sexta-feira, 10 de agosto de 2012

TRABALHO, EMPREGO, POUPANÇA E CAPITAL


"Tá faltando emprego!" 

Essa sempre foi uma exclamativa muito frequente no Brasil. Curiosamente, uma outra exclamativa - que aparentemente denota o oposto desta - também sempre se manteve válida, independente da época:

"Tá sobrando trabalho a ser feito!"

Pare pra pensar: vivemos em um mundo de escassez. Nenhum bem ou serviço surge pronto do nada. Todos eles precisam ser criados e trabalhados. Um carro não surge do nada. É preciso trabalhar o aço, o alumínio, a borracha e o plástico que vão formá-lo. E esses quatro componentes também não surgem do nada. Eles precisam ser extraídos da natureza e/ou fabricados. O mesmo é válido para todos os outros bens de consumo que você possa imaginar, de laptops a aviões, passando por parafusos, palitos de dente e fio dental. Todos precisam ser trabalhados.

Da mesma forma, o fato de você estar com fome não vai fazer com que uma pizza surja pronta na sua frente. Alguém precisa trabalhar para fazê-la. E os ingredientes utilizados na fabricação dessa pizza, por sua vez, também não surgiram do nada. Todos eles precisaram ser fabricados e/ou plantados e colhidos.

Ou seja: não vivemos na abundância. As coisas não existem fartamente à nossa disposição. Todas elas precisam ser trabalhadas. Sendo assim, sempre haverá, em todo e qualquer lugar, algum trabalho a ser feito. Seja na fabricação de um bem de consumo, seja na prestação de algum serviço - nem que seja a limpeza de uma janela, a troca de uma lâmpada ou a limpeza de algum banheiro.

Donde chegamos ao ponto principal: por que há escassez de emprego se há uma infinidade de trabalho a ser feito?

Ora, esse descompasso só pode ser causado por algum tipo de interferência no mercado - isto é, na arena onde a demanda por bens e serviços e a oferta de mão-de-obra para executá-los se equilibram.

Quando os austríacos dizem que num livre mercado genuíno não haveria desemprego, eles estão se baseando justamente no fato de que vivemos em um mundo de escassez onde sempre há algum trabalho a ser feito.

Por exemplo, num mercado totalmente desregulado, você acharia facilmente alguém disposto a lhe pagar - sem medo da justiça trabalhista - para trocar uma lâmpada ou limpar uma janela diariamente. 

Entretanto, na nossa realidade, as coisas são diferentes. Você não tem nem a opção de varrer o chão do McDonald's de graça, pois o gerente morreria de medo de você entrar na Justiça do Trabalho contra ele.

São exatamente as regulamentações que o estado impõe ao mercado de trabalho - encargos sociais (INSS, FGTS normal, FGTS/Rescisão, PIS/PASEP, salário-educação, Sistema S) e trabalhistas (13º salário, adicional de remuneração, adicional de férias, ausência remunerada, férias, licenças, repouso remunerado e feriado, rescisão contratual, vale transporte, indenização por tempo de serviço e outros benefícios), além do salário mínimo - que provocam esse descasamento entre demanda por trabalho e oferta de mão-de-obra.

O que é mais curioso: como dito, a demanda por trabalho é infinita e a oferta de mão-de-obra é limitada. Em tal cenário, seria de se esperar um pleno emprego.

Porém, as intervenções governamentais conseguem a proeza de inverter as coisas: a demanda por trabalho, antes infinita, passa a ser mais limitada que a oferta de mão-de-obra - donde surge o desemprego.

Para que um indivíduo ou uma empresa opte por oferecer um emprego para outro indivíduo, é preciso haver um incentivo para tal. Mas com todas essas complicações criadas pelo estado, os incentivos ficam cada vez mais exíguos. O empregador tem de mensurar todos esses custos contra os futuros benefícios que um empregado adicional pode lhe trazer.

Os empregos serão criados apenas se houver oportunidades de lucro ou de melhoria de bem-estar (por exemplo, quando você contrata uma faxineira). Se ambos esses pré-requisitos não existirem, torna-se irracional gerar um emprego. Logo, qualquer medida governamental que eleve o custo do emprego não apenas irá impedir que novos empregos sejam criados, como também irá fazer com que muitos dos que já existem sejam destruídos. Qualquer medida que diminua o potencial de lucro advindo de uma contratação irá diminuir o número de oportunidades de trabalho criadas - o que significa que a tributação dos lucros também é um fator essencial na capacidade de criação de empregos. Como já explicamos aqui, todos deveriam ser a favor de se diminuir impostos sobre os mais ricos.

Feito esse pequeno apanhado, podemos entrar nos pormenores do processo.

Além das regulamentações, o capital

Mas é óbvio que não basta apenas querer empregar alguém. É preciso ter os meios para tal.

No setor privado - isto é, no setor da economia em que os arranjos são voluntários - todos os indivíduos têm duas escolhas: ou eles trabalham por conta própria ou trabalham para terceiros. Há, porém, um fato indelével: o trabalho é muito mais produtivo quando feito em conjunto com algum capital.

Um parênteses: 'capital', em termos físicos, significa os ativos físicos das empresas e indústrias. Capital são as instalações, os maquinários, os estoques e os equipamentos de escritório de uma fábrica ou de uma empresa qualquer. Além do capital físico, há também o capital intelectual, que são os modelos de processo operacional, a estrutura de organização e os modelos de previsões financeiras. Ou seja: capital é tudo aquilo que auxilia um modo de produção.

Assim, voltando ao raciocínio, como o trabalho é muito mais produtivo quando associado a algum capital, aqueles indivíduos que não possuem tais ativos irão naturalmente optar por trabalhar para aqueles que se sacrificaram por mais tempo, pouparam e, por isso, foram capazes de acumular esse capital. Se você não tem capital para montar um restaurante, mas quer trabalhar nessa área, você primeiro terá de se associar a alguém que já tenha acumulado o capital necessário para tal empreendimento, e trabalhar para essa pessoa.

Essa associação entre trabalho e capital gera um aumento de produtividade, aumento esse que será compartilhado entre o trabalhador e o dono do capital - e ambos estarão em melhor situação após essa associação (se isso não ocorresse, não haveria tal arranjo).

Até aqui, não há muito mistério.

Mas há algo de fundamental importância: para poderem contratar mais trabalhadores, os empregadores precisam ter acesso ao capital necessário para expandir e facilitar suas operações. E quanto mais abundante for o capital, quanto maior for a taxa per capita de capital, mais rico será o país. Sendo assim, é importante responder duas questões essenciais: de onde vem o capital e o que fazer para incentivar sua formação?

Poupança e capital

Memorize a seguinte frase: "o capital advém da poupança". 

Repita para si próprio essa frase todas as vezes que ouvir algum entendido falando que a receita para o crescimento econômico sustentável envolve aumento de gastos governamentais ou privados. O fator essencial para o crescimento econômico são os investimentos; e investimentos só podem ser feitos se houver capital; e o capital só surge da poupança. 

Agora tentemos explicar isso mais detalhadamente.

Em uma economia de mercado, o padrão de vida só irá aumentar se houver acúmulo de capital (repetindo, capital significa maquinários, ferramentas, equipamentos de escritórios e afins). Tal acúmulo permite que a mão-de-obra seja mais produtiva, o que consequentemente resulta em maior produtividade por trabalhador. Essa maior produtividade gera uma maior abundância de bens de consumo. E essa maior abundância faz com que o preço de cada bem seja menor, o que permite um aumento do consumo e do período de lazer, principalmente para as camadas mais pobres da população. 

Vale a pena repetir: para que haja um maior padrão de vida é preciso haver uma abundância de bens consumo, e essa abundância só é gerada se houver um aumento do capital per capita do país. 


Não há outra maneira de fazer os salários subirem que não seja por meio do investimento em mais capital por trabalhador. Mais investimento em capital significa dar ao trabalhador ferramentas mais eficientes. Com o auxílio de melhores ferramentas e máquinas, a quantidade dos produtos aumenta e sua qualidade melhora. Assim, o empregador consequentemente estará em posição de obter dos consumidores um valor maior do que aquele que o empregado consumiu em uma hora de trabalho. Somente assim o empregador poderá - e, devido à concorrência com outros empregadores, será forçado a - pagar maiores salários pelo trabalho do seu empregado.

Ou seja, qualquer outra maneira de melhorar o padrão de vida de um país que não seja por meio do aumento do capital acumulado será completamente insustentável.

Porém - e é aí que vem o problema -, o investimento em capital só existirá se houver poupança disponível para financiá-lo. E a poupança só existe se houver diminuição do consumo, o que implica um auto-sacrifício.

Mas o que é a poupança?

Ao contrário do que muita gente pensa, poupar não significa aumentar o volume de dinheiro na caderneta de poupança. Se fosse só isso, o governo e o banco central poderiam fazê-lo sem qualquer empecilho.

Poupar significa principalmente abster-se do consumo. Por exemplo, imagine que você seja podre de rico e esbanjador. Assim, você sai comprando computadores, laptops, carros, motos, jatinhos, apartamentos, celulares, iPhones, televisões, DVDs, etc. Ao fazer essas compras, você está provocando dois efeitos: impedindo que haja uma maior abundância desses bens para as outras pessoas, e desviando recursos das indústrias, obrigando-as as produzir mais desses bens para suprir a escassez deles.

Por outro lado, se você se abstivesse de comprar esses bens, você obviamente estaria poupando. Quais as consequências disso? 

1) Haveria mais bens disponíveis para os outros consumidores, que necessitam deles com mais urgência que você. 

2) As indústrias não precisariam empregar recursos apenas para suprir a escassez desses bens (escassez provocada por você), o que as permitiria investir em novos processos de produção, que resultariam em maior abundância de bens. 

3) Os bens que já foram produzidos e não consumidos (isto é, os bens que foram poupados) poderiam ser empregados em outros processos de produção cujos produtos finais, embora fossem estar prontos somente daqui a algum tempo, trariam óbvias satisfações para os consumidores.

Como disse Mises,

Aqueles que poupam - isto é, que consomem menos que a sua parcela dos bens produzidos - inauguram o progresso em direção à prosperidade geral. As sementes que eles semearam enriquecem não apenas eles próprios, mas também todas as outras camadas da sociedade. Sua poupança beneficia os consumidores.

Portanto, é importante entender que poupar não significa apenas 'guardar dinheiro'. Isso é uma mera consequência da poupança. Poupar significa principalmente abster-se de consumir.

