segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A ESCOLA AUSTRÍACA

A Escola Austríaca e a refutação cabal do socialismo


Introdução                                                                                                        
O fracasso do socialismo como princípio de ordenamento social é hoje evidente para qualquer pessoa sensata e informada — o que exclui, é claro, os socialistas. Estes, porém, insistem que o malogro coletivista foi um mero acidente histórico, que a teoria é fundamentalmente correta e que pode funcionar no futuro, se presentes as condições apropriadas. Tentarei demonstrar nesse texto, recorrendo na medida das minhas limitações aos ensinamentos da escola austríaca de economia, que absolutamente não é esse o caso, que a teoria econômica (para não falar dos fundamentos filosóficos, éticos, sociológicos e políticos!) do socialismo é insustentável em seus próprios termos, e que ipso facto os resultados calamitosos constatados pela experiência histórica são, e sempre serão, uma consequência inevitável de uma ordem (rectius: desordem!) socialista. Não é preciso enfatizar a importância de se ter plena consciência da natureza perniciosa dessa corrente política e de suas funestas implicações, uma vez que em nosso país um poderoso movimento totalitário está muito próximo de tomar o poder.

O erro dos clássicos

O núcleo do pensamento econômico socialista está na concepção do valor como decorrente do volume de trabalho necessário para a produção das mercadorias, e isso não só em Marx como também em outros teóricos como Rodbertus, Proudhon etc. Essa teoria do valor constitui a premissa elementar da qual a mais-valia e a exploração são deduzidas.

Marx, como se sabe, não inventou a teoria do valor-trabalho. Ela foi exposta bem antes por Adam Smith e David Ricardo e, dada a autoridade desses mestres, ganhou foros de ortodoxia. É difícil entender como esses dois pensadores notáveis, cujas descobertas foram realmente magníficas, puderam fracassar tão cabalmente justamente na questão crucial do valor. Talvez por causa dos avanços das ciências naturais, que estavam revelando propriedades antes insuspeitadas nas coisas, eles imaginaram que era mais "científico" considerar o valor também como um atributo da coisa.

Vários pensadores antes de Smith já tinham tido o insight correto: o valor das coisas depende da avaliação subjetiva de sua utilidade. O valor está na mente dos homens. Hoje se sabe que os filósofos escolásticos e os primeiros economistas franceses, Cantillon e Turgot, haviam concebido uma teoria econômica superior em muitos pontos a dos clássicos britânicos, sobretudo quanto ao valor. Smith e Ricardo, porém, puseram a economia na pista errada com uma teoria do valor falaciosa e, nesse aspecto, causaram um grave retrocesso no pensamento econômico.

Mas não por muito tempo. Enquanto Marx e outros pensadores socialistas faziam da teoria objetiva do valor a pedra fundamental de sua doutrina, diversos estudiosos já haviam constatado o desacerto dessa teoria e, independentemente, buscavam alternativas. Em todo caso, não seria exagero afirmar que Marx foi um economista clássico ortodoxo e que seus mestres, Ricardo em especial, podem ser considerados os fundadores honorários involuntários do socialismo "científico". Por ironia, o "revolucionário" Marx foi um conservador extremado em teoria econômica, enquanto que os economistas "burgueses" austríacos empreenderam uma verdadeira revolução nesse campo científico.

A redescoberta da subjetividade do valor

Vários economistas, entre eles o austríaco Carl Menger, chegaram basicamente à mesma conclusão que seus esquecidos antecessores pré-clássicos: o valor é subjetivo. A teoria subjetiva do valor — ou teoria da utilidade marginal — resolve o problema satisfatoriamente, sem deixar lacunas. O valor nada tem a ver com a quantidade de trabalho empregada na produção da coisa, mas depende de sua utilidade para a satisfação de um propósito de uma determinada pessoa. A utilidade decresce à medida que mais unidades de um dado bem são adquiridas, posto que a primeira unidade é empregada na função mais urgente segundo a escala de valores de cada um, a segunda unidade exerce a função imediatamente menos urgente etc.

Para um sujeito que já tem uma televisão, por exemplo, ter outra já não tem a mesma urgência — dito de outra forma, as TVs são idênticas, exigiram a mesma quantidade de trabalho na sua produção, mas não têm o mesmo valor. Cada indivíduo tem uma escala de valores diferente, e o que é valioso para um pode não valer nada para outro. Até para o mesmo indivíduo a utilidade — e daí o valor — de um determinado bem varia no tempo.

Isto posto, é fácil verificar que os preços refletem a interação entre ofertantes e demandantes, cada um com sua respectiva escala de valores. Compradores e vendedores potenciais expressam suas preferências no mercado, condicionadas por suas valorações pessoais e intransferíveis, e dessa interação surge uma razão de troca, um preço, que vai variando para igualar oferta e procura ao longo do tempo, de modo que em um determinado instante todos os que valoram o que querem adquirir (no caso a TV) mais do que o que se propõem a dar em troca (no caso um preço monetário x) conseguem comprar o produto.

O fabricante de TVs, segundo Marx, primeiro fabrica o produto e da quantidade de trabalho por unidade sai o valor e, consequentemente o preço. Isso é precisamente o inverso do processo real. Na verdade, o fabricante inicialmente faz uma estimativa de um certo preço que ele espera que atraia compradores e esgote o estoque — compradores que valorem mais a TV do que o dinheiro correspondente ao preço. Em seguida, ele calcula o custo de produção aos preços correntes e, se for suficientemente inferior à receita final prevista, aí sim ele contrata e combina os fatores de produção para obter o produto. Não é pois o trabalho ou de modo geral o custo de produção que determina o valor e o preço. É justamente o contrário: o preço projetado determina o custo de produção.

O emaranhado de falácias marxistas

Visando definir o valor com mais rigor do que Ricardo e levar a teoria às suas últimas consequências lógicas, Marx acaba demonstrando involuntariamente a invalidade das proposições pertinentes. Como seus antecessores, Marx distingue entre valor de uso e valor de troca. Para ele, as trocas só ocorrem quando coincide a quantidade de trabalho empregada no que se dá e no que se recebe. Só há troca, pois, nos termos marxistas, quando há coincidência de valor, que por sua vez é função do volume de trabalho dispendido. Ocorre que essa linha de raciocínio logo esbarra em um obstáculo insuperável: o trabalho é heterogêneo. Na ausência de homegeneidade, não há como tomar o trabalho como unidade de conta e medida de valor. Marx tenta superar o problema com os conceitos de trabalho "simples" e trabalho "complexo", fixando uma proporção entre eles, mas falha totalmente. Como os preços flutuam, Marx decreta que essas variações são ilusórias; o real é um certo "preço médio" que equivale ao valor, que equivale ao volume de trabalho dispendido na produção do bem.

Ao procurar fugir da rede de falácias que vai tecendo, Marx incorre em uma óbvia petição de princípio que até hoje engana os ingênuos: a medida do valor seria a quantidade de trabalho "socialmente necessário" para a produção de determinada mercadoria. Ora, só podemos saber o que é "socialmente necessário" investigando o que leva os indivíduos que compõem uma sociedade a valorar uma coisa o suficiente para que sua fabricação seja "socialmente necessária". Por que são produzidos mais CDs de axé do que de música clássica? Por que o pagode é mais "socialmente necessário" do que a música erudita? Porque há muito mais gente que gosta de pagode do que os que preferem música erudita. 

Fica claro que o que foi dado como provado, que o valor depende da quantidade de trabalho "socialmente necessário", é precisamente o que se necessita provar. O que é "socialmente necessário"? É aquilo que os indivíduos desejam. Sendo assim, é evidente que temos que procurar o valor das coisas nas preferências individuais, não no custo de produção. Ademais, o trabalho não é o único fator de produção. Marx evidentemente sabe que o trabalho sem o fator terra — os recursos naturais — é inútil e vice-versa. Ele assevera que só o trabalho humano cria valor, pois a natureza é passiva.

Mas se o trabalho isolado é incapaz de criar valor, o que nos impede de afirmar que o valor depende da quantidade de recursos naturais "socialmente necessários" à produção disso ou daquilo? E, como toda produção demanda tempo, por que não pode ser o valor definido como a quantidade de tempo "socialmente necessário" para a fabricação de uma mercadoria? Nessa ordem de idéias, mais lógico seria conceber o valor como função da quantidade de trabalho, terra, tempo e capital "socialmente necessários" para a produção de um bem. No fim das contas, é isso mesmo que Marx faz no vol. III de O Capital, relacionando o valor ao custo de produção, contradizendo sua própria concepção do valor-trabalho exposta no vol. I.

Para a teoria subjetiva, todavia, não há mistério e não há exceções: o "valor de troca" não é função do trabalho ou do custo de produção, e jamais pressupõe igualdade de valor. Se eu dou tanto valor ao que me proponho a trocar quanto ao que me é oferecido, simplesmente não troco. Só há troca quando os valores são diferentes, quando cada parte quer mais o que recebe do que o que dá. O contrato de trabalho não foge à regra. Cada contratante valora mais o que dá do que o que recebe, logo não há exploração. De fato, provando-se a falsidade da teoria do valor-trabalho, invalida-se inexoravelmente a exploração e a mais valia, e todo o edifício teórico deduzido dessa teoria desaba como um prédio de Sergio Naya.

Ademais, baseando-se na "lei de ferro dos salários", segundo a qual sempre que a remuneração do trabalho subisse acima do nível de subsistência os "proletários" aumentariam a sua prole, trazendo os salários de volta para o nível de subsistência original, Marx assegurou que o capitalismo engendrava a miserabilização crescente do proletariado. T rata-se de uma tese contraditória em seus próprios termos, vez que se a tendência fosse a de que a remuneração do trabalho permanecesse estagnada num patamar de miséria não haveria uma miserabilização "crescente", e sim uma "miserabilidade constante".

