quarta-feira, 25 de julho de 2012

QUAL O PAPEL DO ESTADO?


A crise financeira de 2008 encorajou o debate internacional sobre qual o grau - e tipo - adequado de regulamentação dos mercados pelo governo. É um assunto central para as próximas eleições presidenciais nos Estados Unidos e também vem modelando a política na Europa e nos países emergentes.

Para começar, o impressionante crescimento da China nos últimos 30 anos deu ao mundo um exemplo economicamente bem-sucedido do que muitos chamam "capitalismo de Estado". As políticas de desenvolvimento do Brasil também conferem forte papel ao Estado.

Questões relacionadas ao tamanho do Estado e ao papel sustentável do governo também são centrais para o debate sobre o destino da região do euro. Muitos críticos da Europa, particularmente nos EUA, relacionam a crise do euro ao papel excessivo do governo, embora os países escandinavos estejam se saindo bem, mesmo com altos gastos públicos. Na França, o novo governo de centro-direita enfrenta o desafio de cumprir a promessa de fortalecer a solidariedade social enquanto reduz substancialmente o déficit orçamentário.

A disseminação de doenças infecciosas, o comércio e as finanças internacionais, as mudanças climáticas, a não proliferação nuclear, o combate ao terrorismo e a segurança na internet são apenas algumas das questões que exigem governança mundial.

Ao lado dos argumentos, em sua maior parte econômicos, sobre o papel do governo, muitos países passam por uma desilusão generalizada com a política e um distanciamento cada vez maior do governo (particularmente os governos federais). Em muitos países, o grau de participação nas eleições nacionais está em queda e novos partidos e movimentos, como o Partido Pirata, na Alemanha, e o Movimento Cinco Estrelas, na Itália, são reflexo do forte descontentamento com a governança atual.

Nos EUA, o índice de aprovação do Congresso está em seu menor patamar na história, de 14%. Muitos no país, como meu colega Bruce Katz, da Brookings Institution, acreditam que a única solução é levar uma maior parte da governança e da criação de políticas para as esferas municipal e estadual, em íntima parceria com o setor privado e a sociedade civil.

Essa abordagem, no entanto, também tem uma desvantagem. Vejamos a Espanha, onde uma demasiada descentralização fiscal nos vários governos regionais contribuiu de forma significativa para enfraquecer finanças públicas que de outra forma seriam mais sólidas.

Um problema crucial é que, apesar das realidades da tecnologia e globalização do século XXI, esse debate internacional ainda é conduzido em grande parte como se a governança e as políticas públicas fossem quase exclusivamente domínio do Estado-nação. Para adaptar o debate aos desafios que enfrentamos, vamos nos concentrar em quatro níveis de governança e identificar a distribuição mais apropriada de políticas públicas a cada um deles.

Primeiro, muitas políticas - como a infraestrutura local, zoneamento de terras, facilitação da produção industrial e treinamento, regras de trânsito e regulamentações ambientais - podem em grande parte ser determinadas na esfera local ou metropolitana e refletir as vontades do eleitorado local.

Naturalmente, a política militar e de relações exteriores deve continuar a ser guiada essencialmente no segundo nível - o Estado-nação. A maioria dos Estados-nações mantêm moedas nacionais e deve, portanto, buscar políticas econômicas e fiscais que respaldem sua união monetária. Como a crise da região do euro nos lembrou de forma incisiva, a descentralização não pode estender-se demais na esfera orçamentária para não ameaçar a sobrevivência de uma moeda comum.

O sistema nos EUA é administrável, porque os Estados americanos são em grande parte coagidos a manter orçamentos equilibrados, enquanto o governo federal responsabiliza-se pela maioria das políticas fiscais. Além disso, a regulamentação bancária e a garantia dos depósitos bancários estão centralizadas nos EUA, como deve ocorrer em uma união monetária. A região do euro finalmente admitiu isso.

A governança na esfera do Estado-nação, portanto, continua sendo imensamente importante e está intimamente ligada à soberania monetária. O problema-chave na Europa atualmente é se os países-membros da região do euro avançarão em direção a algo parecido a um Estado-nação federal. A menos que o façam, é difícil ver como a moeda comum poderá sobreviver.

Há um terceiro nível de governança, regional ou continental, que está mais avançado na União Europeia (e vem sendo testado na América Latina, África e Ásia) e pode ser muito útil. Uniões alfandegárias, áreas de livre-comércio ou mercados únicos como na Europa permitem maior mobilidade de bens e serviços, o que por sua vez pode levar a benefícios com economias de escala que as barreiras internacional não permitem. O Acordo de Schengen para uma Europa sem fronteiras é outro exemplo de governança supranacional regional.

Por último, está o nível mundial. A disseminação de doenças infecciosas, o comércio e as finanças internacionais, as mudanças climáticas, a não proliferação nuclear, o combate ao terrorismo e a segurança na internet são apenas algumas das questões que exigem ampla cooperação internacional e governança mundial.

No mundo interdependente de hoje, o debate sobre o papel das políticas públicas, o tamanho e as funções do governo e a legitimidade da tomada de decisões deveria ser conduzido tendo em mente esses níveis de governança. Frequentemente, esses níveis poderão se sobrepor, como questões de infraestrutura e energia "limpa", por exemplo, mas a democracia seria fortalecida.

Como disse Pascal Lamy, diretor da Organização Mundial do Comércio (OMC), não é apenas o "local" que precisa ser levado ao "global"; a esfera política inerentemente "local" precisa internalizar-se no contexto global ou regional. Esse é um enorme desafio para a comunicação e liderança política, mas se não for superado será muito difícil conciliar democracia e globalização. O grande desafio das próximas décadas será como conduzir o debate democrático em relação aos níveis local, nacional, continental e global e como estruturar um espaço político que reflita melhor o espaço econômico e social.

Kemal Dervis foi ministro da Economia da Turquia, administrador do Programa de Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (UNDP, na sigla em inglês) e vice-presidente do Banco Mundial. Atualmente, é vice-presidente e diretor do Programa Economia e Desenvolvimento Global da Brookings Institution. Copyright: Project Syndicate, 2012.

