terça-feira, 11 de dezembro de 2012

SANTOS E PECADORES

Jornalistas não são santos. Colunistas muito menos. De mim falo: teria uns 18 ou 19 anos quando respondi pela primeira vez em tribunal por abuso de liberdade de imprensa.


Nada de especial: escrevi um artigo; o visado não gostou de certas comparações, digamos, zoomórficas; e moveu-me um processo para limpar a sua honra e dignidade.

Pessoalmente, teria preferido um duelo. Mas defendi-me como pude --e ainda hoje recordo a cara do juiz, um homem com sessenta e poucos anos, estupefacto com a criança que tinha à frente e que, nas alegações finais, resolveu fazer uma longa dissertação sobre John Milton e o seu "Areopagitica", um notável panfleto de 1644 a favor da liberdade de expressão.

De nada valeu. Fui condenado. Justo? Injusto? Honestamente, isso interessa? Sei apenas que, olhando para as fotos desse tempo, tenho saudades: do rapaz que ali estava, tenro como um cordeirinho; e, claro, do meu advogado, já falecido, e que por acaso também era meu pai.

Passaram-se todos esses anos. Devo ter escrito umas duas mil colunas depois dessa. E, pelos vistos, os tribunais continuam a gostar de mim: agora mesmo, no momento em que bato essas linhas, creio que corre no Brasil uma queixa contra uma coluna minha neste site da Folha.

Estou pronto para o que der e vier. Qualquer pretexto é válido para voltar a São Paulo e, por essa ordem, almoçar no Dalva e Dito, jantar no Epice e beber com os meus amigos onde eles quiserem.

Repito: jornalistas não são santos. Colunistas muito menos. E a melhor forma de lidar com ambos --sim, faço uma distinção, porque jornalistas não gostam de colunistas, e vice-versa-- é pelos mecanismos normais de um Estado de Direito. Tribunais. Não através de comissões de "sábios", órgãos reguladores ou outras aberrações parajudiciais, ou extrajudiciais, que adquirem sempre um poder intolerável e potencialmente censório.

Ninguém está acima da lei. E não pode existir nenhuma lei especial que esteja acima da lei geral só para vigiar e punir uma classe profissional em particular.

Infelizmente, parece que o Reino Unido já esqueceu estas preciosas lições que garantiram a liberdade de imprensa no país desde a abolição da censura em finais do século 17.

E esqueceu porque entrou em pânico com o comportamento criminoso dos tabloides do país, em especial do defunto "News of the World", que grampeou telefones de celebridades, políticos e até vítimas de sequestro e homicídio. Sem falar de outros actos igualmente grotescos, como a chantagem e a corrupção de agentes policiais. Tudo em nome do "direito de informar".

Qualquer destes actos repugna uma pessoa civilizada. Mas nenhum deles precisa de legislação extraordinária. Muito menos de um novo órgão regulador respaldado pela lei, tal como proposto pelo juiz Brian Leveson no seu relatório apresentado na última semana.
Paul Hackett/Reuters
Brian Leveson, que sugeriu promulgação de nova lei para garantir a regulação eficaz da imprensa britânica


São quase duas mil páginas que, entre outras inovações perigosas, defendem a constituição de uma entidade autorreguladora composta por membros da imprensa e exteriores a ela, com poderes para supervisionar abusos e multar ou punir os jornalistas abusadores.

David Cameron, o premiê conservador, aplaudiu o esforço do relatório Leveson. Mas, com coragem e sensatez, não parece disposto a cruzar esse Rubicão (palavras dele), mesmo que tenha de enfrentar a revolta do seu parceiro de coalização, o "liberal" Nick Clegg.

Cameron tem razão: o problema do relatório não está na existência de um órgão autorregulador, que aliás já existe (a Comissão de Reclamações contra a Imprensa, que faz recomendações e defende vítimas de abusos jornalísticos).

O problema está na proposta de um novo órgão sujeito a pressões políticas e constituído por agentes políticos, que passaria a ter sobre o jornalismo um poder incontrolado e incontrolável.

John Milton, no seu "Areopagitica", embora desaprovasse as ideias blasfemas e sediosas, deixou um conselho que transcende o horizonte curto do seu tempo: numa sociedade livre, mesmo as más ideias têm direito a existir. Porque é pelo confronto com elas, e em contraste com elas, que chegaremos à verdade e ao bem - uma observação sábia sobre a qual John Stuart Mill, dois séculos depois, edificaria a sua igreja.

Espero que David Cameron se lembre desses ilustres antepassados. Respeitando a liberdade de expressão, sim. Mas respeitando também o papel dos tribunais, e apenas dos tribunais, para punir os seus abusos. Por: João Pereira Coutinho  Folha de SP

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