Na verdade, o padrão de vida dos trabalhadores não cessou de aumentar nos países capitalistas avançados, o que é o resultado natural da liberdade individual de maximizar a utilidade — o valor — nas trocas livres, voluntárias e mutuamente benéficas travadas no que se chama economia de mercado. A consequente acumulação de capital investido per capita em grau maior do que o aumento demográfico da força de trabalho torna o trabalho cada vez mais escasso em relação ao capital — e os salários reais cada vez mais altos. 

Marx, como é comum entre os intelectuais, odiava a divisão do trabalho. Mas foi o aprofundamento da divisão do trabalho que permitiu o aumento da produtividade do trabalho e o consequente aumento do poder aquisitivo real dos salários. O "alienado" operário que aperta parafusos na linha de montagem é recompensado pelo fato de que a produtividade do seu trabalho é tal que lhe permite adquirir produtos antes sequer existentes e ter um padrão de vida muito superior ao artesão autônomo do passado que controlava todo o processo de produção.

Marx acreditava que a livre concorrência levaria a uma superconcentração do capital. Na verdade, a concorrência força sem parar a redução de custos e preços, resultando em uma melhor utilização de recursos escassos e os liberando para emprego em novas linhas de produção. Marx não distinguiu o capitalista do empreendedor. Na realidade, capitalista é todo aquele que consome menos do que produz — que poupa. Hoje, nos países civilizados, os trabalhadores são capitalistas e suas poupanças reunidas em grandes fundos de pensão e investimentos capitalizam empresas no mundo todo. O empreendedor é todo aquele que vislumbra um desequilíbrio entre a valoração corrente de custos e preços futuros de um produto qualquer, e enxerga nele uma oportunidade de oferecer aos consumidores coisas que eles valoram mais do que o seu custo de produção. A figura do empreendedor é insubstituível — o estado não pode exercer esse papel. Isso os comunistas (e não apenas os comunistas!) puderam verificar na prática, para sua tristeza.

No sistema de Marx, como vimos, as trocas pressupõem igualdade de valor entre os bens negociados. Acontece que, como demonstrado acima, as trocas pressupõem precisamente o contrário: desigualdade de valor. Ou não há troca alguma. Assim, se a realidade se comportasse como na teoria de Marx, não haveria trocas. Na realidade, ninguém trabalharia sequer para si mesmo, posto que tal atividade envolve uma substituição de um estado atual considerado pelo agente como insatisfatório por um estado futuro reputado como mais satisfatório. Quer dizer, até o trabalho autônomo envolve uma troca e valores desiguais. O mundo de Marx seria povoado por seres autárquicos, autísticos e estáticos. Um mundo morto. Não admira que os regimes socialistas sofram invariavelmente de uma tendência para a completa estagnação e paralisia da atividade econômica.

A lei da preferência temporal

Outra descoberta fundamental, feita por um discípulo de Carl Menger chamado Eugen von Bohm-Bawerk, relaciona-se com a influência do tempo no processo produtivo. Ele percebeu uma categoria universal da ação humana: as pessoas dão mais valor a um bem no presente do que o mesmo bem no futuro, posto que o tempo é escasso, e logo é um bem econômico. Os indivíduos ao agirem elegem determinados fins e quanto mais cedo puderem alcançá-los, melhor.

Partindo desse axioma, ele obteve a explicação definitiva do fenômeno do juro, e mais, que o juro nas operações de crédito financeiras é um caso especial de um fenômeno geral. A produção demanda tempo; do início da produção até a venda do produto há uma demora, sem falar no risco de o produto não ser vendido. Ocorre que ninguém quer esperar até que a venda ocorra para receber sua parte no total — isso se a venda realmente acontecer, e o preço for recompensador. Os proprietários dos fatores de produção — os trabalhadores, os proprietários do espaço alugado, os fornecedores de insumos, os donos dos bens de capital — querem receber logo sua parte sem partilhar dos riscos. Dito de outra forma, eles preferem bens presentes a bens futuros. Mas os bens presentes sofrem um desconto. Daí receberem menos agora do que receberiam no futuro. Ficam livres do risco, que é assumido pelo empreendedor e pelos poupadores que lhe outorgaram seus recursos.

A parcela que um determinado trabalhador agrega ao produto final — o valor do produto marginal, como dizem os economistas — pode ou não ser remunerado integralmente. Há frequentemente casos em que o trabalhador recebe mais do que produziu, quando o preço não cobre os custos, o que não tem explicação pela teoria marxista. O capitalista paga a mais-valia ao proletário! O que é certo é que na economia de mercado há forças operando incessantemente para igualar o salário ao valor do produto marginal. Tanto o lucro quanto o prejuízo são sinais de desequilíbrio. Os prejuízos significam que os compradores não valoram um determinado bem mais do que o dispêndio mínimo corrente para produzi-lo. Os trabalhadores estão recebendo mais do que o seu trabalho produz. O empresário tem que reduzir custos para reduzir o preço do seu produto, ou quebra. 

O lucro significa que os consumidores valoram um dado bem a um dado preço mais do que o custo de produzi-lo. Os trabalhadores estão recebendo menos do que o valor do produto marginal. Isso quer dizer que os compradores querem mais desse produto. O retorno alto atrai a concorrência, o que aumenta a demanda por fatores de produção — trabalho incluso — e faz cair o preço pelo aumento da oferta do produto. A taxa de lucro baixa e os salários tendem a igualar o valor do produto marginal, descontada a taxa social de preferência temporal — o juro.

Marx nunca compreendeu — ou não quis compreender — que o empreendedor é um preposto dos consumidores e que são estes quem determinam indiretamente o nível de remuneração dos fatores de produção — salários inclusos. A tarefa dos empreendedores é satisfazer os caprichos dos consumidores. Nessa função ele deve assumir riscos pois o futuro é sempre incerto. Nota-se, pois, o absurdo da condenação da produção "para o lucro" pelos marxistas vulgares e sua veneração pela produção "para o uso". Sucede que toda produção sempre tem por fim o consumo, i.e., o uso. A produção não é um fim em si mesmo, e sim um meio para se alcançar um fim: o consumo. O lucro e as perdas monetários são sinais fundamentais que orientam os empresários a organizar eficientemente a produção de modo a satisfazer os usos mais urgentemente desejados pelos usuários (pressupondo-se a ausência de privilégios concedidos pelo governo aos produtores em detrimento dos consumidores, tais como tarifas, monopólios, subsídios, licenças etc).

A lei da preferência temporal exerce um papel determinante no processo produtivo. Se todos os proprietários de fatores (os empregados donos de sua força de trabalho, os fornecedores de insumos, o proprietário do espaço onde a fábrica ou loja se situa, os capitalistas) decidissem partilhar do risco e aguardar até a efetiva venda do produto final total para então dividirem pro rata a receita total, todos eles seriam empreendedores. Como, porém, o ser humano prefere o mesmo bem agora ao futuro (que é sempre incerto), surge a necessidade social de que um indivíduo, ou grupo de indivíduos reunidos (empresa), exerça essa função empreendedorial, que é absolutamente indispensável para o progresso da sociedade.

O empreendedor, assim, paga agora aos proprietários de fatores com bens presentes em troca de receber os mesmos bens (dinheiro) no futuro, correndo o risco de não receber. Esse desconto dos bens presentes em termos de bens futuros, como já assinalado, é o que se chama de juro.

A impossibilidade do cálculo econômico no socialismo

Tendo demonstrado satisfatoriamente que a crítica marxista ao capitalismo é inteiramente equivocada, resta empreender por nosso turno a crítica ao sistema socialista, conforme idealizado por Marx, seus sucessores e outras correntes socialistas. Esse sistema exige a propriedade pública dos meios de produção — terra, trabalho e capital — e o consequente planejamento central de todas as atividades econômicas.

A primeira objeção que vem à mente é a questão dos incentivos: quem planeja e quem obedece às ordens do planejador ou planejadores? Quem determina o padrão de remuneração dos serviços e que padrão é esse? Numa sociedade que se presume igualitária, a remuneração deve ser igual para todos os tipos de trabalho? Nesse caso, o neurocirurgião terá o mesmo incentivo para exercer suas funções que o lixeiro? Segundo os marxistas, cada um contribui para a coletividade segundo as suas possibilidades e recebe de um fundo comum segundo suas necessidades. Já é possível até aqui imaginar a complexidade do problema.

Pois um discípulo de Bohm-Bawerk, Ludwig von Mises, foi mais além, atingindo a raiz do problema do socialismo, que é ainda mais profunda do que a complicação dos incentivos permite vislumbrar. Mises descobriu que a atividade econômica em uma economia complexa depende de um cálculo prévio que leve em conta os preços monetários dos fatores de produção. Impossível esse cálculo, impossível a atividade econômica.

Ocorre que, em uma sociedade socialista pura, todos os fatores de produção pertencem a um único dono: o estado. Sem propriedade privada, os fatores de produção não são trocados e, logo, não têm preço. A escassez relativa dos fatores de produção e seus usos alternativos fica oculta e o planejador central inexoravelmente é levado a agir às cegas. Mises admitiu, para argumentar, que a questão dos incentivos não apresentasse nenhum obstáculo, que todos se empenhassem diligentemente em suas tarefas. Ou seja, postula-se que a natureza humana seja aquela que os teóricos socialistas quiserem que ela seja, não o que ela de fato é. Mesmo assim, na ausência de preços para os fatores de produção, o cálculo econômico é impossível e a atividade econômica se torna caótica, vez que não se pode discernir entre os vários tipos de combinação de fatores aquele que é o mais econômico.

