batirashvili, Tarkhan não foi à Síria por causa de religião, ele apenas quer ganhar dinheiro.

O artigo anterior de Laurinavicius, “A Rússia de Putin: Porque vale a pena reconsiderar as ligações entre o Kremlin e o terrorismo internacional”, também provê informações importantes.

Assim como a Lua, a Rússia tem a face que todos veem e um lado oculto. Hoje em dia essa face não é comunista. Ela finge ser conservadora, talvez nacionalista, e até mesmo pró-cristã. Enquanto isso, o lado oculto da Rússia não é visto. Os princípios que governam a Rússia são negados; eles continuam ocultos e obscurecidos. Resta-nos deduzir esse lado oculto perante alguns fatos a se considerar.

Se quisermos entender a chantagem nuclear que está a se desenrolar na Europa, a sabotagem política ou o terrorismo que vem sendo uma constante desde o começo do século, então precisamos olhar para o lado oculto da Rússia. Lá encontraremos respostas.
Por: Jeffrey Nyquist  http://jrnyquist.com  Tradução: Leonildo Trombela Junior


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