sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

GUERRA DO PARAGUAI

Guerra do Paraguai: uma batalha que será sempre maldita. Mas o Brasil não é vilão

Com sólida base documental e metodológica, o historiador Francisco Doratioto, no livro “Maldita Guerra”, desfaz mitos antigos e recentes e reconstitui o maior conflito armado da história da América do Sul. Morreram mais de 100 mil pessoas. A Inglaterra não tinha interesse na contenda
Companhia das Letras
Francisco Doratioto, autor de “Maldita Guerra — Nova História da Guerra do Paraguai”, que reconstitui o cotidiano das tropas aliadas em uma das guerras mais sangrentas da América

Aquele era um homem incomum. Sob a proteção de seu pai, maior man­datário de seu país, teve uma carreira militar meteórica. Aos 19 anos, já era general de exército, e, aos 23, ministro da Guerra e da Marinha.

Em uma de suas idas a Paris, caiu de amores por uma bela cortesã irlandesa, tida como a “mulher mais linda de Paris”. Seu nome: Elisa Alicia Lynch. Ao ouvir falar de tamanha beleza, o poderoso rapaz não teve dúvidas: ordenou ao seu ajudante de ordens que a levasse, naquela mesma noite, ao hotel. “E não se importe com quanto possa custar”, disse ele ao ajudante. Após uma noite de amor, nasceu uma paixão ardente entre o jovem general e a bela irlandesa. A partir daí, os amantes se tornaram o mais poderoso casal do Paraguai — país que seria governado a mão de ferro pelo futuro ditador.

O irmão mais velho seria o sucessor escolhido pelo pai. Mas não foi. Numa manobra política, o amante de madame Lynch se tornou o vice-presidente dando, assim, uma rasteira no próprio irmão. No leito de morte do pai, um homem de espírito conciliador, recebeu dele o seguinte conselho: “O Paraguai tem muitas questões pendentes, mas não busque resolvê-las pela espada, mas sim pela caneta, principalmente, com o Brasil”.

A história mostrou que o conselho paterno não viria a ser seguido. No poder, o jovem general se tornou o ditador que levaria sua pátria à mais sangrenta guerra, que ceifou a vida de milhares de homens nela envolvidos. Uma “Maldita Guerra”, como bem disse um dos heróis brasileiros que dela participou: o marechal Caxias. Uma maldita guerra provocada pelo personagem dessa história. Guerra da qual o Brasil não queria participar. O conflito estava previsto para durar pouco tempo, mas este se arrastou por cinco longos anos, drenando as finanças e a vida de milhares de brasileiros do Brasil imperial — e de seus aliados. Além de condenar o país de Alfredo Stroessner ao que ele hoje é: uma nação sem futuro e sem confiança em si mesma. O personagem de que vos falo é Francisco Solano López. A guerra de que vos falo é a Guerra do Paraguai. Esta foi exaustivamente estudada, por longos 15 anos, por um pesquisador movido pela paixão inerente àqueles devotados aos estudos da história. Façamos uma breve apresentação do autor para, em seguida, mergulharmos na grandiosidade de sua obra.

Francisco Doratioto é graduado pela Universidade de São Paulo, com doutorado em His­tó­ria pela Universidade de Brasília. É professor da Universidade Católica de Brasília e do mestrado em Diplomacia do Instituto Rio Branco. É também membro do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais e da Academia Paraguaia de História. É autor, entre outras obras, dos livros “General Osório”, “A República Bossa-Nova” e “Relações Brasil-Paraguai”.

Personagens e o ambiente da guerra

Vários personagens que atuaram na Guerra do Paraguai entraram para a história dos países diretamente envolvidos no conflito. De um lado, a tríplice aliança (união do Brasil, Argentina e Uruguai. Fala­remos, mais adiante, deste assunto); de outro, o Paraguai. Aliás, quanto à natureza do conflito, os escritos do professor Doratioto nos revelam que essa guerra só ocorreu devido à teimosia de Solano López, aliada à sua incapacidade de prever um quadro desfavorável para seu país. Vejamos alguns dados que nos ajudarão a entender esse desequilíbrio e, de certa forma, o prolongamento de uma guerra que a princípio se imaginava ser de curta duração.