Dado um determinado estado de conhecimento tecnológico, sempre existem inúmeras maneiras de se empreender um projeto econômico qualquer, digamos uma siderúrgica, mas somente se a escassez relativa dos fatores de produção for expressa em preços monetários será possível escolher dentre as soluções técnicas possíveis aquela que é mais econômica, ou seja, a que representa os menores custos em relação ao preço futuro do produto final, e só assim será possível avaliar ex ante se o projeto sequer é economicamente viável no momento.

Como nada disso é a priori possível em uma sociedade socialista, todos os empreendimentos tocados pelo estado não passam de um gigantesco desperdício de recursos que mais cedo ou mais tarde leva ao colapso econômico. A experiência comunista comprovou tudo isso, muito embora não tenha nunca existido uma sociedade socialista realmente pura. A URSS podia usar o sistema de preços do mundo capitalista como referência e copiar seus métodos de produção, e um florescente e gigantesco mercado negro supria até certo ponto as monumentais falhas do planejamento estatal. Mesmo assim, a economia soviética sempre foi um caos. Funcionou por algum tempo graças ao uso sistemático do terror como "incentivo". Mas o terror não pode durar para sempre. Quando arrefeceu, foi-se o incentivo e a economia comunista anquilosou rapidamente e morreu.

A natureza dispersa do conhecimento

A crítica de Mises publicada em 1920 causou consternação na intelligentsia socialista. Ao menos o desafio foi levado a sério e muitas respostas foram aventadas. Nos anos 1930, alguns economistas socialistas (Oskar Lange, Abba Lerner) formularam a teoria do "socialismo de mercado", baseada nas idéias do economista do século XIX Léon Walras, que concebeu um método de equações matemáticas capazes de permitir a compreensão do estado geral de equilíbrio de uma economia. Tudo o que se fazia necessário, pois, era outorgar certa autonomia aos gerentes das unidades produtivas de modo que igualassem o preço do produto ao custo marginal para que o comunismo funcionasse tão bem como o capitalismo.

Muitos economistas liberais eminentes, como Joseph Schumpeter e Frank Knight, aceitaram a validade dessa solução e se convenceram de que não havia obstáculos econômicos ao socialismo. Ainda outro economista austríaco, contudo, Friedrich Hayek, discípulo de Mises, desenvolveu certos aspectos implícitos na análise de seu mestre para refutar a "solução" socialista. O esquema walrasiano padece de um defeito fatal: é estático. O conhecimento técnico, os recursos e as informações são considerados dados no sistema. Hayek argumentou que o conhecimento é disperso na sociedade e a sua utilização racional é levada a efeito por cada indivíduo traçando seus próprios planos segundo circunstâncias personalíssimas e intransferíveis. O mercado coordena esses planos espontaneamente, sobretudo por intermédio do sistema de preços, de forma muito mais racional e útil do que um planejamento central poderia esperar fazer. O planejamento central implica a supressão dos planos individuais. Os indivíduos tornam-se instrumentos do planejador central, mas esse não pode ter jamais a esperança de coordenar a produção racionalmente. O estado de equilíbrio é uma quimera que não tem lugar no mundo real, dinâmico por natureza, e o conhecimento, as oportunidades e a informação nunca estão "dados". Ao contrário, estão sendo incessantemente criados e ampliados através das iniciativa individuais e suas interações.

Mesmo assim, Mises e Hayek foram tidos como refutados e relegados ao ostracismo pela comunidade dos economistas. Mises morreu esquecido em 1973, mas Hayek viveu o suficiente para rir por último quando o comunismo soçobrou e todas as análises de ambos se revelaram certas. Ele morreu em 1992, após testemunhar a queda do Muro de Berlim e o colapso soviético.

Conclusão

Provar que na economia de mercado não existe mais-valia nem exploração, todavia, não é o mesmo que dizer que a exploração não existe. Existe. Ela ocorre quando somos forçados a dar alguma coisa em troca de nada, como no caso dos tributos recolhidos pelo estado. O estado é a máquina perfeita de exploração. E o marxismo, por conferir um poder absoluto ao estado, é o veículo insuperável da exploração sistematizada.

A doutrina socialista por ser intrinsecamente falsa leva inevitavelmente a uma perversão e inversão do sentido das palavras, como notou Orwell — por ironia ele mesmo um socialista convicto. Liberdade é escravidão e escravidão é liberdade; democracia é ditadura e ditadura é democracia; cooperação voluntária é coerção e coerção é cooperação voluntária. O estado socialista é dono de tudo, o que traduz a triste realidade de que os que comandam o governo são os senhores implacáveis, os proprietários absolutos dos comandados. Socialismo é mais do que uma restauração da escravidão; é seu aperfeiçoamento e culminância.

Vale lembrar ainda que a análise acima vale para qualquer espécie de socialismo, seja o comunismo (socialismo de classe), nazismo (socialismo de raça) ou fascismo (socialismo de nação).

Tudo o que foi exposto aqui é conhecido há décadas. Contudo, pouca gente sabe pois a intelligentsia de esquerda bloqueia a sua divulgação. É uma vergonha, pois uma das tarefas principais dos intelectuais — os que se dedicam ao estudo das idéias — deveria ser justamente a de esclarecer a sociedade a respeito das idéias certas a serem adotadas para o bem comum, e advertir do perigo de se aceitar teorias erradas. Mas não é isso que acontece, infelizmente.

Parece que os intelectuais sofrem de uma propensão irreprimível para o socialismo, certamente porque nele vislumbram a chance de empalmar o poder absoluto em causa própria. Em termos marxistas, o próprio marxismo não passa de ideologia, a falsa consciência, que uma classe — a intelligentsia — difunde em função de seus próprios interesses. Essas falsas idéias se propagam e iludem — alienam — as futuras vítimas da classe "revolucionária". É um dever inadiável de todo cidadão consciente denunciar esse esquema podre, desmascarar a falácia socialista e esclarecer a opinião pública na medida de suas possibilidades.

Alceu Garcia é o pseudônimo de um cidadão que, cercado de esquerdistas por todos os lados, e já conhecendo o tratamento que eles dão a quem ouse contrariá-los no local de trabalho, tem bons motivos para desejar permanecer incógnito. 


NEM SEI SE POSSO, MAS QUERO


O deslumbramento pelo consumo não pode durar para sempre. Em algum momento a sociedade brasileira precisará amadurecer, afirma filósofo





No momento em que um objeto de desejo se torna acessível, outros novos são inventados

Estamos? Estamos. E não só nas cifras milionárias desembolsadas para adquirir carrões e outros luxuosos mimos (sem os quais viveríamos muito bem, obrigado). "Estamos vivendo uma corrida armamentista do consumo", critica o economista e filósofo Eduardo Giannetti, autor de O Valor do Amanhã: Ensaio sobre a Natureza dos Juros e do best-seller Felicidade: Diálogos sobre o Bem-estar na Civilização (ambos Companhia das Letras).


Para Giannetti, nós brasileiros estamos dispostos a pagar preços estratosféricos por carros importados (luxuosos e nem tanto), pois eles nos conferem a ilusória ideia de status. São "bens posicionais", que hierarquizam a sociedade na antiga fórmula quanto mais caro, mais exclusivo; quanto mais exclusivo, mais status. "Primeiro é um tênis de marca, depois um carro importado, um iate, um jatinho, uma viagem a Marte. A corrida sempre se renova", diz. É o carro do ano, o look exclusivo da fashion week, o restaurante badalado, a deserta ilha paradisíaca e outras extravagâncias de gente chique. Para serem almejados, os objetos devem continuar um privilégio de poucos, fora do alcance dos plebeus. Nessa lógica, o diamante só brilha se refletir nos olhos dos outros.


Na quinta-feira, Giannetti recebeu o Aliás no seu apartamento no bairro paulistano de Vila Madalena. Ph.D. pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) de São Paulo, Giannetti costura economia e filosofia para discutir por que os ideais de beleza, poder e riqueza abalam a psique humana de uma maneira quase irracional. "Por que nos deixamos levar pelas promessas desses bens posicionais? Por que somos iludidos por eles?", questiona. Para responder à questão, Giannetti busca na estante O Livro das Citações: Um Breviário de Ideias Replicantes, de sua autoria, com páginas marcadas por post its coloridos, e cita o poeta satírico Petrônio: "Só me interessam os bens que despertam no populacho a inveja de mim por possuí-los".


Conversamos numa sala ampla, charmosa e emoldurada por estantes e mais estantes cheias de livros. Só na biblioteca pessoal, o economista guarda mais de 5 mil títulos. "São meus bens posicionais", diz, brincando a sério. "Todos nós temos bens posicionais. Seria uma ilusão dizer que não. Pascal tinha um pensamento interessante: 'Os seres humanos se dividem em duas classes: os santos que se creem pecadores, e os pecadores que se creem santos.' Prefiro estar entre os santos."


Na Forbes dessa semana, Kenneth Rapoza ironiza os preços exorbitantes que os brasileiros pagam por carros importados. Afinal, por que aceitamos pagar tão caro?


Por um lado, porque não há alternativa. A indústria automobilística brasileira é altamente protegida. Os importados pagam uma tarifa exorbitante para entrar no País. Os carros ficam com um preço muito acima do mercado internacional, mesmo descontando os impostos. Por outro lado, os brasileiros se submetem aos preços pois os carros são "bens posicionais". A ideia é do economista inglês Fred Hirsch. O valor do bem posicional depende justamente da "exclusividade", isto é, do fato de que os outros não têm acesso a esses bens. Quanto mais caro, mais exclusivo. Quanto mais exclusivo, mais status. E, portanto, mais poder para impressionar os outros. O filósofo francês Nicolas Malebranche dizia que o desejo mais ardente das pessoas é conquistar um lugar de honra na mente dos seus semelhantes. Essa é a ideia do bem posicional: o proprietário pensa que as pessoas passam a respeitá-lo e admirá-lo mais porque ele pode desfilar um carrão, uma grife, um luxo.


Mas todos os bens são consumidos assim?


