domingo, 23 de dezembro de 2012

O MARXISMO É UM DEFUNTO COM VERMES MAGROS


Houve um tempo que causava frenesi na direita e na esquerda falar a frase “o marxismo está morto”. Hoje é sabido que o marxismo é um cadáver cheio de vermes, ou já nem isso mais, pois os vermes vão embora quando não há mais nada para jantar.

É claro que Marx é um clássico e quem o lê junto com outros clássicos encontra um gênio. Mas a doutrina marxista, o “método” e, enfim, aquela baboseira toda de “materialismo histórico e dialético” não serve mais a ninguém que tenha ou algum juízo ou alguma inteligência. Ninguém hoje amarraria sua égua em alguma coisa rígida, capaz de impedir a digitação criativa. Aquilo que os marxistas diziam, a saber, que não podíamos usar da “teoria” como uma camisa de força, foi o que mais fizeram e, então, cansaram a todos e a si mesmos. Quando Habermas se libertou do marxismo ele nem precisou prestar contas disso. Ele simplesmente passou a escrever de modo diferente e pronto. E isso já faz tempo! Muitos agiram como ele. Outros nem precisaram de tanto, pois já estavam fora dessa ditadura mental bem antes.

Richard Rorty, amigo de Habermas, foi um intelectual da velha guarda, ao contrário do que pareceu para certos intelectuais no Brasil, ignorantes sobre filosofia americana e, de certo modo, sobre a cultura americana em geral. Caso ele tivesse tido formação europeia, teria de fazer o turn que Habermas fez. Mas, uma vez americano, Rorty podia ser um liberal ou, em termos europeus, um social democrata, sem qualquer vínculo com o marxismo. Isso fez dele uma das figuras mais criativas da cultura ocidental na transição do século XX para o XXI. Ele sabia bem o que era ser de esquerda, uma vez que seus pais foram militantes socialistas na América, mas isso não significava nenhum grande apego a Marx. Como ele mesmo costumava afirmar, logo após a Revolução Russa de 1917 os intelectuais americanos de esquerda se deslocaram para John Dewey e para o pragmatismo, deixando de lado qualquer idolatria a Marx. Isso foi uma benção para Rorty.

Em termos de história da filosofia, ele jamais teve de ficar preocupado em associar movimento cultural e classes sociais, como Marx, e em termos de metafísica, ele nunca teve de ficar preso à defesa do materialismo diante de outras posturas, como Engels. Rorty entendeu com facilidade o que Davidson estava propondo, um monismo ontológico (do lado do fisicalismo) associado a um dualismo linguístico (vocabulários para se falar da ordem do mental e da ordem do corporal), e ficou contente com isso. Chegou mesmo até em falar em fim da ontologia, junto com Ramberg. Bastaria apenas adotar a ideia de Wittgenstein, em que o mundo aparece como delimitado pela linguagem, e então viver como usuário de vocabulários úteis. Rorty ficou muito tranquilo com a posição filosófica que apostava que não precisamos resolver o problema da relação entre linguagem e mundo, uma vez que esse problema era alguma coisa mal formulada. Quem entende a palavra “montanha” é porque aprendeu jogos de linguagem em que ela faz sentido, e nesses jogos de linguagem em que ela faz sentido é um pouco fora de órbita duvidar que “montanha” é alguma coisa causalmente independente da linguagem e do pensamento. No limite, assim pensando, Rorty se livrou de debates, digamos assim, nucleares em filosofia, ao radicalizar seu pragmatismo. Usuários da linguagem devem ser bons usuários da linguagem e, então, não dar muito bola para vocabulários tão circunscritos a determinados grupos, como o vocabulário de determinados filósofos, como os kantianos, por exemplo. Pois estes diriam que a montanha que é causalmente independente da linguagem e do pensamento não seria a montanha (fenomênica), mas a montanha “em si”.

Assim, deixar esse tipo de kantismo de lado foi, para Rorty, em filosofia, um passo pragmatista equivalente ao passo que, na filosofia política, os parceiros de seu pai já haviam dado em Nova York, quando deixaram de ler Marx.

Creio que Rorty se sentiu bem livre quando viu que podia escrever poesia, como seu pai, sem ter de abandonar o que ele sabia fazer bem, que era reagir aos livros que lia com uma voracidade que nenhum outro intelectual possuiu. Sua escrita filosófica se tornou brilhantemente literária, dona de uma ironia sofisticada. Seu estilo de redescrever para, então, poder melhor conversar com filósofos vivos e mortos mostrou-se original e inconfundível. Para mim, a melhor forma autenticamente de escrever filosofia.

Essa escrita rortiana ensinou alguma coisa que era exatamente o oposto do estilo dos marxistas. Estes, sempre escreveram de uma maneira a combater o jargão de quem pensava diferente. Rorty escreveu de modo a colocar no seu próprio jargão o que outros haviam criado, e que se mostrava como vantajoso para a sua retórica, e fazia isso avisando o leitor que estava agindo desse modo. Rorty era um respeitador da criatividade daquele que ele lia. Ele podia fazer o seu leitor rir muito de quem ele comentava, mas o comentário, por mais duro que fosse, era sempre feito mostrando que as expressões criadas pelo autor que ele lia podiam ser incorporadas em uma outra narrativa. Esse estilo genial, que principalmente os marxistas nunca conseguiram possuir, foi um dos maiores legados de Rorty para as Humanidades. Quando de sua morte, Habermas foi direto nesse ponto, chamando Rorty de poeta.

O marxismo apodreceu no túmulo porque os marxistas não souberam utilizar nem mesmo as boas expressões que restaram da obra de Marx naquilo que ela se fez clássica. Eles desgastaram todas: alienação, luta de classes, ideologia, capitalismo, modo de produção, revolução, comunismo e por aí vai. Tudo isso foi usado em excesso em nome do rigor e, então, em determinado momento, começou a não soar mais como contendo algum conteúdo válido. As bocas dos marxistas continuarem mexendo, eles pareciam falar, mas o som não saía, ou seja, ninguém mais ouvia. Ninguém mais ouve. É tudo sem carne e sangue. O que é falado por um marxista é tido como tão vazio quanto os discursos da direita começaram a parecer após o nazifascismo ter perdido a guerra (ou quando hoje a direita ataca o marxismo ou comunismo!).

O marxismo modificou em muito nossa linguagem mas, ao mesmo tempo, perdeu a guerra semântica da qual participou. Felizmente! Porque durante o tempo que esteve ganhando, cerceou muitas bocas que poderiam ter dito coisa melhor.

Aqui e ali, em mestrados em educação ou em graduações de ciências sociais, há sempre algum marxista, exibindo um vocabulário que não tem corpo, um vocabulário no qual sobraram só os vermes do defunto. E hoje, vermes já magros.
Por: Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ

Um comentário:

Maria Lúcia Dário disse...

Discurso pernóstico e xenofóbico.