Das nações envolvidas no conflito, o Brasil era o país que mais abertura tinha com o exterior. O intercâmbio mensurado na moeda mais forte da época (libras esterlinas inglesas) evidenciava esse fato. O país mantinha um intercâmbio comercial com o exterior de quase 24 milhões de libras; a Argentina quase 9 milhões; o Uruguai 3,6 milhões; e o Paraguai 560 mil.

Quanto à população, o Brasil, com 9,1 milhões de habitantes, era o país mais populoso. Habitava a Argentina 1,7 milhões de pessoas. No Uruguai, viviam 250 mil. O Paraguai era habitado por cerca de 400 mil pessoas.
Quanto ao efetivo do exército, o Paraguai se destacava dos outros participantes do conflito pelo nú­mero de efetivos. O país de Solano López contava com 77 mil homens no exército; o Brasil, 18 mil; a Argentina, 6 mil; e o Uruguai, 3 mil soldados.

Certamente, a considerável superioridade numérica do exército paraguaio, aliada à garra de seus soldados, contribuiu diretamente para o prolongamento do conflito. Nesse sentido, avalia o autor que, “durante toda a Guerra do Paraguai, as forças aliadas jamais chegaram a ter, operacionalmente, mais do que o dobro de homens do exército de Solano López, o que explica, em parte, a longa duração do conflito”.

Francisco Doratioto evidencia alguns aspectos que levaram o Paraguai a cometer erros de avaliação. Aliás, a avaliação e a decisão de entrada na guerra foram tomadas soberana e absolutamente por um homem só: Francisco Solano López, o dono do país e da alma do povo paraguaio.

Contribuíram para os equívocos do ditador a enorme inexperiência do corpo diplomático paraguaio e a inexistência de elos de comunicação que informassem a sociedade. De­talhe: no Paraguai praticamente inexistiam, na época, jornais. Como se isso não bastasse, o extremo autoritarismo de Solano López atenuava possíveis opiniões contrárias à sua. No entender do autor: “sua excessiva confiança [de Solano López] levou-o ao voluntarismo, a superestimar o poder nacional paraguaio e a fazer uma análise equivocada da correlação de forças militares e políticas no Prata [Bacia do Prata]”.

Se nos propusermos a elaborar um breve panorama dos acontecimentos que marcaram a “maldita guerra”, evidenciaremos fatos de distintas naturezas, como as personalidades que fizeram história, as divergências entre líderes dos exércitos aliados ou entre membros do governo, a liderança de Dom Pedro II no comando das decisões estratégicas e, lógico, a ousadia do ditador ao decidir desafiar a Argentina e invadir o Estado brasileiro do Mato Grosso, iniciando, assim, uma guerra que deveria ser curta.

O Impe­rador desempenhou com desenvoltura o papel que lhe cabia como chefe supremo da nação. Relatam os escritos de Doratioto que “Dom Pedro II fazia-se presente nos assuntos do governo e procurava manter-se a par de tudo, ao participar, inclusive, da condução da política externa brasileira”. No tocante, ainda, aos aspectos supra evidenciados, os escritos de Francisco Dora­tioto enfatizam a habilidade diplomática de José da Silva Para­nhos (fu­turo Barão do Rio Branco) no momento em que este evitou um conflito com aquele país cisplatino, conflito que, certamente, ceifaria a vida de muitos brasileiros. A habilidade política do diplomata bateria de frente com a rigidez de um militar que não aceitava as excessivas concessões feitas por Paranhos aos uruguaios. Fala-se do almirante Tamandaré. Daí surgiu o estopim que acirrou o conflito, qual seja, a provocação dos uruguaios com algo inconcebível para um militar da envergadura do almirante: a ofensa à bandeira brasileira. O “deixa para lá” de Pa­ranhos, em nome da paz construída, irritou não só o militar, mas a opinião pública brasileira. Re­sultado: amigo próximo do almirante e ouvindo o clamor das ruas, o Imperador não teve dúvidas: demitiu José Maria da Silva Paranhos. “Falta de dignidade [de Paranhos]. Só um militar pode sa­ber o que significa um insulto à ban­deira”, assim se expressou o almirante sobre o episódio. No fundo, as desavenças entre Para­nhos e o almirante tinham motivações políticas, pois o primeiro era integrante do partido conservador e o segundo, do partido liberal.

Entretanto a história mostraria que a verdade estava com Para­nhos. E essa realidade se evidenciou no momento em que o Uruguai seria um dos países a compor, com a Argentina e o Brasil, a Tríplice Aliança, que lutaria contra um inimigo comum. O futuro Visconde de Rio Branco acabaria exercendo um papel fundamental nos novos conflitos e viria a exigir algo inato, que José Maria Paranhos tinha de sobra: a imensa capacidade de negociar. Era ele um diplomata da mais alta qualidade.

Os escritos de Doratioto não deixam dúvidas de que o general Caxias — futuro duque de Caxias — foi, do lado brasileiro, o grande estrategista da Guerra do Paraguai. Caxias se constituiu no elemento pensante que deu um rumo no avanço das tropas em território paraguaio. Da sua mente, provieram os planos de invasão das tropas aliadas no território paraguaio. Do lado argentino, esse papel coube a outro nome de expressão que fez história no conflito: Bartolomé Mitre — comandante do exército aliado e, posteriormente, presidente da Argentina. Não restam dúvidas de que ambos, embora Mitre e Caxias expressassem suas divergências quanto ao modo de avanço das tropas em território paraguaio, foram nomes decisivos nos rumos da guerra.

Nesse sentido, o sucesso da invasão de uma fortaleza decisiva para vitória dos países aliados — Humaitá — em território paraguaio, suscitou dúvidas a quem atribuir o mérito estratégico que daria novos ru­mos ao conflito pró Tríplice Alian­ça. O mérito foi de Mitre ou de Caxias? Para uns, ele deve ser atribuído a Mitre; para outros, a Caxias.

As divergências entre Caxias e Mitre, comuns em situações de incerteza e decisões vitais para as nações envolvidas no conflito, nem um pouco macularam o relevante papel histórico que esses dois grandes homens tiveram na maldita guerra. De Caxias, patrono do exército brasileiro, não é preciso falar. Quanto à figura de Bartolomeu Mitre, intelectual de primeira linha, fundador de um dos jornais mais importantes da América Latina — “La Na­cion”—, além de presidente da República, vale ressaltar a simpatia que o Império tinha por ele. Assim relata o autor a respeito do modo positivo como o Império via a atuação do líder argentino na maldita guerra: “Não só por afinidades ideológicas, mas também por interesses concretos, que beneficiou a ação brasileira no Prata” .

Mito, curiosidades e humor

Teria sido a Guerra do Paraguai alimentada pela nação mais poderosa do mundo (na época, a In­gla­ter­ra) ante ao elevado nível de desenvolvimento daquele país na América do Sul? Este é um mito que os escritos do professor Francisco Do­ratioto procuram desmentir. Trata-se de uma inverdade histórica.

A começar pelos consideráveis investimentos que tinham os compatriotas de Shakespeare na terra de Solano López. Quanto a isso, relata o autor que “os projetos de infraestrutura guarani foram atendidos por bens de capital ingleses e os especialistas estrangeiros que os implementavam eram, em sua maioria, britânicos”.

Outra prova adicional que evidencia o desinteresse inglês pelo conflito se refere a uma carta do representante daquele país, na vizinha Argentina, que enfatizava a soberania do governo paraguaio que, a seu ver, “era o melhor juiz do que mais convém a sua pátria e não me compete dizer nada contra suas resoluções”. Assim, enunciou Edward Thornton, então, representante de sua majestade na terra do grande escritor Jorge Luis Borges.