Há uma diferença. Um copo de leite, por exemplo, é um bem normal. Se tenho prazer em beber um copo de leite todas as manhãs, isso independe do resto da sociedade. Se amanhã todo mundo beber um copo de leite igualzinho, o meu prazer não mudará uma gota. Mas suponha que eu sou um jovem ambicioso, trabalho 12 horas no mercado financeiro, ganho meu dinheiro honestamente e decido que a coroação da minha vitória será um automóvel caríssimo. Compro meu carro dos sonhos - um BMW, um Mercedes ou um dos carros mencionados pela Forbes - e, de repente, tenho um estalo: "Eu sou especial". As meninas vão ver um brilho diferente no meu olhar, os amigos vão me invejar, os outros vão me respeitar quando passar na rua. Volto para casa feliz da vida. Mas, na manhã seguinte, acontece uma coisa estranha: todos os carros da cidade se transformaram em BMWs idênticos ao meu. E aí? Será que esse carro ainda tem a importância e o valor que tinha aos meus olhos e aos olhos dos demais? Ou será que o poder que ele me conferia simplesmente desapareceu? Pois é, desapareceu. Uma das melhores definições dessa ideia é do satírico romano Petrônio: "Só me interessam os bens que despertam no populacho a inveja de mim por possuí-los". Isso foi dito na Roma antiga, há dois milênios. Uma passagem de Adam Smith, n'A Riqueza das Nações (1776), também ilustra isso: "Para a maior parte das pessoas ricas, a principal fruição da riqueza consiste em poder exibi-la, algo que aos seus olhos nunca se dá de modo tão completo como quando elas parecem possuir aqueles sinais definitivos de opulência que ninguém mais pode ter a não ser elas mesmas". Essa é uma definição irretocável do bem posicional. Quer dizer, sim, compramos um sinal de opulência e de distinção, um prestígio, um brilho - embora muitas vezes sabendo que estamos sendo roubados. Mas, afinal, por quê? Beleza, poder e riqueza mexem com o psiquismo humano de uma maneira quase pré-racional. Não percebemos quão vulneráveis somos a esses apelos. Isso certamente não é de hoje. Ao longo da história, muitos pensadores se debruçaram sobre essa questão, a partir de uma perspectiva ética. Como entender o fascínio por beleza, poder e riqueza? Por que nos deixamos levar por essas promessas? Por que somos iludidos por esses bens posicionais?


No mês passado, os brasileiros marcaram níveis históricos de inadimplência (na série do Banco Central iniciada em 2000). Vale tudo para poder adquirir esse bens?


Estamos vivendo uma corrida armamentista do consumo, pois o bem posicional sempre se renova. Isto é, no momento em que se democratiza o acesso a um bem de consumo, outros novos são inventados. É como uma corrida armamentista: sempre teremos novos e diferenciados objetos de desejo. Primeiro é um tênis de marca, depois um carro importado, um iate, um jatinho, uma viagem a Marte. A corrida armamentista sempre se renova. Não dá para desmontar totalmente as armadilhas dessa corrida, mas podemos almejar uma sociedade mais madura e marcada por uma pluralidade de valores. Assim nem todos estariam competindo na raia estreita, por um carro x ou y. Deveríamos conquistar um lugar de honra na sociedade mais pelo que somos e menos pelo que possuímos.


Há diferenças entre a sociedade de consumo de outros países e a do Brasil atual?


O que complica o Brasil é a desigualdade. Isso acirra e exacerba o poder do dinheiro, da posse, da propriedade. Quem não tem superestima o que o dinheiro pode comprar, ficando muito vulnerável a fantasias e fascínios sobre o status. Na outra ponta, o rico tem o poder superdimensionado por poder comprar o trabalho dos outros a um preço aviltado, adquirindo uma preeminência desmesurada na sociedade. Mas a novidade brasileira é a mobilidade social dos últimos dez anos. Cerca de 30 milhões de brasileiros, antes praticamente excluídos, passaram a ter acesso ao mercado de consumo. Há um momento de deslumbramento diante dessas novas possibilidades, o que é natural, pois essas pessoas tiveram uma demanda reprimida durante diversas gerações. Por isso elas vão com muita sede ao pote, que lhes foi negado por muito tempo. Mas esse deslumbramento não pode durar para sempre. Em certo momento, a sociedade precisará amadurecer. E as pessoas, principalmente dessa nova classe média, vão precisar pensar no futuro.


O que quer essa nova classe média?


É o que todos queremos saber. Mas podemos dizer que essa nova classe média tem uma demanda vigorosa por credenciais educacionais. O que até seria certo, mas a ideia de educação é que está equivocada. Educação é conhecimento, cultura, formação, habilidades, informação. E não simplesmente um diploma, um papel vazio. Um dos dados mais estarrecedores dos últimos tempos foi revelado na pesquisa feita pelo Ibope. Um dado realmente alarmante: 38% dos egressos do ensino superior no Brasil são analfabetos funcionais. Há alguma coisa muito grave e muita errada em um sistema educacional em que isso acontece. Se tiver o mínimo de seriedade e até de autorrespeito, o governo deveria se debruçar sobre essa realidade, principalmente neste momento de ascensão social.


No livro O Valor do Amanhã o sr. diz que o imediatismo impera na sociedade brasileira. Como isso se traduz no consumo?


A imaginação brasileira é muito volátil: quando as coisas vão mal, as pessoas caem em desesperança radical; quando as coisas vão bem, elas caem na euforia e na exuberância. A lâmina da sobriedade precisa cortar nas duas direções. Essa preferência pelo presente, mesmo a um custo elevado no futuro, é uma das características mais marcantes da vida brasileira, com raízes históricas desde a colonização. Atualmente, dá para notar isso em muitas dimensões: a formação de capital humano, a infraestrutura, a poupança previdenciária. Os nossos juros exorbitantemente elevados são sintomáticos dessa predileção pelo presente. Eu me inspiro num conto de Machado de Assis intitulado, não por coincidência, O Empréstimo. Machado descreve um personagem com vocação para a riqueza, mas sem vocação para o trabalho. E a resultante é: dívida. Adaptei isso para a sociedade brasileira, pois o Brasil me parece um país com vocação para o crescimento, mas sem vocação para a poupança. E a resultante disso é desequilíbrio macroeconômico.


Com a ascensão dessa classe emergente, os ricos vão querer esbanjar ainda mais para manter seu status e seus bens posicionais?


Nós temos um quadro curioso de discriminação social no Brasil: as pessoas da elite financeira e econômica se sentem diferentes do resto da sociedade e não querem ter seus privilégios ameaçados. Por outro lado, o País tem uma inconsistência estrutural interessante em diversos campos: nos transportes, na moradia, na educação. A nova classe média tem uma demanda, legítima e até natural, por automóveis, um símbolo de autonomia e status. Mas temos infraestrutura para acompanhar uma agressiva expansão da frota? O avião, por exemplo. Antes restrito, o transporte aéreo agora está recebendo muita gente (e é bom que isso aconteça), mas temos infraestrutura para ordenar esse crescimento? Não, aí o caos nos aeroportos. A mesma falha na questão habitacional: há uma imensa demanda por moradia, absolutamente legítima e muito bem-vinda, por casa própria. Minha Casa, Minha Vida é a cereja do PAC. Mas temos infra urbana de saneamento básico, por exemplo, para dar real dignidade às pessoas? Em pleno século 21, 40% dos domicílios brasileiros não têm saneamento básico, o que é gravíssimo. E a telefonia? Todo mundo tem celular atualmente, mas ninguém consegue se comunicar direito por causa das panes do sistema. Nesses exemplos e em outras situações, encontramos a mesma inconsistência. Nós fazemos a parte fácil - relacionada ao consumo imediato -, mas temos muita dificuldade para dar estrutura a essas demandas de uma maneira sustentável e ordenada. Então, a vida cotidiana é conturbada. É um pesadelo vivido pela sociedade inteira, independentemente da classe social.


ECONOMISTA E FILÓSOFO, Ph.D. PELA UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE, PROFESSOR DO INSPER. É AUTOR DE O VALOR DO AMANHÃ

domingo, 19 de agosto de 2012

NEM O CÉU É O LIMITE


Harvard e MIT esperam, ainda este ano, educar mais de 1 bilhão de pessoas com os seus serviços digitais

Os números são quase inacreditáveis. Milhões de brasileiros, de todos os quadrantes, viram entusiasmados as cenas da microssérie “Gabriela”, especialmente as que focalizavam a beleza nativa da atriz Juliana Paes. Ao mesmo tempo, em outro horário, Carminha e Nina deram shows de interpretação, na virada fantástica da dinâmica da telenovela “Avenida Brasil”. O autor João Emanuel Carneiro é um mestre, na arte que consagrou Janete Clair e Gilberto Braga. Outros milhões de telespectadores ficaram de olhos grudados na telinha. Como aconteceu com uma amiga: “Cheguei a passar mal quando elas brigaram pra valer.”

Não há mais limites para o alcance da mídia eletrônica. Na verdade, nem mais o céu é o limite, como se dizia antigamente, nos primórdios da TV aberta (há pouco mais de 50 anos). Plataformas de filmes e séries, disponíveis em computadores, Ipad, Iphone e tablets, têm mais de 5 milhões de potenciais usuários — e o número tende a crescer avassaladoramente. A Globosat está lançando o canal Philos, dedicado a conteúdos eruditos, abrangendo arte, espetáculo, entrevista e debate, além de uma atração nacional em parceria com a Casa do Saber. Nem a mais fértil imaginação poderia supor esse crescimento tão rápido, na oferta de atrações.

Em conversa com o publicitário Nizan Guanaes, sentimos o seu entusiasmo com o que nos vem dos Estados Unidos, onde universidades como Harvard, MIT, Stanford, Princeton e Johns Hopkins, entre outras, promoverão cursos gratuitos a serem acompanhados de casa, via edxonline. Só as duas primeiras instituições esperam, ainda este ano, educar mais de 1 bilhão de pessoas com os seus serviços digitais, que incluem a língua inglesa e outros conhecimentos igualmente úteis.Aqui deve existir uma saudável junção de cultura e educação. Esses mecanismos estão sendo disponibilizados para ampliar a oferta de possibilidades de uso, como se pode assinalar pela existência comprovada, hoje em dia, de cerca de 1 milhão de estudantes via educação à distância no Brasil. É outro número que cresce em progressão geométrica, aliás, como convém aos nossos anseios de potência econômica e social.

Seria inteligente que a educação brasileira, com incríveis carências qualitativas, se valesse desses imensos potenciais para aperfeiçoar o que é oferecido aos nossos estudantes. Os meios oficiais, às voltas com greves e mais greves, não demonstram grande vontade de resolver o que é essencial para que tenhamos uma educação de Primeiro Mundo. Isso pode eternizar o atraso, o que é profundamente lamentável. Por: Arnaldo Niskier

Fonte: O Globo, 16/08/2012

sábado, 18 de agosto de 2012

EM DEFESA DA PUBLICIDADE INFANTIL


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As crianças brasileiras devem estar mais frágeis do que nunca. Por isso nossos excelsos legisladores têm se debruçado sobre um projeto de lei que, se passado, proibirá toda e qualquer publicidade voltada às crianças (PL 5921/2001). Pareceum pouquinho excessivo, talvez? Querendo ou não, gostando ou não do fato, ele já está fora de nossas mãos, e depende apenas do aval de deputados. Um pequenolobby militante se formou em torno de uma ideia, fizeram barulho o suficiente para convencer algum deputado, e é bem capaz que, em breve, tenhamos uma lei universal e radical que a maioria nem sabia que seria votada. Um belo dia nos tiram o ovo com gema mole; em outro, a sacolinha do supermercado foi banida; em outro, não existe mais propaganda infantil. São as maravilhas da democracia à mercê do ativismo.

Mas enfim, discutamos a tal lei: deve a publicidade voltada à criança ser proibida? Sim, dizem os representantes de ONGs como o coletivo Infância Livre de Consumismo (ILC), um "grupo de mães ativistas":
"A publicidade dirigida ao público infantil é danosa porque pressiona as crianças a desejarem cada vez mais bens de consumo, associando-os a um discurso enganoso de alegria, felicidade e status social. Esses bens de consumo podem ser alimentícios, de vestuário, brinquedos ou até mesmo itens para adultos anunciados para as crianças, que tornam-se promotores de tais produtos, indicando-os aos pais. Além de trazer sofrimento às crianças que não podem adquirir esses bens devido à falta de recursos financeiros, essa pressão causa estresse familiar e não pode ser devidamente elaborada pelos pequenos, cujo senso crítico ainda está em desenvolvimento."
Em primeiro lugar, o discurso é, no mínimo, exagerado. Vejam: minha geração cresceu assistindo à TV entre fins dos anos 80 e meados dos 90. Pegamos em cheio propagandas muito mais diretas e desavergonhadas que as atuais. Propagandas que não se preocupavam, nem por um segundo, em dar a impressão de que tinham alguma finalidade educativa ou lúdica: seu negócio era vender, vender, vender, apelando para tudo, mesmo para a inveja e a ostentação descaradas. Testemunhamos inclusive a propaganda mais nefasta e chantagista da história do capitalismo: nela, um menino convencido mostrava ao espectador uma tesourinha do Mickey, enquanto se gabava cantando o refrão "eu tenho, você não teeem!. Bons tempos!


Na minha classe, embora nem todos tivessem a tesourinha (era o meu caso), todos entravam na brincadeira de cantar o slogan. Ninguém ficou traumatizado; ninguém sofreu ou criou "estresse familiar". E se uma criança fizesse birra, implorasse aos pais por mais aquele presente, e se por algum motivo os pais não quisessem satisfazê-lo, seria uma oportunidade excelente para ensinar ao filho sobre as contrariedades da vida, sobre o valor do dinheiro, sobre ter prioridades e paciência. Hoje em dia a situação é exatamente a mesma. O que mudou é que muitos pais não se sentiriam à vontade para dizer esse "não" pedagógico. E por isso precisam apelar: segundo o projeto de lei, a propaganda infantil é "coação ou chantagem para a compra dos bens anunciados". Mentira; qualquer criança pode comprová-lo. A grande questão é por que alguns pais, que inclusive cresceram expostos à publicidade e portanto lembram muito bem que ela não os coagia, sentem a necessidade de repetir tais exageros. Voltarei ao tema mais adiante.

Diz o site do ICL que a criança pequena não sabe distinguir o verdadeiro do falso numa propaganda.



"[O] marqueteiro, que estudou vários anos e em geral fez curso superior, é um especialista em psicologia infantil, estuda os hábitos, conhecendo profundamente os desejos e aspirações de seu público-alvo. [...]Do outro lado, está a criança, geralmente solitária, indefesa e vulnerável, pois ainda não aprendeu as manhas do mundo adulto e acredita no que lhe é dito e mostrado. A disputa é covarde."

É verdade: a criança nem sempre distingue o verdadeiro do falso em uma propaganda. Sei por experiência própria. E sabem como a criança constrói o aparato crítico para discernir realidade e discurso? Com a experiência. Quando eu era pequeno, entrou no mercado o sorvete Frutilly da Kibon. Na propaganda, um menino mordia o picolé e dele saía um fantasminha camarada que lhe realizava alguns desejos. Fiz questão de que meu pai comprasse o picolé mágico na nossa próxima ida à padaria. Mais tarde, em casa, quando fui comê-lo, decepção: nenhum fantasminha. Aí a ficha caiu: não havia fantasminha; a propaganda mentira para mim!

Haverá melhor lição do que essa? O que aconteceria comigo se tivesse esperado até meus dezoito anos para finalmente assistir ao comercial de picolé?


Propaganda: parte normal da vida


A publicidade faz e sempre fez parte da vida das crianças. Desde pelo menos 50 anos até hoje todas as gerações cresceram em meio a intensa publicidade de massas. Se a vida em família piorou na última década, se as crianças estão com mais problemas psicológicos, se os pais não sabem o que fazer, não pode ser, portanto, culpa da propaganda.

Notem que há, inclusive, alguns exemplos de propaganda que os mesmos pais que querem banir a publicidade infantil devem achar magníficos. Falo das campanhas insistentes e onipresentes em duas áreas específicas: meio-ambiente e saúde. Na minha infância isso já existia, mas hoje em dia é praticamente impossível encontrar qualquer programa, livro ou peça de teatro infantil brasileiro que não faça propaganda ecológica ou de saúde (e pode apostar que há diversas empresas de sabonetes que se beneficiam dos apelos incessantes de que se lave as mãos a todo instante).

Não tenho nada contra essas mensagens. Irrita-me um pouco a onipresença desse discurso e o tom de sermão ou alarme aos quais ele sempre vem associado, mas, fora isso, acho que ele está essencialmente certo. Estou apenas apontando um exemplo de propaganda na vida das crianças, às quais elas estão sujeitas mesmo dentro da escola, mesmo no consultório do pediatra e mesmo na relação com os pais, e que todo mundo aceita.

Por acaso a criança tem discernimento para saber se a reciclagem do lixo realmente promove um mundo melhor, ou se ela, em muitos casos, promove apenas a ineficiência no uso dos recursos? Alguma criança entenderá profundamente o mecanismo da vacina? E no entanto lá está o Zé Gotinha, personagem publicitário amado por todos.


Os benefícios da propaganda infantil


Afinal, a propaganda de produtos infantis tem algum valor? É claro que sim. Em primeiro lugar, ela cumpre a função de toda propaganda: informar o consumidor sobre quais produtos existem, para quê servem e persuadi-lo a experimentá-los. Novos brinquedos e jogos dependem da propaganda para que sejam conhecidos. Proibir a propaganda é comprometer a capacidade de novos produtos serem lançados no mercado. Para quê investir em um novo brinquedo se ninguém ficará sabendo de sua existência?

Alguém pode dizer que a propaganda não apenas informa, como mexe com as aspirações do espectador. E isso é verdade. Digo mais: não fosse por toda a dramatização em volta de brinquedos simples como bonequinhos articulados (que nas propagandas apareciam com cenários realistas, sons, e brincando quase que por conta própria), cairia o apelo deles para as crianças. Mas a criança, uma vez que tenha o bonequinho, aprende a brincar com ele nas condições reais de seu quarto ou casa, e passa a gostar muito de brinquedos que ela só desejou originalmente porque a propaganda assim lhe inspirou. A propaganda infantil usa uma linguagem com a qual a criança pode se relacionar: mostra as potencialidades contidas num brinquedo e como elas podem ser exploradas. A criança bem sabe — ou logo aprende — que, em sua casa, não poderá fazer o mesmo exato uso dele que ela vê na propaganda, mas isso não impede que ela se divirta.

Ninguém tinha a coleção completa de bonequinhos das Tartarugas Ninja: as brincadeiras envolviam bonecos de várias séries incongruentes, e de tamanhos diferentes; sem rochedos cenográficos como os das propagandas, a cama fazia a vez de montanha; uma parte mais clara do chão, lava borbulhante. As crianças se viram com o que têm; a fantasia do comercial serve como uma sugestão, uma possibilidade que pode ou não nortear a brincadeira.

Outro efeito bom da publicidade infantil é que ela permite que exista, na grande mídia, espaços destinados às crianças. Uma hora de desenhos animados é assistida basicamente por crianças; se um canal não puder veicular propaganda para crianças nesse horário, para quê ofertar essa hora? Uma revista infantil deriva parte de sua renda de propagandas; sem propagandas, menos revistas infantis serão viáveis. Em consequência, cai também o financiamento de programação infantil, pois há menos distribuidoras e veículos de informação dispostos a pagar para poder veicular aquele conteúdo.

