sexta-feira, 2 de maio de 2014

UM CONSELHO DE GOETHE


N.doT.: Goethe é um dos personagens mais célebres e cultos da literatura ocidental. Ortega y Gasset era um grande admirador deste escritor; e seu discípulo, Julián Marías, não podia ser diferente. Transponha, leitor, o que ele diz nesse pequeno artigo para a nossa situação e talvez encontre o caminho para sair de nossa “depressão” cultural. Se quiser ler mais sobre o assunto, recomendo o ensaio ‘Pidiendo un Goethe desde dentro’, de José Ortega y Gasset.

Como quase todos os grandes escritores – aqueles que têm intensa “qualidade de página” – Goethe foi capaz de cunhar expressões refulgentes, que podem viver inclusive separadas de seu contexto. Ortega “se disse” muitas vezes por palavras de Goethe, em uma relação infrequente, que um dia tencionei pôr em claro. Uma das frases de Goethe que gostava de repetir era esta: “O que herdaste de teus pais, conquista-o para possui-lo”.

A riqueza ou pobreza vital dos homens depende em incrível medida de que sigam ou não esse conselho goethino. Poder-se-ia medir o grau de realidade de diversos povos segundo essa norma; para alguns, as diferenças em épocas distintas podem ser enormes. Preocupei-me sempre com o que acontece com o que mais me afeta, ou seja, com os espanhóis. E ao dizer isso não esqueço que sua herança não se reduz à Espanha, nem de longe, mas o que através da Espanha se há de receber, assimilar e acaso possuir.

Pessoalmente, esforcei-me ao longo de toda minha vida para conhecer, repensar, comentar e comunicar a esplêndida herança que nos pertence. Se não me equivoco, neste século, quando paradoxalmente essa possessão poderia ser mais completa e fácil, assiste-se a uma renúncia de pavorosa extensão.

É certo que as heranças se podem aceitar “a benefício de inventário[1]”, porque podem consistir em dívidas ou bens mal adquiridos. Esse inventário é essencial quando se trata de história, e por isso é imperativo o conhecimento lúcido e crítico do que nos é transmitido. Porém isso é o que raramente se faz.

É preciso conhecer e possuir a totalidade da tradição espanhola – é claro – com suas raízes, com tudo o que veio de fora, desde o passado remoto que a constitui. Essa “conquista” que pedia Goethe exige que o “próprio”, o imediatamente recebido ou legado, venha acompanhado do circundante e de suas raízes vivificantes. E isso é o que falta com enorme frequência em quase todo o mundo, e é a causa da profunda incultura – se vale a expressão – que é um dos primeiros motivos da decadência, cada dia mais ameaçadora, ainda que eu continue acreditando que é, contudo, evitável.

No caso da Espanha, a situação é de suma gravidade. A ignorância que poderíamos chamar “normal”, o fato de que se sabem poucas coisas, vem reforçada pela preguiça – pecado capital em que raramente se pensa e que explica muitas coisas – e pelo estranho prestígio que hoje tem a ignorância. Porém tudo isso, apesar de muito, é o de menos.

O mais inquietante é o tenaz esforço que se faz por parte de uns ou de outros grupos, aparentemente díspares e ainda opostos, para eliminar grandes porções dessa herança; e o relevo dessas equipes leva-a à sua volatilização total. Se for feito um exame do estado das mentes, descobrir-se-á a freqüência dessa extrema pobreza.

Tem vigência generalizada, se não universal, a idéia de que nada espanhol vale a pena, e como o conhecimento real do estrangeiro – e nem digamos do antigo – é muito escasso, dá-se por suposto que esse é valioso, porém não faz parte da realidade de um sem-número de pessoas. Principalmente daquelas que, por possuírem “duas onças”, como dizia Cervantes, de alguma disciplina secundária, se instalam no pedantismo e desqualificam pontificalmente tudo o que ignoram.

É urgente, creio que em todo o mundo conhecido, superar essa situação, que não conduz a nada desejável. Tenho a impressão de que entre nós se está criando a consciência de que é assim e de que isso produzirá uma intensificação do escárnio destrutivo por parte dos que pensam que em uma Espanha intelectualmente mais rica teriam pouco futuro.

Porém isso, tão necessário e valioso, não é suficiente. Na frase de Goethe há um verbo essencial: “Conquista-o”. Não se trata de mera recepção passiva de uma herança, nem sequer de sua análise ou inventário. Faz falta a conquista, a reação ativa a esse legado. E isso só se pode fazer a partir de uma atitude “criadora”. Quando algo ingressa efetivamente na vida, produz certos efeitos: começa a conviver com o que havia antes, modifica-o, suscita reações em distintos níveis. A simples leitura de um livro, se contiverrealidade, atua sobre o conjunto de todo o anterior e o transforma.

Há um verbo de importância decisiva: “repensar”. Quando algo ingressa na mente, sua posse requer a construção dos movimentos ou processos mentais do autor. O privilégio da poesia é que a forma métrica ou rítmica do verso obriga a refazer o que foi sua criação original. Daí a confiança de Unamuno em seus versos: “Quando me creiais mais morto,/ re-tremerei em vossas mãos”. Logo se verá que o desdém de há umas quantas décadas pelas formas tradicionais do verso era um erro que se está pagando com o esquecimento de grande parte da poesia recente: de muitos poetas nominalmente famosos ninguém recorda um só verso.

Repensar não é forçosamente inovar. Alguns poderão e deverão fazê-lo. A maioria deverá “tornar a pensar” ativamente, a partir si mesmos, o que receberam; assim o possuirão, fá-lo-ão “seu”. Disse muitas vezes que a leitura de um livro de filosofia tem de ser filosófica, assim o leitor se enriquece com uma filosofia que não inventou nem formulou, mas que lhe pertence plenamente.

O conselho de Goethe, se verdadeiramente o repensarmos, se, a partir da nossa situação e da nossa experiência, o repetirmos, torna-se ainda mais interessante e fecundo. E, ao mesmo tempo, experimenta uma importante modificação. “O que herdaste de teus pais, conquista-o para possui-lo”, disse Goethe. Teríamos de entendê-lo com uma ligeira modificação: “Conquista-o para possuir-te”. Não se trata somente do legado, da herança; trata-sede si mesmo, de sua própria realidade. Ao tomar posse da herança, chega-se a ser o que verdadeiramente se é. “Torna-te o que és”, foi o conselho imperecível de Píndaro, renovado por Fichte, contemporâneo de Goethe: “Werde, der dubist”.

É algo mais que informação, cultura, maturidade. Em última instância, o que está em jogo é a nossa realidade. Falta apenas um detalhe, que me parece decisivo. A distinção entre “o que” se é e “quem” se é. É preciso transladar tudo o que eu disse para além do repertório de recursos, daquilo que encontramos e recebemos, para esse núcleo último que consiste em projeto, vocação, necessidade de ser “alguém” e não “algo”, irredutível a tudo, para além de tudo, com absoluta unicidade, conforme a capacidade de cada um; em resumo, para uma pessoa.

Nota:
[1] Segundo o Diccionario de La Lengua Española da Real Academia Espanhola, é a faculdade que a lei concede ao herdeiro de aceitar a herança com a condição de não estar obrigado a pagar aos credores do falecido mais do que o montante total da mesma.

Fonte: MARÍAS, Julián. Un consejo de Goethe. Disponível em: http://www.conoze.com/doc.php?doc=1869>. Acesso: 27 de março de 2014.
Tradução: Rafael Salvi


Nenhum comentário: