sexta-feira, 7 de setembro de 2012

POR QUE AINDA HÁ COMUNISTAS?


Entre os muitos livros que deveriam ser traduzidos no Brasil - mas não o foram, dada a censura onipresente dos ditos intelectuais de esquerda - está Le Dieu des Ténebres, antologia que reúne depoimentos de escritores que um dia militaram nas fileiras de Moscou, para logo abandoná-las, ao intuir a essência totalitária do marxismo. O livro, assinado por Arthur Koestler, Ignazio Sillone, Richard Wright, André Gide, Louis Fischer e Stephen Spender, foi publicado em 1950, em Paris. Entre os vários depoimentos, transcrevo estes trechos do escritor italiano Ignazio Silone:

"A verdade é que minha saída do Partido Comunista constituiu para mim uma data muito triste, um grave luto, o luto de minha juventude. E eu venho de um país onde se porta luto por mais tempo que alhures. Não nos libertamos facilmente de uma experiência assim intensa como a vivida na organização comunista. Dela sempre subsiste qualquer coisa que marca o caráter pelo resto da vida. Vejam, aliás, como são facilmente reconhecíveis os ex-comunistas. Eles constituem uma categoria à parte, como os padres apóstatas e os ex-oficiais de carreira. Hoje, o número de ex-comunistas é legião".

Os comunistas - e também os petistas - sempre me lembram o Dr. Strangelove, do filme homônimo de Kubrick. Quem o viu deve lembrar dos reflexos condicionados do braço esquerdo do cientista semiparalítico, que mal seu dono se descuidava, se erguia na saudação nazista. Strangelove tinha de contê-lo com a mão direita. Quem um dia foi comunista, fica para sempre marcado na paleta. Aliás, como os ex-seminaristas, como aventa Silone, ao falar de padres apóstatas. A fé entorta o cachimbo. 


No dia 10 de agosto passado, saudei o centenário de nascimento de Jorge Amado, a mais operosa prostituta das letras tupiniquins. Um leitor atento me envia link de uma entrevista que me passou despercebida. Antes da entrevista, algumas considerações.

Em meu ensaio Engenheiros de Almas, comento o zdanovismo de Amado. Por zdanovismo, entenda-se a tosca doutrina estética do teórico Andrei Zdanov, mais conhecida como realismo socialista, que consistia em colocar a literatura – como também as demais artes – à serviço da revolução. Da revolução comunista, é claro.

Em 1956, com as denúncias de Nikita Kruschev no XX Congresso do PCUS, assumir as determinações de Zdanov já não era mais possível. Em carta publicada pelaImprensa Popular, do dia 10 de outubro do mesmo ano, Jorge Amado faz um tímido mea culpa:

“Aproximamo-nos, meu caro, dos nove meses de distância do XX Congresso do PCUS, o tempo de uma gestação. Demasiado larga essa gravidez de silêncio e todos perguntam o que ela pode encobrir, se por acaso a montanha não vai parir um rato.


“Creio que devemos discutir, profunda e livremente, tudo o que comove e agita o movimento democrático e comunista internacional, mas que devemos, sobretudo, discutir os tremendos reflexos do culto à personalidade entre nós, nossos erros enormes, os absurdos de todos os tamanhos, a desumanização que, como a mais daninha e venenosa das árvores, floresceu no estrume do culto aqui levado às formas mais baixas e grosseiras, e está asfixiando nosso pensamento e ação. (...) Sinto a lama e o sangue em torno de mim, mas por cima deles enxergo a luz do novo humanismo que desejamos acesa e quase foi submergida pela onda dos crimes e dos erros.”

Até parecia que a velha prostituta havia se regenerado. Nada disso. Vamos à entrevista enviada pelo leitor, feita em 1990 pelo jornalista Geneton Moraes Neto. Pergunta o repórter:


As mudanças no Leste europeu e na União Soviética de Gorbatchev- que parecem ter desorientado as esquerdas no mundo inteiro - abalaram o senhor também?

- Eu me desorientei – e muito – antes, quando descobri que Stalin não era o pai dos povos, ao contrário do que sempre pensei. Aquele foi um processo doloroso, difícil, cruel e demorado. A maioria das causas dos acontecimentos atuais talvez já fossem claras para mim. Mas os acontecimentos são de uma rapidez imensa. Jantei com Costa Gavras, meu amigo. Discutimos esta situação: não é só um mundo que acabou. É tudo o que foi a vida e o objetivo de luta de milhões de pessoas. É gente que lutou com generosidade e coragem e foi presa e torturada por lutar por uma coisa que – de repente – se acaba. A pergunta que você pode me fazer agora é a seguinte: é o socialismo que não presta ou é a falsificação do socialismo? O que é que acontece nestes países? Já não são regimes socialistas nem a Polônia nem a Hungria nem a Tchecoslováquia nem a Alemanha oriental. Já estão deixando de ser socialistas a Bulgária, a Romênia e até a Albânia! Mas não acredito que o socialismo, como ideia, deixe de ser o que representa como avanço e como um passo adiante. Nunca houve socialismo, como não houve democracia. Como a implantação dos regimes socialistas foi baseada naquilo que é fundamentalmente errado - a ditadura de classe –, houve, então, uma falsificação total e completa!

A penitência feita em 56 pela madalena arrependida era só pra inglês ver. Até 1990, um ano depois da queda do Muro, Amado ainda portava luto. Pergunta o jornalista:

- A denúncia do stalinismo provocou um choque ainda maior no senhor?

Responde Amado:

- O choque veio já antes da denúncia, porque eu vinha sabendo das coisas. Mas é evidente que a denúncia de Kruschev trouxe coisas de que eu não fazia a mínima idéia.


Vinha sabendo das coisas? Por que então não nos contou? Por outro lado, as denúncias de Kruschev em 1954 pouco ou nada traziam de novo. As acusações do secretário-geral do Comitê Central já haviam sido feitas por Victor Kravchenko, em 1949, em Paris. Como Dr. Strangelove, Amado manteve seus reflexos stalinistas até o final da vida.

Geneton quer saber se Mikail Gorbachev é o ídolo de Jorge Amado hoje. Nada disso. Responde Amado:

- Meu último ídolo chama-se Stálin. Já não tenho ídolos – há tempos. Como ídolo, Stálin é o bastante. É suficiente… Gorbachev é um grande estadista do nosso tempo. Todos nós devemos a ele um fato importante: o perigo de uma guerra atômica – que iria acabar com a vida sobre a Terra – diminuiu muito. O que é que Gorbachev faz? O que ele faz é expor a verdade. Havia uma mentira imensa que dizia: “O socialismo é este”. De repente, a gente viu que não era. 

O velho recurso das madalenas. Não era aquilo que queríamos. Vamos continuar lutando. O verdadeiro socialismo ainda não foi realizado. Houve um desvio nas idéias de Marx. Vamos tentar de novo.


Outro dia, comentava um outro leitor: é preciso ter coragem para ser comunista hoje.

O problema não é coragem, leitor. E sim falta de coragem. Para um velho comunista, renunciar à ideologia é como olhar-se no espelho e dizer à imagem: “és um idiota. Tua vida toda foi inútil e tua obra não vale nada”. É difícil admitir que a “gente que lutou com generosidade e coragem e foi presa e torturada por lutar por uma coisa” – como diz o baiano – na verdade estava lutando pelo totalitarismo. 

E essa coragem não está ao alcance de qualquer. Por isso ainda existem comunistas.
Por: Janer Cristaldo

O TIGRE E A ANTA



  

Já não se fazem tigres como antigamente, mas o Brasil precisa, de imediato, deixar de se comportar como uma anta

O economista e diplomata Roberto Campos costumava dizer: “Com o atraso das reformas estruturais e das privatizações, o Brasil está longe de realizar seu potencial. Poderia tornar-se um tigre e se comporta como uma anta.”


Nesse sentido, foi ótimo a primeira parte do PAC das concessões ter minimizado o Fla x Flu político/ideológico em que se transformou o debate sobre as privatizações na terra de Macunaíma. A primeira parte do Programa de Investimentos em Logística (PIL) pretende viabilizar investimentos de R$ 42,5 bilhões em 5,7 mil quilômetros de rodovias, enquanto outros R$ 91 bilhões serão aplicados na reforma e construção de 10 mil quilômetros de ferrovias. Diante da dramática situação desses modais, parece um prato cheio. Na realidade, porém, o valor total de R$ 133,5 bilhões é tímido, e o prazo para a execução dessas obras é extremamente longo – até 2037!

A título de comparação, só os investimentos das empresas estatais brasileiras em 2013 serão de R$ 110,6 bilhões, comparáveis, portanto, ao montante a ser obtido junto aos investidores privados nos próximos 25 anos. Também é possível situar o PIL em relação à incompetência governamental. Nos últimos 11 anos, o governo federal deixou de investir aproximadamente R$ 50 bilhões em rodovias e ferrovias. O valor decorre da simples diferença entre os orçamentos anuais autorizados e as aplicações efetivamente realizadas pelos órgãos responsáveis.

No Departamento Nacional de Infraestrutura em Transportes (Dnit), por exemplo, a soma das dotações autorizadas de 2001 a 2011, em valores constantes, é de R$ 100,7 bilhões. No entanto, os investimentos no período atingiram somente R$ 59,7 bilhões. Os R$ 41 bilhões que não saíram do papel correspondem, literalmente, ao custo dos buracos das estradas brasileiras. Estudo realizado em 2011 pela Confederação Nacional do Transporte estimou que seriam necessários cerca de R$ 40 bilhões para recompor a malha rodoviária, cuja metade é considerada de qualidade regular, ruim ou péssima. A Valec, responsável pela construção e exploração da infraestrutura ferroviária do país, seguiu o mesmo rumo. Deixou de aplicar R$ 3,5 bilhões, de 2001 até dezembro de 2011, concretizando apenas 70% do que estava autorizado pelo Congresso Nacional.


A precária execução dos orçamentos é consequência, em grande parte, dos ajustes fiscais mal executados há vários governos. Sob pressão, as autoridades costumam ser tolerantes com o aumento das despesas correntes (pessoal e serviços de terceiros, dentre outras) em detrimento dos investimentos em infraestrutura. Além disso, no Brasil, existem diversos entraves para a execução das obras, como as formalidades exigidas nas licitações, as dificuldades para a obtenção das licenças ambientais e as paralisações sugeridas pelo TCU em função de frequentes irregularidades nas obras. Nos próximos dias deverá ser anunciada a segunda parte do Programa de Concessões abrangendo os portos e os aeroportos, tão sucateados quanto as rodovias e ferrovias. Em relação aos portos, seja qual for o desenho adotado, será necessário enfrentar a falta de coordenação entre os órgãos públicos instalados nos terminais, o loteamento político das empresas e o corporativismo dos funcionários. Isso para não se falar do atraso tecnológico, administrativo e operacional, fatos que, somados, colocam os portos brasileiros entre os 13 piores do mundo, em ranking de quase 150 países, divulgado, em 2011, pelo Fórum Econômico Mundial.Os recursos não aplicados pelo Ministério dos Transportes ao longo desses onze anos representam praticamente o dobro dos R$ 23,5 bilhões que o Programa de Investimentos em Logística pretende ver aplicados, já nos próximos cinco anos, nas rodovias concedidas.

Quanto aos aeroportos, diferentemente das concessões anteriormente efetuadas, em que foram vencedoras empresas consideradas de menor porte, a nova modelagem pretende dar poderes à Infraero Participações (Infrapar), que ficaria encarregada de buscar novos sócios entre operadoras de grandes aeroportos internacionais. Resta saber se haverá interesse de grupos estrangeiros em se associar ao filhote da malfadada Infraero.

Sejam quais forem os modelos, a economia brasileira precisa de investimentos. A logística é, cada vez mais, um ônus pesado para a competitividade da produção. A frase cunhada por Roberto Campos há décadas permanece, em parte, atual. Já não se fazem tigres como antigamente, mas o Brasil precisa, de imediato, deixar de se comportar como uma anta. Por: Gil Castello Branco

Fonte: O Globo, 04/09/2012

PRIMEIRA LIÇÃO: ECONOMIA E INSTITUIÇÕES


Dez lições de economia austríaca para iniciantes - Primeira lição: economia e instituições

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Sabe por que devemos começar esse curso mostrando a importância das instituições na economia? Imagine que o seu pai (ou, mesmo, você) queira abrir uma loja para vender sapatos. Para isso, ele vai ter que obter autorização do governo. Como a burocracia no Brasil é enorme, o seu pai só vai conseguir essa autorização em cerca de cinco meses! Agora, se você vivesse, por exemplo, na Nova Zelândia, em menos de uma semana o seu pai já poderia abrir a sapataria. Isso quer dizer que, no Brasil, ele deixaria de vender sapatos e, portanto, de ganhar a receita das vendas por 150 dias! E, ainda, supondo que ele desejasse contratar dois vendedores para trabalharem na loja, que durante aqueles cinco meses essas duas pessoas não teriam os seus empregos!

Entendeu por que é tão importante analisar a economia tendo em vista as instituições de uma sociedade? No Brasil, essas instituições (no exemplo dado, a burocracia e a intromissão do governo na vida das pessoas) desencorajam quem quer trabalhar para melhorar de vida. Em outros países, como a Nova Zelândia, as instituições estimulam as pessoas que desejam progredir.

Vamos a outro exemplo: você sabia que os brasileiros trabalham até o dia 25 de maio de cada ano para pagar os tributos (impostos, taxas e contribuições) que existem no Brasil? E que são obrigados a pagar, senão serão punidos? O estado argumenta que a receita dos tributos é para ser revertida em educação, saúde, justiça, segurança e infraestrutura. Agora responda com sinceridade: apesar de, como brasileiro, sermos obrigados a trabalhar praticamente cinco meses do ano para o governo, nós temos um sistema de educação bom? De saúde? Nossa justiça é boa? Vivemos com segurança? Nossas estradas e portos são bons? E ainda mais: será que esses cinco itens devem ficar nas mãos do governo? Por quê? Então, para que trabalharmos cinco meses de graça?

Um terceiro exemplo: um empregado com um salário de mil reais por mês custa mensalmente, na sapataria do primeiro exemplo, aproximadamente, dois mil e seiscentos reais por mês, ou seja, mais do que o dobro do salário. Isso acontece porque existem os chamados encargos sociais e trabalhistas, como a contribuição sindical, o fundo de garantia do tempo de serviço, a contribuição previdenciária, o 13º salário e várias outras exigências. O resultado disso é que, em vez de empregar aqueles dois funcionários, o seu pai vai empregar apenas um na sua sapataria. Esses encargos provocam, portanto, desemprego e, sendo assim, prejudicam enormemente a economia.

Quando usamos a palavra "instituições", então, estamos querendo dizer que os atos econômicos são influenciados por fatores políticos, éticos, morais, jurídicos, psicológicos, históricos, sociológicos etc. Quando você encontra dificuldades, por exemplo, para comprar um computador no exterior, é porque alguma decisão política estabeleceu essa dificuldade; quando você se recusa a comprar um aparelho celular que você sabe que foi roubado, é uma imposição ética, da sua consciência, que impede você de fazer essa compra; quando você assina a escritura de compra de um imóvel é porque existe uma legislação sobre o assunto; quando você (se for o caso) sempre que comprar uma camisa, comprar outra idêntica, porque acha que assim terá sorte, é uma decisão influenciada por fatores psicológicos e assim por diante.

Por isso, diversos estudiosos das sociedades costumam dividi-las, para efeito didático, em três grandes sistemas, a saber, o sistema econômico, o sistema político e o sistema ético-moral-cultural. O primeiro é formado pela economia, isto é, por todas as transações econômicas, desde as mais simples até as mais complexas; o segundo, pela política, ou seja, pelos partidos, pela forma de governo, pela divisão de poderes,etc. E o terceiro pelas regras morais e características culturais, que acabam se refletindo nas leis.

Cada um desses grandes sistemas vai mudando de forma particular ao longo do tempo e possui regras de conduta, métodos, padrões e objetivos peculiares e, muitas vezes, contrastantes. É desse contraste que vem a energia para o progresso e para a correção das distorções que eventualmente surgirem. Quando um ou dois desses sistemas não estão funcionando bem, os restantes podem sustentar a vida social durante algum tempo, mas quando os três apresentam problemas graves, a sociedade fica instável.

É fácil entender que, desses três sistemas, o ético-moral-cultural é o mais importante, porque quando ele vai mal, é muito difícil que a economia e a política possam funcionar adequadamente. Por exemplo, uma regra moral que deve prevalecer em toda e qualquer sociedade que se preza é aquela que proíbe o roubo e a corrupção. Se essa regra for desobedecida de modo generalizado, é claro que o roubo e a corrupção vão contaminar a economia e a política, e vai acabar acontecendo um caos na sociedade.

Há duas maneiras de se abordar as questões sociais. A primeira, que podemos chamar de construtivismo (ouengenharia social), baseia-se na ideia de que a mente e a razão humanas são capazes, por si sós, de permitir aos homens construírem uma "sociedade ideal". Um exemplo desse tipo de visão é o socialismo-comunismo, como nos casos da antiga União Soviética, de Cuba, da Coreia do Norte e do Vietnã do Norte (a China, de alguns anos para cá vem abandonando lentamente esse modo de ver a sociedade). Outro exemplo de construtivismo é a Alemanha da época de Hitler. Como você já deve ter percebido, quem acredita que as pessoas podem construir uma sociedade ideal tem que acreditar também que o poder para tomar as decisões julgadas como "melhores" para todos deve ficar concentrado em poucas mãos. Não é por acaso que todos esses exemplos são casos de ditaduras com forte concentração de poder, seja nas mãos de um partido (o comunista ou nacional-socialista, que era o nome do partido nazista) ou, mesmo, de uma só pessoa.

A segunda maneira de enxergar as questões sociais pode ser chamada de racionalismo crítico: racionalismo porque sabe que o homem é racional; mas crítico, porque também sabe que nossa mente e inteligência são falíveis e que cometemos erros, mesmo quando somos bem intencionados. Ora, se nós cometemos equívocos (por exemplo, compramos um aparelho de TV de baixa qualidade), por que devemos supor que as pessoas do governo também não erram? Se você pensar bem, será que os que trabalham no governo não erram mais do que nós, porque nós tomamos decisões baseadas na nossa satisfação, enquanto eles decidem o que é melhor ou pior para os outros? Quem disse que eles sabem o que é melhor para você e sua família do que você mesmo e a sua família?

Além de não sermos infalíveis em todas as decisões que tomamos, existe outro condicionante para essas decisões, que é o nível de nosso conhecimento sobre todos os fatores que influenciam as nossas decisões. O nosso conhecimento jamais é perfeito e, além disso, ele vai mudando conforme o tempo vai passando. Por isso, uma decisão qualquer pode ser a melhor possível às três horas da tarde, mas ser uma péssima decisão duas ou três horas depois. Além disso, decidir sobre algum ato econômico é sempre uma questão pessoal, muito diferente das decisões de engenharia ou de química. Com isso, queremos que você perceba que a economia, vista como ciência, é uma ciência social, não exata, que não se sujeita a leis matemáticas, e não uma ciência natural, mecânica e impessoal.

Outro fato que mostra que o construtivismo é um equívoco: a economia lida sempre com decisões de indivíduos, decisões pessoais, porque os seres humanos são individualistas. Ora, o construtivismo trata as pessoas como se fossem coletivos (e não indivíduos), como, por exemplo, "a sociedade". Pense só nisto: a sociedade existe, é claro, ela é a soma dos indivíduos que fazem parte dela, mas quem toma as decisões econômicas (como, aliás, qualquer outra decisão) não é ela, mas sim os indivíduos!

Nas colmeias, cupinzeiros e formigueiros, cada abelha, cada cupim e cada formiga não "pensam" em si, mas no coletivo. Tudo o que fazem é em prol da colmeia, do cupinzeiro ou do formigueiro. Mas com os homens isso não acontecerá jamais, porque tendemos primeiro a pensar em nós próprios e em nossas famílias, depois nas pessoas mais próximas, depois no nosso bairro ou no nosso local de trabalho e só vamos pensar na "sociedade" em último lugar. O socialismo, portanto, trata os seres humanos como se fossem formigas, cupins ou abelhas, sem vontade própria e sem individualidade e por isso é um sistema desumano. Agride as características básicas da espécie humana. Sendo assim, fracassou redondamente nos países em que foi imposto e fracassará sempre onde quer que venha a ser implantado.

A experiência histórica, que a Escola Austríaca de Economia sustenta, mostra que o principal ingrediente para que as economias alcancem o progresso é a liberdade de escolha. Como veremos na segunda aula, passamos a nossa vida fazendo escolhas, desde o berço (quando, por exemplo, escolhemos brincar com um carrinho azul e não com um vermelho), passando pela escolha da profissão, de com quem nos vamos casar, da escola para matricular nossos filhos etc. Sempre que as pessoas fazem uma escolha, seja no campo da economia (como comprar uma caneta) ou nos outros (como em quem votar) elas imaginam que, naquele momento em que a escolha é feita, aquela é a melhor opção para aumentar a sua satisfação.

Quanto maior a nossa liberdade de escolha, maior a possibilidade de ficarmos mais satisfeitos, de outros ficarem satisfeitos e da economia como um todo progredir. Quando as telecomunicações estavam a cargo do estado, você só tinha uma empresa de telefonia operando na sua cidade, tinha que esperar um tempo enorme para instalarem um telefone na sua casa, se comprasse um celular tinha que registrá-lo em cartório, os preços eram absurdamente altos e não adiantava você reclamar. Depois que o setor foi privatizado, nossa liberdade de escolha aumentou bastante, o número de linhas fixas se multiplicou, o número de celulares cresceu enormemente, a competição entre as empresas aumentou e os preços dos serviços em termos reais diminuíram. Além disso tudo, com a entrada de novas empresas no mercado, o número de empregos aumentou.

Procure agora saber se as pessoas que vivem em Cuba têm acesso a telefones (fixos ou celulares). Entendeu então o que queremos dizer com a expressão liberdade de escolha?

Por fim, temos que falar da importância da propriedade privada para o desenvolvimento individual: se você fosse um fazendeiro da Sibéria no tempo do comunismo e uma das vacas (que eram de propriedade do governo) estivesse para morrer de frio, dificilmente você deixaria a sua cama às duas horas da manhã para salvá-la, porque a vaca não era sua, era do estado. Mas, se ela fosse sua, primeiro, você cuidaria para que ela não sentisse frio, gastando em equipamentos de calefação e, segundo, mesmo que ela viesse a sentir muito frio, você com certeza deixaria a sua cama para salvá-la, sabe por quê? Simplesmente porque ela lhe pertencia!

A propriedade privada, portanto, ao lado da liberdade de escolha e da economia de mercado são fundamentais para que as pessoas progridam na vida e, portanto, as sociedades também se desenvolvam cada vez mais. Explicaremos a economia de mercado em uma das aulas seguintes. Por ora, registramos apenas que uma economia de mercado é uma economia em que prevalece a liberdade de escolha individual, seja para consumir como para produzir, para poupar, investir, etc. Em outras palavras, uma economia em que o estado não exerça controles. Esses controles, como veremos oportunamente, são sempre maléficos, ao contrário do que, com certeza, ensinaram você a acreditar.

Estamos agora, depois dessas observações sobre a importância das instituições, preparados para as nove lições seguintes, em que vamos tentar mostrar como a economia do mundo real funciona.

Como o homem nasceu para ser livre, para viver uma liberdade responsável, as melhores instituições para estimularem a melhoria do padrão de vida das pessoas são a liberdade de escolha ou economia de mercado e apropriedade privada.


Sugestões para reflexão e debate:

1. Pense se é mesmo tão importante que, para abrir uma sapataria, você tenha que obter autorização do governo.

2. Você acredita que uma só pessoa que detenha todo o poder político (por exemplo, Fidel Castro em Cuba) pode determinar o que é melhor ou pior para você, de modo melhor do que aquele que você mesmo decidir escolher?

3. Por que a economia não é uma ciência exata?

4. Por que a liberdade de escolha e a propriedade privada são tão importantes para o desenvolvimento das economias?

5. Pense na diferença entre uma economia baseada em indivíduos e uma economia baseada em "coletivos".



Ubiratan Jorge Iorio é economista e professor de UERJ. 

BANCOS NÃO PODEM CRIAR DINHEIRO



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No que diz respeito a alguns assuntos monetários, praticamente todos os economistas seguidores da Escola Austríaca concordam entre si. Bancos centrais e o produto que eles criam — papel-moeda de curso forçado — são instituições inflacionárias que geram distúrbios na economia e que não servem a nenhuma outra função senão redistribuir renda dentro da sociedade. O papel-moeda de curso forçado é um arranjo inerentemente estatista porque precisa ser constantemente protegido por meio de leis que impõem o seu curso forçado e por outras formas de intervenção governamental. O papel-moeda pode ser produzido em quantidades virtualmente ilimitadas pelas impressoras dos bancos centrais. Essa inflação monetária beneficia aqueles que primeiro recebem esse dinheiro recém-criado e destrói a economia em decorrência dos ciclos econômicos que causa. Por conseguinte, os bancos centrais deveriam ser abolidos o mais rapidamente possível.

Alternativas superiores aos bancos centrais estão prontamente disponíveis. Especificamente, metais como ouro e prata podem ser produzidos em termos puramente de livre mercado, isto é, sem necessitar de nenhuma forma de privilégio legal; e suas quantidades dependem muito menos dos caprichos arbitrários de qualquer ser humano. Nenhuma medida ou reforma especial são necessárias para criar um sistema de moedas metálicas, pois moedas de ouro e prata tendem a surgir espontaneamente em mercado genuinamente livre — como mostra a história. A principal medida de uma reforma monetária libertária é, portanto, abolir imediatamente todas as formas de controle monopolista da moeda (como leis que impõem seu curso forçado, os impostos sobre metais etc.). Ademais, todos os governos deveriam devolver todo o ouro e a prata que confiscaram de seus cidadãos quando estabeleceram seus papéis-moedas nacionais.

Em relação a um ponto vital, entretanto, os economistas austríacos não chegaram a um consenso, e esta discordância tem produzido um intenso e dinâmico debate ao longo dos anos. Esse debate não está relacionado especificamente à produção de uma moeda metálica ou a qual tipo de metal deve ser utilizado como dinheiro; ele se refere mais minuciosamente ao fenômeno da criação de dinheiro feita por fornecedores de serviços financeiros, como bancos comerciais. Para entender a questão, é útil fazermos uma distinção entre três tipos de serviços financeiros ou bancários.

Bancos de crédito (ou bancos de investimento)

Os bancos atuam como intermediadores financeiros quando pegam emprestado dinheiro do indivíduo X e em seguida emprestam esse dinheiro para o indivíduo Y. Note que, nesse empreendimento, em todas as etapas está claro quem é o dono do dinheiro. Antes de emprestar seu dinheiro para o banco, X é o proprietário exclusivo desse dinheiro. Ao emprestá-lo para o banco, X abre mão do direito de utilizar o dinheiro pela duração de tempo estipulada no contrato, e concede esse direito ao banco. O banco então irá emprestar esse dinheiro a Y, desta forma também renunciando ao seu direito de utilizar o dinheiro e concedendo esse direito a Y pela duração de tempo estipulada no contrato. No tempo presente, portanto, Y é o proprietário legítimo do dinheiro.

Em algum momento futuro, reivindicações contraditórias de propriedade sobre o dinheiro podem surgir caso o crédito concedido por X ao banco tenha um período de duração menor do que o crédito concedido pelo banco a Y. Cumprir tais reivindicações contraditórias seria uma impossibilidade física. Há apenas um objeto físico (o dinheiro), porém duas ou mais pessoas desejam utilizá-lo para propósitos distintos. Do ponto de vista jurídico, reivindicações contraditórias normalmente geram litígios. Economicamente, elas geram um estado de desequilíbrio, pois pelo menos um dos lados litigantes terá seus projetos prejudicados.

Porém, de novo, no tempo presente, somente Y possui uma reivindicação válida sobre o dinheiro, pois no momento ele é o proprietário legítimo do dinheiro. Não há reivindicações contraditórias no início da transação creditícia. E o banco certamente fará de tudo para impedir litígios futuros adequando a duração de seu crédito para B — seja obtendo um prolongamento do empréstimo concedido por A ou obtendo mais crédito por meio de outro cliente.

Bancos de depósito

Os bancos incorrem em atividades de depósito quando aceitam o dinheiro de um cliente apenas para guardá-lo — porque o cliente, por exemplo, imagina ser mais seguro guardar o dinheiro no banco do que no cofre de sua casa. Nesse caso, o banco atua essencialmente como um armazém, que nada mais faz do que guardar o dinheiro e emitir um recibo ou um certificado de armazenamento, o qual é entregue para o depositante. O banco não tem o direito de utilizar esse dinheiro. Ao contrário, o cliente detém todos os direitos de uso do dinheiro para si próprio, querendo do banco apenas o serviço de armazenamento do dinheiro. Tal serviço certamente será cobrado, muito embora seja concebível, por exemplo, que os bancos ofertem-no gratuitamente para aqueles clientes que também incorram em frequentes operações de crédito. Evidentemente, nos bancos de depósito não pode haver reivindicações contraditórias sobre o dinheiro. Em todos os momentos, o cliente retém propriedade e controle totais sobre o dinheiro.

Ter seu dinheiro pronto para ser vendido (em troca de bens ou serviços) a qualquer momento — é assim que um proprietário de dinheiro utiliza seu dinheiro. Disso decorre que os depositantes querem utilizar seu dinheiro constantemente. É apenas uma questão meramente técnica se eles vão querer manter o dinheiro guardado em suas carteiras ou se vão deixar a custódia sob os cuidados de um banco. Essa escolha não afeta o comportamento deles. Em ambos os casos, eles planejam e agem sob a firme crença de que podem utilizar seu dinheiro a qualquer momento.

Depositantes podem utilizar seu dinheiro depositado no banco de duas maneiras: eles podem apresentar seus recibos de armazenamento ao banco e demandar a restituição do dinheiro, com o qual irão comprar bens e serviços; ou podem utilizar os próprios recibos de armazenamento em troca de bens e serviços, desta forma evitando a viagem ao banco. Com o intuito de facilitar esse último tipo de transação, os bancos normalmente padronizam e aprimoram os recibos de várias maneiras. Por exemplo, eles criam recibos de papel específico para determinadas quantias de prata (como cinco, dez e quinze onças), eles utilizam um papel especial para dificultar a falsificação, e por aí vai. Foi desta forma que as tradicionais cédulas de dinheiro surgiram. Entretanto, vários outros instrumentos, como contas-correntes ou, mais recentemente, cartões de débito, possuem o mesmo propósito: são títulos sobre uma determinada soma de dinheiro atualmente existente.

Observe que, nos bancos de depósito, todos os recibos são totalmente lastreados pela exata quantia de dinheiro que eles cobrem. Um banco de depósito é necessariamente um "banco com 100% de reservas", assim como qualquer armazém tem de operar com 100% de reservas. E um banco que incorra em ambas as atividades — isto é, banco de depósito e banco de crédito — também é um banco com 100% de reservas, pois todos os recibos (títulos de reivindicação sobre o dinheiro) que ele emitiu estão, a qualquer momento, completamente lastreados pelo dinheiro que está em seus cofres. Não é possível haver reivindicações contraditórias sobre o dinheiro que está guardado nos cofres dos bancos. Portanto, nem bancos de depósito nem bancos de crédito per se produzem litígios, e nenhum deles implica desequilíbrio econômico. 

Bancos de reservas fracionárias

Os bancos praticam reservas fracionárias quando se apossam de parte do dinheiro depositado e o utilizam para a concessão de crédito. Eles podem fazer isso de duas maneiras: emprestando diretamente o dinheiro que foi depositado ou criando recibos de armazenamento em uma quantia maior do que o total de dinheiro que há em seus cofres. Por exemplo, os clientes do Banco RF (BRF) depositaram nele $1.000, e o BRF correspondentemente emitiu recibos (ou criou contas-correntes) no valor total de $1.000. 

Ato contínuo, o banco concede um crédito de $500 para João, "criando" uma conta corrente em seu nome em um valor de $500. Essa medida imediatamente cria uma situação na qual existem reivindicações contraditórias sobre o dinheiro físico existente. Os depositantes continuam em posse de recibos que lhe conferem a propriedade sobre $1.000, pois em momento algum eles renunciaram ao seu direito sobre a quantia total de seus depósitos. Porém, João agora também possui um título sobre $500. Claramente, é impossível que todos esses títulos de reivindicação sejam satisfeitos pela quantidade existente de dinheiro nos cofres do banco.

Em nível jurídico, essa situação está propensa a acabar em litígio. Em nível econômico, ela implica imediatamente um desequilíbrio, pois os depositantes agem como se eles realmente controlassem a quantia total de seus depósitos, e João age como se ele controlasse outros $500. Os membros dessa pequena comunidade se comportam como se houvesse mais recursos do que realmente existem. Em suma, eles se tornaram vítimas de uma ilusão. A ilusão pode durar algum tempo por causa da seguinte circunstância: os depositantes raramente pedem a imediata restituição em dinheiro de todos os seus recibos de armazenamento. Esse dinheiro não-reclamado é exatamente o dinheiro que os bancos podem utilizar para incorrer em reservas fracionárias.

O debate

O debate entre os economistas austríacos está centrado nesse último tipo de prática bancária. Durante muito tempo, a visão austríaca padrão rejeitava a prática bancária de reservas fracionárias. Desde a publicação de seu livro The Theory of Money and Credit, em 1912, Ludwig von Mises (1980, 1998) rejeitou a prática bancária das reservas fracionárias por razões econômicas. F. A. Hayek seguiu o mesmo caminho (1929, 1931, 1937), pelo menos em suas primeiras obras sobre questões monetárias. Já Murray Rothbard (1983, 1990, 1991, 1993, 1994) rejeitava a prática por questões econômicas e éticas.

Desvios dessa ortodoxia começaram com Lawrence H. White em seu livro de 1984, Free Banking in Britain e em obras posteriores (1989, 1999). A defesa feita por White das reservas fracionárias foi ampliada e sistematizada por seu aluno George Selgin (1988) em The Theory of Free Banking, bem como em uma posterior coleção de artigos (1996). Vários outros autores se juntarem ao grupo, mas nenhum exerceu a mesma influência. Exceto pelos escritos de Rothbard (1988) e Walter Block (1988), praticamente ninguém defendeu a posição ortodoxa no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Assim, a defesa do sistema bancário de reservas fracionárias, operando em um ambiente sem um banco central, estava a ponto de se tornar um princípio da ortodoxia austríaca, ao menos no que dizia respeito às obras publicadas. Foi esse sucesso de White e Selgin despertou interesse em suas obras e levou outros acadêmicos austríacos a analisarem criticamente seus argumentos.

Até hoje, White e Selgin responderam apenas de modo bastante incompleto a essas críticas Sendo assim, no restante deste artigo, limitarei minha exposição a alguns dos principais argumentos que convincentemente demonstram os problemas inerentes a um sistema bancário de reservas fracionárias.

Sustentabilidade e deterioração institucional

A primeira coisa a ser observada é que um sistema bancário de reservas fracionárias não pode ser visto como algo desconectado de bancos centrais, papeis-moeda de curso forçado e instituições monetárias internacionais, como o FMI. Em última instância, essas instituições são tentativas fracassadas de resolver os problemas gerados pelo sistema bancário de reservas fracionárias. Elas foram criadas com o intuito de centralizar todas as reservas em dinheiro e para permitir que os bancos pudessem, em determinados momentos, se recusar a restituir em dinheiro as demandas de seus depositantes.

O principal problema dos bancos que praticam reservas fracionárias é que eles, a todo e qualquer momento, encontram-se virtualmente insolventes — pois seus passivos monetários são sempre maiores do que a quantidade de dinheiro em seus cofres. Se muitos clientes exigirem a restituição de seus depósitos em dinheiro, o banco estará condenado. Pode-se alegar que o banco sempre tentará manter em seus cofres uma quantia de dinheiro suficiente para satisfazer as demandas por restituição. Porém, exatamente qual quantia de dinheiro é "suficiente"? Por causa da incerteza inerente a todos os empreendimentos humanos, não há uma maneira cognitiva de o banco responder a essa pergunta. Tudo o que ele pode fazer é incorrer no método de tentativa e erro. E, nesse processo, ele tentará diminuir ao máximo possível a proporção de suas reservas em relação ao seu passivo, pois fazer isso é uma maneira de ganhar vantagem frente à concorrência dos outros bancos. Obviamente, tal empreendimento intensifica a probabilidade de que, um dia, ele ficará com uma quantia menos do que suficiente de dinheiro para restituir seus depositantes.

Ademais, a quebra de um banco que pratica reservas fracionárias pode desencadear a quebra de vários outros bancos que também praticam reservas fracionárias, como um efeito dominó. Várias crises bancárias do passado realmente geraram um efeito dominó, e culminaram no colapso de todo o sistema bancário.

A vulnerabilidade de todo o sistema bancário serviu de argumentação poderosa tanto para a regulamentação do setor bancário quanto para o estabelecimento de bancos centrais, os quais supostamente deveriam fornecer "liquidez" para o sistema em momentos de adversidade. Entretanto, o banco central criar dinheiro para resolver "problemas de liquidez" é uma medida que dura apenas por um determinado tempo. Tão logo os bancos se acostumam a serem prontamente socorridos com grandes quantias de dinheiro em situações de emergência, eles perdem o medo de tais situações e começam a emitir recibos de armazenamento — isto é, a criar contas-correntes para empréstimos sem lastro — em escalas cada vez maiores. Assim, ao invés de solucionar os problemas do sistema bancário de reservas fracionárias, os bancos centrais apenas exacerbam o risco moral e multiplicam esses problemas.

A mesma bagunça foi gerada por todas as tentativas de se resolver esse problema causado por bancos centrais por meio da criação de bancos centrais internacionais, papel-moeda de curso forçado e outras invenções. Em suma, um sistema bancário de reservas fracionárias é insustentável, e não pode ser salvo ou aprimorado por outros esquemas. No entanto, ele permite a criação de políticas ilimitadas, as quais no passado foram apoderadas pelos inimigos da propriedade privada e da livre iniciativa para que estes pudessem criar um número cada vez maior de instituições políticas centralizadoras.

Os supostos benefícios da reservas fracionárias

Os únicos beneficiários permanentes do sistema bancário de reservas fracionários são os próprios banqueiros — que são protegidos da concorrência por meio de barreiras à livre entrada no mercado bancário e de outras regulamentações — e os vários governos, que possuem um ávido interesse em ter acesso imediato a um dinheiro "adicional". E o fornecimento desse dinheiro extra é algo que bancos que operam com 100% de reservas não podem oferecer.

Tentativas de equilibrar os custos e benefícios do sistema bancário de reservas fracionárias, "olhando de uma perspectiva puramente econômica", apenas obscurecem o fato de que tal esquema é amplamente favorável ao enriquecimento de vários grupos de interesse. O fato incontestável é que o sistema bancário de reservas fracionárias cria ganhadores e perdedores. Com efeito, nas ciências econômicas, os termos 'custos' e 'benefícios' se referem à ação humana individual. Custos são os custos de oportunidade derivados da ação de um indivíduo, e benefícios também são sempre os benefícios gerados para um indivíduo. Se uma instituição cria benefícios para alguns membros da sociedade ao mesmo tempo em que piora a situação de outras pessoas, então simplesmente não há bases para a afirmação de que, "de uma perspectiva puramente econômica", os benefícios justificam os custos ou os riscos ou qualquer outra coisa.

Tal é o caso dos supostos benefícios do sistema bancário de reservas fracionárias. Vamos supor, em prol da argumentação, que o sistema bancário de reservas fracionárias estimule a industrialização. Disso não se pode concluir que esse tipo de arranjo bancário seja algo bom. Algumas pessoas — por exemplo, os banqueiros, empreendedores sem propriedade, e o governo — irão lucrar com uma industrialização rápida e financiada pelos bancos. Entretanto, outras pessoas — por exemplo, donos de propriedades, capitalistas-empreendedores e artesãos utilizando tecnologia tradicional — ficarão em desvantagem em decorrência de tal crescimento artificial. Não há nenhuma base científica para a afirmação de que o primeiro grupo deve ser privilegiado em detrimento do segundo. 

Ademais, embora provavelmente seja verdade que o sistema bancário de reservas fracionárias promova aindustrialização, não é verdade que ele promova o crescimento econômico. O crescimento econômico depende, é fato, de uma maior "abundância" ou de um "aprimoramento" dos bens a serem utilizados pelos indivíduos. Independente de qual seja a escala de valores do indivíduo, o crescimento depende da quantidade disponível de fatores de produção e da sagacidade como esses fatores são combinados entre si. Claramente, imprimir dinheiro não aumenta a quantidade de fatores necessária para a produção, tampouco aprimora a capacidade empreendedorial. Disso se conclui que, na melhor das hipóteses, bancos que praticam reservas fracionárias jogam a economia em um diferente caminho de crescimento; eles redirecionam a renda de modo a produzir um diferente tipo de crescimento; mas eles não aumentam — e nem são capazes de aumentar — o crescimento geral de economia.

Também é errado supor que o sistema bancário de reservas fracionárias seja particularmente adequado para "ajustar" a oferta monetária em resposta a mudanças na demanda, da parte dos indivíduos, por mais dinheiro em seus encaixes — isto é, quando as pessoas decidem reter mais dinheiro consigo. O motivo é que, antes de tudo, nenhum ajuste especial é necessário. Quando alguém aumenta sua demanda por mais dinheiro, isso significa que ele está disposto a pagar um preço maior para obter dinheiro ou — o que dá no mesmo — que ele quer um preço maior para o dinheiro que ele está vendendo. Em ambos os casos, o aumento dessa demanda por dinheiro aumenta seu poder de compra, equilibrando desta forma a demanda e a oferta de dinheiro. E o mesmo é válido, obviamente, para o caso de uma redução na demanda por dinheiro.

Portanto, a oferta de dinheiro não precisa ser ajustada à demanda por dinheiro. Ao contrário de todas as outras mercadorias, o dinheiro constantemente se ajusta por si mesmo às condições do mercado. Os serviços prestados por qualquer unidade de dinheiro são constantemente ajustados sob o impacto das mudanças na demanda e oferta de dinheiro. É claro que tal ajuste automático não se dá em benefício de todos. Nenhum ajuste consegue tal proeza, e nenhum arranjo institucional, como o sistema bancário de reservas fracionárias, pode alterar esse fato.

Reservas fracionárias e os ciclos econômicos

Conclui-se que é errada a afirmação de que um aumento na oferta de dinheiro fiduciário (recibos fiduciários, isto é, recibos de armazenamento em uma quantia maior do que o total de dinheiro real nos cofres dos bancos) pode "contrabalançar" um aumento na demanda por dinheiro. Aumentos na demanda por dinheiro se neutralizam sozinhos. O real impacto da criação de recibos fiduciários adicionais vem em duas partes.

Por um lado, a criação de recibos fiduciários adicionais reduz o poder de compra do dinheiro — um efeito igual ao que ocorreria caso houvesse um aumento no dinheiro propriamente dito, o dinheiro real. Por outro lado, entretanto, e em distinto contraste com aumentos na oferta de dinheiro real (no caso, um dinheiro metálico), recibos fiduciários adicionais geram um ciclo econômico. Como já mencionado, tão logo esses recibos são criados, as pessoas começam a agir de maneiras incompatíveis com a real oferta de bens na economia. Essa reação é precisamente o que está no cerne daquilo que os economistas chamam de desequilíbrio.

Um aumento na oferta de dinheiro real (dinheiro metálico) não gera um desequilíbrio porque os participantes do mercado podem antecipar o impacto que essa quantidade adicional de dinheiro terá sobre os preços e também porque, normalmente, é explícito quem é o proprietário de cada nova unidade monetária.

Os participantes de mercado podem também antecipar o impacto que a criação de recibos fiduciários adicionais terá sobre os preços. Entretanto, embora normalmente seja claro quem é o proprietário de cada recibo, de modo algum é claro quem é o dono do dinheiro ao qual tais recibos se referem. Existem mais recibos do que dinheiro. Eis aqui a contradição. Eis aqui a raiz do desequilíbrio gerado pelo sistema bancário de reservas fracionárias.

Paulo possui $1.000 em sua conta-corrente. Todos os seus empreendimentos e todos os seus gastos com consumo se baseiam nesse valor que ele crê possuir em sua conta-corrente. Roberto pensa e age da mesma forma. Ele possui $2.000 em sua conta-corrente. Entretanto, o banco na realidade possui apenas $500 em seus cofres. Trata-se de um banco que pratica reservas fracionárias; todo o seu negócio se baseia na esperança de que Paulo e Roberto jamais irão, em conjunto, pedir a restituição em dinheiro de grande parte de seus recibos. 

Assim, resta a pergunta: enquanto esse esquema funcionar, vale a pena se preocupar com ele? Será que a realidade é algo diferente daquilo que as pessoas acreditam ser real?

Defensores do sistema bancário de reservas fracionárias implicitamente endossam a ideia de que 'realidade' é aquilo que as pessoas creem ser real. Partindo do óbvio fato de que o indivíduo que mantém em sua posse um recibo de depósito deseja manter consigo esse recibo, os defensores deduzem que as pessoas adquirem recibos de depósito não porque eles sejam um meio conveniente de portar dinheiro, mas sim porque elas querem portar esses recibos per se. Assim, para esses defensores, não há absolutamente nenhuma diferença fundamental entre uma unidade de dinheiro real e um recibo que se refere a esse dinheiro. Tanto o dinheiro real quanto o recibo são formas de "dinheiro". Ambos se diferem um do outro apenas em grau, não em tipo. 

Afirmo que essa crença é uma absurdidade que precisa apenas ser explicitada para se tornar óbvia. Existe uma diferença fundamental entre um pedaço de propriedade e um recibo — por exemplo, entre uma onça de ouro e um recibo de armazenamento para uma onça de ouro; ou (hoje) entre uma cédula de dinheiro e um cheque que dá a alguém a propriedade sobre uma cédula. Similarmente, há uma diferença fundamental entre um título que é redimível agora e um título que se torna redimível apenas no futuro. Apenas uma propriedade física e evidente pode de fato ser poupada ou investida, ao passo que o uso de recibos de depósito (instantaneamente redimíveis em dinheiro) apenas nos faz crer que realmente poupamos ou investimos algo.

Por sua própria natureza, o sistema bancário de reservas fracionárias cria uma diferença entre o que existe de fato e o que as pessoas creem que existe. Ele faz as pessoas pensarem que estão em uma situação melhor do que realmente estão — e essa convicção desencadeia a fase expansionista do ciclo econômico. Entretanto, mais cedo ou mais tarde, quando as pessoas descobrem que, em seus empreendimentos, elas se basearam em coisas que não existiam, a recessão inevitavelmente chega.

Um sistema bancário de reservas fracionárias honesto

O sistema bancário de reservas fracionárias nada mais é do que um esquema Ponzi em larga escala. Ele enriquece alguns à custa de outros. Ele gera distúrbios econômicos e serve como instrumento auxiliar dos governos e de outros grupos de interesse.

O melhor argumento a favor do sistema bancário de reservas fracionárias invoca a liberdade de escolha e de contrato. Deveria o sistema de reservas fracionárias ser proibido caso todos os agentes envolvidos soubessem o que estão fazendo? Não, não deveria, pois nenhuma lei deveria suprimir qualquer atividade insensata apenas porque ela é insensata. Porém, sejamos mais específicos sobre o que a frase "todos os agentes envolvidos soubessem o que estão fazendo" implicaria. Bancos de reservas fracionárias teriam de utilizar uma linguagem diferente da que normalmente utilizam, pois palavras como "depósito" são enganosas. Eles teriam de deixar claro que o dinheiro "depositado" junto a eles é, na verdade, um crédito de duração não especificada. E os "recibos de armazenagem" que eles emitem teriam de ser apresentados não como dinheiro mas como algum tipo extremamente líquido de nota promissória. Assim, bancos de reservas fracionárias honestos teriam de instruir seus clientes mais ou menos da seguinte forma:




Quando você deposita seu ouro em nosso Banco RF, você abre mão da sua propriedade sobre ele por um período de tempo indefinido. Nós nos tornamos os proprietários do ouro e podemos utilizá-lo da maneira que mais nos aprouver. Em troca, damos a você "recibos RF" no valor da quantia total do seu depósito, pagamos a você x% de juros sobre o investimento, e prometemos fazer o possível para restituir seu investimento em ouro quando você o demandar. Se por algum motivo não formos capazes de fazer tal restituição, a seguinte regra se aplica...

Nos "recibos RF", haveria uma nota promissória do seguinte tipo:







O Banco RF promete ao portador desse recibo tentar restituí-lo com o ouro de nossas reservas. Porém, como os recibos RF não são 100% lastreados pelo ouro que presentemente se encontra em nosso banco, em caso de impossibilidade de restituição, as seguintes regras se aplicam...

É perda de tempo especular sobre o sucesso que o sistema bancário de reservas fracionárias teria caso apresentasse explicitamente essas cláusulas, as quais não existem hoje. Em uma economia livre, o arranjo estipulado poderia de fato ser atraente como um investimento com uma combinação específica de riscos e benefícios, porém é fato que ele claramente em nada beneficiaria o indivíduo que apenas tem a intenção de manter dinheiro consigo.

As pessoas mantêm dinheiro consigo porque elas querem ter a certeza de que o dinheiro vai estar ali quando precisarem dele (caso contrário, já teriam se desfeito dele há muito tempo). É, portanto, seguro dizer que um sistema bancário de reservas fracionárias honesto teria uma existência apenas marginal em uma economia genuinamente livre.


Notas
[1] Mises originalmente concedeu algumas vantagens para o sistema bancário de reservas fracionárias; porém, mais tarde, repudiou essa concessão.  No cômputo geral, ele sempre foi um sincero e aberto oponente dessa prática.  Sobre isso, ver o importante trabalho de Salerno (1993), em particular pp. 139ff.  Ver também Hülsmann (2000).
[2] Ver em particular Hoppe 1994; Huerta de Soto 1994, 1995, 1998a, e 1998b; Hülsmann 1996a, 1996b, e 1998; e Hoppe, Hülsmann, e Block 1998. Ver também Reisman 1996.
[3] Ver, por exemplo, Selgin and White 1996.
[4] Quanto a esse ponto, os defensores das reservas fracionárias normalmente dizem que há uma distinção legal entre insolvência e "falta de liquidez".  Sou incapaz de ver qualquer diferença econômica entre ambos os termos.
[5] Estritamente falando, essa afirmação é verdadeira apenas para dinheiro metálico (moeda-commodity), e não para dinheiro de papel de curso forçado.  Ver Hülsmann 1998.  Essa distinção pode ser ignorada aqui porque estamos interessados exclusivamente nas diferenças entre aumentos na oferta de dinheiro metálico e aumentos na oferta de recibos fiduciários.
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Referências
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Jörg Guido Hülsmann é membro sênior do Mises Institute e autor de Mises: The Last Knight of Liberalism e e The Ethics of Money Production.  Ele leciona na França, na Université d'Angers.

Tradução de Leandro Roque

COMO O MUNDO IRÁ MUDAR



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O mundo não irá se tornar livre pela criação de novas leis ou por causa da renovação de leis antigas. Também não será por causa de novos líderes políticos e nem por causa do resultado de eleições. Tampouco será por causa de uma mudança no governo. O mundo irá se tornar mais livre somente em decorrência de uma mudança na atitude das pessoas em relação ao governo. Não será por causa de legislações, mas sim em decorrência de um desprezo por legislações.

A mudança genuína ocorrerá não quando o estado for reformado, mas quando ele for ignorado. Não quando os políticos forem melhores, mas quando eles forem irrelevantes.

Quando as leis criadas pelo estado não mais forem consideradas necessárias ou importantes, o estado deixará de ser respeitado. E quando ele deixar de ser respeitado, ele não mais conseguirá se impor sobre ninguém, pois sua existência deixará de ser exequível.

É assim que o mundo irá mudar.

Evidências frente à descrença

O mundo pode sim se livrar desta relíquia bárbara conhecida como 'estado'. O estado é uma poderosa ficção cujo poder depende totalmente da crença das pessoas em sua necessidade, ou inevitabilidade. Mas a crença no estado não é insuperável. Não é intransponível. Não é algo que está contido em um microchip indestrutível inserido na mente das pessoas. Pressupor que um estado tem de existir ou que ele sempre existirá não é um fato indiscutível. O estado, assim como várias outras superstições hoje tidas como ultrajantes, deploráveis, desumanas ou ineficientes, pode perfeitamente um dia ser jogado na lata de lixo da história.

No passado, foram inúmeras as pessoas que riram da noção de que uma instituição tão velha quanto a própria humanidade, a instituição da escravidão, um dia seria ou poderia ser abolida. O senso comum que prevaleceu durante séculos, mesmo entre aquelas pessoas que já haviam percebido a repugnância moral da escravidão, era o de que a escravidão era apenas um aspecto inerente à natureza humana. Reformistas argumentavam que a melhor coisa que podia ser feita era tentar criar uma versão mais humana para a escravidão.

A escravidão era uma instituição que, por mais diabólica que fosse e por mais utópicos que parecessem aqueles que defendiam que o mundo seria melhor sem ela, estava aqui para ficar. Alguns dedicaram sucessivos esforços para tentar aprimorar a instituição da escravidão, para ensinar os senhores de engenho a serem "bons" e "mais humanos" para com seus escravos. Alguns criaram regras e costumes com o intuito de limitar os efeitos mais sórdidos da instituição. Mas a instituição em si era considerada tão inevitável quanto a escassez e a morte.

O erro fatal deste raciocínio é que a escravidão e o governo, ao contrário da escassez e da morte, são instituições criadas por humanos. Escravidão e governo são, acima de tudo, construções mentais. Suas manifestações físicas não são realidades que os humanos simplesmente encontram na natureza, mas realidades que nós mesmos criamos. E humanos só criam aquilo que antes imaginam. Uma ideia só irá se tornar uma ação caso o indivíduo atuante acredite que vale a pena levar adiante tal ideia. Para subjugar outro ser humano, ou para tolerar e permitir a subjugação de um ser humano por outro, é necessário antes que o indivíduo tenha em mente a ideia da subjugação, e que ele creia que implementá-la é preferível a ignorá-la ou condená-la. Já a escassez e a morte natural não necessitam de nenhum consentimento humano. O velho ditado sobre a morte e os impostos serem inevitáveis é somente metade verdadeiro.

Se o estado, assim como a escravidão, é o resultado das ideias de indivíduos, então ele não é inevitável. Algum dia a humanidade ainda irá olhar para trás e vislumbrar a instituição chamada estado com a mesma sensação de vergonha e estupefação que sente hoje em relação à escravidão. Como foi possível que tantas pessoas — várias delas boas pessoas — vivessem suas vidas diariamente cercadas por uma instituição tão corrupta, tão desumana, tão ignóbil, tão coerciva, tão violenta e tão aviltante? Elas realmente consideravam tal instituição necessária? Elas realmente não percebiam o quão degradante tal instituição era? Será difícil entender como tantos humanos consideravam o estado inevitável, tolerável e até mesmo bom. Assim como a escravidão se tornou uma relíquia odiada, o mesmo pode ocorrer ao estado.

Como tudo acontece

A escravidão não foi abolida por mudanças nas regras, nas leis ou nas lideranças políticas. Tais mudanças normalmente são meras consequências de mudanças na mentalidade e na crença das pessoas. Embora mudanças nas regras, nas leis ou nas lideranças políticas erroneamente recebam os créditos, elas jamais são a causa. A escravidão acabou assim que as ideias das pessoas a respeito dela foram alteradas. As pessoas passaram a acreditar que a escravidão não apenas era um mal, como também era um mal desnecessário. As pessoas começaram a ver a escravidão como algo tão maléfico, que elas se tornaram dispostas a tolerar os inevitáveis sacrifícios de curto prazo trazidos pela abolição da escravidão com o intuito de colher os frutos do aperfeiçoamento de longo prazo da condição humana.

O cálculo de custo e benefício foi alterado tão logo a noção de moralidade das pessoas sobrepujou o temor da 'instabilidade institucional'. As desconhecidas consequências da abolição da escravidão se tornaram um risco aceitável quando comparadas aos conhecidos males da instituição, os quais haviam se tornado uma realidade inaceitável.

Reforma política

Reformas políticas jamais podem produzir liberdade. Elas podem, em raras ocasiões, ampliar um pouco de liberdade para apenas algumas pessoas; porém, enquanto tal ampliação ocorrer via métodos políticos, o que realmente estará ocorrendo é uma barganha que está retirando a liberdade em algumas outras áreas. Quase sempre, haverá um fomento de longo prazo da confiança no estado. Todo o jogo político se resume a rearranjar e a reforçar a necessidade do estado.

O jogo político atrai grande atenção e, sendo assim, vários sugerem utilizá-lo como uma maneira de educar as pessoas sobre o poder da liberdade. Mas utilizar a política como ferramenta educacional somente será de alguma valia no longo prazo se tal medida também ensinar às pessoas que, no fundo, a política é um mal, e que o governo jamais pode ser uma instituição benéfica. Se a política meramente inspirar as pessoas a defender a ideia de que o estado pode melhorar as coisas, então ela não irá, no final, tornar a sociedade mais livre. É a descrença na política e no estado o que leva à liberdade.

Sempre haverá pessoas com desejo de poder, com desejo de controlar os outros. Somente quando o resto não mais acreditar que tal poder é necessário, e consequentemente não mais obedecer às ordens dos senhores de engenho, poderá a liberdade triunfar.

Mudança de foco

Humanos querem resolver problemas da maneira mais imediata e direta possível. Queremos saber onde começa o problema da restrição da liberdade. Descobrimos a fonte de maneira gradual e progressiva. Primeiro, o foco está nas pessoas — na liderança política considerada incapaz e corrupta. Isso rapidamente se generaliza para partidos políticos ou grupos, depois para políticas e leis, depois para agências e instituições, até finalmente chegar ao próprio estado.

Neste ponto parece que chegamos ao âmago do problema: o estado em si, e não as personalidades, partidos, agências ou leis sob seus auspícios. Porém, uma mudança de foco ainda mais profunda é necessária. O estado não é a raiz do problema. O real problema não é uma instituição, mas uma ideia. A ideia de que o governo é necessário. É esta ideia a culpada de todas as coisas ruins que o estado já fez.

Uma pequena mudança de foco já está ocorrendo. Algumas pessoas já percebem que não há diferenças entre partidos políticos. Outras não acreditam que políticos são seres superiores capazes de solucionar problemas criados pelo próprio estado. E já é mais comum ver instituições estatais e os incentivos distorcidos criados pelo governo sendo criticados. Isso é um progresso, mas é muito pouco. Ainda é muito raro ver a existência do próprio estado sendo criticada, e ainda mais raro é ver uma crítica à ideia de que o estado é necessário.

A crença em sua necessidade é que o concede todo poder ao estado, o qual, por definição, é repleto de maus incentivos que atraem e estimulam pessoas ruins.  Dizer que pessoas, partidos ou políticas são o prob
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lema é como culpar a calçada por ter quebrado a sua perna após você ter ignorado que o prédio possuía escadas e elevadores e ter decidido pular da janela. Xingar a calçada é inútil e ignorante. A reação adequada seria questionar a necessidade de pular da janela; talvez, ao fazer isso, você descobriria outros métodos menos dolorosos para alcançar o seu objetivo de chegar à rua.

Não existe uma forma ou arranjo de estado que seja garantidor da liberdade. A solução sempre será paz, livre mercado e voluntarismo. O anel do poder não pode ser utilizado para o bem; ele deve ser jogado no fogo antes que o bem seja utilizado como desculpa para o mal.

Mudando vidas e mudando a vida

Não quero aqui subestimar as possíveis consequências de algumas tentativas de se reformar o estado. Por meio de tais esforços, vidas podem ser mudadas. Uma decisão judicial pode salvar um indivíduo ou toda uma vizinhança de ser demolida e desapropriada pelo estado. A revogação de uma regulamentação pode mudar para melhor a vida de um empreendedor, permitindo que ele finalmente possa correr atrás de seu sonho. Tais medidas são análogas a donativos enviados para regiões que sofreram desastres naturais; elas podem genuinamente mudar vidas e oferecer um grande alívio. Elas podem mudar vidas, mas não podem mudar a vida.

Desastres sempre ocorrerão. Assim como as condições que geraram fome não são melhoradas com o alívio instantâneo da pessoa que recebe donativos, as ações estatais que destroem a liberdade não são abolidas quando determinadas ações estatais momentaneamente deixam de estorvar uma vizinhança ou de regular um determinado setor da economia. O estado sempre continuará — pois depende disso — buscando sua própria expansão, e crescerá em cima de todos os pontos fracos que encontrar, garantindo que um incontável número de vidas continue dependentes de sua existência, mas sem que as condições gerais de vida sejam fundamentalmente alteradas. Tratar a doença é uma medida nobre, mas não é o mesmo que erradicar a doença.

Mudar vidas é um trabalho nobre e gratificante. Mas para aqueles corajosos o bastante para sonhar, mudar a vida é uma bem-aventurança, e é algo que só pode ser feito por meio do enfraquecimento — e não do aperfeiçoamento — do estado.

O que fazer?

A única tática que merece ser perseguida é a do esclarecimento. O esclarecimento próprio e o dos outros, sempre de maneira contínua. Isso não significa dizer às pessoas em que acreditar ou o que fazer. Trata-se muito mais de descoberta do que de educação. Um professor, por meio do fornecimento de informações, pode ajudar um aluno a descobrir a verdade, mas o aluno tem de ter a curiosidade e a ânsia da descoberta. É o próprio descobridor quem decide se quer ou não descobrir.

Torne-se uma pessoa livre e a sua liberdade será um estímulo e um farol para outras que também querem ser mais livres. Comporte-se como uma pessoa livre e todos irão querer imitá-lo. Crie liberdade na sua própria vida, troque ideias, seja aberto e receptivo ao poder da criatividade humana. Liberte sua mente e você começará a libertar a mente dos outros — não ao dizer a eles em que acreditar, mas ao demonstrar e discutir a superioridade das ideias de liberdade.

O mercado não produz inovações e tecnologias porque pessoas espertas dão ordens a terceiros; o mercado produz inovações e tecnologias porque se trata de um arranjo em que há uma contínua troca de idéias, um contínuo fluxo de criação e imitação, de tentativa e erro — o maior jogo ininterrupto de trocas econômicas.

A construção de uma sociedade livre não tem de esperar que o estado se torne limitado ou ausente; com efeito, o estado só irá desaparecer após uma sociedade livre ter sido construída para substituí-lo. O fantástico poder das ideias irá destruir as bases que sustentam o estado tão logo pessoas livres começarem a viver e a respirar ideias que demonstrem a vida, a energia, o prazer, o progresso e a satisfação da liberdade.

Isso não significa que todos aqueles que querem liberdade devem fazer a mesma coisa. Demonstrar e discutir as ideias de uma sociedade livre é uma tarefa tão ampla e evolucionária que abre inúmeras portas. As diferenças intrínsecas aos seres humanos no que diz respeito às suas habilidades e interesses levam a inúmeros esforços, e o esclarecimento e o preparo permitem um amplo espaço para diferenciações.

Nossas diferenças irão se manifestar nas outras pessoas com quem trocarmos ideias, bem como nos métodos e meios que utilizarmos. A construção da sociedade livre tem de se basear na troca de ideias. Só assim a mudança poderá ser duradoura. Não se deve enganar, adular, forçar, atiçar, empurrar, subornar ou ditar ordens. Tais medidas irão, no final, levar a menos liberdade, e não a mais.

A liberdade não é inevitável, mas é possível. Um estado que não esmague a liberdade não é uma realidade possível. Enquanto o estado for considerado algo necessário, ele irá existir; e ele sempre crescerá para muito além de seus limites originalmente imaginados e desejados. Todos os estados tendem a saquear e a depredar a sociedade que o sustenta até destruí-la e destruir a si próprio; o que varia é apenas a velocidade com que isso ocorre. Mas se a crença na necessidade do estado permanecer, o estado deposto será rapidamente substituído por um estado novo, e todo o processo será reiniciado.

A única fundação sobre a qual uma sociedade pode ser construída sem entrar em colapso é a crença na possibilidade de uma vida sem políticos e burocratas nos apontando armas e ditando ordens.

Esta é uma crença que tem de se tornar popular. Argumentos consequencialistas (práticos) e deontológicos (morais) contra o estado são válidos, mas insuficientes. As pessoas sempre irão aceitar um sistema imoral e ineficiente caso acreditem que ele seja necessário. Tão logo elas descobrirem que tal sistema é desnecessário, elas irão abandoná-lo e fornecer razões práticas e morais para fazê-lo. Mas, para que isso aconteça, a crença na necessidade do estado tem de ser derrubada.

Realista e radical

Se abrirmos nossa imaginação, há ampla e abundante evidência de ordem sem o estado. Normas e instituições não-estatais produzem a maior parte do mundo que vemos ao nosso redor. Historicamente, a sociedade precede o estado, e há ampla evidência de soluções não-estatais para aqueles problemas os quais fomos ensinados que somente o estado pode resolver.

Sempre que as pessoas se tornam capazes de imaginar soluções melhores, elas imediatamente deixam de apoiar soluções inferiores (mesmo diante do desconhecido, caso elas acreditem na premissa) e deixam de proibir novas experimentações. Pessoas com uma imaginação pequena demais para visualizar um automóvel podem perfeitamente aceitar restrições à construção de estradas. No entanto, pessoas que embora sejam incapazes de visualizar a manifestação específica de um automóvel, sejam capazes de imaginar o progresso humano e as invenções capazes de surpreendê-las, serão muito mais reticentes em restringir a construção de algo que seja uma promessa desconhecida.

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É exatamente por isso que não é necessário que todos nós compartilhemos a mesma visão — ou sequer um mesmo ideal específico — em relação a um mundo sem políticos e burocratas. Temos, no entanto, de ser corajosos, audazes e tolerantes o bastante para vermos nas relações humanas o potencial para a ordem sem o estado.

Aqueles que conseguem imaginar tal mundo têm a tarefa de abrir a mente de terceiros para esta mesma possibilidade. Mostrem a elas, inspirem-nas e deixem-nas intrigadas. Onde a imaginação é deficiente, também o é a liberdade.

A dissolução do estado não depende de as pessoas se tornarem melhores ou que a moralidade mude, ou que haja um próximo passo na evolução. É uma falácia crer que o governo é necessário e inevitável. Ele pode desaparecer a qualquer momento. É tudo uma questão de mudarmos nossas crenças, paradigmas e teorias a respeito do mundo. É necessário apenas que percebamos que o estado não é necessário. Eu digo "apenas" estando perfeitamente ciente de que o poder de imaginação necessário para entender a desnecessidade do estado não é pequeno. Abrir nossas mentes a esta possibilidade é o maior e mais promissor desafio intelectual e prático de nossa era.
Isaac Morehouse é membro do Instituto de Estudos Humanos da George Mason University.