Os ativistas querem beneficiar as crianças. Mas, com suas medidas, as crianças saem perdendo; com menos opções de programas, menos horários na TV e revistas destinadas a elas, menos brinquedos no mercado e menos meios para descobrir que brinquedos existem e por que eles deveriam lhes interessar.

O real motivo da campanha

Propaganda infantil não é novidade. Se as crianças e famílias de hoje em dia passam por problemas, a culpa não é da propaganda. Ela tem que ser um bode expiatório para alguma outra deficiência de fundo.

A meu ver, há uma mentalidade (gerada talvez em parte pela própria ideia do estado provedor e protetor) de minimização absoluta dos riscos, dos perigos e dos desgostos da vida que aumenta o custo (principalmente mental) dos pais, sem trazer grandes ganhos — e talvez com perdas — para os filhos, conforme argumenta o economista Bryan Caplan em Selfish Reasons to Have More Kids. Hoje em dia, a preocupação e o medo de muitos pais para com seus filhos chegaram ao nível de neurose. Se os pais estão incapazes de dizer "não" às birras do filho pela tesourinha do Mickey da vez, está na hora de ver bem por que isso ocorre.

Por trás dessa insegurança toda, acredito, existe a consciência mais ou menos clara de que não se está fazendo o bastante pelo filho. Os pais trabalham o dia inteiro e, em seu tempo livre (e todo mundo tem algum tempo livre), não se interessam pelos filhos. Deixam o filho na frente da televisão o dia inteiro, e depois, quando ele exige brinquedos e regalos, tenta comprar pelo suborno a relação que não foi construída pelo amor. A criança percebe isso, e é claro que isso a afeta. Culpar uma propaganda de TV, fenômeno insignificante da vida infantil, pelos transtornos infantis e pelo estresse familiar chega a ser ridículo. Arrisco até a dizer que o impulso de procurar culpados externos e impessoais, como os publicitários todo-poderosos e o sistema capitalista, seja parte do problema que os acomete, e não da solução.

E essa tendência acaba por distorcer a visão de mundo de muita gente. A campanha antipublicidade infantil depende da crença de que o mundo da produção, do consumo e da publicidade, ou seja, o mercado, é algo mau e sujo. Confunde-se, talvez intencionalmente, consumo com consumismo. Isso é óbvio nas citações acima.

Não há absolutamente nada de errado no consumo. Muito pelo contrário: é consumindo que o homem se mantém vivo. Todos nós nascemos consumindo: o leite materno, as roupas, o berço. Conforme o indivíduo cresce, vai se tornando capaz de produzir. É maravilhoso poder fazer parte dessa enorme rede voluntária de cooperação mútua: cada um contribui e recebe de volta de acordo com sua capacidade de satisfazer aos desejos dos demais.

O consumismo, por outro lado, é um fenômeno psicológico: é a crença irracional de que o próximo produto comprado trará — em geral pelo status que ele confere a seu possuidor — a felicidade, a realização e a paz que se procura. Isso não tem nada a ver com o livre mercado. Aliás, é notório que hoje em dia, vivendo sob estados fortemente intervencionistas, o consumismo seja um problema maior do que era, por exemplo, no século XIX, mesmo em países liberais como os EUA foram.

A entrada da criança no mundo do mercado (que inclui a responsabilidade pelos próprios atos, a capacidade de tomar alguns riscos, planejar os próprios atos, descobrir do que realmente gosta, pensar nos outros, manejar recursos escassos) deveria ser estimulada, e não adiada pela construção de uma bolha artificial que cria a impressão de que o universo surge do nada para suprir seus desejos e que, essa sim, torna-a alvo fácil do consumismo. Quem guia esse processo, preparando e auxiliando a criança em cada etapa, e evitando que ela faça escolhas desastrosas ou se depare com situações que excedam sua capacidade, são os pais.

O papel dos pais


Há um elemento nessa história toda que ainda não foi mencionado, mas que é central para resolver a questão: a criança não controla o dinheiro da família. Por mais inexperiente que seja, e exatamente por estar ainda em desenvolvimento, ela não tem a decisão final das compras. Esta sempre cabe aos pais. Mesmo supondo que a propaganda seja onipotente em controlar os desejos da criança, isso não seria desastroso; pois para que ela compre o brinquedo ou guloseima desejados, é preciso uma escolha consciente dos pais.

Os pais têm pleno direito de educar seus filhos conforme seus valores. Se um casal que leu este texto discorda radicalmente de tudo o que eu falei, ainda assim tem plena liberdade de criar seu filho longe do mundo da publicidade e do mercado, e de toda a cultura de massas. Há, aliás, uma solução simples a seu alcance: não ter televisão em casa. Ou tê-la apenas para assistir DVDs.

Claro que deixar o filho vendo TV o dia inteiro não é uma boa escolha, embora seja o que aconteça em muitas casas. Em lugares mais pobres ou nos condomínios de classe média, acredito que isso seja mitigado pela presença de irmãos e de outras crianças da vizinhança ou do prédio, que acabam brincando juntas, jogando bola, etc. É nos apartamentos e casas da classe média alta para cima, em que pais superprotetores isolam seus filhos do mundo externo mas também não lhes dão maior atenção, que mora o problema.

Taís Vinha, representante do ILC na audiência pública feita pelos deputados, diz que "da hora que acordam até o momento de dormir, as crianças são bombardeadas pela publicidade do consumo". Implícita nesta frase está a admissão, não tão abonadora, de que há pais largando seus filhos na frente de TV "da hora que acordam até o momento de dormir". Se os pais se omitem, não é proibir a propaganda e alterar a programação da TV que resolverá o problema.

As necessidades do trabalho por vezes fazem com que a criança fique longe dos pais por várias horas diariamente. Isso não significa que a televisão seja a única opção. É possível impor regras ou mesmo limitar o acesso dos filhos à TV. A criança se vira. O mundo, mesmo dentro de um apartamento, é um lugar a ser descoberto. Uns poucos brinquedos, papel para desenho, um quintalzinho, crianças vizinhas, uma área comum de prédio, uma rua menos movimentada, as tarefas domésticas feitas por algum adulto; tudo é campo aberto para a curiosidade infantil.

São os pais que informam e, idealmente, formam os filhos, dando critérios para que eles julguem, no melhor de suas habilidades, as ideias e mensagens que o mundo lhes apresenta. Isso exige, entre outras coisas, algumas limitações ao que a criança pode ou não fazer. Eu mesmo, que dos 3 aos 8 anos morei em apartamento e sem crianças vizinhas, cresci com regras sobre horário de TV até o colegial e, embora protestasse, reconheço que elas me fizeram aproveitar melhor o tempo livre. Sempre há opções. O pai que finge que não tem opção a não ser deixar o filho na frente da TV o dia todo e quer passar para toda a sociedade a sua responsabilidade de pai está fugindo de sua função. Não o deixemos, e lembremos que quem paga esse pato é o filho, cujas neuroses e o resultante consumismo não vêm de um anúncio de tesouras do Mickey, mas de perceber que seus pais não se interessam por ele.

Não estou com isso dizendo que quem defende o fim da publicidade infantil é mau pai. O que quis mostrar neste artigo é que essa nova lei terá efeitos nefastos, e que o que ela visa proibir não é mau e nem solucionará os problemas da infância, que têm raízes muito mais profundas.


Joel Pinheiro da Fonseca é membro do Instituto de Formação e Educação e um dos responsáveis pela publicacção da revista Dicta&Contradicta.

PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS

As parcerias público-privadas - a porta de entrada para o socialismo



Escândalos como o da Construtora Delta, da Camargo Corrêa e da Gautama, além de obras públicas malfeitas — como as do metrô de São Paulo, que desabaram no início de 2007 —, são meros sintomas de um arranjo político-econômico que premia aquelas empresas que têm fortes conexões com o estado. 


Tal arranjo político-econômico, conhecido tecnicamente como parcerias público-privadas, nada mais é do que um arranjo corporativista no qual estado e grandes empresas se aliam para, sob o manto de estarem fazendo obras, extorquir os cidadãos e dividir entre si o butim, dando em troca algo que lembra um pouco, com muita boa vontade, um serviço de infraestrutura.

Este arranjo é excelente para ambos os lados: os políticos ganham o crédito pela obra, recebem "agrados" das empresas que ganharam a licitação e, como consequência, garantem uma reeleição; e as empreiteiras contratadas ganham obras que serão pagas com o dinheiro do contribuinte — logo, sem qualquer zelo e critério, pois ninguém gasta o dinheiro dos outros com parcimônia —, o que faz com que os lucros sejam garantidos, a necessidade de qualidade, nula, e as chances de superfaturamento, uma certeza.

Na outra ponta do arranjo está o cidadão desamparado, obrigado a sustentar a farra e sem qualquer voz ativa neste arranjo que está sendo financiado com o seu suado dinheiro.

Por não estarem sujeitas a um ambiente concorrencial, empresas e empresários não precisam se preocupar em mostrar resultados. Vale mais fazer lobby e subornar políticos para ganhar licitações do que prestar um bom serviço no mercado. E é justamente por não estarem sujeitas à disciplina do livre mercado que os problemas surgem — e são muito sérios.

São dois os principais problema de uma parceria público-privada: o monopólio garantido pelo estado e a ausência de propriedade privada. Para começar, as empreiteiras estão ali apenas para receber o dinheiro subsidiado pelos pagadores de impostos e entregar a obra dentro do prazo especificado. Não há livre concorrência. Uma empresa não tem que mostrar um serviço melhor que o de uma concorrente para sobreviver. Adicionalmente, as empresas não irão gerir o empreendimento para sempre, pois se trata apenas de uma concessão, um aluguel. Uma vez findado o prazo de concessão, o empreendimento volta para as mãos do estado. Logo, as empresas não têm interesse em primar pela qualidade e eficiência de suas obras. Não haverá punição de mercado.