Quando se entende esses conceitos, fica mais fácil perceber por que os gastos do governo desestimulam a poupança e atrasam o crescimento sustentável do país. Imagine, por exemplo, que o Congresso aprove um orçamento que envolva a compra de mil computadores, televisões LCDs e laptops, além de vários quilos de café, de inúmeras máquinas de fazer café, papel higiênico, sabonetes, gravatas, ternos e afins.

Isso (1) faria com que houvesse menos desses itens disponíveis para a população, prejudicando os mais pobres; (2) obrigaria as indústrias a desviar seus recursos para o aumento da produção desses bens, impedindo o investimento em, e a expansão de, outros processos de produção; (3) impediria que esses itens fossem empregados em usos mais produtivos pela população, o que poderia inclusive gerar benefícios para terceiros.

Mesmo que o governo gastasse exclusivamente com funcionários públicos, o efeito seria mesmo. Afinal, para gastar, o governo precisa tributar ou pegar empréstimos. Ambas a medidas configuram absorção de poupança de toda a população, poupança essa que poderia ser utilizada para financiar projetos de expansão.

(Ademais, vale lembrar que são esses gastos governamentais que engessam os salários do setor privado. Afinal, é o setor privado quem tem de sustentar o balofo setor público. Como tal tarefa exige um confisco maciço de recursos, sobra pouco para ser aproveitado em melhorias salariais. Enquanto esse gargalo não for resolvido - o setor privado sustentando um setor público guloso -, falar em educação como único meio de gerar melhorias salariais beira o cômico. Como mostramos em nosso boletim da economia brasileira, no item rendimentos, mesmo o ano de 2008 tendo sido considerado o segundo de maior crescimento econômico dos últimos 20 anos (após 2007), os salários do setor privado ficaram praticamente estagnados - ao passo que os do setor público seguiram crescendo.)

Finalmente, uma vez compreendida a real natureza da poupança, torna-se compreensível por que a mera expansão monetária - isto é, criação de dinheiro pelo banco central - não pode gerar investimentos. 

Como Mises nunca se cansou de explicar, bens de capital não podem ser criados por meio de uma expansão monetária. Inundar uma economia de dinheiro não vai fazer com que os bens de capital necessários para os processos de produção surjam do nada. Imagine aquela ilha do seriado Lost, onde os sobreviventes de um desastre aéreo tentam se manter vivos diariamente. Em qual cenário os sobreviventes estariam melhor: naquele em que todos têm uma valise cheia de dinheiro, ou naquele em que todos têm um arpão e uma rede de pescas (seu capital)? O mesmo raciocínio se aplica à economia real. O que importa não é a quantidade de dinheiro em circulação, mas sim a quantidade de capital acumulado pela economia. E esse capital só pode crescer se houver poupança - isto é, abstenção do consumo.

Já os keynesianos, por exemplo, dizem que é o investimento que gera a poupança, e não o contrário. Sendo assim, basta o governo diminuir os juros e estimular o gasto, que os investimentos surgirão. De onde virá o capital para tal? Ah, isso fica pra depois. "A essência do keynesianismo consiste em sua total incapacidade de compreender o papel da poupança e da acumulação de capital na melhoria das condições econômicas", vaticinou Mises.

Tudo o que uma expansão monetária pode fazer é alterar o emprego do capital, redirecionando-o para linhas de produção nas quais seu emprego vai gerar prejuízos. Essa é a essência da distorção gerada pela redução artificial dos juros, resultado de uma expansão monetária. Essa é a causa das recessões.

Conclusão

Para finalizar, Mises de novo:

Estritamente falando, o capital sempre foi e sempre será escasso. A oferta disponível de bens de capital jamais será abundante a ponto de fazer com que todos os projetos voltados para a melhoria do bem-estar das pessoas possam ser executados. Se isso fosse possível, a humanidade estaria vivendo no Jardim do Éden, sem nunca ter de se preocupar com a produção. 

No nosso mundo real, qualquer que seja o estado da oferta de capital, sempre haverá projetos que não poderão ser executados simplesmente porque o capital necessário para tal está sendo empregado em outros empreendimentos, cujos produtos são mais urgentemente demandados pelos consumidores. Em qualquer setor industrial existem limites além dos quais o investimento em capital adicional não vale a pena. Isso ocorre porque os bens de capital requeridos podem, naquele momento, estar sendo utilizados na produção de bens que, aos olhos do público consumidor, são mais valiosos.

Se, tudo o mais constante, a oferta de capital aumentar, os projetos que até o presente momento não poderiam ser empreendidos passam a ser lucrativos, e são então iniciados. Nunca há escassez de oportunidades de investimento. Porém, se por algum motivo houver escassez de oportunidades de investimentos lucrativos, é porque todos os bens de capital disponíveis já foram investidos em projetos lucrativos. 

O que gera riqueza e crescimento econômico sustentável é poupança, que possibilita investimento em capital e a consequente produção de bens. Consumismo e endividamento, por outro lado, geram redução do crescimento.


A poupança requer um sacrifício presente em troca de um maior padrão de vida futuro. Já o consumismo e o endividamento permitem um presente aparentemente próspero em troca de um futuro tenebroso. 

Porém vivemos em uma democracia, cujo futuro máximo que o governo consegue visualizar tem uma extensão de não mais do que oito anos. Sendo assim, não é incompreensível que suas políticas visem apenas ao curto prazo - para o bem de si próprio e em detrimento de todo o resto.

Obs: essa é uma versão mais expandida e detalhada de uma postagem feita no blog há algum tempo.

Para uma explicação mais detalhada sobre o processo de formação de poupança, leia A Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos: Uma Breve Explanação


Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

PRODUÇÃO RURAL E TERRAS INDÍGENAS


O Brasil é um oximoro. O Brasil é uma piada triste. Sim, conforme o prometido, eu vou falar sobre os índios (leia post anterior). Como vocês veem, cresce o número de pessoas que se declaram de outra etnia, mas que se consideram “indígenas”. Bem, na marcha em que vão as coisas, acima de tudo, é bom negócio ser índio. O que pode destruir uma reputação em Banânia, especialmente nas redações, é ser produtor rural! O sujeito logo ganha um sufixo “ista” e se torna, então, “ruralista”. Faculdades de jornalismo costumam ensinar tudo, menos o essencial. O “ista” é o adepto de um “ismo”. E o que é um “ismo”? Define uma tendência, uma corrente de pensamento, uma teoria, um sistema. Logo, um “ruralista” haveria de ser necessariamente alguém empenhado em, vamos dizer assim, ruralizar o mundo. Mas, é claro, não é empregado com esse sentido. O “ista” do ruralista é visto, na verdade, como o “ista” do egoísta – dedicado apenas aos próprios negócios – epa! Quase fiz poesia concretista
“Que foi, Rei? Fumou a erva do diabo?” Faço isso, não, e sou contra! Só Hollywood, e não me orgulho. É que certas coisas puxam a minha verve melancólica. Aí escolho o caminho do escárnio leve. Por que falei aqui dos “ruralistas”. Ontem, o governo divulgou a safra de grãos prevista para 2012. Bateremos um novo recorde histórico: 165,92 milhões de toneladas. Isso tudo foi produzido em apenas 58,81 milhões de hectares. “O que isso tem a ver com os índios?” Já chego lá.
A área destinada à agricultura no país é estimada em 59.846.619 hectares (dados do IBGE). A área destinada só a grãos perdeu espaço. Ainda assim, houve recorde de produção. Quando dona Marina Silva, com seus xales telúricos e sua voz de beata do apocalipse, quer reduzir ainda mais a área plantada no país, recomendando aos agricultores que “produzam mais” em área menor, o que dizer? Isso já está em curso. E não é só esse número que evidencia a minha afirmação. Atenção! Os EUA, que têm uma das agriculturas mais produtivas do mundo, colhem 2,922 toneladas de soja por hectare. O Brasil, 3,106 toneladas. Dona Marina Silva e seus fiéis sabem como gastar o dinheiro produzido pelas commodities agrícolas. Ela não tem aula a dar nessa área, como se vê.
“E os índios, Reinaldo? Volte ao tema, rapaz!”
Volto.
O Brasil tem um total de 851 milhões de hectares. O país produz 165,92 milhões de toneladas grãos em apenas 58,81 milhões de hectares. Vale dizer: alimentamos o país e uma boa parcela do planeta dedicando à agricultura apenas 6,9% do nosso território. Só para que a informação fique completa: pouco mais de 158,7 milhões de hectares estão dedicados às pastagens.
Pois bem, queridos. Vamos pegar todos aqueles que “se consideram” indígenas: são 896.917 pessoas – 0,47% da população. Vivem efetivamente nas áreas indígenas apenas 57% desse total: 511.242 – ou 0,26% dos brasileiros. Bingo! Não obstante, as reservas indígenas somam 106,7 milhões de hectares (e o número pode ser maior; já digo por quê). Entenderam? Sintetizo:
– em 58,81 milhões de hectares, produzem-se 165,92 milhões de toneladas de grãos para alimentar brancos, pardos, pretos, índios, chineses, japoneses, alemãs, indianos, iranianos…
– em 106,7 milhões de reservas indígenas – o dobro da área dedicada à agricultura (13% do país), não se produz um pé de feijão.
Nota à margem: o número que eu tinha sobre reservas indígenas era ligeiramente maior. Falei com a jornalista Cecília Ritto, e a dúvida foi dirimida. O IBGE considerou terras indígenas aquelas já consolidadas, plenamente legalizadas. Caso se levem em conta algumas áreas ainda em litígio ou não plenamente legalizadas, o total pode saltar para 108.629.852 hectares – 12,7% do território para 0,26% dos brasileiros!
Reinaldo exagera!
Enviaram-me há pouco uma coisa interessante. Soninha, candidata do PPS à Prefeitura de São Paulo, participou de um chat (não entendi direito qual é a página), e alguém perguntou o que ela pensa a meu respeito. Já trocamos algumas farpas no passado. Ela foi até generosa comigo; disse que sou “inteligentíssimo”, mas observou: “às vezes tem razão, mas pega mto pesado e perde a razão”. Como se vê, não é exatamente um elogio. Mesmo assim, a rede petralha caiu em cima dela no Twitter. Afinal, ela não me agrediu, não quis comer meu fígado – e os canibais precisam de sangue. Muito bem! Pego pesado? Quando? Em quê? Por quê? Isso é um mito, Soninha, inventado por quem me detesta, a que você, infelizmente, dá curso. Pego pesado porque chamo as coisas pelo nome? Não xingo ninguém, não difamo, não calunio. Bato em ideias. Também não flerto com aquilo que repudio só para ser decoroso.
Vamos ao caso dos índios. Minto quando digo que 0,26% dos brasileiros ocupam quase 13% do território para não produzir uma mandioca, enquanto165,92 milhões de toneladas são produzidas em metade do territóriodestinado às reservas?
“Ah, mas são coisas diferentes.” Ora, claro que são! O “reservismo” indígena está em expansão, não é? E a área plantada está em processo de redução. As mistificações da Funai e da Pastoral do Índio – ou algo assim (composta de Anchietas às avessas; já explico o que quero dizer) – são compradas bovinamente pela imprensa, com raras exceções; já os produtores rurais – aqueles “istas” – têm de provar todos os dias que não são bandidos. Os “bacanas” do ecologismo e do indianismo querem que se produza cada vez menos em áreas cada vez maiores; os agricultores brasileiros estão produzindo cada vez mais em áreas cada vez menores.
Aloprados
Os aloprados no Brasil foram de tal modo longe na loucura, que o Ipea (sim, o Ipea!), sob o comando de Márcio Pochmann (que agora é candidato do PT à Prefeitura de Campinas), fez um estudo demonstrando que seria preciso reduzir ainda mais a área destinada à agropecuária para preservar o meio ambiente, entenderam? Escrevi um post a respeito em 9 de junho do ano passado. Claro! Os valentes trabalharam com números errados do Incra, segundo os quais há 571,7 milhões de hectares de imóveis rurais. Huuummm… “Imóvel rural” é conceito cartorial. A agropecuária brasileira ocupa, de verdade, 231.461.765 hectares – pouco mais de 27% do país. Atenção! 98.479.628 hectares são dados como propriedade rural, mas se trata de reservas obrigatórias dentro das propriedades. Não se pode produzir nada ali.
Escrevo este texto para que vocês percebam o despropósito em que ecologistas, indianistas e miolo-molistas de maneira geral querem nos enredar. A agropecuária brasileira salva o Brasil do desastre há muitos anos, em especial durante o mandarinato petista e seus agregados esquerdopatas e ecopatas.
Acabar com as reservas?Será que eu quero acabar com as reservas? Não! Eu quero é que cesse a estupidez! As fraudes antropológicas na demarcação de terras indígenas são frequentes. Cometeu-se o crime de expulsar de Raposa Serra do Sol os agricultores não índios, que ocupavam apenas 0,7% da área e produziam toneladas de arroz. Resultado: aumento brutal da pobreza! Para quê? Para satisfazer as vontades da Fundação Ford e dos padres indigenistas, os Anchietas às avessas. O original buscava catequizar os índios; os de agora aderem à “teologia” indígeno-ongueira.
Essa política estúpida tem de mudar. Não é possível que se reservem 13% do território nacional para pouco mais de 500 mil pessoas que, não obstante, não conseguem cuidar do próprio sustento, tendo de viver do auxílio estatal. Só para comparar: a cidade de São Paulo ocupa 1,9% do Brasil (quase um sétimo das reservas indígenas) e abriga 12 milhões de pessoas (23 vezes mais gente). “Não seja idiota, Reinaldo! Índio caça, pesca, corre pelas matas…” É mesmo, é? Errado! Com raras exceções, índio vive de cesta básica e depende da grana estatal – quando não negocia a exploração da terra com garimpeiros e madeireiros ilegais.
Como sempre, não adianta me xingar. Os descontentes tentem provar que os números estão errados.
PS – Ah, sim: o recorde de safra do Brasil mereceu pouco destaque na imprensa. Mais uma vez, preferiram satanizar os “ruralistas”, que estariam querendo acabar com os rios temporários… Gente má!!!
Por Reinaldo Azevedo

PROPRIEDADE PRIVADA


Sem propriedade privada não há moralidade e nem civilização



O que são "meios de produção"? Qual a importância deles para uma sociedade? Como eles são criados, expandidos ou meramente mantidos? Qual a relação entre a ordem moral vigente de uma sociedade e seu nível de acumulação de capital?

Estas são questões sobre as quais economistas e filósofos políticos vêm meditando ao longo de toda a história do pensamento econômico. Se você já se pôs a pesquisar as diferenças entre capitalismo e socialismo, você certamente já terá ouvido falar no termo "meios de produção", e certamente já terá alguma ideia do quão importante eles são para a organização de uma sociedade. 

Da mesma forma, você pode até já ter ouvido falar, mas talvez ainda não tenha dedicado muito tempo a constatar a relação entre capital e ordem moral. Com efeito, por que as pessoas comuns deveriam se preocupar com tais coisas? Meios de produção não seriam apenas algo sobre o qual universitários lêem entre uma balada e outra? Ou talvez não seriam algo exclusivamente da alçada de contadores e administradores, preocupados com as técnicas corretas do método contábil das partidas dobradas? Qual a sua grande importância?

Como, afinal, seria uma sociedade sem capital, sem meios de produção? Ela conseguiria manter a moralidade? 

Ao contrário do que muitos imaginam, é perfeitamente possível imaginar como seria este mundo recorrendo apenas à teoria — muito embora a experiência dos países comunistas, nos quais os meios de produção foram exauridos, possa nos servir como um ótimo exemplo empírico. Um mundo sem meios de produção seria inóspito, frio e selvagem. As terras férteis, por não mais poderem ser trabalhadas da maneira correta, deixariam de ser cultiváveis. Haveria escassez de alimentos. A fome estaria por todos os lados. Isso levaria a saques e pilhagens, e, consequentemente, ao desaparecimento de lojas, mercearias e supermercados. Aqueles que porventura conseguissem coletar alimentos naturais para estocá-los teriam de vigiar continuamente suas posses, pois se tornariam presas de outros humanos famintos. No final, a fonte de alimentos seria uma só: a carne dos outros humanos. O homicídio e o canibalismo seriam práticas não apenas corriqueiras, como também totalmente necessárias para a sobrevivência.

1. Civilização, capital e ordem moral

De onde vem a nossa comida? O que permite a existência da civilização? Embora a civilização moderna seja bastante complexa, ela também é muito simples em sua essência, pois está erigida sobre três formas de capital físico que compõem os pilares de qualquer ordem civilizada.

Uma delas é o capital físico natural construído pelo homem, o qual os humanos utilizam para sobreviver e para realizar a produção de bens. Tratores, escavadeiras, britadeiras, serras elétricas, ferramentas em geral, computadores, maquinários, equipamentos de construção, edificações, fábricas, meios de transporte e de comunicação, minas, fazendas agrícolas, armazéns, escritórios etc. Estes bens de capital são os meios de produção. São eles que não apenas tornam o trabalho humano mais produtivo, como também possibilitam toda e qualquer produção e distribuição de bens e serviços.

Além deste capital físico, há duas correspondentes formas de capital humano: o conhecimento técnico para operar este capital físico e sustentar a produção de bens, e a ordem moral necessária para preservar o uso organizado dos recursos escassos. O grau de vida civilizada que existe atualmente só é possível porque herdamos de nossos antepassados capital físico e conhecimento tecnológico, e também porque temos algum senso da ordem moral necessária para preservar este arranjo.

A história da civilização é a história da acumulação de capital. Isso inclui não apenas a acumulação de capital físico, mas também uma correspondente acumulação de conhecimento técnico e moral. Somos civilizados apenas até o ponto em que passamos a nos perguntar que espécie de ordem moral é necessária para preservar a acumulação de capital. Qual tipo de ordem moral sustenta um meio de produção?

Vivendo em meio a uma civilização próspera, é fácil para as pessoas se tornarem levianas e petulantes quanto à ordem moral necessária para preservar a acumulação de capital. Não mais se dá o devido valor ao esforço e ao trabalho duro. Grandes estoques de bens de capital já estão disponíveis para nós, de modo que a preocupação de várias pessoas passa a ser apenas a de como "distribuir" estes bens de modo a satisfazer seu desejo e sua ânsia por "justiça social".

Em uma situação de tamanha abundância, é fácil o relativismo moral e o niilismo prosperarem. Tudo passa a ser subjetivo, e o 'bom' passa a ser qualquer coisa que "os representantes do povo" estipulem ser. Aqueles que fazem pouco caso das regras morais que preservam a acumulação de capital frequentemente imaginam estar atuando em prol dos fracos e oprimidos. Porém, um eventual colapso do capital acumulado traria o colapso de toda a civilização, e isto seria extremamente nocivo tanto para os fracos quanto para os fortes. Com efeito, se há alguém totalmente dependente da ordem civilizada, este alguém é justamente aquele que não tem a menor chance de sobreviver sob o jugo do mais forte em uma ordem sem civilização.

Na ausência de meios de produção para sustentar a civilização, o homem retornaria à sua natureza predatória, o que levaria à inevitável degeneração da ordem moral.

2. Por que não estamos nos canibalizando agora mesmo?

Refletir sobre os prováveis efeitos de uma maciça destruição do capital é um fascinante experimento mental. É algo que nos propicia valorosas constatações sobre a natureza humana e a fragilidade de nossa atual civilização. Não importa se a destruição do capital ocorrerá por meio de uma repentina hecatombe nuclear ou por meio de um lento e gradual esgotamento do capital acumulado no passado. Se os meios de produção forem destruídos, ou simplesmente não forem mantidos, é certo que a humanidade estará em um inexorável caminho rumo à fome e à predação.

O que nos impede de estarmos recorrendo ao canibalismo hoje mesmo? Quanto tempo levaria para que as pessoas em nossa civilização recorressem a brutais atos de predação na eventualidade de um desastre catastrófico? Quanto tempo até vermos as pessoas começarem a caçar, manter em cativeiro e se alimentar de outros humanos?

Há duas razões essencialmente comportamentais que impedem que os atuais humanos se tratem de maneira fragorosamente predatória. Uma razão é moral: há uma ampla aceitação de que, em nossas atuais circunstâncias, é errado e maléfico escravizar e se alimentar de outras pessoas. A outra é contextual: o capital acumulado de nossa civilização é suficiente para garantir que nós simplesmente não necessitemos de nos alimentarmos de outras pessoas — já temos comida abundante à nossa disposição.

(Uma outra razão que poderia ser mencionada é resultante dessas duas anteriores: tememos a punição que nos seria imposta por nos alimentarmos de outras pessoas. No entanto, esta é uma preocupação ínfima em nossa atual civilização e praticamente inexiste na mente da maioria das pessoas. A esmagadora maioria das pessoas evitaria o canibalismo sob as atuais circunstâncias independentemente de se elas fossem ou não punidas por tal ato, simplesmente porque elas não querem ou não necessitam incorrer neste tipo de depravação. Mencionamos esta motivação apenas para explicar que ela não está presente na maioria das pessoas.)

Estas duas fontes de comportamento civilizado — moral e contextual — não são independentes uma da outra. Nossa visão moral a respeito da escravidão e do canibalismo foi formada dentro do contexto de uma sociedade próspera na qual estas atividades não são necessárias para suprir nossas necessidades — ou seja, o atual contexto em que vivemos afeta nossa moralidade. Similarmente, o fato de não termos necessidade por este tipo de comida é por si só resultado da acumulação de capital gerada em decorrência de termos um sistema ordenado de produção erigido sobre regras morais — ou seja, nosso sistema moral afeta nossas atividades, as quais afetam o contexto em que vivemos. 

Embora a primeira conexão seja amplamente apreciada, a segunda não é tão bem compreendida, e várias pessoas são propensas a tratar os frutos da civilização como sendo coisas que simplesmente surgiram do nada (ou como resultado da ciência e da tecnologia, as quais também teriam surgiram do nada), não necessitando de quaisquer princípios morais particulares para sustentá-las.

O fato de que o comportamento das pessoas vai depender de fundações morais totalmente relacionadas ao contexto em que vivemos é, por si só, um pensamento apavorante — muito embora as pessoas hoje pensem que o canibalismo é algo abominável, coloque-as vivendo por alguns meses em um mundo moribundo e pós-apocalíptico e veja se elas não irão mudar de ideia. 

Sim, os princípios morais que alicerçam nossa atual civilização são extremamente frágeis, e é justamente a acumulação de capital e a consequente existência de meios de produção o que nos impede de mergulharmos na barbárie.

3. Ordem moral? Que ordem moral?

Se há uma forte conexão entre ausência de capital e ausência de ordem moral, e se o capital é de extrema importância para a vida civilizada, então qual é a ordem moral necessária para se acumular e preservar capital?

Para responder a isso, temos de entender que capital é algo formado e preservado por esforços produtivos que visam a uma recompensa futura. Por sua própria natureza, a acumulação de capital é uma atividade que requer uma abstenção de consumo no presente, abstenção esta que permitirá uma acumulação de poupança, a qual, por sua vez, possibilitará o aumento da produtividade no futuro. (Mais detalhes sobre este processo aqui). Para que este equilíbrio de trocas seja vantajoso, é necessária a existência de direitos de propriedade que funcionem como "fronteiras delimitadoras da ordem" em nossa interação com outras pessoas. É isto que nos permite acumular capital e evitar a barbárie. É isto que nos permite poupar para o futuro tendo a garantia de que colheremos alguma recompensa, em vez de apenas vermos nossos esforços sendo esbulhados por saqueadores e assassinos. 

A ordem moral adequada para a vida civilizada é aquela que permita a ação cooperativa de indivíduos que almejam ganhos mútuos, mas que também impeça a coerção. Sempre que esta ordem moral foi praticada, ela permitiu ao homem construir capital e desenvolver e aprimorar a vida civilizada. Sempre que ela foi violada, surgiram impedimentos à acumulação de capital e houve até mesmo uma rematada destruição de capital.

4. Capital, ordem moral e sobrevivência humana

Se o homem perder todo o capital acumulado pela civilização, não haverá meios de produção. Consequentemente, sua própria vida estará em risco. Em situações assim, toda a ordem moral que sustenta uma civilização tende a se esfacelar. 

E por que, afinal, estou insistindo neste ponto? Porque o mundo se encontra hoje em um gradual e contínuo processo de repúdio da ordem moral que sustenta o processo de acumulação de capital. Percebe-se em todos os cantos do globo uma temerária desconsideração da parte de várias pessoas por qualquer elo entre uma ordem moral objetiva baseada na conduta cooperativa e a acumulação e preservação de capital. São vários os indivíduos que creem que a acumulação e preservação do capital necessário para sustentar nossa atual abundância é algo que pode ser perfeitamente separada de toda e qualquer ordem moral.

Aqueles que se preocupam com a "distribuição" da riqueza acumulada no mundo representam uma força imprudente que está corroendo aos poucos as fundações da ordem civilizada. Que eles façam isso sob a pretensão de estarem atuando pelo bem dos pobres e oprimidos apenas mostra o quão grande é sua ingenuidade e sua desconsideração pela natureza do homem quando este perde sua civilização. O problema com esta situação não é meramente o perigo de esgotamento do capital físico, mas sim algo bem mais profundo e mais total: trata-se de uma deterioração moral que está gradualmente solapando a capacidade das pessoas de produzir e sustentar a produção. Cada medida coerciva defendida e aprovada por estas pessoas interfere na ordem moral da propriedade privada e nas transações voluntárias e cooperativas. Isso, por sua vez, ajuda a solapar a acumulação de capital, debilitando os meios de produção e afetando toda a vida civilizada que eles sustentam.

Solapar a acumulação de capital e, consequentemente, exaurir os meios de produção não é uma política que trará resultados bonitos. Tampouco se trata de uma política compassiva que trará benefícios aos pobres e oprimidos. Ao contrário, eles são os que mais irão sofrer. 

Há uma forte conexão entre capital e ordem moral que jamais deve ser ignorada. Em suas raízes, os seres humanos são animais; e, como os outros animais, temos uma hierarquia de necessidades a serem satisfeitas. Não obstante nossa capacidade de raciocinar e ponderar sobre nossa própria conduta, nosso modo de comportamento sempre irá refletir a necessidade de satisfazer estas carências de alguma forma. Em nossa atual civilização, em meio a toda a sua abundância, a ideia de escravizar e canibalizar outras pessoas (inclusive crianças e bebês) é horrenda e revoltante, mas trata-se de uma realidade da natureza humana o fato de que isso pode vir a ocorrer sob circunstâncias terríveis e urgentes. O que nos protege deste resultado é o capital acumulado no passado e nossa capacidade de proteger este capital ao formularmos uma adequada ordem moral para conduzir nossas ações. Se formos negligentes quanto ao elo entre ordem moral e acumulação de capital, estaremos implorando pelo desastre.

Quando uma pessoa afirmar com desenvoltura que regras morais são apenas julgamentos subjetivos, ou que elas são algo que transcendem preocupações triviais com relação a bens materiais, pergunte a si mesmo aonde este tipo de posição tende a levar. Se o homem adotar esta visão em larga escala, você acha que ele ainda existirá daqui a mil anos?

Ben O'Neill é professor de estatística na Univesidade New South Wales, em Canberra, Austrália. Já foi também advogado e conselheiro político. Atualmente é membro do Independent Institute, onde ganhou em 2009 o prêmio Sir John Templeton de competição de ensaios.

LUTA DE CLASSES


A greve dos funcionários públicos ganhou maior dimensão e virulência, causando enormes transtornos para os brasileiros. O editorial daFolha de São Paulo conclama a presidente Dilma a não ceder: Hora de resistir. Diz ele: “O embate da presidente com um segmento tradicional do petismo é uma das principais provas de fogo de sua gestão”. Se ela falhar, ficará refém da máfia sindical ligada aos radicais do PT. 


O editorial do jornal O Globo também faz pressão contra os grevistas, que usam a população como refém, apesar de seus salários bem acima da média do setor privado. Ele diz: “Se houver concessão generalizada de reajustes, governo Dilma terá recuado na intenção de incentivar investimentos e recuperar a competitividade da indústria”. 


Esta é uma visão simpática à presidente Dilma. Eleita pelo “dedaço” do ex-presidente Lula, ela resolve combater certos erros do passado, e abrir mais espaço para investimentos, o que gera forte reação dos sindicatos. Se for este o caso, todos devem mesmo torcer para que um espírito de Thatcher se incorpore ao corpo de Dilma, para que ela tenha forças para enfrentar estes parasitas que ameaçam parar o país para preservar privilégios. 


Mas confesso que teorias conspiratórias, neste caso, merecem o benefício da dúvida. É muito estranho este fenômeno de greve geral, orquestrada pela CUT, notória aliada de José Dirceu. E justo no momento do “julgamento do século”, que tem o próprio Dirceu como principal réu do “mensalão”. Teria algo a mais por trás destas greves? Teria também ligação com as eleições? Com disputa interna de poder na quadrilha petista? 


Não sou Sherlock Holmes para saber. Mas pego emprestada a sabedoria do detetive criado por Sir Conan Doyle, e questiono: por que o cão não latiu? É o silêncio de Lula que me incomoda nesse assunto. Será que o Todo Poderoso não vem nem em defesa de seu companheiro Gilbertinho Carvalho, acusado de “traidor” pelos grevistas? Aí tem... 


De qualquer forma, eis o que eu queria dizer: há uma clara luta de classes no Brasil hoje, e não tem nada a ver com capital versus trabalho. É a luta entre pagadores de impostos e parasitas, entre empreendedores e máfias sindicais, entre defensores da Sociedade Aberta e reacionários do Antigo Regime. Que as forças modernistas consigam vencer esta batalha! 


Por: Rodrigo Constantino 


A GRANDE PROSTITUTA

A GRANDE PROSTITUTA (I) 


(Comemora-se hoje o centenário de nascimento de Jorge Amado. Para que a memória não se perca, aqui vai minha singela contribuição ao evento. Este artigo foi publicado na revista Brazzil, em Los Angeles, 1998. Jamais seria publicado na imprensa brasileira). 

A palavra bordel, para quem não sabe, nasce em Paris. Na época em que as "maisons closes" ficavam às margens do Sena, quando alguém ia em busca de mulheres, dizia eufemisticamente: "j'vais au bord'elle". Sena, em francês, é palavra feminina, la Seine. Portanto, quando alguém dizia "au bord'elle", queria dizer "au bord de la Seine". Daí, bordel. Não é de espantar que a capital que deu ao mundo esta palavra queira homenagear, nos dias 20 e 25 de março próximos, no 18º Salão do Livro de Paris, a prostituta maior das letras contemporâneas. 

O Brasil será o país homenageado do Salão e terá como convidado de honra e representante de nossas Letras, Jorge Amado, o mais vendido escritor nacional, que começou sua carreira como estafeta do nazismo, continuou como agente do stalinismo e hoje é roteirista oficioso de Roberto Marinho. Amado ainda receberá, na ocasião, o título de Dr. Honoris Causa por uma universidade parisiense. Nada de espantar: os parisienses, de longa tradição colaboracionista e stalinista, não perderiam esta oportunidade de homenagear, neste século que finda, o colega que desde a juventude militou nas mesmas hostes. 

Do nazismo ao stalinismo 

Autor brasileiro mais divulgado no exterior, com traduções em mais de 40 idiomas, colaborador de publicações nazistas, ex-militante do Partido Comunista, deputado constituinte em 46, Oba Otum Arolu do candomblé Axé Opô Afonjá na Bahia, membro da Academia Brasileira de Letras, Amado nasceu em uma fazenda de cacau, em 10 de agosto de 1912, no então recém-criado município de Itabuna, na Bahia, filho de pai sergipano e mãe baiana de ascendência indígena. 

Em 1936, é preso no Rio, em conseqüência da Intentona de 35, tentativa de tomada do poder ordenada pelo Kremlin e liderada no Brasil por Luís Carlos Prestes. Em 1940, durante a vigência do pacto de não-agressão germano-soviético, assinado por Stalin e Von Ribbentrop, assume a edição da página de cultura do jornal pró-nazista Meio-Dia. Em uma reunião do Partido Comunista, é denunciado por Oswald de Andrade como "espião barato do nazismo" e instado pelo escritor paulista a retirar-se de São Paulo. Quando interrogado sobre o trabalho sujo deste período, Amado diz simploriamente: “Não me lembro”. Mas Oswald de Andrade lembra. Em antiga entrevista, republicada mais recentemente, em Os Dentes do Dragão, dizia Oswald: 

"Diante de tantos erros e mistificações, retirei a minha inscrição do partido. Numa reunião da comissão de escritores, diante de quinze pessoas do PC, apelei para que o sr. Jorge Amado se retirasse de São Paulo e denunciei-o como espião barato do nazismo, antigo redator qualificado do Meio-Dia. Contei então, sem que Jorge ousasse defender-se, pois tudo é rigorosamente verdadeiro, que em 1940 Jorge convidou-me no Rio para almoçar na Brahma com um alemão altamente situado na embaixada e na agência Transocean, para que esse alemão me oferecesse escrever um livro em defesa da Alemanha. Jorge, depois me informou que esse livro iria render-me 30 contos. Recusei, e Jorge ficou surpreendido, pois aceitara várias encomendas do mesmo alemão". 

Em 45, Amado é eleito deputado federal pelo Partido Comunista e publica Vida de Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, uma apologia ao líder comunista gaúcho e membro do Komintern. O panfleto, encomendado pelo Kremlin, foi traduzido e publicado nas democracias ocidentais e nas ditaduras comunistas, como parte de uma campanha para libertar Prestes da prisão, após sua sangrenta tentativa, em 1935, de impor ao Brasil uma tirania no melhor estilo de seu guru, o Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, mais conhecido como Stalin. Para Amado, Prestes, é o “Herói, aquele que nunca se vendeu, que nunca se dobrou, sobre quem a lama, a sujeira, a podridão, a baba nojenta da calúnia nunca deixaram rastro". 

Prestes preso, segundo o escritor baiano, é o próprio povo brasileiro oprimido: “Como ele o povo está preso e perseguido, ultrajado e ferido. Mas como ele o povo se levantará, uma, duas, mil vezes, e um dia as cadeias serão quebradas, a liberdade sairá mais forte de entre as grades. ‘Todas as noites têm uma aurora’, disse o Poeta do povo, amiga, em todas as noites, por mais sombrias, brilha uma estrela anunciadora da aurora, guiando os homens até o amanhecer. Assim também, negra, essa noite do Brasil tem sua estrela iluminando os homens, Luís Carlos Prestes. Um dia o veremos na manhã de liberdade e quando chegar o momento de construir no dia livre e belo, veremos que ele era a estrela que é o sol: luz na noite, esperança; calor no dia, certeza”. 

Em 46, como constituinte, Amado assina a quarta Constituição Brasileira. Dois anos depois, seu mandato é cassado em virtude do cancelamento do registro do PC. Neste mesmo ano, 1948, fixa residência em Paris, onde convive, entre outros, com Sartre, Aragon e Picasso. Em 1950, passa a residir no Castelo da União dos Escritores, em Dobris, na ex-Tchecoslováquia, onde escreve O Mundo da Paz, uma ode a Lênin, Stalin e ao ditador albanês Envers Hodja. No ano seguinte, quando o livro é publicado, recebe em Moscou o Prêmio Stalin Internacional da Paz, atribuído ao conjunto de sua obra, condecoração geralmente omitida em suas biografias. 

Esta década é marcada por longas viagens, entre outras, à China continental, Mongólia, Europa ocidental e central, à ex-União Soviética e ao Extremo Oriente. 

“Vós sabeis, amigos, o ódio que eles têm - os homens de dinheiro, os donos da vida, os opressores dos povos, os exploradores do trabalho humano - a Stalin. Esse nome os faz tremer, esse nome os inquieta, enche de fantasmas suas noites, impede-lhes o sono e transforma seus sonhos em pesadelos. Sobre esse nome as mais vis calúnias, as infâmias maiores, as mais sórdidas mentiras. ‘O Tzar Vermelho’, leio na manchete de um jornal. E sorrio porque penso que, no Kremlin, ele trabalha incansavelmente para seu povo soviético e para todos nós, paras toda a humanidade, pela felicidade de todos os povos. Mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu. Sim, eles caluniam, insultam e rangem os dentes. Mas até Stalin se eleva o amor de milhões, de dezenas e centenas de milhões de seres humanos. Não há muito ele completou 70 anos. Foi uma festa mundial, seu nome foi saudado na China e no Líbano, na Romênia e no Equador, em Nicarágua e na África do Sul. Para o rumo do leste se voltaram nesse dia de dezembro os olhos e as esperanças de centenas de milhões de homens. E os operários brasileiros escreveram sobre a montanha o seu nome luminoso”. 

Em função de sua militância no PC, no início de sua trajetória foi traduzido na China, Coréia, Vietnã e ex-União Soviética. Só depois então é puxado para os países ocidentais, pelas mãos de seu tradutor para o alemão. Em Munique, em 1978, entrevistei Curt Meyer-Clason, o responsável pela introdução de Amado na Europa ocidental. O baiano invade com sua literatura o mundo livre, que tanto caluniou, através da finada República Democrática Alemã. “Devido à proteção do PC, a RDA incumbiu-se da publicação de todos os seus livros, já nos anos 50” -disse-me Meyer-Clason -. “Depois, por meu intermédio, passou diretamente à República Federal da Alemanha”. Não por acaso, Meyer-Clason acaba de ser denunciado, pela revista alemã Der Spiegel, como espião do Terceiro Reich no Brasil. 

Da mesma forma que nega seu passado nazista, Amado não comenta seu passado stalinista. Em seu último livro, Navegação de Cabotagem, declara: 

"Durante minha trajetória de escritor e cidadão tive conhecimento de fatos, causas e conseqüências, sobre os quais prometi guardar segredo, manter reserva. Deles soube devido à circunstância de militar em partido político que se propunha mudar a face da sociedade, agia na clandestinidade, desenvolvendo inclusive ações subversivas. Tantos anos depois de ter deixado de ser militante do Partido Comunista, ainda hoje quando a ideologia marxista-leninista que determinava a atividade do Partido se esvazia e fenece, quando o universo do socialismo real chega a seu triste fim, ainda hoje não me sinto desligado do compromisso assumido de não revelar informações a que tive acesso por ser militante comunista. Mesmo que a inconfidência não mais possua qualquer importância e não traga conseqüência alguma, mesmo assim não me sinto no direito de alardear o que me foi revelado em confiança. Se por vezes as recordo, sobre tais lembranças não fiz anotações, morrem comigo". 

Realismo Socialista 

Em 1954, julgando talvez insuficiente a defesa do stalinismo feita em O Cavaleiro da Esperança e O Mundo da Paz, Amado publica os três tomos deSubterrâneos da Liberdade, onde pretende narrar a saga do Partido Comunista no Brasil. Só em 58, com Gabriela, Cravo e Canela, deixará de lado sua militância comunista e passará a fazer uma literatura eivada de tipos folclóricos baianos, que mais tarde será transposta em filmes nacionais e novelas da Rede Globo. 

O romancista baiano foi o introdutor nas letras brasileiras do realismo socialista, também conhecido como zdanovismo, fórmula de confecção literária para a pregação do ideário comunista, concebida pelos escritores russos Maxim Gorki, Anatoli Lunacharski, Alexander Fadéev, e sistematizada pelo coronel-general Andrei Zdanov. 

Nos países em que foi traduzido, Amado é visto como um escritor que faz literatura brasileira. Em verdade, obedecia a uma fórmula tosca, mais panfletária que estética, produzida por teóricos em Moscou. Wilson Martins, em A História da Inteligência Brasileira, traduz em bom português as características do novo gênero: 

“De um lado, os bons, ou seja, os que se incluem na “chave” mística do “trabalhador”, do “operário”; de outro lado, os maus, isto é, todos os outros mas, em particular, o “proprietário” e a “polícia”, as duas entidades arimânicas deste singular universo. Os primeiros são honestos, generosos, desinteressados, amigos da instrução e do progresso, patriotas, bons pais de família, sóbrios, artesãos delicados, técnicos conscienciosos, empregados eficientes (embora revoltados), imaginativos e incansáveis, focos de poderoso magnetismo pessoal, cheios de inata vocação de comando e, ao mesmo tempo, do espírito de disciplina mais irrepreensível, corajosos, sentimentais, poetas instintivos, sede de paixões violências (oh! no bom sentido!), modelos de solidariedade grupal, argumentadores invencíveis, repletos, em suma, de uma nobreza que em torno deles resplandece como um halo. O “trabalhador” é o herói característico desses romances de cavalaria: sem medo e sem mácula, ele tem tantas relações com a realidade quanto o próprio Amadis de Gaula. 

“Já o “proprietário” é um ser asqueroso e nojento, chafurdado em todos os vícios, grosseiro, bárbaro, corrupto, implacável na cobrança dos seus juros, lascivo na presença das viúvas jovens e perseguidor feroz das idosas, barrigudo, fumando enormes charutos, arrotando sem pudor, repleto de amantes e provavelmente de doenças inconfessáveis, membro da sociedade secreta chamada “capitalismo”, onde, como todos sabem, é invulnerável a solidariedade existente entre seus membros; indivíduo que favorece todos os deboches, inclusive dos seus próprios filhos; covarde, desonesto, egoísta, ignorante, vendido ao dólar americano, lúbrico, marido brutal e pai perverso, irritante e antipático, rotineiro, frio como uma enguia, incapaz de sinceridade, sem melhores argumentos que a força bruta, verdadeira encarnação contemporânea dos demônios chifrudos com que a Idade Média se assustava a si mesma.” 

Wilson Martins continua enumerando detalhadamente os demais estereótipos utilizados neste tipo de romance, entre eles a polícia, o tabelião, o posseiro, o governador, o latifundiário, o camponês. Seria por demais monótono continuar a descrição deste universo maniqueísta, como tampouco teria sentido acompanhar a repetição - ad nauseam - de uma fórmula primária de fabricar livros. 

Vamos então enfiar logo as mãos no lixo. Os Subterrâneos também foi escrito em Dobris, no mesmo castelo da União de Escritores Tchecoeslovacos onde Amado produzira O Mundo da Paz, de março de 1952 a novembro de 1953, ou seja, no período imediatamente posterior à obtenção do Prêmio Stalin. Como pano de fundo histórico temos, como não poderia deixar de ser, a Revolução de 1917. 

Outras datas e fatos posteriores determinarão poderosamente a construção dos personagens. Em 1935, ocorre no Brasil a Intentona Comunista. Em 36, Prestes é preso, e sua mulher Olga Benário, judia alemã que é oficial do Exército Vermelho, é deportada para a Alemanha de Hitler. Getúlio Vargas consegue persuadir o Congresso e criar um Tribunal de Segurança Nacional para punir os insurgentes. 

Ainda neste ano de 36, eclode na Espanha a Guerra Civil, confronto que envolveu todas as nações européias e constituiu uma espécie de ensaio geral para a Segunda Guerra, detonada em 1939, circunstância amplamente explorada por Amado. Em 1937, os integralistas lançam Plínio Salgado como candidato às eleições presidenciais de janeiro do ano seguinte, abortadas a 10 de novembro pelo golpe com que Getúlio consolida o Estado Novo. Para desenvolver sua história, Amado fixará um dos mais turbulentos períodos deste século, que até hoje continua gerando rios de bibliografia. A ação de Os Subterrâneos situa-se precisamente entre outubro de 37 (às vésperas do Estado Novo e em meio à Guerra Civil Espanhola) e finda aos 7 de novembro de 39, 23º aniversário da proclamação do regime soviético na Rússia. 

Amado, escritor e militante, tem por incumbência várias missões. A primeira consiste na defesa dos ideais de 17, encarnado em Lênin e Stalin, potestades várias vezes invocadas ao longo dos três volumes. Segunda, fazer a defesa do Messias que salvará o Brasil, Luís Carlos Prestes, e não por acaso a trilogia encerra-se com seu julgamento. Missões secundárias, mas não menos vitais: denunciar o imperialismo ianque, condenar a dissidência trotskista, pintar Franco com as cores do demônio e fustigar Getúlio por ter esmagado a atividade comunista a partir de 35. 

Seus personagens são títeres inverossímeis e sem vontade própria, embebidos em álcool se são burgueses, ou imbuídos de certezas absolutas, mais água mineral, se são operários ou militantes, estes sempre obedientes aos ucasses emitidos às margens do Volga. A obra, composta por três volumes - Os Ásperos Tempos,Agonia da Noite e A Luz no Túnel - constituiria apenas a primeira parte de uma trilogia mais vasta, com pretensões a ser o Guerra e Paz brasileiro. Os três tomos são publicados em maio de 1954, um ano após a morte de Stalin e dois antes do XX Congresso dos PCURSS, o que obriga o autor a interromper seu projeto. Pela segunda vez, na trajetória literária de Amado, sua ficção será determinada não por uma análise da realidade brasileira, mas por decisões tomadas em Moscou.

- Enviado por Janer Cristaldo



A GRANDE PROSTITUTA (II) 


A onipresença do novo Deus 

O personagem por excelência do romance é o Partido Comunista, onipresente como o antigo deus cristão e feito carne na figura de Stalin. A luta do PC é a luta - na ótica do autor - do povo brasileiro contra a tirania, no caso, Getúlio Vargas. Externamente, os inimigos são os Estados Unidos da América, a Alemanha, Franco e Salazar. Sem falar, é claro, na IV Internacional e nos trotskistas. O PC está infiltrado na classe dominante, disperso na classe média e fervilha nos meios operários. Invade as cidades e o campo, a pampa e a floresta, os salões burgueses, as fábricas e os portos, corações e mentes. 

“Quantos outros, do Amazonas ao Rio Grande do Sul”, - reflete o militante Gonçalo -“não se encontravam nesse momento na mesma situação que ele, ante problemas complicados e difíceis, devendo resolvê-los, sem poder discutir com as direções, sem poder consultar os camaradas?" Gonçalo sabe que os quadros do Partido não são muitos, alguns mil homens apenas na extensão imensa do país, alguns poucos milhares de militantes para atender à multidão incomensurável de problemas, para manter acesa a luta nos quatro cantos da pátria, separados por distâncias colossais, vencendo obstáculos infinitos, perseguidos e caçados como feras pelas polícias especializadas, torturados, presos, assassinados. Um punhado de homens, o seu Partido Comunista, mas este punhado de homens era o próprio coração da pátria, sua fonte de força vital, seu cérebro poderoso, seu potente braço. Esta onipresença extrapola o país, manifesta-se onde quer que andem os personagens, no Uruguai, França, Espanha, no planeta todo. Inevitáveis as referências à foice e ao martelo. E a Stalin, naturalmente, guia, mestre e pai. 

A litania dirigida ao grande assassino tem por vezes características de humor negro: “- Quantos mais formos” - diz a militante Mariana - “mais trabalho terão os dirigentes. Pense em Stalin. Quem trabalha no mundo mais que ele? Ele é responsável pela vida de dezenas de milhões de homens. Outro dia li um poema sobre ele: o poeta dizia que quando todos já dormem, tarde da noite, uma janela continua iluminada no Kremlin, é a de Stalin. Os destinos de sua pátria e de seu povo não lhe dão repouso. Era mais ou menos isto que dizia o poeta, em palavras mais bonitas, é claro...”O poeta em questão é Pablo Neruda, já citado em O Mundo da Paz: “Tarde se apaga a luz de seu gabinete. O mundo e sua pátria não lhe dão repouso.” 

Consta de uma ode a Stalin, subtraída às Obras Completas do poeta chileno, onde, por enquanto, ainda se pode encontrar uma “Oda a Lenin”. Hoje, temos uma idéia precisa do que planejava Stalin nas madrugadas tardias de seu gabinete. 

Quando Apolinário Rodrigues, por exemplo, (personagem calcado em Apolônio de Carvalho, oficial brasileiro exilado que participara da Intentona de 35) chega a Madri, sente-se em casa pois, para onde quer que se vire, lá está o Partido. A única cor local da capital espanhola parece ser a luta pela libertação de Prestes: 

“Quando chegara à Espanha, vindo de Montevidéu, vivera dias de intensa emoção, ao encontrar por toda a parte, no país em guerra, nas ruas bombardeadas das cidades e aldeias, nos muros da irredutível Madri, as inscrições pedindo a liberdade de Prestes. Cercava-o o calor da intensa solidariedade desenvolvida pelos trabalhadores e combatentes espanhóis para com os antifascistas brasileiros presos e, em particular, para com Prestes. (...) Era uma única luta em todo o mundo, pensava Apolinário, ante essas inscrições, o povo espanhol o sabia, e em meio às suas pesadas tarefas e múltiplos sofrimentos, estendia a mão solidária ao povo brasileiro.” 

A coincidência da instituição do Estado Novo com a explosão da Guerra Civil Espanhola é uma oportunidade única para Amado de inserir seus personagens no conflito internacional que redundaria na II Guerra, expondo ao mesmo tempo a linha do Partido. Tão única é esta oportunidade e tanto o autor quer aproveitá-la, que chega a deslocar para 1938 uma greve dos portuários de Santos, efetivamente ocorrida em 1946, o que aliás provocou um certo debate. Estaria Amado realmente sendo fiel ao método que “exige do artista uma representação veridicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário”, conforme proclamavam os estatutos da União de Escritores Soviéticos? Ao autor isto pouco importa. 

Deslocando a greve para 38, pode criar um navio alemão que vem buscar, no Brasil, café para a Espanha. De uma só tacada, Amado fustiga Hitler, Getúlio e Franco: “Em algumas palavras (o velho Gregório) historiou o motivo por que adireção do sindicato havia convocado essa sessão: o governo oferecera ao general Franco, comandante dos rebeldes espanhóis (“um traidor”, gritou uma voz na sala), uma grande partida de café. Agora se encontrava no porto um navio alemão (“nazista”, gritou uma voz na sala) para levar o café.”Na Guerra Civil Espanhola, segundo Amado, há apenas “nazistas alemães e fascistas italianos”. 

Tão pródigo em elogios à Stalin e à União Soviética, em sua trilogia o autor silencia sobre a presença russa na Espanha, constituída por pilotos de guerra, técnicos militares, marinheiros, intérpretes e policiais. A primeira presença estrangeira em terras de Espanha foi a soviética, com o envio de material bélico e pessoal militar altamente qualificado, em troca das três quartas partes (7800 caixas, de 65 quilos cada uma) das reservas de ouro disponíveis pelo Banco de España. Pagos adiantadamente. Silêncio de Amado: a representação veridicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário pode esperar mais um pouco. 

A presença do Partido permeará a trilogia das primeiras páginas de Os Ásperos Tempos às últimas de A Luz no Túnel. Nestas, a militante Mariana, antes de presa, assiste ao julgamento de Prestes. A voz do líder comunista é “a voz vitoriosa do Partido sobre a reação e o terror”: 

“Eu quero aproveitar a ocasião que me oferecem de falar ao povo brasileiro para render homenagem hoje a uma das maiores datas de toda a história, ao vigésimo terceiro aniversário da grande Revolução Russa que libertou um povo da tirania...” 

Seria monótono e redundante perseguir esta onipresença do Partido na trilogia de Amado. Neste universo imperam o bem e o mal absolutos. O bem, evidentemente, é representado pelo novo Deus, o proletariado. O mal, pela burguesia detentora do capital. Entre um universo e outro transitam eventualmente seres camaleônicos, “traidores de classe” ou traidores do Partido. Dividir o universo em duas metades, uma boa e outra má, nada tem de novo e original. 

Tal princípio vem do século III, através da doutrina do persa Mani. O espantoso é que continue a viger em pleno século XX, e mais: impondo gostos, comportamentos e até mesmo filiação partidária aos personagens de um romance. Os representantes do Bem amam. Os representantes do Mal têm amantes. Os bons bebem café ou água mineral. Os maus bebem cachaça ou uísque. Os bons são magros e idealistas. Os maus são gordos e mesquinhos. Os bons têm gargalhar sadio, os maus têm dentes podres. Os bons não têm posses. Os maus são proprietários. Os bons são pobres, os maus ricos. Os bons pertencem ao Partido ou com ele colaboram. Os demais são maus. Os bons, diga-se de passagem, estão aprisionados em tal camisa-de-força ideológica que sequer podem se dar ao luxo de gostar de pintura surrealista ou naïve. 

Até 1954, Amado traduzirá em sua literatura as determinações do Partido Comunista russo. Em entrevista para Isto é (18/11/81), Amado reconhece seu stalinismo: 

“Não sei se o termo “realismo socialista” se aplica a todos os meus livros daquela época. Estariam em face do realismo socialista, mas o fato é que Jubiabá (1935),Mar Morto (1936) e Capitães de Areia (1937), do período ao qual você se refere, só puderam ser publicados em russo depois da morte de Stalin. Acredito que a classificação seja justa para Terras do Sem Fim (1943), Seara Vermelha(1946) e Subterrâneos da Liberdade (1954). Se existe um livro meu totalmente influenciado pelo stalinismo, é Subterrâneos da Liberdade, que reflete uma posição totalmente maniqueísta.” 

Denunciados os crimes do stalinismo por Kruschov, em 1954, dois anos depois Amado molha o dedinho na língua e o ergue ao ar, para sentir de onde sopram os ventos: o sentido da História é agora uma literatura popularesca, ao estilo da rede Globo. Passa então a produzir uma literatura de evasão em torno a motivos baianos. Não sem antes fazer um tímido e discreto mea culpa, publicado em 10 de outubro de 1956 pela Imprensa Popular: 

“Aproximamo-nos, meu caro, dos nove meses de distância do XX Congresso do PCUS, o tempo de uma gestação. Demasiado larga essa gravidez de silêncio e todos perguntam o que ela pode encobrir, se por acaso a montanha não vai parir um rato. Creio que devemos discutir, profunda e livremente, tudo o que comove e agita o movimento democrático e comunista internacional, mas que devemos,sobretudo, discutir os tremendos reflexos do culto à personalidade entre nós,nossos erros enormes, os absurdos de todos os tamanhos, a desumanização que, como a mais daninha e venenosa das árvores, floresceu no estrume do culto aqui levado às formas mais baixas e grosseiras, e está asfixiando nosso pensamento e ação. (...) Sinto a lama e o sangue em torno de mim, mas por cima deles enxergo a luz do novo humanismo que desejamos acesa e quase foi submergida pela onda dos crimes e dos erros.” 

Como se o simples fato de sentir “a lama e o sangue” em torno a si o redimisse das cumplicidades passadas. Mas as denúncias dos crimes do stalinismo não geraram nenhum tribunal de Nuremberg e Jorge Amado sente-se como um ingênuo, enganado pelos ventos do século. No entanto, não mais permite a reedição de O Mundo da Paz. Quanto à sua obra ficcional, embasada no realismo socialista, esta continua sendo reeditada e traduzida. Mas o agitprop baiano se vê obrigado a mudar de rumos e publica, em 1958, Gabriela, Cravo e Canela. 

Em 61, lança Os Velhos Marinheiros, considerado um dos melhores momentos de sua literatura. Neste mesmo ano, é eleito membro da Academia Brasileira de Letras, instituição que havia apedrejado e insultado em sua juventude. No discurso de posse, com a inocência de um moleque que relembra travessuras passadas, reitera sua oposição à Casa que o recebe: 

"Chego à vossa ilustre companhia com a tranqüila satisfação de ter sido intransigente adversário desta instituição naquela fase da vida em que devemos ser necessária e obrigatoriamente contra o assentado e o definitivo. Ai daquele jovem, ai daquele moço aprendiz de escritor que no início de seu caminho, não venha, quixotesco e sincero, arremeter contra as paredes e a glória desta Casa. Quanto a mim, felizmente, muita pedra atirei contra vossas vidraças, muito adjetivo grosso gastei contra vossa indiferença, muitas vaias gritei contra vossa compostura, muito combate travei contra vossa força".

Em resposta aos que o condenam, diz o escritor: "Mas tudo na vida obedece a formalidades e se eu sou socialista não quer dizer que ignoro o mundo formal que me rodeia". De Moscou, recebe o apoio de Ilya Ehremburg: "Amamos Jorge Amado e temos confiança nele. Eu só o vi numa fotografia levemente mais gordo, em fardão de acadêmico. Olhei e sorri. Aos acadêmicos brasileiros dão um luxuoso fardão. Além disso usam espadas como seus colegas franceses. Não há nada de mal em que o homem simples de ontem apareça uma vez por ano na roupagem de imortal".

De amores com o imperialismo ianque 

Com a transposição de seus romances para as novelas televisivas, o revolucionário aposentado torna-se uma espécie de roteirista da Rede Globo. Gaba-se até hoje de seu passado esquerdista. Mas foi o primeiro escritor brasileiro a felicitar pessoalmente Fernando Collor de Mello por sua vitória. Claro que não foi apoiá-lo durante o impeachment. Com a nova guinada, seus livros começam a ser publicados nos Estados Unidos. 

Em depoimento autobiográfico, concedido em 1985 à tradutora francesa Alice Raillard, em sua mansão na Bahia, de inimigo incondicional do capitalismo, Amado vira sócio: 

"Sim, esta casa... Esta casa, eu digo sempre que foi o imperialismo americano que me permitiu construí-la! Era um velho sonho meu ter uma casa na Bahia. (...) Construir uma casa na Bahia? Eu tinha vontade, mas não o dinheiro. Foi então que vendi os direitos para o cinema de Gabriela à Metro Goldwin Mayer".

Em uma entrevista concedida à Folha de São Paulo, em dezembro de 94, expõe ao repórter a mansão comprada graças aos dólares da Metro Goldwin Mayer: 

"Esse é o quarto do casal. Passei a vida a xingar os americanos, mas tudo o que temos é graças ao dinheiro dos imperialistas ianques. Compramos essa casa em 63 com a venda dos direitos de Gabriela para a MGM, rodado 21 anos depois. Cobrei barato, só US$ 100 mil”. 

A parceria com o inimigo capitalista se revela lucrativa e permite a Amado a realização de outro sonho, morar na Paris que tanto insultou quando marxista: 

“Em 86, os americanos me pagaram um adiantamento alto pelos direitos de tradução de Tocaia Grande: US$ 250 mil. Juntamos com os guardados de Zélia e compramos nossa mansarda no Marais, em Paris”. 

Este senhor, que empunhou com entusiasmo as piores e mais assassinas bandeiras do século, que no final da vida confessa sem nenhum pudor seu venalismo, é quem hoje representa o Brasil no Salão do Livro em Paris. Em verdade, tal fato não é espantar: Amado vende à Europa uma imagem que a Europa aceita como sendo a do Brasil. 

Ainda segundo Wilson Martins: 

“A verdade é que a nossa literatura é sempre encarada como algo de exótico, de tropical. É por isso que Jorge Amado é extremamente popular nos outros países, ele oferece esse estereótipo da violência, da conquista da terra, da luta de classes e da opressão racial. Essa idéia exótica, uma espécie de ilha dos mares do sul, todos de tanga pelas ruas, armados de arco e flecha, e caçando onças na Avenida Rio Branco. Quando aparece um brasileiro branco e com grande cultura internacional, ele causa um espanto extraordinário. Nós alimentamos esse preconceito com todas as forças. Fazemos questão de mostrar que somos tropicalistas, que isto aqui é um país tropical, que somos mestiços, que branco aqui não tem vez. Quem defende tudo isso são esses grupos dos baianos e dos novos baianos, dos trios elétricos. É até um preconceito contra a cultura, no sentido ecumênico da palavra”. 

Interrogado recentemente sobre como gostaria de ser lembrado em uma enciclopédia daqui a 50 anos, a grande cortesã responde com a candura dos inocentes: "Um baiano romântico e sensual. Eu me pareço com meus personagens - às vezes também com as mulheres".

Talvez seja um de seus personagens femininos o que melhor representa a ambivalência do “baiano romântico e sensual”: Dona Flor, a que administrava tranqüilamente dois maridos. Ao homenagear Amado, em verdade Paris está condecorando um escritor venal, que prestou os piores desserviços ao Brasil ao lutar para transformá-lo em mais uma republiqueta soviética, em nome de uma rápida ascensão literária e fortuna pessoal. 

- Em inglês - Bahia's Dr. Faustus: http://www.brazzil.com/p26apr98.htm

- Enviado por Janer Cristaldo

A LEI, PARA AMIGOS E INIMIGOS


Propaga-se a ideia de que os réus, no processo do mensalão, tiveram garantias desrespeitadas, foram cerceados em suas defesas, acusados por meio de denúncia inepta, não sendo raro ler que estão submetidos a um tribunal de exceção.

Independentemente de haver ou não prova suficiente para a condenação, alguns esclarecimentos precisam ser feitos.

A denúncia ofertada pelo Ministério Público Federal é clara e responsável, na medida em que procura atribuir a cada um dos envolvidos a sua parcela de culpa, tomando o cuidado de estabelecer núcleos de atuação.

Tivesse o órgão acusador realmente adotado a teoria de que os líderes da organização criminosa respondem por todo e qualquer crime por tal organização praticado, certamente os principais réus, além de serem acusados por corrupção ativa, quadrilha e peculato, teriam sido denunciados por lavagem de dinheiro e evasão de divisas, pois, ao estruturar a organização, sabiam como o suposto esquema iria funcionar.

Igualmente parcimonioso foi o STF ao rejeitar algumas das imputações já no momento do recebimento da denúncia. Na maior parte dos processos criminais, o magistrado recebe a denúncia em sua íntegra para ao final dizer se absolve ou condena.

O fato de ter recusado parte das imputações no nascedouro da ação mostra que o STF não está julgando com ira, com gana de condenar ou de dar respostas à sociedade.

Também não procedem as ilações de que os réus estão tendo menos condições de defesa que outros acusados. É justamente o contrário.
Veridiana Scarpelli/Folhapress 

A ação penal referente ao mensalão tramitou por um bom tempo, todos os requisitos previstos na lei e no regimento estão sendo observados. E aos acusados foram garantidos meios de defesa que a maior parte dos réus, no Brasil, não consegue.

Cito como exemplo o fato de terem obtido a expedição de carta rogatória para ouvir testemunhas de defesa no exterior. A lei assegura tal direito, mas dificilmente outros acusados conseguem ter deferido o mesmo meio de prova.

É insustentável a alusão de que o ministro relator, Joaquim Barbosa, estaria impedido de presidir a ação penal por ter conduzido o inquérito.

Procedesse esse argumento, todas as ações originárias estariam sob suspeita, e todos os casos em que houve quebra de sigilos se tornariam nulos, pois as decisões mais interventivas, durante qualquer investigação, são tomadas pelo juiz que normalmente preside a ação penal subsequente.

O foro privilegiado, como o próprio nome diz, a vida toda foi tido como uma benesse. Agora, estranhamente, passa a ser apresentado como sinônimo de tortura.

Se a ação referente ao mensalão for nula e se as cortes internacionais precisarem intervir em prol dos réus, todos os outros processos criminais em trâmite no país devem ser imediatamente encerrados.

Que a defesa precise usar algumas figuras de linguagem, ao apresentar suas teses, é compreensível. Difundir, entretanto, que a maior corte do país está procedendo a um julgamento de exceção constitui desrespeito com o STF e com o Brasil.

JANAINA CONCEIÇÃO PASCHOAL, 38, advogada criminalista, é professora livre-docente de direito penal na USP

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O QUE AS COTAS MASCARAM


A Câmara dos Deputados aprovou, o Senado acaba de endossar e a presidente Dilma Rousseff vai sancionar jubilosamente o projeto de lei que obriga as universidades e escolas técnicas federais a reservar 50% de suas vagas a candidatos que cursaram o ensino médio na rede pública. Metade dessa metade se destinará a alunos cuja renda familiar per capita não ultrapasse 1,5 salário mínimo. Menos ou mais pobres, sempre terão prioridade os estudantes autodeclarados negros, pardos e indígenas. A amplitude das cotas raciais variará conforme o peso de tais grupos na população dos respectivos Estados, aferido pelo censo. Quando for insuficiente o número de candidatos elegíveis pelo critério racial, as vagas restantes serão disputadas pelos demais egressos do sistema público. A norma valerá por 10 anos, quando então os seus resultados serão avaliados.

A adoção de cotas raciais na universidade é constitucional, conforme decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF), em abril último. Isso não quer dizer que o sistema devesse ser adotado. Os seus insuperáveis defeitos de origem são múltiplos - a começar pela enormidade, em sentido literal e figurado, da reserva de vagas, configurando uma limitação brutal da disputa não discriminada pelo acesso à formação superior. Mesmo entre os defensores da aplicação do chamado modelo de ação afirmativa na educação, para corrigir desigualdades e preconceitos impregnados na sociedade brasileira, há quem considere "descabelado" excluir do preenchimento pelo critério exclusivo do mérito uma em cada duas vagas disponíveis na rede federal de terceiro grau e escolas técnicas. Além disso, a imposição de um índice único a todas as 59 universidades mantidas pela União representa uma gritante ruptura do princípio da autonomia universitária.

Nas palavras do diretor da Fapesp e ex-reitor da Unicamp, Carlos Henrique de Brito Cruz, trata-se de "uma usurpação" do direito de cada universidade de escolher o modelo de ampliação das oportunidades de acesso a seus cursos que julgar mais adequado ao seu perfil e vocação. É assim que já funciona. Pelo menos 30 dessas instituições implantaram sistemas de cotas, de acordo com as suas peculiaridades. A Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, reserva 20% do total de suas vagas a vestibulandos autodeclarados negros e pardos e 11 vagas em 7 cursos para indígenas. A Universidade Federal do Rio de Janeiro, por sua vez, reserva 30% dos lugares para alunos da rede pública oriundos de famílias com renda mensal per capita de até um salário mínimo. E não adota cotas raciais. Agora, o projeto em vias de virar lei acaba com esse laboratório de experiências de manifesta utilidade.

O mais grave, de toda forma, é que esse tipo de favorecimento impositivo a alunos da escola pública antes escamoteia do que contribui para resolver o notório problema da baixa qualidade do ensino fundamental e médio gratuito. O benefício perpetua na prática um padrão de aprendizagem insuficiente para dar aos jovens condições razoáveis de ingresso na universidade pública, mesmo em cursos menos concorridos. Já não bastasse isso, a restrição de vagas tem o efeito perverso de fomentar a discriminação às avessas, ao empurrar para faculdades particulares, não raro aquém do nível de suas congêneres públicas, alunos cujas famílias podem arcar com as suas mensalidades.

Os efeitos sobre o ensino superior das políticas de cotas já em andamento ainda estão por ser determinados. Para os cotistas, indica uma avaliação da Unicamp, o benefício tende a variar na razão inversa do grau de dificuldade do curso escolhido. E pode-se presumir que o projeto será tanto mais danoso para uma universidade quanto mais rigorosos forem os seus padrões de ensino e, principalmente, de pesquisa.

A alternativa não é cruzar os braços. A USP, por exemplo, concebeu um bem-sucedido esquema de incentivos. O Inclusp, como é chamado, não apenas concede bônus de até 8% nas notas do vestibular a ex-alunos da rede oficial, como ainda envia "embaixadores" aos colégios para divulgar o programa e incentivar os jovens a fazer o exame. Neste ano, 28% dos candidatos aprovados vieram da escola pública.Por: Editorial de O ESTADÃO SP.

MENSALÃO E OLIMPÍADA


Estou dividido entre assistir às provas olímpicas e testemunhar o julgamento do mais vergonhoso plano de permanecer no poder da história da nossa douta, “legalística”, aristocrática, populista e milagrosa “semi-república”. No caso da Olimpíada, as regras são simples (não há recurso) e a igualdade competitiva é clara; no mensalão, tudo é opaco – exceto a acusação, a vontade antidemocrática de poder que o engendrou e o desejo de que as coisas não terminem em leite condensado.

Digo “semi-república” porque a expressão reitera o que, em 1979, no livro Carnavais, Malandros e Heróis, eu chamei de “dilema brasileiro”. A oscilação de uma nação que quer a igualdade perante a lei, mas na qual o Estado jamais deixou de isentar alguns dos seus cargos da responsabilidade pública, abandonando para a sociedade o papel de burro de carga de um sofisticado drama na qual ela sempre desempenhou um papel subordinado. Quando passamos de Império a República, continuamos hierárquicos e aristocráticos, mas até certo ponto; e, já republicanos, adotamos a igualdade, mas com uma tonelada de sal, inventando todas as excepcionalidades que impedem a punição dos poderosos e condena os subordinados ao castigo. Daí a importância olímpica do Supremo Tribunal Federal, cuja conduta do julgamento em curso será importante para alterar o dilema.

Temos não muitas formas de igualdade e diversos estilos de aristocratizar. Nosso maior problema não é a desigualdade; é, isso sim, a nossa mais cabal alergia e repulsa à igualdade! Quando sabemos quem é o dono, ficamos tranquilos, mas quando todos são nivelados e postos em julgamento, entramos em crise. Em toda situação reinventamos a hierarquia, mostrando quem é inferior. Nas tão odiadas (e igualitárias!) filas, isso é mais do que patente. No trânsito, uma igualdade estrutural é, infelizmente, constitutiva como digo em Fé em Deus e Pé na Tábua, e o resultado é esse escândalo de acidentes e imprudências, todos capitulados na mestiçagem das leis que igualam de um lado para “exepcionalizar” do outro.

Não foi fácil, neste Brasil de Pedros (de Avis e Bragança), criar um padrão de troca único, nivelador, confiável e, por isso, as nossas doutrinas políticas mais chiques até hoje odeiam o mercado e a sua igualdade competitiva que implica meritocracia. Essa disputa tão óbvia nos jogos olímpicos que levam ao conflito aberto e ao bate-boca – esses reversos dos padrões de comportamento nobres, baseados quase sempre na insinceridade, no realismo político segundo o qual os fins justificam os meios e o ganhar a qualquer custo; e na mentira como moeda corrente. Em suma, tudo isso que está inscrito e será julgado no mensalão.

Vivemos um momento histórico dramático: o da impossibilidade de hierarquizar impunemente, como tem sido o costume. E, ao lado disso, a demanda pela igualdade que evidentemente vai obrigar a uma transformação dos velhos códigos de comunicação, sobretudo os legais que, no Brasil, mudam e se atualizam menos do que as reformas ortográficas! Essa demanda tem aspectos radicais no que tange aos que ocupam cargos públicos. Está em curso, hoje em dia, uma intolerância jamais vista contra a ética de favores e personalismos que impediam suspeitas, avaliações e julgamentos.

Quando se trata de falar da igualdade como um valor, não há como não discutir algo jamais visto na chamada “política” nacional. O fato de que é o povo que legitima pela eleição o gerenciamento de um cargo que não pertence a nenhum poder, mas a sociedade como um todo. Por isso, o povo – por meio dos tribunais e da lei que a todos subordina – pode punir o ocupante que trai o seu papel. Nosso viés aristocrático tem inibido a discussão do laço entre pessoa e papel. O que conduz ao inverso da nossa tradição, pois num regime igualitário, quanto mais nobre e importante o papel, menos desculpas para a improbidade de quem o ocupa. O poder não pode mais continuar a ser visto no Brasil como uma medalha de ouro olímpica, com direitos a isentar os eventuais crimes de quem está no poder. Ele deve ser redesenhado como algo que implica direitos e privilégios, mas sobretudo honra, austeridade e obrigações. Na democracia, como viu Tocqueville, os cargos públicos implicam mais deveres do que privilégios. Como, aliás, ocorre na Olimpíada quando um atleta recebe uma medalha de ouro se vê compelido a ser também possuído pela excelência que o prêmio representa.Aliás, o libelo do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, foi incisivo no sentido de não isentar os atores, aceitando as desculpas mais comuns das sociedades arcaicas, reacionárias e hierárquicas: a tese do “eu não sabia”; a qual, no fundo, desvenda a posse do papel pelo ator ou, pior que isso, o controle e a propriedade do político e do partido do cargo público e, no caso do mensalão, da própria máquina política.

Resta esperar que o TSF decida olimpicamente – sine ira et studio (sem raiva, preconceito ou condescendência), como dizia Max Weber – e, assim fazendo, mude a índole das práticas políticas brasileiras.

Por: Roberto Da Matta O Estado de S. Paulo, 08/08/2012