PÂNICO NA EUROPA E O EFEITO DOMINÓ


                                                                                                                   
É a primeira vez em minha carreira que vejo o establishment internacional, algumas vezes chamado de Nova Ordem Mundial, tendo de lidar com uma crise tão grande que sua própria sobrevivência está em risco.  Pela primeira vez, essa gente está assustada.
Não há muitos deles.  Em seu livro Superclass, o autor David Rothkopf estima que haja por volta de apenas 6.000 pessoas no topo da pirâmide do poder mundial.  São majoritariamente homens, e pelo menos um terço deles frequentou as mais prestigiosas universidades americanas.  Os outros frequentaram universidades europeias de comparável qualidade.
A crise na Europa está claramente além de qualquer coisa que esta atual geração da elite governante já vivenciou.  Na última vez que algo parecido a isso desafiou o establishment europeu, a coisa descambou na Segunda Guerra Mundial.
Durante todo o período do pós-guerra, os EUA foram a força dominante no Ocidente.  O governo americano, por meio do Plano Marshall, assinou os cheques que mantiveram os governos europeus solventes, bem como financiou grande parte da OTAN, o sistema de defesa que havia sido criado para conter a expansão da União Soviética.
Mas os EUA hoje não mais estão em posição de socorrer ninguém.  O país tem um enorme déficit comercial e seu governo federal está incorrendo em um trilionário déficit orçamentário.  A Europa já percebeu que, do ponto de vista econômico, terá agora de se virar por conta própria.  Se existem soluções para a crise econômica europeia, tais soluções terão de ser concebidas dentro da zona do euro.
Bancos em risco
Hoje, todo o sistema bancário europeu está em risco.  Os bancos, além de estarem altamente alavancados, investiram maciçamente em títulos emitidos por governos que hoje estão tecnicamente insolventes.  Não há nenhuma possibilidade de estes títulos serem quitados algum dia.  Eles não foram concebidos para ser quitados.  Eles foram concebidos para manter os pagadores de impostos de todos os países europeus em estado de permanente servidão em relação ao sistema bancário.
No entanto, em uma completa e inesperada reviravolta, os bancos se encontram hoje cada vez mais dependentes dos governos.  Os governos são hoje os emprestadores de penúltima instância para os bancos comerciais.  O banco central, é claro, é o emprestador de última instância.  Só que, até o momento, o Banco Central Europeu vem assumindo uma posição neutra.  Ele não quer tomar nenhuma medida para socorrer Grécia, Espanha ou Itália.
Os governos dos PIIGS, que venderam títulos da sua dívida para os bancos dos países ricos da Europa, estão tecnicamente insolventes.  Quando a Grécia der o calote — e ela fará isso —, alguns bancos dos países ricos da Europa terão enormes prejuízos.  Quando a Espanha der o calote — e ela fará isso —, os prejuízos serão ainda maiores.  Quando a Itália der o calote — e ela fará isso —, todo o sistema bancário europeu entrará em colapso. 
Apenas duas coisas podem hoje salvar o sistema bancário europeu: o Banco Central Europeu, que tem o poder de criar dinheiro do nada, e os pagadores de impostos da Alemanha, cujos líderes nacionais são resolutos em seu desejo de expandir o poder da zona do euro por toda a Europa.  Estes políticos estão dispostos a utilizar o dinheiro dos cidadãos alemães com o intuito de ampliar esta consolidação.
Uma corrente de dívidas
O problema é que os governos dos países ricos da Europa não têm dinheiro para servir de emprestadores à Grécia, à Espanha e à Itália.  Estes três países estão hoje tomando dinheiro emprestado a juros até então nunca vistos na Europa em períodos de paz.  A esperança atual é que os governos dos países ricos intervenham e emprestem dinheiro para o governo grego.  O problema é que todos os governos dos países ricos também estão tendo de lidar com a responsabilidade adicional de ser os emprestadores de penúltima instância para os grandes bancos comerciais dentro de suas próprias fronteiras.
Quem irá emprestar dinheiro para os governos dos países ricos da Europa para que estes socorram os governos do sul da Europa?  Quais emprestadores acham que isso seria uma boa ideia?  Às taxas de juros atuais, não muitos.  É por isso que os juros subirão.  Porém, quando as taxas de juros de longo prazo subirem, tal fenômeno irá reduzir o valor presente de todos os títulos em posse dos emprestadores.
Portanto, de um lado, os investidores terão de arrumar dinheiro para emprestar para os governos, e os governos necessitam deste dinheiro para recapitalizar os bancos dentro de suas fronteiras.  Isso nos leva ao próximo problema: para os emprestadores emprestarem dinheiro para um governo, eles têm de tirar esse dinheiro de suas contas bancárias.  O que irá acontecer se seus bancos quebrarem?  Quem irá emprestar dinheiro para os governos?
Sendo assim, nesta corrente de dívidas, de dinheiro fiduciário e crédito, o Banco Central Europeu é o emprestador de última instância.  Ele é o emprestador de última instância porque possui a autoridade legal de criar dinheiro do nada.  Ele pode comprar títulos emitidos pelos governos e pode também emprestar dinheiro aos bancos para que os bancos subsequentemente comprem títulos dos governos.
Ajuste de contas
Todo o sistema político que conhecemos como União Europeia é dependente de um sistema bancário de reservas fracionárias que se expandiu de forma exagerada e que hoje enfrenta um juízo final.  Na realidade, enfrenta dois juízos finais.
Primeiro, haverá um juízo final nos PIIGS quando os correntistas sacarem seu dinheiro.  O segundo juízo final será imposto pelos governos insolventes que já tomaram emprestado centenas de bilhões de euros dos bancos.
A iminência de uma corrida bancária ameaça a capacidade do governo grego de continuar tomando dinheiro emprestado de qualquer pessoa ou entidade.  O governo grego depende do sistema bancário grego para coletar impostos.  Se o sistema bancário grego quebrar, o governo grego quebra.
Neste arranjo, somente o Banco Central Europeu possui a autoridade para salvar o sistema.  Qualquer outra potencial fonte de euros depende em última instância da solvência do sistema bancário europeu.  Se o sistema bancário europeu quebrar, não haverá emprestadores.  E são exatamente os bancos que estão em risco atualmente.
É por isso que todo e qualquer sistema bancário de reservas fracionárias depende, em última instância, do monopólio concedido pelo governo a um banco central.  O banco central é, acima de tudo, o garantidor da solvência dos grandes bancos.  O banco central é o agente econômico dos grandes bancos comerciais.  Estes estão hoje na iminência de quebrar.  O alto escalão destes bancos não possui nenhum conhecimento básico de economia.  Eles emprestaram dinheiro para os PIIGS.
Neste cenário, a única maneira de salvar o sistema é se arriscando a destruí-lo.  A única maneira de salvar o euro é se arriscando a destruí-lo.  E é assim porque há apenas duas maneiras de se salvar os grandes bancos comerciais.  A primeira maneira é pela hiperinflação.  Isso irá permitir que os bancos mantenham suas portas abertas.  Um acentuado aumento da quantidade de dinheiro na economia fará com que os tomadores de empréstimo consigam quitar suas dívidas vendendo um punhado de ativos, o que lhes dará dinheiro suficiente para quitar seus empréstimos.  Mas tudo isso será feito com euros que já não valerão nada.
A segunda maneira de salvar os bancos, que é a que o Banco Central Europeu está tentando fazer, é evitando a hiperinflação mas inflacionando a oferta monetária somente até um ponto que permita que os maiores bancos possam ser salvos.  Isso ocorreria por meio de empréstimos a juros baixos concedidos aos bancos pelo Banco Central Europeu.  Os bancos, por sua vez, para serem capazes de quitar este empréstimo recebido, terão de emprestar este dinheiro a juros maiores — mas será difícil encontrar tomadores de empréstimo ainda solventes e será difícil encontrar muitas pessoas dispostas a se endividar.
Se o Banco Central Europeu adotar esta segunda abordagem, isso irá levar o continente a uma depressão.  O BCE inflacionou.  Os bancos comerciais emprestaram dinheiro para governos insolventes.  Estes governos irão dar o calote caso haja uma recessão.  Porém, caso se negue a inflacionar ainda mais a oferta monetária, o Banco Central Europeu produzirá uma recessão.  Não há saída.  O boom que o BCE gerou na Europa durante os anos de Greenspan na presidência do Fed estourou nos bancos europeus, exatamente como o boom nos EUA estourou nos bancos americanos.
Não há uma agência governamental responsável por garantir os depósitos do sistema bancário europeu.  Não há nenhum governo que possua os ativos ou a autoridade legal para emprestar para um ou para todos os governos da região.  Não há um sistema fiscal comum, o que significa que todos os governos podem incorrer em vultosos déficits orçamentários.  Sendo assim, em tempos normais, os governos estão em constante concorrência entre si para conseguir dinheiro emprestado para financiar seus déficits.
Portanto, o sistema foi forçado até seu limite.  Os poucos emprestadores remanescentes que ainda possuem capital e que ainda têm dinheiro suficiente em seus bancos para emprestar para governos insolventes estão hoje se recusando a conceder estes empréstimos.  É por isso que a Espanha está pagando 7,5% para convencer os emprestadores a lhe darem dinheiro.  Emprestadores que caírem nessa irão terminar como os tolos que emprestaram dinheiro para o governo grego antes de 2010.  Eles verão o valor de seus papeis ser dizimado quando os juros espanhóis subirem para os dois dígitos, o que ocorrerá a menos que o Banco Central Europeu intervenha, imprima dinheiro e empreste para o governo espanhol.
Não há dispositivo de proteção
Os líderes do establishment europeu nunca tiveram de lidar com uma crise em escala semelhante a esta.  Eles falam incessantemente sobre a necessidade de se criar dispositivos de proteção.
Mas que tipo de dispositivo de proteção seria capaz de impedir que o calote de um governo se torne um calote de outro governo?  Que dispositivo de proteção pode haver para um grande banco multinacional que acabou de perder metade do valor dos títulos que havia comprado a uma taxa de juros de 3%, agora que os juros foram para 7,5%?  Sempre que a taxa de juros dobra, o valor de mercado dos títulos cai 50%, no mínimo.
Não há dispositivo de proteção.  O sistema financeiro europeu é todo interligado pelo euro.  Todo mundo utiliza a mesma moeda em 17 países.  Todo mundo depende do mesmo Banco Central, e este banco não está exercendo liderança.  O presidente do banco segue dizendo que os governos têm de lidar com os problemas e assumir responsabilidades.  Sempre que ele diz isso, lembro-me de que Ben Bernanke continuamente diz a mesma coisa ao Congresso americano.
Os presidentes dos dois maiores bancos centrais do mundo estão reclamando que os políticos têm de assumir a responsabilidade pela resolução da crise.  Mas isso é exatamente o que os políticos não querem fazer.  Os políticos sempre entenderam que o banco central os socorreria em caso de crise, simplesmente criando dinheiro e comprando os títulos da dívida de seus governos.  Esta sempre foi a justificativa pública para a existência de bancos centrais.
Mas os políticos parecem cegos quanto ao real motivo da existência de bancos centrais, a saber: socorrer os grandes bancos comerciais sob sua jurisdição.  E o Banco Central Europeu tem de lidar com um enorme problema: ele tem sob sua jurisdição os maiores bancos de todos os países da zona do euro.  Ele tem de intervir para salvar qualquer grande banco sob sua jurisdição, pois, se não o fizer, haverá corridas bancárias naquele país.
Uma corrida bancária
Correntistas europeus podem ir até seus bancos e transferir seu dinheiro para um banco que esteja em outro país.  Normalmente, eles transferem para um banco alemão.  Legalmente, o banco recebedor pode se recusar a aceitar este novo depósito; mas qual banco ousaria não aceitar novos depósitos?  Qualquer banco que dissesse não mais estar aceitando depósitos de algum outro banco iria enviar para a mídia um sinal de que este outro banco está no limiar da insolvência.  E isso é a última coisa que qualquer banco de um país rico da Europa quer fazer com qualquer banco da Grécia, da Espanha ou da Itália.
O Banco Central Europeu está sentado sobre um barril de pólvora.  O estopim já foi aceso.  Este estopim está conectado ao sistema bancário grego.  Se o sistema bancário grego explodir — o que, na prática, significa implodir —, tal fenômeno irá acender outro estopim.  O outro estopim leva à Espanha.  Posso estar errado.  Pode haver dois estopins, um levando à Espanha e o outro, à Itália.
Não há dispositivo de proteção.  O único dispositivo de proteção seria os bancos dos países ricos se recusarem a aceitar novos depósitos de pessoas que estão fechando suas contas em bancos do sul da Europa.  Mas se as corridas bancárias na Grécia não forem interrompidas, o governo grego irá dar o calote em sua dívida e irá sair da zona do euro.  Ele não terá escolha.  Se seus bancos estão quebrados, como ele conseguirá financiar sua dívida?  Como ele irá coletar impostos?
Já dá pra ver o que está em jogo aqui.  Uma corrida bancária em pequena escala vem ocorrendo há pelo menos um ano na Grécia, e ela agora ameaça se tornar uma corrida bancária em escala total.  Os bancos dos países ricos podem legalmente se recusar a aceitar novos depósitos em euro dos correntistas que estão saindo da Grécia.  Mas todos eles teriam de fazer isso de uma só vez.  Se apenas um ou dois grandes bancos dos países ricos se recusarem a aceitar novos depósitos de gregos, isto irá enviar um sinal para todos os outros gregos: "É melhor vocês tirarem seu dinheiro dos bancos, e rápido!  Coloque-o em um banco de um país rico antes que eles comecem a recusar novos depósitos".  A corrida bancária irá se intensificar.
Como nem todos os bancos estão sob as mesmas leis bancárias, e como nenhuma agência reguladora pode lhes dizer o que fazer, a Europa possui um sistema no qual os correntistas dos PIIGS podem livremente gerar maciças corridas bancárias contra os bancos de seus próprios países, deixando-os na lona.
Não há dispositivo de proteção contra isso.  As corridas bancárias já começaram na Grécia.  Bancos fora da zona do euro podem se recusar a aceitar novos depósitos, mas os bancos dentro da zona do euro não podem fazer isso sem ameaçar a solvência de todo o sistema bancário.  Adicionalmente, se eles não criarem um dispositivo de proteção, a quebra de bancos da Grécia, da Espanha e da Itália levará seus respectivos governos à insolvência.  E isso, por sua vez, gerará volumosos prejuízos para os bancos dos países ricos da Europa.  Tudo está interligado.
Você não encontra uma discussão aprofundada sobre isso na grande mídia, e por uma boa razão: a grande mídia teme ser acusada de provocar uma corrida bancária na Grécia.  Todo mundo sabe que uma corrida bancária grega já começou, mas isso não é notícia de capa nos jornais.  Certamente não é uma história a ser coberta nos jornais televisivos.  Nenhuma grande rede de televisão irá falar sobre a corrida bancária grega enquanto esta ainda não estiver em seu estágio terminal.
Logo, as pessoas que gerenciam a nova ordem europeia apenas jazem quietas, impotentes e completamente dependentes das decisões tomadas pelos correntistas dos bancos gregos.  A qualquer momento, uma onda de pânico pode se espalhar por toda a Grécia, e um grande número de correntistas irá fazer fila em frente aos bancos para retirar seu dinheiro.  Se eles sacarem dinheiro vivo, isso irá quebrar o banco local, o qual terá de vender ativos para comprar moeda do Banco Central Europeu a fim de entregar o dinheiro para seus correntistas.  Este tipo de corrida bancária é ruim para um determinado banco, mas tende a não gerar grandes efeitos sobre todo o sistema bancário porque estas pessoas irão inevitavelmente gastarem o dinheiro que sacaram; e, ao fazerem isso, as empresas que receberem este dinheiro irão redepositá-lo em seus bancos.  Sendo assim, uma corrida bancária com o objetivo de sacar dinheiro vivo não representa uma enorme ameaça para o sistema bancário grego como um todo.
No entanto, pode também haver uma corrida bancária na forma de transferência eletrônica de dinheiro para fora do país.  E é justamente esta ameaça que todos os bancos gregos estão enfrentando atualmente.  Neste caso, quando os euros saem do sistema bancário grego, eles não voltam a ser depositados no sistema bancário grego.  Eles vão para o sistema bancário de outro país.
Estamos testemunhando hoje o colapso do sistema bancário grego.  A menos que o Banco Central Europeu intervenha novamente, não haverá um sistema bancário grego até o final deste ano.  Todos os bancos estarão quebrados.
E não há nada que os eurocratas possam fazer a este respeito.  A única agência que tem o poder de interromper todo este processo é o Banco Central Europeu, que pode fazer o que quiser.  Em última instância, ele pode emprestar dinheiro aos bancos gregos aceitando em troca qualquer colateral que estes oferecerem — no caso, majoritariamente títulos emitidos pelo governo grego.
Conclusão
Angela Merkel pode espernear, gritar e se contorcer até ficar azul.  O fato é que, em última instância, ela não tem poder algum sobre o Banco Central Europeu.  Em última instância, nenhum político tem poder sobre a instituição.  E nenhum político quer realmente ter poder sobre o BCE.  E por que não?  Porque tal político inevitavelmente seria o responsável por arrumar o dinheiro que o BCE supostamente iria imprimir, mas foi impedido por este político.
É por isso que o BCE irá inflacionar.  O presidente da instituição pode falar o quanto quiser sobre a necessidade de políticos assumirem suas responsabilidades e sustentarem o atual arranjo do euro; porém, no final, ele será o sustentáculo do sistema.  Ele é o sujeito que detém o controle da impressora de dinheiro.  Ele é a única pessoa, junto com seus colegas, que está em posição de manter o sistema solvente.
Não há dispositivo de proteção.  Há apenas a capacidade do Banco Central Europeu de imprimir dinheiro e de emprestá-lo para os bancos comerciais ou diretamente para os governos.  Não importa quais são as regras ou regulamentos vigentes que supostamente proíbem isso.  A coisa terá de ser feita.
No meio de um incêndio, ninguém no poder irá apontar o dedo para o Banco Central Europeu quando este intervir com o intuito de socorrer um governo que esteja prestes a dar o calote em suas dívidas.  O motivo é claro, ou ao menos para mim parece claro: nenhum político quer ser o responsável por arrumar o dinheiro necessário para socorrer os grandes bancos de seu país — todos os quais estão ameaçados de insolvência por causa dos calotes dos governos da Grécia e da Espanha —, pois isto irá produzir um efeito dominó causado por todos os governos dos PIIGS.


Gary North , ex-membro adjunto do Mises Institute, é o autor de vários livros sobre economia, ética e história. Visite seuwebsite

LUCRO QUE SALVA VIDAS


A notícia divulgada semana passada foi alvissareira para milhões de pessoas. A FDA aprovou o Truvada, pílula para ajudar a prevenir o HIV em alguns grupos de risco. Segundo a agência americana, o remédio pode reduzir em até 73% o risco de infecções causadas pelo vírus da Aids. Trata-se de mais uma importante conquista do capitalismo.

O laboratório responsável pela conquista foi o Gilead Sciences, fundado em 1987 na Califórnia. Nestes 25 anos, a empresa apresentou taxas aceleradas de crescimento, sempre em busca do lucro. Graças a isso, seu faturamento ultrapassou US$ 8 bilhões em 2011, permitindo um investimento acima de US$ 1 bilhão em pesquisa e desenvolvimento no ano.

O mercado farmacêutico é bastante competitivo. Várias empresas precisam concorrer para atender melhor as demandas dos consumidores. É este mecanismo de incentivos que garante uma incessante busca por novidades desejadas pelos pacientes de inúmeros tipos de doenças e transtornos.

Claro que há o outro lado da moeda: grandes laboratórios pressionando médicos e fazendo campanhas para estimular o uso excessivo de medicamentos. Qualquer desvio do padrão comportamental virou motivo para diagnósticos precipitados. Vejo estarrecido o dia em que a Anvisa vai nos obrigar a tomar antidepressivos. João Ubaldo Ribeiro escreveu um excelente artigo sobre o tema neste jornal há alguns dias.

Mas compare este risco de abuso com a quantidade de vidas salvas graças aos avanços medicinais, com a redução do sofrimento dos doentes, com os sorrisos que retornam aos lábios idosos quando o Viagra devolve sua virilidade. Tanto alívio e tantas vidas salvas não têm preço. Ou melhor: têm sim, e custam caro!

Eis onde entra o capitalismo. Ainda presos na era medieval, muitos criticam o lucro como motivador das pessoas. Gostariam que a humanidade fosse movida somente pelo altruísmo. São românticos bem-intencionados. De boas intenções, porém, o inferno está cheio.

Os países socialistas, que seguiram esta receita, acabaram na miséria e escravidão, praticamente sem nenhuma contribuição relevante à medicina. A despeito da propaganda, o fato é que a medicina cubana é um lixo, principalmente para os pobres (todos aqueles distantes do poder). A União Soviética colocou o Sputinik em órbita, mas faltava papel higiênico e nenhum remédio importante veio deste regime.

Enquanto isso, laboratórios capitalistas em busca do lucro fornecem mais e melhores remédios no mercado. Pfizer, Merck, Eli Lilly, Roche, Sanofi, Novartis, Bayer, Schering-Plough, Astrazeneca e tantos outros, investindo bilhões na busca de medicamentos inovadores. Há quem acenda velas para santos. Eu agradeço a existência destes laboratórios em busca de rentabilidade.

Noam Chomsky, adorado pela esquerda, possui um livro cujo título já expõe a falsa dicotomia tão disseminada entre lucro e vidas humanas. Chama-se “O Lucro ou as Pessoas?”, e é uma crítica ao “neoliberalismo”, este fantasma inexistente na América Latina, mas ao mesmo tempo culpado por todos os males da região.

Chomsky, que já defendeu a candidatura de Heloísa Helena e foi citado com forte empolgação por Hugo Chávez na ONU, é um socialista. Seria o caso de perguntar ao famoso intelectual quantas vidas o regime socialista salvou, já que sabemos quantas ele ceifou: algo na casa dos 100 milhões.

Toda a retórica de nossos “intelectuais” contra o capitalismo não serve para salvar uma única vida. Por outro lado, as dezenas de bilhões de dólares que os laboratórios capitalistas destinam para pesquisas todo ano já salvaram milhões de vidas. E vão continuar salvando mais ainda, se os socialistas não criarem obstáculos demais.

Esta é a parte difícil. O sensacionalismo dos demagogos representa grande ameaça ao progresso. Sempre pregando maiores impostos (o que reduz a quantidade de recursos disponível para novos investimentos), ou então a quebra de patentes para reduzir os preços dos medicamentos (o que gera insegurança no setor e também reduz investimentos), a esquerda costuma agir como Maquiavel às avessas: para salvar dez vidas hoje, condena cem à morte amanhã.

No próprio caso da Aids, a esquerda insistiu que era preconceito falar em “grupo de risco”. Como o vírus não liga para a sensibilidade politicamente correta, milhões de pessoas podem ter contraído a doença desnecessariamente, por falta de maior precaução. A praga do politicamente correto corrói até a ciência, que não possui ideologia.

O mundo seria um lugar muito melhor se tivesse menos hipocrisia e mais laboratórios em busca de lucro. Por: Rodrigo Constantino, O GLOBO


terça-feira, 24 de julho de 2012

A FALÁCIA DA UTOPIA


Poucas coisas são tão perigosas para a liberdade como uma mentalidade utópica. Os utópicos não se caracterizam simplesmente por erros pontuais de raciocínio lógico; eles adotam todo um método mental que de uma forma misteriosa é indiferente à verdade. De certa forma, a utopia pode ser um substituto laico da religião para aqueles inconformados e incapazes de lidar com as limitações da vida imperfeita.

Em seu livro The Uses of Pessimism, Roger Scruton dedica um capítulo para derrubar a falácia da utopia e mostrar como ela está a um passo do totalitarismo. Parte da explicação para movimentos utópicos seria, segundo o autor, um resíduo de heresia religiosa em um mundo sem religião, ou seja, a expectativa de criar um paraíso terrestre, colocando um fim nas imperfeições do mundo.

Os utópicos podem ignorar a aprendizagem com experiências passadas e até o bom senso, abraçando um projeto absurdo e impraticável. Nada pode refutar uma utopia, e nisso reside seu fascínio. As milhões de vidas perdidas ou escravizadas nas tentativas de tornar a utopia realidade não negam a utopia; apenas provam que maquinações perversas ficaram no caminho como obstáculos indesejados. É preciso redobrar o esforço.

É exatamente com esta postura que socialistas podem ignorar todas as desgraças causadas em nome de sua utopia. A União Soviética nunca foi comunista, eles alegam. Era um “socialismo real”, ou pior, um “capitalismo de estado” (assim conseguem jogar a culpa para o lado do capitalismo). O fim, sendo inviável, jamais chega. A utopia está, desta maneira, totalmente imune a qualquer tipo de refutação.

Utopias são visões de um futuro em que todos os conflitos e problemas da vida humana são resolvidos completamente. As pessoas viverão em harmonia, felizes. O desejo dos utópicos é por uma “solução final”, não para alguns problemas, mas para todos os problemas. Tudo aquilo que cria conflitos e tensões será eliminado. A raça será pura, não haverá mais classes ou hierarquia, o mundo será um lugar de “liberdade, igualdade e fraternidade”. Cada utopia tem sua versão.

Mas o ponto importante das utopias, como frisa Scruton, é o fato de que elas não podem se concretizar. No fundo, talvez de forma subliminar, os utópicos sabem disso, e por isso se negam a descrever em maiores detalhes e de forma crítica o que exatamente eles têm em mente. As utopias acabam empacotadas de forma vaga, ainda que com a embalagem “científica”.

Karl Marx, que criticava o socialismo utópico e considerava o seu científico, jamais foi capaz de entrar em detalhes sobre o funcionamento de seu modelo. Todos poderiam atender a seus múltiplos desejos, caçar pela manhã, pescar na parte da tarde e até virar crítico literário de noite, pois não haveria mais divisão de trabalho nem propriedade privada. Como exatamente fazer isso sem tais mecanismos não vem ao caso. Quem produz as ferramentas necessárias para a caça e a pesca? Marx não responde. Talvez elas brotassem do solo.

Esta meta inalcançável serve como poderosa arma para negar tudo aquilo que é real. Se eu defendo algo que não pode existir, que jamais existiu e que sequer pode ser refutado, então coloco-me em uma Torre de Marfim e, do alto de minha utopia, passo a atirar em todos os modelos atuais. Qualquer defeito, qualquer problema existente passa a ser indício de que o modelo vigente fracassou. A utopia serve como uma condenação abstrata de tudo que nos cerca, e justifica a postura intransigente e violenta do utópico.

O ideal dos utópicos jamais é refutado, jamais é testado. Ele permanece para sempre como um horizonte distante, imaculado, oferecendo um julgamento rigoroso de tudo que existe, como um sol que não pode ser observado mas que cria uma sombra em tudo aquilo que ele lança seu brilho. E as sombras são os inimigos da pureza do sol, que precisam ser eliminados do caminho para que venha a luz.

Utópicos costumam aderir facilmente às teorias conspiratórias e simplistas, que dividem de forma maniqueísta o mundo entre bom e mau. Todos aqueles que recusam a utopia são seus inimigos. Eles não podem discordar por convicção; devem ser traidores, opressores ou, na melhor das hipóteses, alienados.

Foi assim que os jacobinos encararam todos que criticavam a Revolução Francesa, como “inimigos do povo”. Hugo Chávez, em busca de seu “socialismo do século 21”, adota a mesma tática.

Os inimigos variam de acordo com a utopia. Para os nazistas eram os judeus; para os comunistas, os burgueses; para os anarquistas, os políticos. O importante é ter um bode expiatório, de preferência bem definido, aquele que impede a realização da utopia. O crime, a violência e a destruição são justificáveis como meios para um sonho tão puro e lindo como o utópico.

A revolta e o desejo de vingança contra a realidade alimentam a utopia revolucionária. Esta sede destrutiva costuma derivar de um profundo ressentimento direcionado àqueles que, de alguma forma, conseguem contemporizar com as restrições da vida. O caminho do totalitarismo está aberto se os utópicos conseguem chegar ao poder. Por: Rodrigo Constantino, para a revista VOTO

O DIREITO DE RESISTÊNCIA À TIRANIA



Os que foram para a luta armada no Brasil agiram com legitimidade moral? A resposta afirmativa a essa pergunta não dissolve a anistia. Já a resposta negativa desqualifica muitas das pretensões de seus militantes, seja no plano político, seja no das indenizações.

Em 1966, o regime vigente contava dois anos, tinha amplo apoio popular e da mídia, e não dava sinais de esmorecimento. O primeiro sangue correu no dia 25 de junho daquele ano. Foi um atentado terrorista: a explosão de bomba no aeroporto de Guararapes, no Recife, onde deveria desembarcar o general Costa e Silva. Dois mortos, uma dúzia de mutilados e feridos. 
A tragédia só não foi maior porque uma pane no avião obrigara o general a se deslocar por via terrestre e o anúncio dessa mudança fizera com que a maior parte das pessoas já houvesse deixado o aeroporto no momento da explosão. Andassem as coisas conforme planejara a Ação Popular, teria ocorrido ali a maior chacina da história republicana. Com a indiscriminada impiedade do terrorismo, começou a luta armada no Brasil. Pois bem, onde era ensinado o fabrico de bombas em nosso país? Não havia, aqui, qualquer experiência com a produção de artefatos para ações terroristas. As escolas de engenharia e os engenheiros não estavam para essas coisas. O leitor tem uma chance de apontar no Google Earth (antigamente se diria no "mapa-múndi") o lugar onde o construtor do artefato aprendeu as técnicas para sua montagem. Se colocou o dedo na ilha de Cuba, acertou. Foi lá, naquele decantado paraíso da autodeterminação dos povos, que o ex-padre Alípio de Freitas (indenizado pela Comissão de Anistia com mais de um milhão de reais) recebeu instrução e treinamento para ser terrorista no Brasil. Se Fidel não se importava com quanto sangue cubano fazia correr, não haveria de ser com sangue brasileiro que se iria preocupar. E assim andou a resistência armada ao regime de 1964: mais de uma centena de vítimas; assaltos a bancos e quartéis, com morte de sentinelas, vigilantes e clientes; execuções de companheiros, sequestros e "justiçamento" de adversários. Executaram um marinheiro inglês apenas por ser inglês. Por ser norte-americano, mataram um capitão na frente da mulher e dos filhos.

Tendo presente o caráter efetivamente autoritário do regime então vigente e o rigor da repressão às organizações (cerca de uma centena) que partiram para a luta armada, a pergunta que se impõe é a seguinte: os que militaram nesses grupos e cometeram tais crimes agiram sob a proteção moral do direito de resistência à tirania? Tal alegação é apresentada insistentemente como forma de legitimar os atos cometidos

É importante esmiuçar um pouco essa questão. Se é verdade que a sã filosofia, em nome do bem comum e da dignidade da pessoa humana, sempre reconheceu a existência de um direito de resistência à tirania, também é verdade que a mesma sã filosofia impõe condições para legitimar o uso da violência com esse fim. Ou seja, resistir à tirania é um direito. Empregar a violência para isso implica certas condições e os militantes da luta armada não se enquadravam em muitas delas, a saber: a) não estavam esgotados todos os meios pacíficos para reverter a situação; b) havia uma clara desproporcionalidade entre os meios e os fins (as ações violentas não conduziam ao objetivo proclamado); c) como o objeto de toda insurreição é instaurar um novo poder, a nova ordem pretendida (implantação de um regime comunista no Brasil) era sabidamente muito pior do que o regime que enfrentavam; d) inexistia a certeza moral de que os sofrimentos causados pela insurreição não seriam (como de fato não foram) superiores aos benefícios esperados das ações violentas. Porque tudo isso foi percebido com clareza pela sociedade brasileira, não houve qualquer apoio da opinião pública aos atos praticados pelos guerrilheiros. O desejo de acender, no estilo cubano ou chinês, focos revolucionários nos campos e nas cidades, fracassou redondamente.

Ao contrário dos intelectuais fanatizados por ideologias, o povo, o povo simples, sabe que não se pega em armas e não se parte para a violência em má companhia, por uma causa ruim. POR PERCIVAL PUGGINA

MENSALEIROS NO TRIBUNAL



Se o Brasil fosse sério, Lula teria sido processado por pressionar o STF

Depois de longa espera, finalmente o Supremo Tribunal Federal vai julgar o processo do Mensalão. A demora é só mais uma demonstração de quão ineficiente é o Judiciário. A lentidão é a maior característica do poder que devia ser célere, eficiente e, principalmente, justo. E não é por falta de recursos. Não. Basta observar as folhas de pagamento que, com muita dificuldade e depois de muita pressão do Conselho Nacional de Justiça, estão sendo divulgadas.

Os poderes Executivo e Legislativo estão maculados pela corrupção até a medula. Não há dia sem que apareça uma denúncia sobre o desvio de recursos públicos ou ao favorecimento de interesses privados. Os olhos do cidadão acabam, em um movimento natural, se dirigindo para o Judiciário. É um gesto de desespero e de impotência. Porém....

Não há otimismo que consiga reverter este quadro, ao menos à curto prazo. Vivemos um dos momentos mais difíceis da história republicana. Daí a enorme responsabilidade do STF no julgamento do Mensalão. Em 2005 fomos bombardeados por reportagens e entrevistas sobre o caso. O mais triste para os valores republicanos foram as sessões da CPMI dos Correios. Muitos depoimentos foram transmitidos ao vivo. Foi estarrecedor ouvir depoentes que tratavam de desvios de recursos públicos, de pagamento de campanhas eleitorais (como a presidencial de 2002) e da compra de apoio político no Congresso, com enorme tranquilidade, como se toda aquela podridão fizesse parte do jogo político em qualquer democracia. E quem agisse de forma distinta não passaria de um ingênuo. Em resumo, a ideia propagada pelos depoentes era de que política sempre foi assim.

Contudo, no decorrer dos trabalhos da CPMI, o clamor da opinião pública foi crescendo. A crise política se instalou. Alguns parlamentares do PT, envergonhados com a revelação do esquema de corrupção, saíram do partido. O presidente Lula foi à televisão e pediu, em rede nacional, desculpas pela ação dos dirigentes partidários. Disse desconhecer que, nas ante-salas do Palácio do Planalto, tinha sido planejado o que ficou conhecido como Mensalão. Falou até que tinha sido traído. Não disse por quem e nem como.

O relatório final da CPMI pedindo o indiciamento dos responsáveis foi encaminhado à Procuradoria Geral da República. A aprovação foi comemorada. Em sinal de triunfo, o relator foi carregado pelos colegas. Para a oposição, o presidente Lula estava nas cordas, à beira de um nocaute. Caberia, disse, na época, um dos seus líderes, levá-lo sangrando até o ano seguinte para, então, vencê-lo facilmente nas urnas. Abrir um processo para apurar o crime de responsabilidade colocaria em risco o país. Estranha argumentação mas serviu para justificar a inépcia oposicionista, a falta de brio republicano e uma irresponsabilidade que só a história poderá avaliar.

Em 2007 o STF aceitou a denúncia. Foi uma sessão bizarra. Advogados se sucediam na tribuna defendendo seus clientes, enquanto os ministros bocejavam, consultavam seus computadores, conversavam, riam e ironizavam seus colegas. Dois deles – Ricardo Lewandovsky e Carmen Lúcia – chegaram a trocar mensagens especulando sobre os votos dos ministros e tratando outros por apelidos. Eros Grau foi chamado de "Cupido" e Ellen Gracie de "Professora". O ministro Cupido, ou melhor, Eros Grau, chegou ao ponto de mandar um bilhetinho para um advogado, um velho amigo, e que estava defendendo um dos indiciados. Teve advogado que falou por tempo superior ao regimental e, claro, como não podia deixar de ser, fomos quase sufocados pelo latinório vazio, a erudição postiça, tão típica dos nossos bacharéis. Em certos momentos, a sessão lembrou um animado piquenique. Pena, que ao invés de um encontro de amigos, o recinto era da nossa Suprema Corte.

Apesar do clima descontraído, a denúncia foi aceita. E o processo se arrastou por um lustro. Deve ser registrado que, inicialmente, eram quarenta acusados e foram utilizados todos os mecanismos – que são legais – protelatórios. No final do ano passado, o ministro Joaquim Barbosa entregou ao presidente do STF o processo. De acordo com o regimento foi designado um ministro revisor. A escolha recaiu em Ricardo Lewandovski, o mesmo que, na noite da aceitação da denúncia, em 2007, foi visto e ouvido – principalmente ouvido – ao celular, em um restaurante de Brasília, falando nervosamente que a tendência dos ministros era "amaciar para José Dirceu", um dos acusados. Mas que, continuou o advogado de São Bernardo, a pressão da mídia teria impedido o "amaciamento" (curioso é que nessas horas a linguagem é bem popular e o idioma de Virgílio é esquecido). O mesmo Lewandowski ficou seis meses com o processo. Foi uma das mais longas revisões da história. Argumentou que o processo era muito longo. Mas isto não impediu que realizasse diversas viagens pelo Brasil e para o exterior durante este período.

Depois de muita pressão – e foi pressão mesmo - , o ministro revisor entregou seu relatório. Só que, dias antes, o presidente Ayres Brito reuniu os ministros e estabeleceu o calendário do julgamento. Registre-se que Lewandovski não compareceu à reunião, demonstrando claramente sua insatisfação. O ápice das manobras de coação da Corte foram as reuniões de Lula com ministros ou prepostos de ministros. Se o Brasil fosse um país sério, o ex-presidente – que agora nega o que tinha declarado em 2005 sobre o Mensalão - teria sido processado. Mas, diria o otimista, ao menos, teremos o julgamento público do maior escândalo de corrupção da história recente.

MARCO ANTONIO VILLA é professor de História da Universidade Federal de São Carlos (SP).


segunda-feira, 23 de julho de 2012

A BOA NOTÍCIA, UM ALERTA E OS IMPOSTOS


Traz uma boa notícia o Índice de Economia Subterrânea (IES), estudo que estima os valores de atividades deliberadamente não declaradas aos poderes públicos com o objetivo de sonegar impostos e das de quem se encontra na informalidade por força da tributação e da burocracia excessivas. Em 2011 ele representou 16,8% do produto interno bruto (PIB), o que corresponde a R$ 695,7 bilhões.

A notícia é muito boa porque, no ano anterior, o tamanho estimado do IES foi de 17,7% do PIB, ou R$ 715,1 bilhões. O estudo sobre o IES vem sendo realizado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, em conjunto com o Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco) desde 2003, quando a economia subterrânea foi estimada em 21% do PIB.

Entre 2004 e 2006 o tamanho estimado dessa economia ficou em torno de 20%. Em 2007 baixou para 19,5%, como resultado do aumento do trabalho formal. A situação econômica do País, o crescimento da classe C e as boas perspectivas para o futuro comprovavam a tendência de formalização do emprego. Em 2008 e 2009, o IES foi de 18,7% e 18,5%, respectivamente, o que seguiu confirmando a tendência de redução das atividades que correm à margem da economia formal.

Aí vem o alerta. Chegar aos níveis dos países desenvolvidos - onde o IES fica ao redor de 10% - parece distante, apesar do número de 2011 (16,8%). É que a tendência de queda pode estar chegando temporariamente ao limite no Brasil, em razão da perda do dinamismo da economia e da redução do ritmo de aumento do crédito.

A perda do dinamismo da economia traduz-se pela perspectiva de um PIB menor. Isso tende a afetar o mercado de trabalho, o que agrava o endividamento das famílias e dificulta o crédito. Passou o momento de deslumbramento com o consumo da nova classe média, ao se perceber que tudo dependia de numerosas prestações a serem honradas.

Ademais da desaceleração da economia, a alta carga tributária também é fator de informalização das atividades no País. O atual sistema tributário eleva o custo da produção da indústria, prejudica a competitividade interna e externa, desestimula os investimentos, diminui o consumo, aumenta o desemprego, estimula a sonegação fiscal e, como resultado geral, contribui para a informalidade e a economia subterrânea.

Comparando carga tributária e PIB per capita, o Brasil fica muito mal colocado, segundo dados do Banco Mundial. Os tributos no País (36% do PIB) estão no mesmo nível da Rússia, Irlanda e Austrália e superam Estados Unidos e Coreia do Sul. Mas esses países têm PIB per capita maior (de três a cinco vezes) que o nosso. Por outro lado, nossos impostos superam os de países como China e Índia, além de Argentina e México, que têm PIB per capita mais semelhante ao brasileiro e conosco competem.

A cobrança de tributos é vital para o Estado, mas o sistema tributário deve estar em harmonia com outros fatores inerentes à atividade econômica. No Brasil, além da carga tributária elevada, o problema reside na complexidade para o pagamento de impostos e na rigidez da legislação para quem atua na legalidade.

Outro estudo do Banco Mundial, denominado Paying Taxes, mostrou que, em 2008, uma empresa-padrão gastava nada menos que 2.600 horas no ano para pagar os impostos básicos no Brasil. Foi o pior resultado em todo o mundo. Nos Emirados Árabes Unidos, por exemplo, eram 12 horas; na Suíça, 63; na Venezuela, 864.

O tempo gasto é consequência direta da complexidade da legislação tributária, que de 1988 a 2005 teve incríveis 3,4 milhões de normas editadas. A demora na simplificação e racionalização do sistema tributário tem sido um dos maiores obstáculos à modernização da economia brasileira. Na medida em que tal complexidade é usada como justificativa para a sonegação de impostos, beneficia transgressores, deteriora o ambiente de negócios, afasta investimentos e reduz o potencial de crescimento do País.

Um sistema mais simples, ao contrário, fomenta o setor produtivo, incentiva o consumo, promove o emprego formal, eleva a renda dos trabalhadores, diminui a sonegação fiscal e reduz a informalidade. Não se trata, na presente etapa, de promover uma ampla reforma tributária - que pode exigir anos de debates e ajustes -, mas de estudar propostas pontuais que poderão ter resultados quase imediatos. Entre essas propostas estão a unificação de impostos e taxas com os mesmos base de cálculo e fato gerador, como bens e serviços (IPI, ICMS, ISS), faturamento (PIS, Cofins), renda (IR, Contribuição Social) ou importação (IPI, ICMS, ISS, Cofins, tarifas).

Diante da tendência apontada pelo Índice de Economia Subterrânea e do cenário global, é preciso, agora, um esforço conjunto - dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário com a sociedade - para estimular a formalidade na economia brasileira.

Vivemos um momento ímpar em nossa história econômica, propício para a revisão de uma série de regras que, historicamente, impedem o crescimento saudável da nossa economia. O louvável esforço da presidente Dilma Rousseff para pôr fim à chamada guerra fiscal e avançar na modernização das regras tributárias, bem como a instituição do microempresário individual - apenas para citar dois fatos recentes -, são exemplos dentre inúmeras propostas que devem ser avaliadas e postas em prática.

Está claro que só existe um caminho para reduzir o tamanho da economia subterrânea. E esse caminho consta de cinco medidas: aprimorar o sistema tributário, reduzir a sonegação fiscal, reduzir o comércio ilegal e a pirataria, reduzir a economia informal e, não menos importante, combater a corrupção. Temos avançado nessas frentes, mas ainda há muito por fazer.
Por: Roberto Abdenur O Estado de S. paulo 

JORNALISMO E VIOLÊNCIA


Impressiona-me o crescente espaço destinado à violência nos meios de comunicação. Catástrofes, tragédias, crimes e agressões, recorrentes como as chuvaradas de verão, compõem uma pauta sombria e perturbadora. A violência não é uma invenção da mídia. Mas a sua espetacularização é um efeito colateral que deve ser evitado. Não se trata de sonegar informação. É preciso, contudo, contextualizá-la.

A overdose de violência na mídia pode gerar fatalismo e uma perigosa resignação. Não há o que fazer - imaginam inúmeros leitores, ouvintes, telespectadores e internautas -, acabamos todos paralisados sob o impacto de uma violência que se afirma como algo irrefreável e invencível.

Não é verdade. Podemos todos, jornalistas, formadores de opinião, estudantes, cidadãos, enfim, dar pequenos passos rumo à cidadania e à paz.

Os que estamos do lado de cá, os jornalistas, carregamos nossas idiossincrasias. Sobressai, entre elas, certa tendência ao catastrofismo. O rabo abana o cachorro. O mote, frequentemente usado para justificar o alarmismo de certas matérias, denota, no fundo, a nossa incapacidade para informar em tempos de normalidade. Mas, mesmo em épocas de crise - e estamos vivendo uma gravíssima crise de segurança pública -, é preciso não aumentar desnecessariamente a temperatura.

O jornalismo de qualidade reclama um especial cuidado no uso dos adjetivos. Caso contrário, a crise real pode ser amplificada pelos megafones do sensacionalismo. À gravidade da situação - inegável e evidente - acrescenta-se uma boa dose de espetáculo e, claro, uma indisfarçada busca de audiência. E o resultado final é a potencialização da crise.

Alguns setores da imprensa têm feito, de fato, uma opção preferencial pelo negativismo. O problema não está no noticiário da violência, e sim na miopia, na obsessão pelos aspectos sombrios da realidade. É cômodo e relativamente fácil provocar emoções. Informar com profundidade é outra conversa. Exige trabalho, competência e talento.

O que quero dizer é que a complexidade da violência não se combate com espetáculo, atitudes simplórias e reducionistas, mas com ações firmes das autoridades e, sobretudo, com mudanças de comportamento. Como salientou o antropólogo Roberto DaMatta, "se a discussão da onda de criminalidade que vivemos se reduzir à burrice de um cabo de guerra entre os bons, que reduzem tudo à educação e ao "social", e os maus, que enxergam a partir do mundo real, o mundo da dor e dos menores e maiores assassinos, e sabem que todo ato criminoso é também um caso de polícia, então estaremos fazendo como as aranhas do velho Machado de Assis, querendo acabar com a fraude eleitoral mudando a forma das urnas". O que eu critico não é a denúncia da violência, mas o culto ao noticiário violento em detrimento de uma análise mais séria e profunda.

Precisamos, ademais, valorizar editorialmente inúmeras iniciativas que tentam construir avenidas ou ruelas de paz nas cidades sem alma. A bandeira a meio-pau sinalizando a violência não pode ocultar o esforço de entidades, universidades e pessoas isoladas que, diariamente, se empenham na recuperação de valores fundamentais: o humanismo, o respeito à vida, a solidariedade. São pautas magníficas. Embriões de grandes reportagens.

Denunciar o avanço da violência e a falência do Estado no seu combate é um dever ético. Não é, todavia, menos ético iluminar a cena de ações construtivas, frequentemente desconhecidas do grande público, que, sem alarde ou pirotecnias do marketing, colaboram, e muito, na construção da cidadania. É fácil fazer jornalismo de boletim de ocorrência. Não é tão fácil contar histórias reais, com rosto humano, que mostram o lado bom da vida.

A juventude, por exemplo, ao contrário do que fica pairando em algumas reportagens, não está tão à deriva. A delinquência está longe de representar a maioria esmagadora da população estudantil. A juventude real, perfilada em várias pesquisas e na eloquência dos fatos, está identificando valores como amizade, família, trabalho. Existe uma demanda reprimida de normalidade.

Superadas as fases do fundamentalismo ideológico, marca registrada dos anos 60 e 70, e o oba-oba produzido pela liberação dos anos 80 e 90, estamos entrando num período mais realista e consistente. A juventude batalhadora sabe que não se levanta um país na base do quebra-galho e do jogo de cintura. O futuro depende de esforços pessoais que se somam e começam a mudar pequenas coisas. É preciso fazer o que é correto, e não o que pega bem. Mudar os rumos exige, acima de tudo, a coragem de assumir mudanças pessoais.

A nova tendência tem raízes profundas. Os filhos da permissividade e do jeitinho sentem intensa necessidade de consistência profissional e de âncoras éticas. O Brasil do corporativismo, da impunidade do dinheiro e da força do sobrenome vai, aos poucos, abrindo espaço para a cultura do trabalho, da competência e do talento. O auê vai sendo substituído pela transpiração e o cartório vai sendo superado pela realidade do mercado. A juventude real, não a de proveta, imaginada por certa indústria cultural, manifesta crescente desejo de firmeza moral. Não quer a covarde concessão da velhice assanhada. Espera, sim, a palavra que orienta.

A violência está aí. E é brutal. Mas também é preciso dar o outro lado: o lado do bem. Não devemos ocultar as trevas. Mas temos o dever de mostrar as luzes que brilham no fim do túnel. A boa notícia também é informação. E, além disso, é uma resposta ética e editorial aos que pretendem fazer do jornalismo um refém da cultura da violência. 
Por: Carlos Alberto di Franco O Estado de S. Paulo



CLICHÊS DA VIOLÊNCIA


SÃO PAULO - Um homem de 24 anos pratica um massacre num cinema dos Estados Unidos. Começam as explicações: "É a cultura das armas na sociedade americana"; "É a estética do justiçamento em Hollywood".

Tiras perseguem e matam um empresário na capital paulista porque, alegam, pensaram que ele sacava uma arma. Era seu telefone celular. Começam as explicações: "É a militarização da polícia"; "É a sociedade cada vez mais violenta".

O crime é alvo dileto das explicações universais. Não que estejam sempre erradas -como um relógio parado, têm sua taxa de acerto.

Quando a economia piora, o desemprego cresce e a desigualdade aumenta, reza o axioma, a violência sobe. Se as armas estão à disposição e o cinema valoriza a brutalidade, compõe-se então o caldo do capeta.

Todos esses fatores atuam de 2008 para cá nos Estados Unidos, que atravessam uma das piores agruras econômicas de sua história. No entanto a criminalidade atingiu, nesse período recente de desemprego, o mais baixo patamar em 40 anos.

No Estado de São Paulo, a taxa de homicídios caiu fortemente, enquanto os indicadores do emprego e da renda progrediram. Mas o fenômeno não se repetiu nos roubos e furtos. Outras regiões do país, que passaram por boom da renda até mais expressivo, nem sequer na taxa de assassinatos melhoraram.

Eficácia de prisões, polícia e Justiça e certos traços da população -como a proporção de jovens, mulheres e migrantes- melhoram a explicação das tendências mais gerais, coletivas. Fatores culturais influem, embora seja difícil objetivá-los.

Mas a receita do fracasso, e às vezes da picaretagem, é tomar barbaridades específicas como determinadas por vetores estruturais. Não foi o militarismo que matou o empresário paulista, nem a cultura das armas que massacrou no Colorado.

Foram indivíduos, plenamente responsáveis pelo que fizeram. 

Por: Vinicius Mota Folha de SP.

SAINDO DO ARMÁRIO


Primeiro foram os aeroportos, depois os portos e refinarias. Agora vem um pacote para aprofundar o processo de concessões para o setor privado e ressuscitar o PAC. Depois de um surto intervencionista, o governo percebeu que é impossível crescer de forma sustentada sem investimentos em infraestrutura e muito menos sem capital privado. Finalmente o PT rendeu-se ao óbvio e abraçou a agenda das privatizações de vez. O problema é que o faz de forma encabulada, tentando fingir que não faz o que faz, e nisso acaba fazendo malfeito.

A verdade é que a privatização nunca foi abandonada. Mudou de forma e foi redesenhada, refletindo circunstâncias econômicas e preferências governamentais, mas nunca deixou de acontecer ao longo dos últimos 20 anos.

A desestatização começou em setores industriais, para depois incluir concessões públicas possibilitando o país cumprir uma agenda de investimentos que o Estado, por falta de recursos e restrições institucionais e políticas, não podia fazer sozinho. As formas de venda também variaram ao longo do tempo: moedas de privatização foram aceitas no início, depois veio a participação do BNDES e dos fundos de pensão. Em muitos casos a privatização foi integral, em outros, empresas estatais mantiveram participações minoritárias nas empresas privatizadas. O fato é que, de Collor a Dilma, o reposicionamento do Estado na atividade econômica nunca parou.

Acontece que o governo petista ficou por muito tempo aprisionado por um discurso eleitoral que satanizava as privatizações. Demorou a sair do armário e mesmo assim continua envergonhado de um processo que só traz benefícios ao país. O grave, no entanto, não é a retórica da política, mas as falhas efetivas da privatização petista.

Primeiro, o processo de privatização petista peca por falta de planejamento. Vende concessões isoladamente sem pensar no setor, como nos aeroportos. Não há um plano de setor aeroportuário, apenas uma venda de ativos premida pela necessidade de melhorar a infraestrutura até a Copa do Mundo. Processo oposto ao das telecomunicações, quando toda a prestação do serviço foi redesenhada através de uma Lei Geral e uma agência reguladora específica foi criada. O setor de petróleo foi redefinido sem a análise e o debate necessários, embarcando em um modelo de exploração do pré-sal que, combinado com a política de conteúdo local, deixa a Petrobras numa armadilha e paralisada.

Segundo, erra na falta de critérios para qualificar os participantes dos leilões. O próprio governo tentou pressionar pela mudança dos consórcios já nos dias seguintes à privatização em Belo Monte. Se o consórcio não era sólido o suficiente para ganhar o leilão, por que não foi impedido de participar na pré-qualificação?

Terceiro, ficou refém do populismo. Muitas concessões de rodovias feitas no governo Lula não tiveram seus compromissos de edital realizados porque o pedágio não cobre os custos. E aí volta a velha prática de aditivos e ajustes no contrato. No setor elétrico, o baixo custo obtido nos leilões, apregoado como vitória política, é compensado por um elevado financiamento público, cujos critérios mudam a cada leilão, para não falar de mudanças do combustível original e dos titulares dos contratos, em completo desacordo do que se espera de um processo de licitação impessoal e transparente. Aos poucos este governo vai tomando consciência que o barato sai caro. Não há almoço grátis: ou paga o usuário ou paga o contribuinte.

Quarto, o governo petista politizou as agências reguladoras e tirou do Cade o poder de avaliar riscos à competição nas licitações públicas. Por fim, a expressiva participação de estatais para disfarçar a privatização, como a Infraero, não permite um choque na gestão nem ganhos fiscais.

Para dar mais competitividade à indústria o melhor a fazer, além de redução de impostos e juros, é melhorar a infraestrutura do país. Para isso, é preciso sair do armário de vez: planejar a privatização dos setores de infraestrutura, aprimorar os critérios de qualificação dos consórcios e fortalecer as agências reguladoras. E claro, governar com a realidade e não com a ideologia dos palanques. Ou seja, acabar com os malfeitos.

ELENA LANDAU é economista e advogada.

domingo, 22 de julho de 2012

ESQUERDISTAS ANALFABETIZAM UNIVERSIDADE


Após terminar Direito e Filosofia, comecei a trabalhar em jornal e passei duas décadas afastado da universidade brasileira. Digo da brasileira, porque nesse período tive quatro anos na Université Sorbonne Nouvelle, em Paris. Da qual também mantive distância. Nesses quatro anos, tive apenas 16 horas de aula, das quais apenas quatro foram muito úteis. Em verdade, nunca pensei em fazer doutorado. Queria apenas curtir Paris. Se a condição para uma bolsa era defender uma tese, tudo bem. Foi o que fiz. Só então fiquei sabendo que um doutorado servia para lecionar.

Em 81, a Folha da Manhã fechou as portas. A Caldas Júnior estava à beira da falência. Eu, que enviava uma crônica diária para Porto Alegre, fiquei pendurado no pincel. Às margens do Sena, mas desempregado. Meu orientador ofereceu-me mais um ano de pesquisa, mas recusei. Estava longe de minha mulher – que tivera de retomar seu trabalho após dois anos comigo em Paris – e com vontade de voltar. Acabei mudando de mala e cuia para Florianópolis, onde passei a lecionar literatura na UFSC, como professor visitante. Foi meu retorno à universidade.

Fiquei perplexo. Boa parte de minhas aluninhas, em final de curso – de Letras – não tinha noções mínimas de vernáculo. A meu ver, não podiam sequer ter entrado na universidade. (Digo aluninhas, pois os varões eram raros). Certa vez, ao reprovar uma negrinha em último ano de curso, tive de ouvir choro e ranger de dentes. “Racismo, professor, racismo. Eu nunca tirei zero nesta universidade”.

Então é porque teus professores não lêem tuas provas – respondi. Chamei-a ao estrado. E mostrei a ela o colar de zeros que havia distribuído a mais doze alunas brancas. Não fossem elas, provavelmente seria processado por racismo.

Mais tarde, reprovei a sobrinha de um deputado. Foi, a meu ver, o gesto que me fez ser ejetado da universidade. Não sabia que a festa de formatura da moça seria a festa do ano da cidade, e que 300 convites já haviam sido enviados. Se soubesse, com mais prazer a teria zerado. Resumindo: ao voltar à universidade, nos anos 90, descobri que tivera melhor formação no ginásio Nossa Senhora do Patrocínio, em Dom Pedrito, no início dos 60. Em trinta anos, o ensino universitário havia decaído irremediavelmente.

Leio recente pesquisa segundo a qual apenas 35% das pessoas com ensino médio completo podem ser consideradas plenamente alfabetizadas e 38% dos brasileiros com formação superior têm nível insuficiente em leitura e escrita. É o que apontam os resultados do Indicador do Alfabetismo Funcional (Inaf) 2011-2012, pesquisa produzida pelo Instituto Paulo Montenegro (IPM) e a organização não governamental Ação Educativa.

Ou seja, mais de um terço dos universitários são analfabetos funcionais. O que não me espanta. Isto eu já havia constatado na universidade, há mais de vinte anos. Segundo outra pesquisa também recente, Lula está em primeiro lugar em votação do programa televisivo “O Maior Brasileiro de Todos os Tempos”. Quando um analfabeto é considerado o maior brasileiro de todos os tempos, isto significa que para os brasileiros ser culto é o que menos importa. O que importa é ter sucesso.

A História é uma eterna luta entre alfabetizados e analfabetos, dizia Nestor de Hollanda, de saudosa memória. Em seu livro A Ignorância ao Alcance de Todos, o autor defendia a tese de que os analfabetos estavam avançando inexoravelmente em todas as áreas. Dito e feito. Agora tomaram os campi de assalto. Por obra dos legisladores nacionais, um analfabeto de pai e mãe já pode ostentar em seu currículo um diploma de curso superior. A reprovação, único instrumento eficaz de controle da qualidade de ensino, virou coisa do passado. Se no secundário está se tornando proibida, nos cursos superiores é cada vez mais rara e mesmo inexistente.

Conta-me um amigo, professor de universidade privada, que não pode reprovar nem mesmo alunos que jamais assistiram a suas aulas. O ensino virou um teatro, onde o aluno finge que aprende e o professor finge que ensina - disto está consciente todo professor que costuma olhar-se no espelho antes de entrar em sala de aula. Mas, segundo Hollanda, havia alguma esperança. Alguns alfabetizados já haviam se infiltrado nos quartéis.

Em recente postagem no Facebook, Anselmo Heidrich retomou uma entrevista deVeja, de novembro de 2008, que explica em boa parte a decadência do ensino nacional. Segundo a antropóloga Eunice Durham, professora da USP e ex-secretária de política educacional do Ministério da Educação (MEC) no governo Fernando Henrique, a responsabilidade desta catástrofe deve ser atribuída aos cursos de pedagogia.

- As faculdades de pedagogia formam professores incapazes de fazer o básico, entrar na sala de aula e ensinar a matéria. Mais grave ainda, muitos desses profissionais revelam limitações elementares: não conseguem escrever sem cometer erros de ortografia simples nem expor conceitos científicos de média complexidade. Chegam aos cursos de pedagogia com deficiências pedestres e saem de lá sem ter se livrado delas. Minha pesquisa aponta as causas. A primeira, sem dúvida, é a mentalidade da universidade, que supervaloriza a teoria e menospreza a prática. Segundo essa corrente acadêmica em vigor, o trabalho concreto em sala de aula é inferior a reflexões supostamente mais nobres. 

Não por acaso, só fui reprovado uma vez em minha vida em meus cursos universitários. Foi na Filosofia da UFRGS – então URGS – na cadeira de pedagogia. A faculdade só oferecia licenciatura e os alunos foram obrigados a assistir às aulas das pedagogas. Masturbação acadêmica total. As professoras, que não tinham conteúdo nenhum a oferecer, abominavam as aulas expositivas e se compraziam a ensinar ridículas técnicas de ensino, em geral de extração ianque. Me opus violentamente ao embuste e fui solenemente reprovado. Devo ter sido o primeiro – e talvez o único – acadêmico a ser reprovado naquele curso.

Tive de repetir a cadeira. A situação era tão tensa que, ao encontrar-me com a professora, eu e ela éramos acometidos de taquicardia. “Professora – sugeri – acho melhor aprovar-me logo, esta situação faz mal para nós dois”. Ela concordou comigo. Fiz, no ano seguinte, uma formatura individual. 

O problema ocorre basicamente nas tais de ciências humanas. Cursos que, a meu ver, se fossem extintos seria uma benção para o país. Prossegue a professora Durham:

- Há dois fenômenos distintos nas instituições públicas. O primeiro é o dos cursos de pós-graduação nas áreas de ciências exatas, que, embora ainda atrás daqueles oferecidos em países desenvolvidos, estão sendo capazes de fazer o que é esperado deles: absorver novos conhecimentos, conseguir aplicá-los e contribuir para sua evolução. Nessas áreas, começa a surgir uma relação mais estreita entre as universidades e o mercado de trabalho. Algo que, segundo já foi suficientemente mensurado, é necessário ao avanço de qualquer país. A outra realidade da universidade pública a que me refiro é a das ciências humanas. Área que hoje, no Brasil, está prejudicada pela ideologia e pelo excesso de críticas vazias. Nada disso contribui para elevar o nível da pesquisa acadêmica.

Tampouco por acaso, o rebotalho da História – os velhos marxistas – até hoje dominam “as Humana”, como se dizia – e escrevia, juro – na UFSC. Foram “as Humana” da USP que difundiram o marxismo no ensino universitário brasileiro, em detrimento de conhecimentos banais – mas fundamentais - como o bom manejo do vernáculo.

A repórter pergunta o que, exatamente, se ensina aos futuros professores. Responde Durham:

- Fiz uma análise detalhada das diretrizes oficiais para os cursos de pedagogia. Ali é possível constatar, com números, o que já se observa na prática. Entre catorze artigos, catorze parágrafos e 38 incisos, apenas dois itens se referem ao trabalho do professor em sala de aula. Esse parece um assunto secundário, menos relevante do que a ideologia atrasada que domina as faculdades de pedagogia.
- Como essa ideologia se manifesta?
- Por exemplo, na bibliografia adotada nesses cursos, circunscrita a autores da esquerda pedagógica. Eles confundem pensamento crítico com falar mal do governo ou do capitalismo. Não passam de manuais com uma visão simplificada, e por vezes preconceituosa, do mundo. O mesmo tom aparece nos programas dos cursos, que eu ajudo a analisar no Conselho Nacional de Educação. Perdi as contas de quantas vezes estive diante da palavra dialética, que, não há dúvida, a maioria das pessoas inclui sem saber do que se trata. Em vez de aprenderem a dar aula, os aspirantes a professor são expostos a uma coleção de jargões. Tudo precisa ser democrático, participativo, dialógico e, naturalmente, decidido em assembléia. 

Se hoje um terço dos universitários são analfabetos funcionais, não é preciso ir muito longe para saber quem os analfabetizou. O pior é que a peste, apesar da queda do muro de Berlim e do desmoronamento da União Soviética, não dá sinais de arrefecer neste país que aspira a pertencer ao Primeiro Mundo, mas ainda vive a reboque da História. 
Por: Janer Cristaldo