Como o dinheiro vem majoritariamente do BNDES — sempre que você vir a sigla BNDES, pense na sua carteira sendo surrupiada —, não há nenhuma preocupação com controle de custos. Dado que as empresas não trabalham com capital próprio, isso significa que as empreiteiras têm de satisfazer o estado e não o consumidor do seu produto final — que, em um genuíno livre mercado, é quem realmente manda. Não há mecanismos de mercado para alocar os recursos de modo eficiente. O governo decide quem vai fazer a obra, como ela será feita e em que prazo. O monopólio fica então estabelecido. Eventuais empresas que porventura quisessem concorrer naquele mesmo setor por conta própria, sem utilizar um único centavo público — e que, por isso, pudessem cobrar de tarifas e pedágios o valor que quisessem — estão rematadamente proibidas de incorrer em tal empreendimento. O estado não deixa.

Caso houvesse essa liberdade de empreendimento, a empresa que construísse a obra viária, ferroviária, portuária e aeroportuária seria também a dona dela. Neste cenário, não é desarrazoado imaginar que ela teria total interesse na qualidade e durabilidade do produto, pois este arranjo seria o que menos lhe traria custos de longo prazo — afinal, não seria inteligente utilizar materiais baratos, asfalto de baixa qualidade, linhas férreas pouco resistentes, cais de baixa capacidade de escoamento e instalações aeroportuárias fajutas, pois as despesas com reposição e indenização por acidente não compensariam a economia inicial de custos.

Utilizando a ciência econômica, é possível prever de antemão que o recém-anunciado pacote de concessão de obras de infraestrutura pelo governo federal, seguindo o modelo de parcerias público-privadas, não tem como gerar resultados satisfatórios. No final, a culpa será atribuída ao livre mercado, que nunca entrou na história.

Por último, um adendo técnico: embora o arranjo que preconize parcerias entre governo e iniciativa privada seja popularmente conhecido como fascismo, o atual modelo brasileiro não possui exatamente esta característica. Afinal, o fascismo ainda permite a propriedade privada. Já as PPPs brasileiras apenas fazem concessões a empresas privadas por um prazo de tempo específico. Findado este prazo, o governo toma a propriedade. Isto é socialismo. Veja mais aqui sobre as recentes estatizações de aeroportos no Brasil.

A seguir, um pouco mais sobre as PPPs.

Quando a propriedade privada é mesclada com a pública em algum empreendimento, temos um arranjo socialista. Trata-se também de uma tática ardilosa empregada por aqueles em busca de poder, ainda que sob um nome mais sofisticado: Parceria Público-Privada.

As PPPs são essencialmente contratos entre uma agência pública e uma empresa privada. Nesse arranjo, ativos, riscos e remunerações são compartilhados no intuito de se fornecer um bem ou um serviço ao público. A justificativa para tal arranjo é que a iniciativa privada fornece maior eficiência e serviço de melhor qualidade, enquanto que a agência governamental é capaz de prover o capital adicional. Argumenta-se também que esse arranjo (potencialmente) leva a "empregados mais estimulados", melhores oportunidades educacionais e uma melhor segurança pública. Outra vantagem alegada é que as agências governamentais conseguem economizar entre 20 e 50 por cento com o uso das PPPs.

A primeira PPP que se tem notícia ocorreu em 1652, quando a Water Works Company of Boston começou a fornecer água potável para os colonos de Massachusetts. Atualmente, as PPPs não são nenhuma novidade para a vasta maioria dos países do globo, uma vez que todos os governos e suas agências estão engajados nesse arranjo. As Parcerias Púbico-Privadas são normalmente utilizadas no setor de água/água residual, transporte, esgoto, desenvolvimento urbano, estradas e serviços sociais. 

A economia neoclássica, ao classificar como "bens públicos" algumas áreas da economia, é parcialmente responsável pela justificativa de que o governo deve intervir justamente para fornecer esses bens e serviços. A maioria dos governos de hoje está centrada em levar as PPPs para muito além daquelas áreas que os economistas neoclássicos chamam de "bens públicos" (serviços de defesa, iluminação de ruas, etc.)

PPPs: uma análise econômica

Os governos utilizam as PPPs para justificar o envolvimento e a intervenção do estado, e tipicamente associam as PPPs à inovação, o que parece um paradoxo. Felizmente, os economistas austríacos podem mostrar as várias prováveis e inesperadas consequências da intervenção governamental na forma de PPPs, inclusive os (trágicos) efeitos sobre o empreendedorismo. Vamos discutir alguns desses, utilizando como guia o excelente e perspicaz livro de Mises, Bureaucracy. Dois tópicos frequentemente associados ao empreendedorismo — inovação e risco — talvez sejam os mais pertinentes à nossa discussão.

Inovação

Uma das razões que os governos mais gostam de utilizar como justificativa para essas parcerias é "estimular a inovação". Há muitos motivos pelos quais tal objetivo é difícil, se não impossível. Empresas privadas que ganham um monopólio garantido pelo governo como consequência de uma PPP terão menos (ou nenhuma) concorrência, o que diminui qualquer incentivo para aumentar sua eficiência e ofertar serviços de melhor qualidade e produtos a preços mais baixos. Quando o governo garante sua receita — seja lhe concedendo um serviço monopolístico em que você pode livremente cobrar taxas pelos seus serviços, seja por meio de subsídios diretos —, haverá menos incentivo para se cortar custos.

A inovação também será menos provável caso a parceria especifique que as receitas serão obtidas em um arranjo do tipo "cost plus (custo mais)", no qual a tarifa de um produto é fixada de acordo com o total dos custos mais o lucro do produtor. Nesse caso, as empresas terão garantida uma quantidade específica de lucro líquido, independente da receita ou do seu custo real. Quando o contrato da PPP garante um período de tempo (tipicamente em anos), as empresas podem não mais estar interessadas em aumentar seus lucros, uma vez que não há perigo em perder o monopólio dessa área de atuação durante o intervalo de tempo acordado. Assim, as PPPs não estão sujeitas ao severo teste de lucros e prejuízos que apenas o mercado oferece, dado que elas não têm como ter prejuízos.

Mises demonstrou o erro em tentar utilizar as PPPs como catalisadoras da inovação:

Dizer ao empreendedor dono de uma empresa com limitadas chances de lucro, "Comporte-se como um burocrata consciencioso", é o equivalente a dizer a ele para evitar qualquer tipo de reforma. Ninguém pode ao mesmo tempo ser um burocrata correto e um inovador. O progresso ocorre exatamente quando as regras e regulações não o preveem; ele está necessariamente fora do campo das atividades burocráticas.

O progresso e a inovação são imobilizados por velhas regulamentações governamentais, velhos códigos e ideias estabelecidas. "Se não está quebrado, não conserte", é o lema do burocrata estatal — e, como Mises demonstrou, estes são tipicamente homens de mentalidade estreita e com ideias já definidas sobre o que funciona e o que não funciona. Em contraste, a inovação é muito mais do que apenas se certificar de que um produto "não está quebrado": trata-se de aperfeiçoar um produto que já funciona bem e que está em alta demanda (pense no iPhone para a tecnologia wireless ou no Google Chrome para navegadores da Web).

Contrariamente à iniciativa privada, empresas em parceria com o governo que desejem introduzir inovações serão obrigadas a passar por inúmeras formalidades e vários níveis de burocracia para conseguir a aprovação. Não fosse esse privilégio monopolístico garantido pelo governo, o tempo requerido para toda a aprovação burocrática iria eliminar qualquer vantagem adquirida pelo pioneiro de um determinado setor econômico.

Ademais, o capital utilizado no investimento não será necessariamente gerado pela poupança ou por operações de mercado, mas provavelmente por meio de um 'orçamento compartilhado' com o governo. Por fim, em vez de haver o incentivo de se obter o maior lucro possível, os governos frequentemente determinam um teto para o lucro total, e tributam ou confiscam completamente qualquer lucro acima da quantia arbitrariamente especificada, o que desestimula qualquer inovação.

Risco

O risco é outro aspecto que precisa ser analisado em relação às PPPs. Empresas que são privilegiadas com um contrato governamental podem, em algumas situações, ser mais avessas ao risco, já que o risco apenas perturba as circunstâncias prevalecentes, e aumenta a possibilidade de insucessos. Isso ocorre porque a empresa estará "segura" (isto é, sua receita está virtualmente garantida) caso não incorra em nenhum risco. Caso a empresa resolva se arriscar, quem sofrerá prejuízos será ela, e não o governo.

Empresas em parceria com o governo também perderão (em última instância) o controle sobre sua capacidade decisória. Por exemplo, o governo estará menos inclinado a permitir que uma empresa assuma riscos que possam afetar qualquer "receita" governamental que se origine dessa empresa. Manter o status quo é a regra do jogo. No final, as empresas terão de seguir os desejos e caprichos do governo - e não os de seus consumidores. A empresa verá riscos não no fato de o consumidor querer ou não comprar seus produtos e serviços, mas sim no fato de ela estar ou não em linha com os desígnios dos burocratas que a supervisionam. Assim, qualquer risco passa a ser centrado no agrado aos burocratas, em detrimento do agrado ao consumidor.

Por outro lado, riscos de falência são praticamente reduzidos a zero durante a extensão do contrato, uma vez que o governo tem a capacidade de subsidiar prejuízos por meio da tributação ou de outras medidas coercivas. Dado que é virtualmente impossível que pequenas empresas obtenham contratos governamentais, o que temos é a eliminação prematura de qualquer empresa incipiente e de qualquer investimento da pequena empresa naquele mercado específico. Assim, a concorrência e a ameaça de concorrência são quase nulas. Vemos que o governo é de fato o inimigo — e não o defensor, como errônea e comumente se imagina — do empreendedor incipiente, isto é, do "pequenininho".