Fatos curiosos ocorreram no transcorrer do conflito do Prata. O primeiro deles se refere à extrema necessidade de convocação de homens solteiros que não fossem arrimo de família para o exército. Resultado, para evitar esse destino, esses homens optavam por um desses caminhos: esconder-se na mata ou casar com mulheres mais velhas do que eles. “Se não quer ir para São Paulo assentar praça, há de casar com minha tia”, evidenciava uma charge de um jornal da época, em cuja situação um homem já velho aponta a tia para um jovem recruta.

Outro fato curioso ocorrido no transcorrer do conflito se refere a uma encomenda feita pelo governo brasileiro aos Estados Unidos, que se tornou uma novidade para a limitada tecnologia da época: a construção de um balão. O balão subia com dois observadores para espionar o terreno inimigo. A solução se mostrou ineficaz. Motivo: “o balão grande tinha diâmetro pouco mais de doze metros e exigia 37 mil pés cúbicos de hidrogênio e jamais se conseguiu enchê-lo totalmente”. Além disso, nevoeiros e as fogueiras feitas pelo exército paraguaio dificultavam a visão dos observadores. A sátira da época não perdoou a situação: “cara feia do inimigo”, descrevia uma charge da época com um observador de monóculo olhando lá de cima o traseiro dos soldados brasileiros.

As desavenças entre Caxias e Mitre se tornaram um prato cheio para os chargistas. Estes procuravam ironizar uma guerra que nunca terminava. Em uma dessas charges, aparecia o comandante brasileiro afiando espadas e baionetas num amolador com os seguintes dizeres: “A guerra continuará enquanto este grande amolador não tiver afiado, como pretende, todas as espadas e baionetas do exército brasileiro (temos muitíssimo tempo a esperar!)”.

Em outra situação, aparecia Bartolomeu Mitre sentado numa cadeira conversando com deus Mercúrio. Esta procurava ironizar o possível interesse do presidente da Argentina no prolongamento do conflito.

“Venho pedir a Vossa Excelência que volte para o teatro da guerra; os brasileiros não têm razão para desejarem seu prolongamento e são capazes de ajustar a paz, mais dia, menos dia...”, dizia Mercúrio a Mitre, e este responde “mas quem vos disse que desejo prolongar a guerra?”. Retruca Mercúrio: “Ora! Aqui entre nós, Vossa excelência quer reservas!? Pois não sabe que eu também sou mitrado?! Nada! Nada! É preciso voltar para a campanha: empenho-me com o deus do comércio, dos especuladores, etc. em favor das vossas e das algibeiras de vossos governados... é necessário que continue a pepineira?”.

O desenrolar da guerra

O que pretendia Solano López ao invadir o Mato Grosso (invadido em 27 de dezembro de 1864 e ocupado até abril de 1868), Corrientes, na Argentina (13 de abril a 5 de outubro de 1865), o Rio Grande do Sul (10 de junho a 18 de setembro de 1865), constituiu-se num mistério que ainda requer muita investigação histórica. Solano López “atuava na guerra antes como um jogador disposto a fazer apostas arriscadas do que como um general ousado que usava as informações disponíveis para montar estratégias viáveis”. Um general ousado que invadia sem planejar. Isso se mostrou uma verdade no momento em que os soldados paraguaios ficaram sem mantimentos ante a invasão do Rio Grande do Sul, invasão essa ocorrida após a derrota naval sofrida pelos paraguaios na Batalha do Riachuelo. Vale ressaltar que os almirantes Tamandaré e Barroso foram os nomes que fizeram história nessa batalha, que foi certamente a maior vitória já obtida pela marinha brasileira. A invasão do Rio Grande do Sul demorou mais tempo do que se previa, desse modo, levando o exército a ficar sem comida. Quanto a isso, nos diz o autor que, “para se sustentarem, recorreram [os soldados] a carne de cavalo, de gatos, de cachorros, de ratos e mesmo de insetos, que encontravam no in­terior dos muros. Muitos desses soldados adoeciam, quer por fome ou alimentação inadequada, quer por doenças decorrentes das más condições higiênicas, pois os restos dos animais devorados ficavam amontoados pela vila, tornando-se foco de doenças”. Mas comer comida estragada não era “privilégio” só dos paraguaios, o exército brasileiro também a ingeriu: “Fosse qual fosse a comida, as moscas eram tantas que dificilmente ela era ingerida sem uma dúzia delas”.

O fato que se constata é que, depois desses acontecimentos, consolidou-se a chamada Tríplice A­liança entre o Brasil, Uruguai e Ar­gen­tina contra um inimigo comum: o Paraguai. O Paraguai se transformou num imenso campo de batalha en­tre as tropas aliadas e os soldados de Solano López. De 5 de abril de 1866 a 1 de março de 1870, os combates se deram no território paraguaio, principalmente, em torno do maior obstáculo a ser vencido pelas tropas aliadas: a Fortaleza de Humaitá.

Vencer Humaitá era de fato estratégico para ganhar a guerra. Doratioto relata que, “durante dois anos, os aliados ficaram imobilizados em Tuiuti, emboscados pelos paraguaios, tateando, em meio ao matagal e pântanos, na busca de uma alternativa para alcançar Humaitá”. Detalhe: para quem desconhece o fato histórico, vale ressaltar a seguinte informação a respeito da batalha de Tuiuti — foi a mais sangrenta batalha travada em território paraguaio e envolveu cerca de 50 mil soldados de ambos os lados.

O primeiro comandante do exército brasileiro em território paraguaio foi um general de grande prestígio junto a seus comandados: Osório. Relata-nos o autor que “ele foi, sem dúvida, o oficial brasileiro mais admirado pela tropa aliada, cultivando excelentes relações com seus colegas argentinos, e respeitado também pelo inimigo”. Osório foi o responsável pela operação que levou os aliados a vencerem a batalha de Tuiuti. Problemas de saúde o afastaram do campo de batalha. Entre outros, comandaram as forças brasileiras, além de Osório e Wenceslao Paunero, o genro de Dom Pedro II — o conde d’Eu, vale ressaltar o nome que se tornou uma lenda no conflito da guerra cisplatina: o marechal Luis Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias. Caxias assumiu o comando do exército brasileiro após a derrota das tropas aliadas na batalha de Curupaiti, na qual morreram cerca de 4 mil homens das tropas aliadas. Em Curupaiti, Solano López mostrou que estava mais vivo do que nunca. Aliado a isso, desentendimentos entre os chefes aliados influenciaram para o desânimo das tropas.

Os escritos de Doratioto são enfáticos quando se referem ao patrono do exército brasileiro: “A ninguém se podia confiar tanta autoridade a não ser a Caxias, por ser o militar brasileiro mais importante, ‘tanto com respeito à patente, como pelo prestígio de que goza’”.

E Caxias mostrou a que viera. Sua liderança e seu senso estratégico, aliados à preocupação em dotar o exército de equipamentos modernos, foram decisivos para o significativo avanço que teve as tropas em território paraguaio. O uso de balões de observação (piadas à parte) e as instalações de telégrafos implementados por Caxias não só deram mais agilidade às comunicações, como também possibilitaram o avanço das tropas em território inimigo e a tomada do mais importante obstáculo ao avanço dos aliados na terra de Solano López: a Fortaleza de Humaitá. Tomada Humaitá, Caxias implementou a caçada a Solano López, entretanto este, fugindo pelo interior do país, conseguiu, por mais um ano, prolongar o que todos queriam que terminasse: a maldita guerra.

Caxias queria o fim da guerra com a queda de Humaitá. Para ele, “já tiramos uma boa desforra do López, pois o Paraguai ficará arrasado por 50 anos pelo menos”. Mas o Imperador foi irredutível. O conflito de fato só acabaria quando López deixasse de mandar no país. E assim “o pacífico monarca amigo das artes, imagem que Pedro II possuía até a invasão paraguaia do território brasileiro, transformou-se no senhor da guerra, no governante inflexível”.

A história militar oficial procurou construir, em relação ao patrono do exército brasileiro, o perfil de ho­mem ideal e possuidor de coragem, pa­triotismo e integridade. Não restam dúvidas de que o marechal tinha muitas qualidades, mas, como ser hu­mano, também, tinha lá seus de­feitos. Nesse sentido, os escritos de inegável fôlego intelectual de Do­ra­tioto apontam certo amesquinhamento de Caxias ao procurar diminuir a figuras de Mitre e Osório que, co­mo ele, tinham também seus méritos.

Caxias mais acertou do que errou no comando das tropas brasileiras no Paraguai. Certamente, um erro que cometeu, o qual provocou a ira do Imperador e da opinião pública, foi deixar escapar Solano López quando tinha plenas condições de capturá-lo.

A seu ver, isso abreviaria o final do conflito. A estratégia não deu certo, pois o ditador conseguiu resistir adiando, assim, por 15 longos meses o final daquilo que todos estavam ansiosos por terminar: a maldita guerra. Caxias retirou-se do front da guerra sem esperar ordens superiores. Sua saída voluntária do comando das tropas deixou um vácuo de liderança que se agravava ante a extrema politização que existia no exército entre liberais e conservadores. A substituição do marechal acabou sendo uma difícil decisão para o poder moderador do Imperador tomar. Este acabou optando por uma solução que lhe parecia a mais conciliadora: a nomeação, muito a contragosto, do conde D’Eu. Este, como sabemos, era marido da Princesa Isabel.

A nomeação de um membro da família real foi a saída política encontrada por Dom Pedro II. Procurava, dessa maneira, arrefecer os ânimos políticos da época. O conde, com patente de capitão obtida na Escola Militar de Segóvia, na Espanha, tinha participado da Guerra do Marrocos. Parecia ser essa a solução mais adequada: um membro da família real e militar de formação reergueria o moral das tropas. Os fatos históricos mostraram ser essa uma inverdade, pois o marido da Princesa Isabel era um homem de espírito mais voltado para as glórias da guerra do que para o comando em si, ainda mais em condições tão inóspitas como eram aquelas travadas no front paraguaio. O desânimo tomou conta do genro do Imperador.

Embora fosse um símbolo, a presença militar do conde D’Eu acabou por se tornar inútil em terras paraguaias.

No entender de Doratioto, “é justo concluir que o príncipe consorte não queria enfrentar as durezas da guerra, para a qual não tinha competência. A memória dos milhares de mortos brasileiros na guerra, bem como o sacrifício dos combatentes, quase todos pessoas comuns e ex-escravos uma parte, que há anos permaneciam no inferno paraguaio, lutando como podiam, mereciam um comandante-em-chefe mais digno”.

Caçada a Solano López

A cena era comum naqueles longos 15 meses, no inferno no qual se constituiu o interior do Paraguai, ao final da maldita guerra: de um lado, Solano López e seu exército de crianças (convocadas a partir de 10 anos), adolescentes e velhos; de outro, as tropas brasileiras já exaustas que seguiam em torno de seu principal objetivo: a captura do ditador. O que restava pelo caminho era a face mais visível dos horrores da guerra que as cenas por si, descritas com precisão por Doratioto, revelam: “Uma criança paraguaia gritava a um companheiro ferido, mas de pé: ‘amigo, mata-me por favor!’ E o outro, acudindo à cruel imploração, desfechou-lhe um tiro à queima-roupa”.

“O campo ficou cheio de mortos e feridos do inimigo, entre os quais, causavam-nos grande pena, pelo avultado número, os soldadinhos, cobertos de sangue, com as perninhas quebradas, não tendo alguns ainda atingido a puberdade. Como eram valentes para o fogo os pobres meninos! Que luta terrível aquela entre a piedade cristã e o dever militar! Os nossos soldados diziam que não dava gosto a gente brigar com tanta criança”.

“Em janeiro de 1870, houve uma nova execução em grande escala de supostos traidores, entre eles, por lança, a ‘belíssima’ Francisca Garmendia, da qual, no final dos anos de 1850, o jovem Solano López tentara se aproximar e fora repelido. Em Igatemí e Panadero, ocorreram novas execuções, com as novas vítimas sendo executadas com lanças para economizar balas e pólvora. Os soldados que portavam as lanças estavam tão enfraquecidos pela fome que não conseguiam fazer as execuções na primeira estocada da lança. Eram necessários ‘seis ou sete golpes para acabar com o sentenciado, que se retorce e geme de dor, rolando pelo solo ao tentar se esquivar da estocada’. Dos acusados de traição, Venâncio López teve a pior sorte. Foi açoitado diariamente, durante toda prolongada marcha, que fez nu, com o corpo coberto de feridas, pois era arrastado pelo chão com uma corda amarrada na cintura.”

Detalhe: Venâncio López era irmão de Solano López. Destinos semelhantes teriam suas irmãs. Estas seriam também executadas se a guerra não tivesse terminado. Como se vê, a ira do ditador era implacável com todos, inclusive com sua própria família.

Pintura de Pedro Américo sobre a Batalha de Avaí na Guerra do Paraguai

A implacável e exaustiva caçada a Solano López chegou ao fim numa cordilheira ao norte do Paraguai: Cerro Corá, 4.500 soldados aliados de um lado contra 450 soldados paraguaios de outro. Os aliados cercaram o ditador que tentou fugir. Entretanto um fato o distinguiu de seus comandados: era o único gordo entre esqueléticos soldados.

Na tentativa de fuga, o senhor absoluto de todas as almas paraguaias foi ferido com um golpe de lança deferido pelo cabo Francisco Lacerda (que entrou para a história com o codinome de “Chico Diabo”), caiu ele ferido às margens do arroio Aquidabán. As ordens eram para que o ditador fosse capturado vivo. Era, todavia, pedir demais para soldados que vinham de longos sofrimentos nos terríveis campos de batalha paraguaios.

“Ia ordenar que o agarrassem para a terra, quando um soldado disparou, por detrás de mim, um tiro que o matou.” Assim relatou o comandante da tropa — general Câmara — à esposa a forma como morreu Solano López. Com a morte do ditador, terminou, enfim, a maldita guerra. Entretanto, com a sua morte, jamais se extinguiu o rastro de sangue que ele deixou no maior conflito armado da história da América do Sul. Solano López entrou para história como um sanguinário. Nas devidas proporções, foi o Hitler da América do Sul.

Consequências da guerra

Que consequências trouxeram tanto banho de sangue na história dos países envolvidos no conflito? Certamente, muitas, mas que a impossibilidade de espaço não permite enumerá-las. Falemos das principais.

Aproximadamente, 50 mil paraguaios, 33 mil brasileiros, 18 mil argentinos, 5 mil uruguaios — enfim: mais de 100 mil seres humanos morreram na guerra do Paraguai. O número não é preciso, por essa razão optamos pela opinião média dos historiadores.

É inegável que os vencedores — principalmente o Brasil e a Argentina — redefiniram suas fronteiras na região do Prata. No tocante ao Brasil, a Guerra do Paraguai acelerou internamente o conflito que se desenvolvia entre o exército e a monarquia, resultando, anos depois, na Proclamação da Re­pública. O Paraguai, certamente, pagou o preço do perdedor, e o mais pesado deles foi a ruptura de um modelo de desenvolvimento que se mostrava, antes da guerra, dinâmico e promissor.

Após o conflito, a terra guarani imergiu em um estado de total letargia presa às mais profundas amarras do subdesenvolvimento. Tudo precisava ser reconstruído, infraestrutura, nascimento de novas gerações ante as significativas perdas humanas da população, educação, saúde — enfim — a confiança em si mesmo que toda nação necessita para prosperar. Ao contrário do previsto, passados mais de 150 anos do conflito, o Paraguai não se recuperou do fantasma de Solano López.

Por: Salatiel Soares Correia, engenheiro, é mestre em Planejamento pela Unicamp.
Publicado no Jornal Opção

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