Em uma PPP, embora as receitas sejam garantidas pela duração do acordo, a estabilidade é limitada apenas à duração da atual administração, isto é, à confiança de que o governo manterá seus acordos e promessas. Ironicamente, exatamente pelo próprio ato de ter criado uma parceria público-privada em uma indústria, e por ter assim eliminado ou diminuído a concorrência, o governo acaba solapando qualquer confiança no mercado, uma vez que outras indústrias agora estarão em risco caso o governo venha a fazer mais acordos de parceria.

O que restou de capitalismo no mundo será extirpado e suplantado pelo corporativismo; qualquer reminiscência de livre mercado terá de se curvar às medidas coercivas do governo, o que resultará em monopólios e cartéis.

As PPPs como justificativa para o agigantamento do estado

Quando o governo está livre para se associar a qualquer empresa privada e garantir um acesso a terra, trabalho ou capital que não teria ocorrido na ausência dessa intervenção governamental, a propriedade de todos torna-se exposta ao risco de uma encampação governamental. Uma empresa privada normalmente não poderia construir uma rodovia que passasse pela propriedade privada de terceiros. Entretanto, o governo, por meio da desapropriação, pode se apossar da propriedade privada de indivíduos e construir praticamente o que desejar nelas. Em outras palavras, o governo pode não apenas extrair dinheiro de indivíduos (impostos), mas pode também tomar toda a sua propriedade privada (algo mais tangível).

Fora isso, parcerias público-privadas, por causa da palavra "privadas", são normalmente vista como legítimas e, pior, como representantes de um genuíno capitalismo. Já a palavra "público" remete a governo, o que dá a impressão de legitimidade. Assim, as PPPs podem se expandir e se multiplicar sem justificativas reais e com pouca hostilidade. O (já errôneo e mal interpretado) significado de "bens públicos" é desta forma expandido para além da interpretação neoclássica inicial, passando a significar qualquer coisa que possa ser considerada boa para o público.

Murray Rothbard explica como que a violenta intervenção do governo em uma parte da economia resulta em um "caos calculacional", o que inevitavelmente se propaga para outros setores da economia: 

Cada empresa governamental introduz sua própria ilha de caos na economia; não há qualquer necessidade de esperar pelo socialismo genuíno para que o caos comece a operar. Nenhuma empresa governamental pode jamais determinar preços e custos, ou alocar fatores e fundos, de maneira racional e que maximize o bem-estar.

Rothbard em seguida declara que o governo não pode ser "gerido como uma empresa":

Toda e qualquer operação governamental introduz um ponto de caos na economia. E, dado que todos os mercados de uma economia são interconectados, toda e qualquer atividade governamental irá distorcer e perturbar os preços, a alocação de fatores, a proporção entre consumo e investimento etc. Toda empresa governamental não apenas diminui o bem-estar social dos consumidores — por forçar a alocação de fundos para fins que não são aqueles desejados pelo público —, como também diminui o bem-estar de todos (incluindo, talvez, o bem-estar dos próprios funcionários do governo), pois distorce o mercado e espalha o caos calculacional. Quanto maior for a extensão das propriedades do governo, mais pronunciado será esse impacto, obviamente.

(Nesse artigo, Ludwig von Mises explica cristalinamente por que uma empresa governamental é incapaz de calcular preços em uma economia.)

Portanto, quanto maior o grau de envolvimento do governo em uma economia, maior o volume de caos calculacional, e mais perto estaremos do socialismo.

Conclusão: o poder das ideias

Em 1942, Joseph Schumpeter escreveu que os intelectuais ameaçariam e condenariam o capitalismo não pelos seus fracassos, mas pelos seus sucessos — e que o socialismo era inevitável. Parece que o povo deseja realmente ir em direção ao socialismo. Há cada vez mais clamores para que o governo intervenha em quase todos os aspectos das atividades cotidianas do cidadão — e como disse H.L. Mencken, "A democracia é a teoria de que as pessoas comuns sabem o que querem; e elas merecem receber o que desejam de modo severo e inflexível". São necessárias inúmeras propagandas governamentais para que tal mensagem insensata seja promovida. Mises expressou acuradamente: "A verdade não precisa de qualquer propaganda; ela se sustenta a si mesma".

O perigo das parcerias público-privadas e sua promoção tanto por burocratas do governo quanto por empresários foi talvez expresso da melhor forma por Rothbard:

Sempre que surgir um grande empresário abraçando com entusiasmo e júbilo a parceria entre governo e empresas, senhoras e senhores, é bom ficarem de olho em suas carteiras — vocês estarão prestes a ser espoliados. [No Brasil, tal empresário já é conhecido por todos, e sua estridência ao cantar as glórias do governo não possui rivais].

Entretanto, ainda há esperanças. Vivemos em um mundo de ideias, um mundo em que o teclado QWERTY é verdadeiramente mais poderoso do que o mais recente instrumento militar. A incompetência estatal, e a rapidez e magnitude dos fracassos governamentais estão por todos os lados. Quanto mais isto for exposto e puder ser substituído pela ideia de livre mercado — e com a maior tecnologia de comunicação da história, as ideias podem se espalhar mais rapidamente do que nunca —, mais rápida será a mudança em direção à genuíno liberdade da livre concorrência e, por conseguinte, a um nível de prosperidade jamais vivenciado. As parcerias público-privadas seriam extintas e desprezadas, sendo conhecidas apenas pelo que de fato são: um arranjo fascista que funciona como a porta de entrada para o socialismo; uma zombaria das genuínas parcerias e da genuína liberdade. Apenas neste ambiente, o empreendedorismo e a inovação estariam livres para prosperar.

Chris Brown é professor de administração e empreendimento da universidade australiana de Swinburne. Ele também planeja centralizadamente um blog sobre austro-libertarianismo.

OS BENEFÍCIOS DO CONSENSO

Sociedades muito divididas por visões ideológicas conflitantes paralisam seus governos e impedem que façam as escolhas necessárias. O exemplo que vem logo à mente é o dos Estados Unidos, onde graves problemas da economia e do Estado deixam de ser enfrentados porque as instituições políticas vivem um estado de impasse permanente.


Uma experiência oposta vem sendo vivida, às vezes sofridamente, pelo Brasil após a Constituição de 1988.
Repito o que ouvi do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso:"O Brasil que temos hoje, e do qual temos justo orgulho, é o resultado de uma sequência virtuosa de eventos na política e na economia, que começa pela nova Constituição, passa pela abertura da economia, promovida no governo Collor, segue pela derrota da inflação e a reforma do Estado realizadas no meu governo, e avança com as políticas sociais de inclusão do governo Lula".

Concordo com o ex-presidente. Essa tem sido a nossa vantagem. Muito diferente do que ocorre na maior parte de nosso continente, onde ou se tem a obsessão da continuidade, que suprime a alternância enriquecedora, ou então a alternância conflituosa, que se esgota em destruir ou desqualificar o que passou. No Brasil, temos vivido, apesar das retóricas diferenciadas, uma continuidade substantiva que alimenta, por sua vez, uma ampla zona de consenso na sociedade.

O anúncio nesta semana do grande programa de concessões ao setor privado de rodovias e ferrovias, aos quais se seguirão novas concessões ou parcerias em portos, em hidrovias e em aeroportos, acrescenta um novo elo virtuoso nessa sequência de fatos. Ao ser aplaudida pela quase unanimidade da opinião pública, dos partidos políticos e da imprensa, a ação do governo é uma demonstração de que, apesar de sermos uma sociedade diversificada e plural, somos capazes de concordar no fundamental e de sermos racionais. No mundo moderno, os governos não podem funcionar se lhes falta essa dose de acordo social.

O programa de concessões de infraestrutura é fruto de uma visão integrada dos diversos sistemas logísticos e cobre as necessidades essenciais da nossa produção econômica, unindo praticamente todas as regiões do país, similar às iniciativas pioneiras do governo Juscelino Kubitschek. As áreas de produção do interior do Brasil serão ligadas por ferrovia a todo o sistema portuário, do Sul ao Nordeste e ao Norte, criando amplo leque de opções que vão reduzir os custos de transportar e embarcar mercadorias. Além disso, uma rede de rodovias modernas servirá para integrar mais ainda todo o território nacional, encurtando distâncias, favorecendo os contatos e ampliando mercados.

Do ponto de vista dos produtores rurais brasileiros, esse programa é um divisor de águas. Até aqui, o produtor abriu novas fronteiras, produzindo antes que chegasse a logística e pagando sozinho o preço da sua coragem. Os produtores vão ganhar em competitividade e, com eles, a economia brasileira. Ao escolher o caminho da concessão à iniciativa privada, a presidente Dilma mostrou que seu objetivo é resolver problemas. A capacidade fiscal do Estado brasileiro e de quase todos os Estados modernos está ficando cada vez mais reduzida.

Não se pode mais aumentar impostos e não se pode, igualmente, negligenciar os deveres sociais do Estado com a educação, a saúde e o combate à pobreza. Persistir na ficção de que o governo pode fazer tudo o que é necessário é escolher o atraso e a pobreza e depois a inflação e a ruína do próprio Estado. A Europa está bem aí para nos lembrar.

A sociedade brasileira precisa persistir nesse caminho. Os governos são sempre muito pressionados para servir aos interesses de corporações, grupos ou minorias. A história de sua resistência em favor do interesse de todos nem sempre fica visível à opinião pública. No Brasil, os governantes são sempre deixados em grande solidão quando se empenham em modernizar o Estado e em romper com os privilégios. Que desta vez isso não se repita, é o meu desejo. 

KÁTIA ABREU, 50, senadora (PSD/TO) e presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil)