domingo, 16 de setembro de 2012

SOCIALISMO E RETROCESSO DA CIVILIZAÇÃO


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Nas páginas 33—35 do meu livro Socialism, Economic Calculation, and Entrepreneurship, faço uma análise do processo empreendedorial e explico como a divisão do conhecimento prático empreendedorial se aprofunda "verticalmente" e se expande "horizontalmente", processo esse que permite (e ao mesmo tempo requer) um aumento da população, que estimula a prosperidade e o bem-estar geral, e que ocasiona o progresso da civilização. Como indicado naquelas páginas, este processo de "verticalização" e "horizontalização" do conhecimento se baseia


1. na especialização da criatividade empreendedorial em campos cada vez mais específicos, com cada vez mais profundidade e detalhes;

2. no reconhecimento dos direitos de propriedade do empreendedor criativo, o que significa que ele tem o direito de manter para si os frutos de sua atividade criativa em cada uma destas áreas;

3. na troca livre e voluntária destes frutos gerados pela especialização de cada ser humano, uma troca que sempre será mutuamente benéfica para todos aqueles que participam do processo de mercado; e

4. no crescimento contínuo da população humana, o que torna possível "ocupar" e cultivar empreendedorialmente um crescente número de novas áreas de conhecimento criativo empreendedorial, o que enriquece a todos.



De acordo com esta análise, qualquer coisa que garanta a propriedade privada daquilo que cada indivíduo cria e contribui para o processo de produção, que defenda a posse pacífica daquilo que cada indivíduo cria ou descobre, e que facilite (ou não impeça) o processo de trocas voluntárias (os quais, por definição, sempre são mutuamente satisfatórios no sentido de que representam uma melhoria da situação de cada pessoa) irá gerar prosperidade, aumentar a população, e aprofundar o avanço quantitativo e qualitativo da civilização.

Da mesma forma, qualquer ataque à posse pacífica de bens e aos direitos de propriedade sobre estes bens; qualquer manipulação coerciva do livre processo de trocas voluntárias; em suma, qualquer intervenção estatal em uma economia de livre mercado sempre irá gerar efeitos indesejados, suprimir a iniciativa individual, corromper a moral e os hábitos de comportamento responsável, tornar o público imaturo, infantilizado e irresponsável, acelerar o declínio do tecido social, consumir a riqueza acumulada, e bloquear a expansão da população humana e o progresso da civilização, aumentando a pobreza geral.

Como ilustração, consideremos o processo de declínio e desaparecimento da clássica civilização romana. Embora suas características mais proeminentes possam ser facilmente extrapoladas para várias circunstâncias do nosso mundo contemporâneo, infelizmente a maioria das pessoas hoje já se esqueceu, ou ignora por completo, essa importante lição histórica; e, como resultado, elas são incapazes de ver os graves riscos que hoje nossa civilização enfrenta. Com efeito, como explico em detalhes em minhas aulas (e resumo em um vídeo gravado durante uma delas, sobre a queda do Império Romano [La Caída del Imperio Romano], o qual, para minha surpresa, já foi visto na internet por mais de 400 mil pessoas), e de acordo com estudos anteriores feitos por autores como Rostovtzeff (The Social and Economic History of the Roman Empire) e Mises (Ação Humana), "o que provocou a queda do império [romano] e a ruína de sua civilização não foram as invasões bárbaras, mas sim a desintegração dessa interdependência econômica".

Para ser mais exato, Roma foi vítima de um retrocesso na especialização e na divisão do processo comercial, uma vez que as autoridades políticas sistematicamente obstruíam ou impediam trocas voluntárias a preços de livre mercado. E faziam isso em meio a um aumento descontrolado nos subsídios, nos gastos públicos ("panem et circenses") e nos controles estatais sobre todos os preços de mercado. É fácil entender a lógica por trás destes eventos. 

Começando especialmente no século III, a compra de votos e de popularidade levou à disseminação da distribuição de subsídios para a população adquirir alimentos ("panem"). Tais subsídios eram financiados com dinheiro de impostos, política essa conhecida como "annona". Além destes subsídios, havia também uma contínua organização dos mais esbanjadores e opulentos jogos públicos para divertir a população ("circenses"). Em decorrência deste arranjo, não apenas os agricultores italianos ficaram arruinados, como também a população de Roma não parou de crescer até chegar a quase 1 milhão de habitantes. (Por que trabalhar exaustivamente em sua terra se os seus produtos não poderão ser vendidos a preços lucrativos, dado que o estado os distribui praticamente de graça em Roma?).

Sendo assim, a medida mais racional para os agricultores italianos seria deixar o campo e se mudar para a cidade e viver do assistencialismo. Mas tal política tem seus inevitáveis custos, e tais custos não poderiam ser cobertos eternamente pelo dinheiro de impostos. Consequentemente, a solução criada pelo governo para continuar sua política foi a inflação — mais especificamente, a redução do conteúdo metálico das moedas. A consequência foi inescapável: uma queda incontrolável no poder de compra do dinheiro, isto é, um aumento descontrolado dos preços, ao qual as autoridades responderam decretando que os preços fossem congelados aos seus valores anteriores, além de imporem sentenças extremamente rigorosas aos "infratores". 

A imposição deste controle de preços levou a desabastecimentos e a uma ampla escassez (uma vez que, aos baixos preços estipulados pelo governo, não mais era lucrativo produzir ou buscar soluções criativas para os problemas da escassez; ao mesmo tempo, o consumismo e o desperdício estavam sendo artificialmente estimulados). As cidades rapidamente começaram a ficar sem estoques, e a população começou a voltar para o campo e a viver em autarquia em condições muito mais penosas, em regime de mera subsistência, um regime que gerou as bases para o que mais tarde viria a ser o feudalismo.

Este processo de retrocesso da civilização (ou descivilização), o qual surgiu da ideologia demagógica socialista — típica do estado assistencialista e do intervencionismo estatal na economia —, pode ser ilustrada de uma maneira graficamente simples pela inversão da explicação do gráfico da página 34 do meu livro supracitado, Socialism, Economic Calculation, and Entrepreneurship, no qual descrevo o processo por meio do qual a divisão do trabalho (ou melhor, a especialização do conhecimento) se aprofunda e consequentemente a civilização avança.

Comecemos pelo estágio representado pela linha superior do gráfico (T1), o qual reflete o nível avançado de desenvolvimento espontaneamente alcançado pelo processo de mercado romano no início do século I, o qual, como demonstrou o estudioso Peter Temin ("The Economy of the Early Roman Empire" Journal of Economic Perspectives, vol. 20, no. 1, winter 2006, pp. 133?151), era caracterizado por um notável grau de respeito legal e institucional pela propriedade privada (o direito romano), e pela especialização e difusão das trocas voluntárias em todos os setores e mercados (particularmente no mercado de trabalho, uma vez que, como Temin demonstrou, o efeito da escravidão foi muito mais modesto do que sempre se acreditou até hoje). Como resultado, a economia romana daquele período alcançou um nível de prosperidade, desenvolvimento econômico, urbanização e cultura que só voltaria a ser visto no mundo em meados do século XVIII.

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As letras maiúsculas sob cada pessoa na figura acima indicam os fins a que cada indivíduo se dedica e se especializa. Ele então comercializa os frutos de sua criatividade e esforço empreendedorial (representados pela lâmpada que "acende") pelos frutos dos outros indivíduos, e todos se beneficiam dessa troca. No entanto, quando a intervenção estatal na economia aumenta (por exemplo, por meio de controle de preços), as trocas são obstruídas e diminuem, e as pessoas se descobrem no estágio representado pela linha do meio do gráfico. Elas são obrigadas a reduzir a amplitude de sua especialização, abandonando, por exemplo, os fins G e M e se concentrando apenas nos fins AB, CD e EF. Houve uma redução na divisão do trabalho e nas transações voluntárias, levando consequentemente a um menor grau de especialização, o que requer um maior número de cópias e reproduções, e um excesso de esforço. O resultado óbvio é uma queda na produção final de todo o processo social, e consequentemente um aumento na pobreza.

O ponto máximo do declínio econômico e da recessão ocorre no estágio mostrado na linha inferior do gráfico (T3). Neste estágio, em decorrência da crescente pressão intervencionista do estado, dos contínuos aumentos nos impostos, e das sufocantes regulamentações, as pessoas, com o único intuito de sobreviver (ainda que a um nível de pobreza até então inconcebível), são forçadas a abandonar quase que completamente a divisão do trabalho e os processos de transações voluntárias que constituem o mercado, a deixar as cidades e retornar ao campo para criar gado e cultivar seus próprios alimentos, fabricar seu próprio couro e construir suas próprias choupanas. Cada indivíduo irá desnecessariamente duplicar as atividades e os fins minimamente necessários para sobreviver (os quais foram marcados ABCD no gráfico). Logicamente, a produtividade irá sofrer uma acentuada queda, e todos os tipos de escassez surgirão, o que levará a uma redução da população em decorrência da falta de recursos. Neste ponto, o processo de desurbanização e descivilização estará completo.

Como Mises indicou,

A combinação de uma política de preços congelados com a deterioração da moeda provocou a completa paralisação tanto da produção quanto do comércio dos gêneros de primeira necessidade, e desintegrou a organização econômica da sociedade. ... Para não morrer de fome, as pessoas fugiam da cidade para o campo e tentavam produzir, para si mesmas, cereais, azeite, vinho e o de que mais necessitassem. ... As cidades, o comércio interno e externo, as manufaturas urbanas deixaram de exercer a sua função econômica. A Itália e as províncias retornaram a um estágio mais atrasado da divisão social do trabalho. A estrutura econômica da antiga civilização, que havia alcançado um nível tão alto, retrocedeu ao que hoje é conhecido como a organização feudal típica da Idade Média. ... [Os imperadores] reagiram de maneira infrutífera, sem atingir a raiz do mal. A compulsão e coerção a que recorreram não podiam reverter a tendência de desintegração social que, ao contrário, era causada precisamente pelo excesso de compulsão e coerção [da parte do estado]. Nenhum romano tinha consciência do fato de que o processo era provocado pela interferência do governo nos preços e pela deterioração da moeda.

Mises conclui,

Uma ordem social está fadada a desaparecer se as ações necessárias ao seu bom funcionamento são rejeitadas pelos padrões morais, são consideradas ilegais pelas leis do país e são punidas pelos juízes e pela polícia. O Império Romano se esfacelou por ter ignorado o liberalismo e o sistema de livre iniciativa. O intervencionismo e o seu corolário político, o governo autoritário, destruíram o poderoso império, da mesma forma que necessariamente desintegrarão e destruirão, sempre, qualquer entidade social.



A análise de Mises foi contínua e invariavelmente confirmada não somente em vários exemplos históricos específicos (processos de declínio e retrocesso da civilização, como, por exemplo, no norte e em outras partes da África; a crise em Portugal após a "Revolução dos Cravos"; a crônica doença social que afeta a Argentina, que era um dos países mais ricos do mundo antes da Segunda Guerra Mundial, mas que hoje, em vez de receber imigrantes, perde sua população continuamente; processos similares que estão devastando a Venezuela e outros regimes populistas na América Latina etc.), mas também, e acima de tudo, pelo experimento do socialismo verdadeiro, o qual, até a queda do Muro de Berlim, imergiu centenas de milhões de pessoas no sofrimento e no desespero.

Da mesma maneira, atualmente, em um mercado mundial totalmente globalizado, as forças descivilizadoras do assistencialismo, do sindicalismo, da manipulação monetária e financeira dos bancos centrais, do intervencionismo econômico, do aumento das regulações e da carga tributária, e da falta de controle das contas públicas estão ameaçando até mesmo aquelas economias que até então sempre foram consideradas as mais prósperas (os Estados Unidos e a Europa). Vivendo hoje uma encruzilhada histórica, estas economias estão lutando para se livrar das forças descivilizadoras da demagogia política e do poder dos sindicatos à medida que elas tentam retornar ao caminho do rigor monetário, do controle do orçamento, da redução de impostos e do desmantelamento da confusa e intricada rede de subsídios, intervenções e regulamentações que sufocam o espírito empreendedorial e infantilizam e desmoralizam as massas. Seu sucesso ou fracasso nesta empreitada irá determinar seu futuro e, mais especificamente, se elas irão continuar a liderar o avanço da civilização como fizeram até hoje, ou se, em caso de fracasso, elas deixarão a liderança da civilização para outras sociedades que, como as sociedades sino-asiáticas, se esforçam de maneira fervorosa e sem nenhum constrangimento para se tornarem as principais do novo mercado mundial globalizado.

É hoje evidente que a civilização romana não caiu em decorrência das invasões bárbaras: ao contrário, os bárbaros facilmente se aproveitaram de um processo social que já estava, por razões puramente endógenas, em marcante declínio e em estágio de avançado colapso.

Mises explicou desta maneira:

Os agressores externos simplesmente se aproveitaram de uma oportunidade que lhes foi oferecida pelo enfraquecimento interno do império. De um ponto de vista militar, as tribos que invadiram o império nos séculos IV e V não eram superiores aos exércitos que as legiões haviam derrotado facilmente algum tempo antes. Mas o império havia mudado; sua estrutura econômica e social tornara-se medieval.

Adicionalmente, o grau de regulação, estatismo e pressão tributária do império se tornou tão grande, que os próprios cidadãos romanos frequentemente preferiam se submeter aos invasores bárbaros por considerá-los um mal menor. Lactâncio, em seu tratado De Mortibus Persecutorum ("A morte dos perseguidores"), escrito no ano 314-315 d.C., afirma,

Chegou-se ao extremo de ser maior o número dos que viviam dos impostos do que o dos contribuintes, até que, por serem consumidos os recursos dos colonos pela enormidade dos impostos extraordinários, as terras foram abandonadas e os campos cultivados foram transformados em selvas. ... Numerosos governadores e subalternos oprimiam cada uma das regiões, inclusive quase a cada uma das cidades. Igualmente numerosos eram os funcionários do fisco, magistrados e substitutos dos prefeitos do Pretório, cuja atividade na ordem civil era escassa, mas intensa à hora de ditar multas e proscrições. As exações de todo tipo eram, já não direi frequentes, mas constantes, e os atropelos para levá-las a cabo, insuportáveis. (citado por Antonio Aparicio Pérez, La Fiscalidad en la Historia de España: Época Antigua, años 753 a.C. a 476 d.C., Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 2008, p. 313).

Claramente, esta situação se assemelha assombrosamente à atual situação mundial de várias maneiras, e uma legião de escritores já demonstrou como o atual nível de subsídios e regulamentações impõe um fardo desmoralizante e intolerável sobre o crescentemente molestado setor produtivo da sociedade. Com efeito, alguns poucos autores, como o espanhol Alberto Recarte, já tiveram a coragem de exigir uma redução "no número de funcionários públicos, particularmente aqueles cujo trabalho é regular, inspecionar e vigiar todas as atividades econômicas por meio da imposição de requerimentos legais custosos e extremamente intervencionistas" (El Desmoronamiento de España, Madrid: La Esfera de los Libros, 2010, p. 126). Sempre é necessário relembrar que todos nós dependemos da produção da atividade econômica privada. Sem ela, definhamos.

Em De Gubernatione Dei (IV, VI, 30), Salviano de Marselha escreve,

Enquanto isso, os pobres estão despojados, as viúvas gemem e os órfãos são pisados a pés, a tal ponto que muitos, incluindo gente de bom nascimento e de boa instrução, se refugiam junto aos inimigos para não perecer à perseguição pública. Eles vão procurar nos bárbaros a misericórdia dos romanos, uma vez que eles não mais toleram a inclemência bárbara que encontram nos romanos. São dife­rentes dos povos onde buscam refúgio; nada têm das suas manei­ras, nada têm da sua língua e, seja-me permitido dizer, também nada têm do odor fétido dos corpos e das vestes dos bárbaros; mas preferem sujeitar-se a essa dissemelhança de costumes a sofrer, entre os romanos, a injustiça e a crueldade. Assim, emigram para os Godos ou para os Bagaldos, ou para os outros bárbaros que em toda a parte dominam, e não se arrependem de sua expatriação, pois preferem viver livres sob a aparência da escravidão que de serem escravos sob a aparência da liberdade (citado em ibid., pp. 314?315).
Finalmente, em seu Historiæ adversum Paganos ("Histórias contra os Pagãos"), o historiador Paulo Orósio conclui,

Os bárbaros passaram a detestar suas espadas, trocaram-nas pelo arado e estão afetuosamente tratando o resto dos romanos como camaradas e amigos, de modo que agora, entre eles, podem ser encontrados alguns romanos que, vivendo com os bárbaros, preferem a liberdade com pobreza a pagar tributos e viver com ansiedade entre seus semelhantes.

Não sabemos se, no futuro, a civilização ocidental, que prosperou até hoje, será substituída pela civilização de outros povos que hoje podem ser considerados "bárbaros". No entanto, temos de estar certos sobre duas coisas: primeiro, em meio à mais severa recessão a assolar o mundo ocidental desde a Grande Depressão de 1929, caso fracassemos em aplicar as medidas essenciais — isto é, desregulamentação, especialmente no mercado de trabalho, redução nos impostos e no intervencionismo econômico, maior controle sobre os gastos públicos e a eliminação de subsídios e protecionismos —, corremos o risco de perder muito mais do que apenas o poder de compra da moeda; e segundo, se perdermos em definitivo a batalha da competitividade no mercado mundial globalizado, e entrarmos em um declínio crônico, tal derrota não terá sido por causa de fatores exógenos, mas sim em decorrência de nossos próprios erros, falhas, omissões e deficiências morais.


Não obstante tudo isso, gostaria de finalizar com uma nota de otimismo. É verdade que enfrentamos vários desafios, e é muito fácil nos tornarmos desanimados em decorrência da abundância de inimigos da liberdade que vicejam por todos os lados. Mas também é verdade que, contrariamente à cultura dos subsídios, da irresponsabilidade, da falta de princípios morais e da dependência do estado para tudo, há também, surgindo das cinzas entre vários jovens (e também entre aqueles de nós que já não são mais tão jovens), a cultura da liberdade empreendedorial, da criatividade, da assunção de risco e do comportamento baseado em princípios morais. Em suma, a cultura da maturidade e da responsabilidade (em oposição ao infantilismo ao qual nossas autoridades e políticos gostariam de nos restringir com o intuito de nos tornar cada vez mais servis e dependentes). Para mim, está claro quem possui as melhores armas morais e intelectuais, e que, por isso, são os donos do futuro. É por isso que sou um otimista.


professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo libertário ao redor do mundo. Ele é o autor da monumental obra Money, Bank Credit, and Economic Cycles.

A AMEAÇA DA CONCENTRAÇÃO BANCÁRIA NO BRASIL



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Quais as ameaças geradas por instituições financeiras que se tornam "grandes demais para quebrar"?

Já estamos no quarto ano da grande crise financeira do novo milênio e os bancos "grandes demais para quebrar" se tornaram ainda maiores. Foram vários os casos de fusões forçadas, estatizações, aquisições de instituições insolventes — tudo sob a anuência, para não dizer a exigência, dos Bancos Centrais.

No dia 4 de novembro de 2011, o Financial Stability Board — órgão internacional que monitora e faz recomendações sobre o sistema financeiro global — publicou um relatório enumerando 29 instituições de importância global. Nenhum banco brasileiro entrou na lista. Em termos de ativos, nossos bancos não estão nem entre os cinquenta primeiros em nível global.

Isso, no entanto, não significa que não tenhamos nossos próprios "grandes demais para quebrar". Temos, sim. Mais ainda: nosso sistema bancário está perigosamente seguindo a mesma tendência internacional. Os bancos brasileiros se tornaram ainda maiores nos últimos quatro anos. Qualquer que seja a métrica utilizada para a análise, a inevitável conclusão é a de que o sistema bancário brasileiro está se tornando mais concentrado (ver gráfico 1); e, como uma indústria, sua fatia no PIB brasileiro vem crescendo rapidamente.

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Gráfico 1: ativos e depósitos bancários totais — Fonte: BACEN e VOGA

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Gráfico 2: ativos dos bancos e PIB — Fonte: BACEN e VOGA

A tendência desde a implantação do real


A introdução do real, em julho de 1994, e a consequente estabilização da inflação foram os principais motores da consolidação bancária ocorrida no final da década de 1990 e início da de 2000. Após várias privatizações, fusões, aquisições e liquidações de bancos públicos estaduais e federais, o número de bancos em operação no Brasil declinou de 248 para 133 em 2007 (esta cifra leva em conta bancos comerciais, de investimento e outros, com a exceção de cooperativas de crédito). Até o presente momento, este número segue inalterado. Embora a quantidade de instituições financeiras possa indicar o quanto o sistema bancário foi reduzido a alguns poucos grandes bancos, é necessário também analisar o percentual de ativos e depósitos controlados pelos principais bancos (gráfico 1, que não inclui o BNDES).

A tendência é clara: um pequeno número de bancos passou a concentrar um valor crescente de ativos e depósitos durante os últimos 17 anos. A fusão do Itaú com o Unibanco em 2008 — à época, o segundo e o sexto maiores bancos, respectivamente — provocou um salto significativo no gráfico, elevando o percentual de ativos dos cinco maiores bancos para quase 80%.

Entre as cinco maiores instituições temos o Banco do Brasil (BB), o Itaú-Unibanco, o Bradesco, a Caixa Econômica Federal (CEF) e o Santander. O primeiro e o quarto são bancos públicos. Repetindo o que foi dito neste artigosobre a reestatização do crédito no Brasil, "estas gigantescas instituições financeiras ainda moldam uma considerável fatia da economia brasileira atualmente."

Por controlarem uma enorme fatia de ativos — dentre eles, empréstimos para empresas e pessoas — e depósitos, estes bancos certamente podem ser definidos como "bancos domésticos sistemicamente importantes" de acordo com o termo técnico criado pelo Comitê de Supervisão Bancária da Basileia, um mero eufemismo para "grandes demais para quebrar".

O crescimento no tamanho do setor bancário como um todo é claramente visualizado pela proporção do total de ativos em relação ao PIB do país, como mostrado no gráfico 2. Se os bancos brasileiros já eram grandes e concentrados no passado recente, eles certamente estão maiores hoje, e bem mais concentrados.

À medida que a economia brasileira vai se tornando cada vez mais alavancada, com o crédito aumentando em relação ao PIB assim como o endividamento das famílias, o lado esquerdo dos balancetes dos bancos cresce a um ritmo mais acelerado do que o do restante da economia. E essa tendência de concentração do setor bancário não é um fenômeno restrito ao Brasil; com efeito, internacionalmente, esta é a regra e não a exceção.

Parece haver uma tendência de aumento contínuo no tamanho do setor bancário, levando a uma maior concentração nas mãos de poucas instituições. Embora economias de escala naturalmente exerçam uma função nestas tendências de consolidação, o moderno sistema bancário usufrui algumas características peculiares que o torna distinto de todas as outras indústrias da economia, características essas que são essenciais para consolidar esta tendência de concentração.

Por que os bancos crescem

Alguns economistas argumentam que a principal atividade dos bancos é saber gerenciar a maturação de seu portfólio, isto é, saber como tomar empréstimos de curto prazo e fazer empréstimos de longo prazo. A verdade é que um termo mais preciso para isso seria "maturação descompassada", que é o que ocorre quando o passivo dos bancos vence antes da maturação de seus ativos.

Tecnicamente, qualquer empresa pode praticar a maturação descompassada, seja ela uma siderúrgica ou uma mercearia. Mas o empreendedor tem de ter a certeza de que seu passivo não vencerá antas da maturação de seus investimentos. Uma restrição de liquidez pode se transformar em um problema de solvência caso os ativos tenham de ser rapidamente vendidos (o que tende a fazer com seus preços caiam) ou caso os passivos não possam ser rolados.

No entanto, as práticas do atual sistema bancário são caracterizadas não somente pela maturação descompassada, mas pela excessiva maturação descompassada. Como isso é possível? Por meio de um gracioso privilégio concedido aos bancos conhecido como reservas fracionárias. Como explicado neste artigo, "a maturação descompassada é uma especulação de risco. E a prática de reservas fracionárias é uma maturação descompassada em ampla escala." Para uma explicação mais detalhada desta prática, recomendo enormemente a leitura do artigo linkado.

Confiando na experiência dos banqueiros de que nem todos os correntistas demandarão a restituição em espécie de seus depósitos, os bancos, por meio das reservas fracionárias, fazem com que um depósito inicial seja utilizado para criar múltiplos empréstimos, empréstimos esses que utilizam dinheiro (no caso, meros dígitos eletrônicos) criado do nada, criado por meio de uma simples entrada contábil.

Em suma, a prática de reservas fracionárias permite que os bancos criem passivos de curto prazo (os depósitos de seus correntistas) ao mesmo tempo em que mantêm apenas uma pequena fração de ativos líquidos de curto prazo (dinheiro em caixa, também chamado de 'reservas'), sendo que o restante de seus ativos (a vasta maioria) está na forma de investimentos de longo prazo (empréstimos). Mas quanto os bancos geralmente mantêm em suas reservas?

Nos tempos atuais, determinar tal quantidade é uma tarefa de responsabilidade dos Bancos Centrais. É o Banco Central quem determina o nível de reserva que os bancos sob sua jurisdição devem manter. Quanto maior este requerimento de reserva (popularmente conhecido como "compulsório", o qual vamos designar pela letra "c"), menor a capacidade de o sistema bancário expandir o crédito.

No entanto, esta não é a única restrição à capacidade dos bancos de expandirem o crédito por meio da criação de novos empréstimos.

Quando o Banco A concede um novo empréstimo, o tomador do empréstimo utiliza este dinheiro recém-criado para, por exemplo, pagar seu fornecedor. Se este fornecer possuir uma conta no Banco B, assim que ele depositar o pagamento em seu banco, o Banco B irá requerer a transferência de fundos do Banco A. Ato contínuo, o Banco A verá o nível de suas reservas diminuir, o que irá restringir sua capacidade de criar novos empréstimos.

Logo, quanto maior a clientela de um banco, maior será a probabilidade de que os depósitos que ele criar na forma de empréstimos não diminuirão suas reservas. Colocando de outra forma, quanto maior o banco, menor a probabilidade de ele perder reservas em decorrência de pedidos de transferência de outros bancos. 

Chamemos de "k" a probabilidade de um tomador de empréstimo fazer pagamentos para outros clientes que possuem conta em seu mesmo banco. Sob um sistema bancário de reservas fracionárias, c e k possuem efeitos opostos sobre a capacidade de expansão do crédito: quanto maior o compulsório c, menor a capacidade dos bancos de criarem novos empréstimos; por outro lado, quanto maior o k maior será a capacidade expandir o crédito.

Nos principais países desenvolvidos, os Bancos Centrais estipularam o compulsório ("c") em níveis perto de 0%. Não havendo mais espaço para reduzir o c, a única maneira restante de aumentar a capacidade de criar novos empréstimos e depósitos é aumentando o k, isto é, a concentração dos bancos.

E como é no Brasil? Historicamente, o Banco Central sempre estipulou compulsórios altos para os depósitos em conta-corrente. Atualmente, a taxa do compulsório para estes depósitos é de mais de 40%, ao passo que, para os depósitos em poupança e a prazo, o compulsório é de 20%.

Em face desta significativa restrição à expansão do crédito, os bancos brasileiros estão sob ainda maior pressão do que seus congêneres europeus e americanos para fazerem fusões. A necessidade de se aumentar o k é muito maior no Brasil.

A prática de reservas fracionárias por parte dos bancos possui dois interessantes efeitos econômicos: de um lado, estimula os bancos a se fundirem, a se tornarem mais concentrados e, consequentemente, a se agigantarem; de outro, por meio da maciça expansão do crédito, permite que os bancos aumentem seus ativos, passando a representar uma fatia crescente do PIB, pelo menos até que haja uma crise bancária completa. O que nos leva à próxima seção.

Comparação com o resto do mundo

A Islândia é um exemplo característico que ilustra o último parágrafo. Em 2007, os três maiores bancos islandeses detinham praticamente 80% do total dos ativos bancários do país. E em termos de porcentagem do PIB, todos os ativos bancários totalizavam mais de 1.300% — ou seja, eram 13 vezes o valor do PIB do país.

Qualquer que seja o critério escolhido, esta cifra não é nada pequena. Os bancos islandeses cresciam ininterruptamente — até finalmente um colapso espetacular sacudir o país nórdico. Em 2011, as ativos bancários em relação ao PIB caíram para "meros" 521%, menos da metade do que eram quatro anos antes. Ainda assim, um número enorme quando comparado às outras nações desenvolvidas. Não obstante, uma contração impressionante. No Brasil, tal cifra é de 124%.
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Gráfico 3: ativos bancários em relação ao PIB — Fonte: Banco Mundial, BIS, Bancos Centrais e Voga


Outro exemplo de como os bancos vêm aumentando seu tamanho absoluto pode ser encontrado no Reino Unido.

Em um trabalho apresentado durante a 12ª Conferência Bancária Internacional realizada pela sucursal do Fed de Chicago, Andrew G. Haldane, do Banco Central da Inglaterra, analisou os balancetes dos bancos britânicos em relação ao PIB desde 1880. "A relação é permaneceu estável por quase um século, em aproximadamente 50%. Durante este período, os ativos bancários cresceram praticamente em linha com o PIB. Porém, a partir dos anos 1970, este padrão alterou-se acentuadamente. No início deste século, os balancetes dos bancos já eram mais de 5 vezes o PIB anual do Reino Unido. No espaço de uma geração, o setor bancário, com o apoio do governo, decuplicou seu tamanho", concluiu ele.

Por que os anos 1970? O autor não ofereceu nenhuma explicação. Mas há uma. E ela está diretamente relacionada ao fechamento da janela do ouro em 1971 pelo então presidente americano Richard Nixon.

Quando o sistema de Bretton Woods se esfacelou e o último elo do dólar ao ouro foi rompido, sumiram todas as amarras que impediam os Bancos Centrais de injetar liquidez no sistema bancário. Sem nenhuma ligação ao ouro, e com um papel-moeda puramente fiduciário, os Bancos Centrais agora são capazes de socorrer bancos insolventes em qualquer circunstância. Sob um padrão-ouro, tal resgate é impossível.

Quando comparados aos seus congêneres internacionais, os bancos brasileiros ainda representam uma fatia relativamente pequena do PIB doméstico. No entanto, ela está crescendo rapidamente. Ademais, o sistema financeiro do país está se tornando cada vez mais concentrado nas mãos de poucos bancos. Uma situação paradoxal, já que um sistema bancário mais concentrado reduz a probabilidade de crises sistêmicas. Mas, se elas ocorrerem, podem ser extremamente paralisantes.

Conclusão

Os problemas evidenciados pelo prejuízo de US$2 bilhões sofrido pelo JP Morgan com operações de derivativos, pelo escândalo da manipulação da taxa Libor e pela confissão do governo brasileiro de que havia identificado as supostas fraudes no banco Cruzeiro do Sul dois anos antes de sua intervenção mostram que a regulamentação e a supervisão governamental do setor bancário não garantem segurança alguma. Desnecessário relembrar o fracasso retumbante dos Acordos de Basileia II (tópico coberto em detalhes neste artigo).

Em vez de estimular fusões entre instituições financeiras, os Bancos Centrais deveriam promover medidas para reduzir a concentração bancária. No entanto, atacar somente a concentração bancária, sem levar em consideração as forças fundamentais que estimulam a concentração do setor — no caso, as reservas fracionárias — significa apenas sair criando mais regulamentação e mais supervisão governamental.

É, portanto, essencial entender que o estímulo à concentração bancária não advém apenas dos altos lucros gerados pela expansão do crédito, mas também do simples instinto de sobrevivência dos bancos.

Quando uma crise bancária se instala, fusões e aquisições são alternativas óbvias para as falências bancárias. Tais alternativas podem acabar produzindo uma maior concentração no setor, mas isso é preferível a uma quebra generalizada e um subsequente risco de colapso sistêmico.

Infelizmente, enquanto o sistema bancário de reservas fracionárias não for trazido para o centro do debate, todas as outras formas de contenção da crise financeira por meio de aumento de regulamentações estarão fadadas ao fracasso, uma vez que os bancos inevitavelmente sempre serão mais espertos que seus reguladores e supervisores.

Embora um sistema bancário altamente concentrado diminua o risco de falências bancárias isoladas, ainda assim, caso um banco de fato se torne insolvente, ele gerará um grande risco de colapso sistêmico. A própria natureza do sistema bancário de reservas fracionárias produz instabilidade sistêmica.

Apesar de os bancos brasileiros serem bem capitalizados e estarem auferindo altos lucros, qualquer problema de liquidez pode derrubar até mesmo um banco muito lucrativo e bem capitalizado em questão de dias, obrigando o BACEN a se apresentar para o socorro.

As autoridades políticas e monetárias brasileiras terão grandes problemas pela frente, já que elas terão de, de um jeito ou de outro, atacar as complicações geradas por bancos "grandes demais para quebrar", os quais estão continuamente se tornando cada vez maiores — especialmente os bancos públicos: altamente alavancados, altamente expostos ao mercado imobiliário e, ainda assim, abocanhando uma fatia cada vez maior do mercado por meio da "democratização" do crédito.

Fernando Ulrich formado em administração de empresas pela PUC-RS, concluiu em julho de 2010 o programa de mestrado em economia austríaca comandado por Jesús Huerta de Soto em Madri, Espanha.  Atualmente trabalha no mercado financeiro. 
O artigo  foi extraído do um boletim informativo mensal escrito para a empresa VOGA.

CRÔNICA DE DAMASCO



Damasco


Quais fatos podem ser distorcidos e ocultados de milhões de pessoas quando a Fraternidade Islâmica empreende uma guerra contando com o apoio de toda a imprensa ocidental?





Os políticos ocidentais têm uma ideia errada acerca da “Primavera Árabe” síria. Há pouca ou nenhuma oposição liberal e progressiva; o próprio ELS resulta da união de diferentes grupos milicianos, incluindo marginais, mercenários e jihadistas.

De acordo com a comunicação social ocidental, a Síria encontra-se em plena “guerra civil”. Grupos como o Observatório dos Direitos Humanos da Síria, sedeado em Londres, disseminam afirmações extravagantes acerca de um número desmesurado de vítimas (afirmam já terem morrido cerca de 20 mil pessoas) às mãos das forças de segurança do Estado sírio. Aos jornalistas independentes, dizem, é vedada a entrada na Síria e o regime não permite o exercício de uma imprensa livre.

Com base em tais relatos os visitantes esperam deparar-se com um país em estado de choque, paralisado pela guerra, completamente destruído. Mas quando cheguei a Damasco a 12 de Julho com um visto de jornalista como repórter da ZUERST! não testemunhei nenhuma dessas cenas. Fui de Beirute para Damasco por via terrestre, embora muitas pessoas me tivessem avisado que tal não era seguro, pois os rebeldes do Exército Livre Sírio (ELS) afirmavam controlar cerca de 85% do território. Mas quando cruzei a fronteira do Líbano para a Síria, deparei-me com o habitual tráfego fronteiriço – nenhuma fuga em massa de refugiados, nada de pânico, nenhum combate à vista. A estrada até Damasco tinha várias operações stop do exército sírio, mas encontrava-se calma e segura.

Encontrei Damasco plácida e serena, o dia-a-dia normal. Fiquei no centro da cidade, no quarteirão de al-Bahsa. As lojas estavam abertas e havia pessoas e carros nas ruas. Nas paredes, os rostos do presidente Bashar al-Assad e do seu pai, Hafez, observavam a vida na capital – umas vezes com ar afável, outras com ar sério, por vezes em roupa civil, noutras de uniforme e ainda noutras envergando óculos de sol.

Tinha lido acerca da operação de invasão da capital em curso pelo ELS, mas não havia quaisquer sinais de guerra nas ruas de Damasco. Passeei pela cidade, falando com comerciantes, taxistas, pessoas da rua, polícias, mulheres tanto com lenços quanto com roupa ocidental. A resposta foi sempre a mesma – a imprensa internacional está a distorcer completamente os acontecimentos. A Al-Jazeera, sediada no Qatar, foi particularmente criticada.

A 16 de Julho, desloquei-me à antiga aldeia cristã de Maalula, a cerca de uma hora de Damasco. Os habitantes de Maalula descendem das tribos semitas que habitaram o deserto sírio e parte da Mesopotâmia há catorze séculos. O mosteiro de Mar Sarkis foi construído sobre as ruínas de um templo pagão. Sua arquitetura bizantina contém um dos poucos altares cristãos originais. Contém também uma coleção única de ícones religiosos dos séculos XVII e XVIII. Trata-se de um dos poucos locais onde ainda podemos encontrar quem fale aramaico, a língua falada por Jesus.

Novamente, a estrada era segura. Havia muitos autocarros nas ruas, cujos destinos eram Hama, Homs e Aleppo. Entrevistei os habitantes do mosteiro ortodoxo grego de Mar Tekla, os peregrinos cristãos árabes e outros visitantes. Todos partilhavam a opinião de que o presidente Bashar tirará o país da crise e que os muçulmanos e os cristãos sírios poderão conviver pacificamente. Uma freira disse-me que “esta cidade e a sua igreja foram fundadas nos rochedos da Síria. Simbolizam a estabilidade e o poder da Síria. Vamos sair desta crise.”

A Síria é uma sociedade multiconfessional e os cristãos constituem 10% da população. A cidade de Aleppo é a maior no número de cristãos que alberga. Os cristãos estão presentes em todos os aspectos da vida síria – economia, meio acadêmico, ciência, engenharia, artes, entretenimento e na arena política. Alguns são oficiais das Forças Armadas. Preferiram misturar-se com os muçulmanos em vez de criaram unidades e brigadas cristãs à parte, e como tal combateram lado a lado com os seus compatriotas muçulmanos contra as forças israelitas em vários conflitos.

Regressei a Damasco pela cidade de al Tel, ocupada brevemente pelo ELS até à recuperação desta por parte do exército. Ainda se notam os vestígios das forças rebeldes e dos seus apoiantes – ou seja, os graffiti nas paredes a comemorar não a liberdade ou a democracia, mas os pregadores islâmicos mais extremistas. Também se viam ameaças pintadas nas lojas – “Façam greve ou ardam!” – num esforço para coagir os comerciantes a fazerem greve de modo a pressionar o governo. Os políticos ocidentais têm uma ideia errada acerca da “Primavera Árabe” síria. Há pouca ou nenhuma oposição liberal e progressiva; o próprio ELS resulta da união de diferentes grupos milicianos, incluindo marginais, mercenários e jihadistas.

A 15 de Julho os rebeldes lançaram aquilo a que chamaram “Vulcão de Damasco”, o seu assalto militar à capital, afirmando ser uma operação decisiva. Mas em al-Bahsa só dei conta de se encontrarem alguns helicópteros a sobrevoar alguns dos subúrbios, e a ocasional explosão, a cerca de cinco quilômetros de onde me encontrava. Continuava o dia-a-dia nas ruas, pese embora os relatos da imprensa ocidental acerca do inferno em que se encontrava a capital. Na maior parte da cidade a única coisa que estava a queimar eram os cachimbos dos clientes dos cafés. A guerra estava confinada a poucas zonas, como Al-Midan. As explosões duraram algumas horas, pararam e recomeçaram. O centro da cidade encheu-se com os residentes das zonas afetadas, e à noite os soldados dos pontos de controle pediram-me o passaporte. Fora isso, não havia qualquer sinal de conflito.

Tal alterou-se na quarta-feira de 18 de Julho, quando uma bomba vitimou vários membros do governo e chefes dos serviços de segurança durante uma reunião ministerial. Faleceram o ministro da Defesa, o general Dawoud Rajiha – Assef Shawkat, cunhado do presidente e secretário de Estado da Defesa – o general Hasan Turkmani, assistente do vice-presidente, e Hafez Makhlouf, chefe da seção de investigações dos serviços secretos. Encontrava-se na sede da televisão estatal quando ouvi as notícias. Estavam todos em choque, e algumas funcionárias não conseguiram conter as lágrimas. Entretanto, Bruxelas e Washington regozijaram-se com os assassinatos enquanto os islamistas dançavam nas ruas de Tripoli.

Entretanto, continuava a “batalha de Damasco”.

Passados quatro dias já toda a gente se tinha habituado ao som das bombas e dos helicópteros. Aproveitei e visitei o hospital militar de Damasco, no qual falecem uma média de quinze soldados por dia, vítimas dos seus ferimentos – cerca de 450 soldados por mês, isto só em Damasco. Entrevistei vários soldados feridos, falei com as suas famílias e os seus médicos.

Recordo particularmente a entrevista que fiz a um capitão de 34 anos do exército que teve a sorte de sobreviver a um ataque rebelde. A sua unidade tinha sido encurralada pelos rebeldes, que os alvejaram com granadas de rocket e metralhadoras de alto calibre. Um par dos seus camaradas morreu durante o ataque, foi ferido mas sobreviveu à primeira vaga. Mesmo ferido e prostrado manteve o fogo. Quando o vieram salvar ficaram também sob o fogo dos rebeldes. Acabaram por o levar para a segurança de um edifício, mas só passadas algumas horas é que conseguiram sair. Quando chegou ao hospital tinha perdido tanto sangue que se encontrava quase inconsciente.

“Pedi aos meus camaradas que me matassem antes de ser capturado pelo inimigo.”

Perguntei-lhe porquê, a sua resposta perturbou-me: “torturam-nos até à morte, cortam-nos as mãos e as gargantas caso nos apanhem vivos.”

Partia do pressuposto de que os rebeldes não eram sírios, mas oriundos de muitos países, principalmente da Líbia, dos Estados do Golfo, do Iraque, Afeganistão e Paquistão – jihadistas e mercenários que matam por petrodólares. Andes de sair do hospital mostrou-me uma foto das suas duas filhas e disse-me fervorosamente que estava a lutar pela liberdade delas.

O diretor do hospital mostrou-me onde tinha aterrado uma granada de morteiro disparada no dia anterior, que felizmente não explodira. Também havia buracos de balas nas paredes. Os rebeldes atacaram o hospital várias vezes, mas a ONU, a Anistia Internacional ou a Human Rights Watch pareceram não ter interesse nestas violações das convenções de guerra.

À medida que os combates continuaram, toda a cidade se tornou enervada. Os comerciantes começaram a fechar as lojas ao princípio da tarde; queriam certificar-se de que voltavam para as suas famílias. Alguns levavam o dinheiro e os objetos de valor consigo. Temiam que as lojas fossem pilhadas – pelos rebeldes, não pelo Exército – caso os combates chegassem ao centro da cidade.

Na sexta-feira de 20 de Julho, enquanto estações pró-rebeldes como a Al-Jazeera e a Al-Arabia emitiam histórias acerca da guerra sem quartel na capital, eu ouvia os pássaros a cantar nos lindos parques da cidade e observava enquanto os damascenos desfrutavam o seu fim-de-semana. Até as explosões nos subúrbios tinham parado. A emissora estatal noticiou que o ataque rebelde tinha sido repelido e que as forças de segurança se encontravam a limpar os subúrbios dos rebeldes que sobravam.

Desconfiei se seria verdade ou mera propaganda estatal. Decidi ir a Al-Midan, onde os combates tinham sido mais intensos. Havia muitos soldados e veículos militares no centro da zona. O oficial responsável da esquadra de polícia principal recebeu-me e mostrou-me os arredores. Ainda havia tiroteios a cerca de 500 metros, e ouvi o som de uma metralhadora de alto calibre. Levaram-me num veículo blindado à zona de combate, no limiar de Al-Midan. Havia traços da guerra em todo o lado. Os soldados disparavam protegidos contra um edifício onde se encontravam atiradores furtivos. Tivemos que nos movimentar rapidamente de casa para casa, algumas das quais ainda a fumegar. Os cadáveres dos rebeldes ainda estavam nas ruas. O rosto de pelo menos um deles era notoriamente não-arábico; parecia ter vindo do Afeganistão. Questionei-me sobre quem lhe teria pago a viagem, e porque razão estaria mesmo ele a combater.

Enquanto ainda estávamos a ver os cadáveres, chegou um veículo carregado com o equipamento e as armas dos rebeldes. O condutor mostrou-me o que tinham encontrado no centro de controle do ELS: enormes quantidades de munições, armas automáticas, metralhadoras e uniformes do Exército sírio, utilizados para desacreditar o Estado e confundir os civis. Duvidei se isto não seria uma encenação destinada aos jornalistas ocidentais: teria o Exército preparado um cenário para a minha visita? Contudo, quando cheguei, o combate ainda estava a decorrer, e ninguém teria tido tempo para “preparar” os cadáveres; a área estava “fresca”. Acredito que o que testemunhei era autêntico.

Encontrei-me com o porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros, o Dr. Jihad Makdissi, no dia em que este teve que lidar com aquilo que a Al-Jazeera apodara de “Massacre de Trimseh”. Esta afirmava que o regime tinha chacinado mais de 200 civis nessa aldeia, mas mais tarde soube-se ter sido um combate entre o Exército e o ELS. O Dr. Makdissi, que estuou no Reino Unido e fala fluentemente o inglês, repetiu pacientemente, uma e outra vez, nas conferências de imprensa os fatos – as forças de segurança tinham abatido 37 rebeldes e dois civis num ataque à vila que os rebeldes estavam a utilizar como base para lançarem ataques a outras áreas. Sustentou que ao contrário do que a Al-Jazeera afirmava, as forças governamentais não tinham utilizado aviões, helicópteros, tanques ou artilharia e que as armas mais pesadas utilizadas tinham sido rockets atiradores de granadas

Abandonei Damasco a 21 de Julho, dirigindo-me para o Líbano. Planejei ir novamente de carro. Vários sírios alertaram-me de que seria uma viagem perigosa e de que a fronteira com o Líbano estaria repleta de refugiados. Mas quando perguntei onde tinham obtido tais “informações” mencionaram sempre a Al-Jazeera e a Al-Arabia. Então, embora me sentisse apreensivo, confesso-o, decidi ir ver por mim mesmo. Mas eis que a estrada para a fronteira estava calma, sem muito trânsito. O meu passaporte foi examinado em vários postos de controle, e foi só. No posto fronteiriço havia realmente muitas pessoas, mas não se tratava de um caos, nem de uma massa de refugiados. A saída do país não demorou mais de 20 minutos.

A última surpresa ocorreu no lado libanês da fronteira. Ali vi pela primeira vez a bandeira rebelde verde, branca e negra. Logo à saída do posto fronteiriço libanês estavam uma dúzia de equipes de televisão ocidentais, à espera de “refugiados”. Algumas delas estavam a pagar aos entrevistados em dólares por entrevistas curtas; e quanto mais selvagem a história, mais pareciam gostar dela. Aparentemente a realidade não é de grande importância quando a comunicação social ocidental menciona a Síria.


ManuelManuel Ochsenreiter, ex-redator do semanário Junge Freiheit, é o atual chefe de redação da revista Zuerst!, ambos da Alemanha.






Tradução e divulgação: Geopol

O HOMEM MAIS PERIGOSO DA TERRA



Seu nome é Mitt Romney, o candidato republicano à presidência dos EUA. Afável, propenso ao diálogo, oriundo da quase defunta corrente moderada do partido, o ex-governador do Estado liberal de Massachusetts não parece um homem perigoso. No caminho até a disputa com Barack Obama, todavia, ele sofreu uma mutação essencial. O Romney de hoje, que não se recorda mais do Romney original, é o homem mais perigoso da Terra. O diagnóstico, inevitável, deriva da abordagem adotada pela chapa republicana dos grandes temas de política externa.

Antes de tudo, há a China. Romney prometeu que "no primeiro dia na Casa Branca" declararia a China um "manipulador cambial". A consequência óbvia seria a imposição de tarifas protecionistas a produtos chineses, deflagrando uma guerra econômica entre as duas maiores potências mundiais. É a receita certa para provocar a quebra em série das lajes já tensionadas que sustentam o edifício da economia global.

A acusação é de um cinismo patente. A China foi admitida na Organização Mundial do Comércio há mais de uma década, apesar da "manipulação cambial". Os chineses sempre "manipulam" o câmbio, pois essa é uma característica inerente ao capitalismo de Estado. Os EUA nem sempre "manipulam" o câmbio, mas fazem isso sempre que precisam, notadamente desde 2009, por meio de sucessivas rodadas de quantitative easing, o eufemismo cunhado para descrever pudicamente a fabricação de dólares em escala industrial. Aos poucos a China valoriza sua taxa de câmbio real, como querem os EUA - e como requer o interesse chinês de ligar os motores do mercado interno a fim de engendrar um novo ciclo de crescimento.

O cinismo é um pecado menor perto da irresponsabilidade. A China é o principal fornecedor de manufaturados aos EUA e sofreria um golpe profundo com as represálias americanas. Contudo seus vultosos saldos comerciais são, em larga medida, investidos na aquisição de títulos do Tesouro americano. Isso significa que a China financia a política monetária expansionista dos EUA, assegurando espaço para a emissão de dólares em ambiente de juros e inflação baixos. Os chineses retaliariam Romney faltando a algumas rodadas de leilão dos títulos americanos. A ruptura do intercâmbio de manufaturas por papéis da dívida provocaria o pânico nos mercados financeiros, lançando o mundo na espiral regressiva de uma depressão.

Em segundo lugar, há o Irã. Na sua visita a Israel, o homem mais perigoso da Terra entregou-se à aventura de estimular um ataque unilateral israelense ao Irã. A hipótese está sobre a mesa faz tempo, provocando amargas discórdias no governo e nas agências de inteligência de Israel. Um ataque dificilmente eliminaria as instalações nucleares iranianas, mas degeneraria em conflito regional de incertas proporções. Ao mesmo tempo, certamente produziria um retrocesso fundamental na gramática política da Primavera Árabe, contaminando-a de antiamericanismo e antissemitismo.

Desde o início as revoltas populares contra os tiranos organizaram-se em torno dos valores das liberdades, dos direitos políticos e da responsabilidade dos governos perante o povo. Tais "valores ocidentais", que são aspirações humanas universais, impelem as correntes laicas e democráticas no mundo árabe e, mais além, no próprio Irã, que não é um país árabe. Eles também regam as sementes do reformismo no interior de organizações fundamentalistas, como a Irmandade Muçulmana. Toda essa evolução, de amplas repercussões, poderia ser comprometida pela guerra que Romney parece insuflar.

Os gastos militares ocupam o terceiro lugar. Paul Ryan, o representante da ala do Tea Party na chapa republicana, em palestra recente criticou a redução relativa do orçamento militar, que decorre da pressão dos gastos com a saúde. O vice traçou um paralelo com o declínio britânico, cem anos atrás, quando a antiga potência foi obrigada a transferir o cetro para os EUA, dada a sua incapacidade de conservar a primazia militar. A Grã-Bretanha deu lugar a uma potência que compartilhava seus valores, mas o declínio americano deixa entrever o espectro de ascensão de uma potência cujos valores conflitam com os dos EUA, sublinhou Ryan.

O paralelo está sustentado sobre premissas falsas. Os britânicos tinham a maior força naval, mas sua Marinha equivalia, apenas, à soma das duas frotas de guerra seguintes e as suas forças terrestres eram inferiores às das potências continentais europeias. Em contraste, o orçamento militar dos EUA representa dois quintos dos gastos militares globais e equivale aos orçamentos somados dos 14 países seguintes. Os gastos militares da China - o espectro mencionado por Ryan - ainda não alcançam um quinto dos gastos americanos. Há dez anos o comentarista neoconservador Charles Krauthammer consagrou um artigo à defesa do argumento de que a inabalável hegemonia militar dos EUA asseguraria mais um século de liderança americana. A hipótese contrária, do declínio americano, conta com arautos sérios - mas eles nunca utilizam o argumento militar.

Provavelmente Romney não acredita em nada do que diz sobre política externa. Ao que parece, o candidato republicano vestiu a indumentária preparada pelos alfaiates do Tea Party, reconhecendo que seu partido foi tomado de assalto pela corrente radical. Na Casa Branca, ele não pretenderia honrar os compromissos extravagantes - as "bravatas de oposição", na linguagem de Lula - proclamados ao longo da campanha eleitoral. Eis aí a razão definitiva para qualificá-lo como o homem mais perigoso da Terra. A palavra do presidente dos EUA deveria ter valor maior que o dos ativos podres do Lehman Brothers, ao menos na esfera dos temas estratégicos da ordem econômica e geopolítica mundial. Se Romney não pensa assim, ele representa mais perigo que a manipulação cambial chinesa ou o programa nuclear iraniano. 

Por: Demétrio Magnoli

POR QUE ROBESPIERRE ESCOLHEU O TERROR



Robespierre

As lições da primeira revolução totalitária (1).

As pessoas não devem manter crenças que levam a ações monstruosas. É o mínimo que se deve dizer em resposta a qualquer esforço para desculpar Robespierre. Se a sua ideologia o levou ao genocídio, ele não deveria tê-la seguido.




A atitude americana em relação à Revolução Francesa foi em geral favorável – muito natural para uma nação nascida ela própria de uma revolução. Mas há revoluções e revoluções, e a Revolução Francesa está entre as piores. Sim, em nome da liberdade, igualdade e fraternidade, ela derrubou um regime corrupto. Mas o resultado desses belos ideais foram, primeiro, o Terror e o genocídio na França e, depois, Napoleão e suas guerras, que custaram centenas de milhares de vidas na Europa e na Rússia. Depois deste massacre inútil veio a restauração do mesmo regime corrupto que a Revolução derrubara. Além de um imenso sofrimento, a revolta nada conseguiu.

Liderando a traição aos ideais iniciais da Revolução e sua transformação em uma tirania de ideologia homicida estava Maximilien Robespierre, um monstro que criou um sistema explicitamente feito para matar milhares de inocentes. Ele sabia exatamente o que estava fazendo, ele fez o que pretendia fazer, e ele acreditava estar certo em fazer o que fez. Ele é o protótipo de um particularmente odioso tipo de malfeitor: o ideólogo que acredita que a razão e a moralidade estão do lado de seus açougueiros. Lenin, Stalin, Hitler, Mao e Pol Pot foram feito do mesmo molde. Eles são os típicos inimigos da humanidade em tempos modernos, mas Robespierre tem boas razões para alegar ter sido o primeiro. Compreender suas motivações e raciocínio aprofunda nossa compreensão dos piores horrores do passado recente e aqueles que podem nos espreitar no futuro.

Historiadores distinguem três fases da Revolução Francesa. A última, o Terror, aconteceu aproximadamente em 1793-94. Começou com a queda dos girondinos moderados e adesão dos jacobinos radicais de poder. Como os jacobinos ganharam o controle do Comitê de Salvação Pública, o qual por sua vez controlava o legislativo (a Convenção), as disputas entre as facções se aguçaram. Depois de um interregno de poder compartilhado, Robespierre tornou-se ditador e o Terror se agravou. Ele tomou a forma de prisões, julgamentos farsescos e a execução de milhares de pessoas, incluindo os líderes dos girondinos e os jacobinos de facções opostas que eram suspeitos de oposição – ativa ou passivamente, real ou potencialmente – às políticas ditadas por Robespierre.

Os partidários de Robespierre fora da Convenção era uma multidão a vagar pelas ruas de Paris, o centro da Revolução. Grandes partes de França foram escassamente envolvidas, para a maioria das pessoas, a vida continuou como antes da Revolução. A multidão em Paris era composta principalmente de marginais sans-culottes (“sem calções”), que se mantinham por uma mistura de crime, prostituição, mendicância e biscates. Robespierre e seus seguidores os incitavam a ação sempre que a conveniência política exigia isso. Mas mesmo sem incitações, e sem nada melhor para fazer, eles formavam a multidão que assistia as execuções públicas, escarnecendo e abusando daqueles prestes a morrer, alegrando-se com as cabeças decepadas, adulando os líderes temporariamente no poder, e os amaldiçoando quando eles caiam. Como moscas, eles estavam em todo lugar que a Revolução seguia em seu caminho sangrento. Seu enfurecido, ansioso zumbido formava o fundo medonho da matança dos inocentes.

Nós não devemos permitir que distância histórica e retórica revolucionária torne obscura a selvageria do Terror. As descrições que se seguem são apenas umas poucas entre muitas que poderiam ser dadas. Stanley Loomis escreve em “Paris in the Terror” que, nos Massacres de Setembro de 1792, “o trabalho sangrento durou cinco (...) dias e noites. Na manhã do terceiro dia, a prisão de La Force foi invadida e aqui ocorreu o assassinato da Princesa de Lamballe (...). O frenesi dos assassinos loucos e bêbados parece ter atingido seu ponto máximo em La Force. Canibalismo, estripação e atos de ferocidade indescritível aconteceram aqui. A princesa (...) se recusou a jurar que odiava o Rei e a Rainha e foi devidamente entregue à multidão. Ela foi executada com um golpe de lança, seu coração ainda batendo foi arrancado do corpo e devorado, suas pernas e braços foram cortados de seu corpo e disparados por um canhão. Os horrores que foram cometidos em seu torso estripado são indescritíveis (...). Tem se suposto levianamente (...) que a maioria das outras vítimas eram, como ela, aristocratas – uma suposição que, por algum motivo curioso, é freqüentemente considerada um atenuante para esses crimes. Muito poucas vítimas foram, na verdade, da antiga nobreza, menos de trinta das mil e quinhentas que foram mortas.”

O que Robespierre tinha liberado foram os mais depravados impulsos de escória da sociedade. A anarquia resultante temporariamente serviu a seu propósito, assim como a Kristallnacht serviu ao de Hitler, os expurgos ao de Stalin, e a revolução cultural ao de Mao. Cada um perpetrou o terror para reduzir os oponentes a uma submissão abjeta e estabelecer-se mais firmemente no poder.

Tendo assegurado Paris, em 1793, Robespierre nomeou comissários para impor sua interpretação da Revolução fora da capital. Na cidade de Lyon, escreve Simon Schama em “Cidadãos”, a guilhotina começou seu trabalho, mas verificou-se ser “uma maneira confusa e inconveniente de eliminação do lixo político (...). Alguns condenados, então, foram executados em fuzilamentos em massa.... Cerca de 60 prisioneiros foram amarrados em uma linha por cordas e fuzilados com canhão. Aqueles que não morreram imediatamente pelo fogo foram mortos com sabres, baionetas e rifles (...). Quando os assassinatos (...) terminaram, mil novecentas e cinco pessoas haviam encontrado o seu fim.” O comissário de Nantes “complementaria a guilhotina com (...) deportações verticais (...). Buracos foram perfurados nos lados das (...) barcaças (...). Os prisioneiros eram postos dentro com as mãos e pés amarrados e os barcos empurrados para o centro do rio (...). As vítimas impotentes assistiam a ascensão de água sobre eles (...). Os presos foram despojados de suas roupas e pertences (...). Moços e moças foram amarrados juntos nus nos barcos. As estimativas das pessoas que morreram desta forma variam muito, mas certamente não foram menos que dois mil.”

No massacre da Vendeia, segundo Schama, “toda atrocidade que se poderia imaginar naquele tempo foi infligida a população indefesa. Mulheres foram rotineiramente estrupadas, crianças assassinadas, ambas mutiladas (...). Em Gonnord (...) duzentos velhos e velhas, juntamente com mães e crianças, foram forçadas a se ajoelhar diante de um grande poço que eles tinham cavado. Eles foram então fuzilados de modo a cair em seu próprio túmulo. Trinta crianças e duas mulheres foram enterradas vivas quando a terra foi jogada no buraco. Em Paris, Loomis escreve, Robespierre ordenou à corte de farsantes [2], também conhecida como Tribunal Revolucionário, ser “tão ativa quando o próprio crime e concluir todos os casos dentro de vinte e quatro horas”. “As vítimas eram conduzidas para a sala de audiência pela manhã e, não importando quantas poderiam ser, seu destino estava decidido no máximo até as duas horas da tarde do mesmo dia. Por volta das três horas seus cabelos eram cortados, suas mãos amarradas e elas eram postas nos carros dos condenados em seu caminho para o cadafalso”. “Entre 10 de junho e 27 de julho de 1793 (...) 1.366 vítimas pereceram”. A maioria dessas pessoas eram inocentes de qualquer crime e não podiam se defender contra acusações das quais elas sequer eram informadas.

Essas atrocidades não foram infelizes excessos indesejáveis de Robespierre e seus partidários, mas as previsíveis conseqüências de uma ideologia que dividia o mundo entre os “amigos” e os subumanos “inimigos”. A ideologia era o repositório da verdade e do bem, a chave para a felicidade da humanidade. Seus inimigos tinham que ser exterminados sem piedade porque eles estavam no caminho. Como os ideólogos viam, o futuro da humanidade era uma aposta alta o bastante para justificar qualquer ato que servisse a seu propósito. Como Loomis escreveu, “Todos os que desempenharam um papel nesse drama (…) acreditavam que estavam motivados por patrióticos e altruístas impulsos. Foram capazes de valorizar mais as suas boas intenções que a vida humana. Não há crime, nem assassinato, nem massacre que não possa ser justificado, se provado que foi cometido em nome de um ideal”.

O ideal, no entanto, era simplesmente o que Robespierre dizia que era. E a lei era o que Robespierre e seus seguidores desejavam que fosse. Eles mudavam isso a seu bel-prazer e determinavam se sua aplicação num caso particular era justa. A justificação de monstruosas ações apelando a um ideal passionalmente conduzido, elevado a protótipo de razão e moralidade, é uma marcante característica de ideologias políticas no poder. Para os comunistas, era uma sociedade sem classes. Para os nazistas, pureza racial. Para os terroristas islâmicos, sua interpretação do Corão. A característica comum é que o ideal, de acordo com seus verdadeiros crentes, é imune à crítica racional ou moral, porque ele é o que determina o que é razoável e moral.

Norman Hampson nota em sua biografia de Robespierre que “o tribunal revolucionário (...) tinha-se tornado uma máquina de assassinato indiscriminado. (...) Imaginárias (...) conspirações e acusações absurdas eram acontecimentos cotidianos”. Como Robespierre deixou claro: “Deixe-nos reconhecer que há uma conspiração contra a liberdade pública (...). Qual é o remédio? Punir os traidores.” Hampson escreve: “Robespierre tomou a atitude que a clemência (...) era uma forma de auto-indulgência sentimental que teria de ser paga em sangue”. Ele declarou: “Existem apenas dois partidos na França: o povo e seus inimigos. Temos que exterminar esses vilões miseráveis que estão eternamente conspirando contra os direitos do homem (...), temos que exterminar todos os nossos inimigos.”

Robespierre, conta Schama, “se rejubilou que ‘um rio de sangue agora separa a França de seus inimigos’.”

O resultado desse clima de histeria foi o Decreto de Robespierre do dia 22 de Prairial. Ele “expressava, em princípio, a opinião de todo o Comitê [de Salvação Pública]”, escreve J. M. Thompson em sua biografia de Robespierre. “O Comitê era fanático o suficiente para aprovar, e a Convenção poderosa o suficiente para impor, como um Novo Modelo da justiça republicana (...) uma lei que negava aos presos com a ajuda de um advogado, tornava possível ao juiz dispensar testemunhas, e não permitia qualquer sentença além da absolvição ou a execução. Uma lei que, ao mesmo tempo, definia crimes contra o Estado em termos tão amplos que a menor indiscrição alguém poderia incorrer no artigo de morte. Para qualquer homem sensato ou misericordioso tal procedimento deve parecer uma paródia de justiça.”

Fortalecido por este modelo republicano de justiça, o Tribunal Revolucionário enviou à morte 1.258 pessoas em nove semanas, tantos como durante os 14 meses precedentes. “O fato inescapável” sobre Robespierre, nota Hampson, é que “no âmbito de um sistema judicial que ele iniciou e ajudou a dirigir (...) um governo do qual ele era, talvez, o membro mais influente, perpetrou as piores barbaridades do Terror (...). Nenhuma defesa é possível para os indiscriminados massacres (...) em que (...) uma taxa média de trinta e seis pessoas por dia foram enviados para a guilhotina.”

Robespierre “tornou-se tão incapaz de distinguir o certo do errado – para não mencionar crueldade de humanidade – como um cego de distinguir a noite do dia.” Vamos agora tentar entender o seu estado de espírito.

Robespierre nasceu em 1758 na cidade de Arras. Seu pai era um advogado sem sucesso. Sua mãe, filha de um fabricante de cerveja, morreu de parto quando Robespierre tinha seis anos. Poucos meses depois da morte dela, o pai abandonou seus quatro filhos pequenos. Robespierre e seu irmão foram viver com os avós maternos. Aos 11 anos, o que não era uma idade incomum naqueles dias, Robespierre ganhou uma bolsa para a Universidade de Paris. Depois de dez anos lá, ele obteve uma licenciatura em Direito, voltou a Arras e começou a praticar a lei. No começo de 1789 ele ganhou uma eleição para representar o Terceiro Estado de Arras na Convenção. Começando como um democrata radical, tornou-se, com o desenvolvimento da revolução, mais e mais radical.

Robespierre nunca se casou. Não são conhecidos seus casos amorosos. Ele também não tinha qualquer interesse em sexo, dinheiro, culinária, artes, natureza, ou realmente qualquer coisa além de política. Ele tinha cerca de cinco pés e três polegadas de altura, com uma constituição leve, uma pequena cabeça sobre os ombros largos e cabelos castanhos claro. Ele tinha “espasmos nervosos que, ocasionalmente, torcia seu pescoço e ombros e exibia, ao apertar suas mãos, movimentos característicos e piscadelas de suas pálpebras”, diz Thompson. Vestia-se elegantemente e usava óculos “que ele tinha o hábito de empurrar para cima na testa (…) quando queria olhar alguém no rosto”. “Sua expressão habitual parecia melancolia a seus amigos e arrogância a seus inimigos. Às vezes ele ria com a imoderação de um homem com pouco senso de humor, às vezes o olhar frio se abrandava em um sorriso de doçura irônico e bastante alarmante.” Com sua voz estridente e áspero “seu poder como um orador (...) residia menos em como ele se apresentava e mais na seriedade do que ele tinha a dizer, e na profunda convicção com que ele dizia.”

Robespierre não fez segredo de suas convicções. Ele as expressou em vários discursos cruciais, cujas cópias, escritas por ele mesmo, sobreviveram. Em seu discurso de agosto 1792, Robespierre disse que a França estava vivendo um dos grandes acontecimentos da história humana. Depois de um período inicial de hesitações, a Revolução de 1789 transformou-se em agosto de 1792 “a melhor revolução que já honrou a humanidade, realmente a única com um objetivo digno do homem: basear as sociedades políticas no mínimo sobre os princípios imortais de igualdade, justiça e razão.” A Revolução era a melhor de todas porque, pela primeira vez na história, “a arte de governar” não visava “enganar e corromper o homem”, mas sim “iluminá-los e aperfeiçoá-los”. A tarefa da Revolução era “estabelecer a felicidade de, talvez, toda a raça humana”. “O povo francês parece ter-se distanciado do resto da raça humana por dois mil anos.”

Mas um sério obstáculo barrava o caminho. “Dois espíritos opostos (...) [estão] em contenda pelo domínio (...) [e] o disputam nesta grande época da história humana, para determinar para sempre os destinos do mundo. A França é o teatro deste combate terrível”. Os conflitos entre os amigos e os inimigos da Revolução “são meramente a luta entre interesses privados e o interesse geral, entre egoísmo e ambição de um lado e justiça e humanidade do outro”. Todas as escolhas políticas de então, conseqüentemente, eram escolhas entre o bem e o mal, permitindo a Robespierre demonizar seus oponentes.

Note que ao declarar como objetivo de criar uma sociedade onde “os princípios imortais de igualdade, justiça e razão” prevaleceriam, Robespierre simplesmente descartou a liberdade e a fraternidade, substituindo o que ele considerava como a justiça e a razão. A justificação dos massacres foi que os mortos eram inimigos da república, contra-revolucionários que tinham conspirado contra a igualdade, a justiça e a razão cuja realização “estabeleceriam a felicidade de, talvez, toda a raça humana.” O eixo sobre o qual tudo girava eram aqueles princípios de igualdade, justiça e razão, que Robespierre enunciou em uma declaração que formou a base daConstituição de 1793. Alguns trechos: “Artigo 1. O objeto de toda associação política é a salvaguarda dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.” “Artigo 3. (...) direitos pertencem igualmente a todos os homens, independentemente das suas diferenças físicas e morais.” “Artigo 4. Liberdade é o direito de cada homem exercer todas as suas faculdades à vontade. Sua regra é a justiça, seus limites são os direitos dos outros, a sua origem é a natureza, sua garantia é a lei.” “Artigo 6. Qualquer lei que viola os direitos imprescritíveis do homem é essencialmente injusta e tirânica.”

Como Robespierre realmente interpretou esses princípios? Ele dizia: “[Nós] devemos exterminar todos os nossos inimigos com a lei em nossas mãos”, “a Declaração dos Direitos não oferece salvaguarda para conspiradores”, “as suspeitas do patriotismo esclarecido pode oferecer um guia melhor do que as regras formais de prova”. Comentando sobre uma execução, ele disse: “Mesmo se ele era inocente, ele tinha que ser condenado se sua morte pudesse ser útil”. Em uma carta orientando o Tribunal Revolucionário, ele escreveu: “As pessoas estão sempre dizendo a juízes para tomar cuidado e salvar os inocentes, eu digo a eles (...) para evitar salvar o culpado.”

Collot, o comissário oficial que ele nomeou pessoalmente para supervisionar os massacres, expressou sucintamente uma interpretação similar dos princípios consagrados na Declaração: “Os direitos do homem não são feitos para contra-revolucionários, mas apenas para sans-culottes”.

Saint-Just, o mais próximo aliado de Robespierre, disse: “A república consiste no extermínio de tudo que se opõe a ela”.

A discrepância entre a Declaração, que fornecia a base de uma garantia constitucional de direitos iguais para todos os cidadãos, e a política ditada de fato por Robespierre e imposta por seus seguidores era tão flagrante que exigia uma explicação. Robespierre providenciou uma num discurso e, dezembro de 1793.

“O objetivo de um regime revolucionário é fundar uma república, o de um regime constitucional sustentá-la. O primeiro convém a um tempo de guerra entre a liberdade e seus inimigos. O segundo é mais apropriado a quando a liberdade for vitoriosa e em paz com o mundo” O regime vigente na França era revolucionário, argumentou, em lutar para se tornar constitucional. Mas inimigos internos ameaçavam o êxito desta luta. “Sob um regime constitucional”, ele continuou, “pouco é necessário, exceto para proteger o cidadão contra o abuso de poder por parte do governo. Mas sob um regime revolucionário o governo tem de se defender contra todas as facções que o atacassem e, nessa luta pela vida, somente bons cidadãos merecem proteção pública e a punição dos inimigos do povo é a morte”. O regime revolucionário “deve ser tão terrível para o mal como é favorável ao bem.”

Não havia, portanto, nenhuma inconsistência entre a Declaração e o Terror. “A Declaração dos Direitos não oferece nenhuma salvaguarda para conspiradores que há tempos tentam destruí-la.” A Declaração guiava o regime constitucional, cujo estabelecimento era o objetivo final. O Terror era apenas o meio para ele, uma necessidade imposta ao regime revolucionário por inimigos que impediam a realização do regime constitucional.

Esta obra prima de sofisma era, então, uma novidade, mas para aqueles que contemplam o século XX é tristemente familiar pelo uso que muitos regimes assassinos fizeram dela. Todos eles afirmaram que seu objetivo era a felicidade humana, mas que inimigos incorrigivelmente iníquos, disfarçando sua verdadeira natureza e conspirando contra o mais nobre dos objetivos, ameaçavam a sua realização. A suposta ameaça era muito grave, e o objetivo muito importante, a ponto de justificar extremas, ainda que temporárias, medidas – para identificar os inimigos, desmascarar suas conspirações e exterminá-los. Para um punhado de heróis clarividentes e corajosos da revolução – como a KGB, a SS, e a Guarda Vermelha – cabe o dever de executar estas tarefas necessárias. Eles devem endurecer o coração e fazer o que precisa ser feito no interesse do bem maior. Uma vez evitada a grave ameaça, as medidas extremas não serão mais necessárias, e a felicidade humana estará ao alcance de todos.

Uma característica notável dessa atitude mental é que aqueles sob sua influência acreditam de fato nestas justificativas para arrancar entranhas, linchar, mutilar, enterrar vivas, afogar e dilacerar suas vítimas infelizes. Na verdade, as atrocidades apenas reforçam a segurança absoluta com as quais os ideólogos abraçam suas convicções e impõem seus objetivos.

Uma ideologia é uma visão de mundo que explica as condições políticas predominantes e sugere formas de melhorá-las. Ideologias típicas incluem entre seus elementos uma visão metafísica que fornece uma visão transcendental do mundo, uma teoria sobre a natureza humana, um sistema de valores cuja realização supostamente garantirá a felicidade humana, uma explicação de por que a atual conjuntura está longe da perfeição, e um conjunto de políticas destinadas a diminuir a diferença entre o real e o ideal. Este último componente – compromisso com um programa político e sua implementação – é o que distingue ideologias de sistemas religiosos, pessoais, estéticos, ou filosóficos de crença. As ideologias visam transformar a sociedade. Outros sistemas de crenças não envolvem tal compromisso. Se envolverem, se tornam ideológicos.

Ao longo da história, muitas ideologias diferentes e incompatíveis têm prevalecido, e todas foram e são essencialmente interpretações especulativas que vão além de fatos inegáveis e verdades simples. Se baseando em hipóteses duvidosas sobre questões que transcendem o estágio atual do conhecimento, elas são particularmente propensas a um processo mental auto-ilusório, impaciente, muito esperançoso ou egocêntrico – a vôos descontrolados de fantasia e imaginação. As pessoas razoáveis, portanto, consideram as ideologias, incluindo a própria, com ceticismo saudável e exige delas conformidade com as normas elementares de razão: consistência lógica, uma explicação para fatos indiscutíveis e relevantes, a capacidade de resposta a novas provas e crítica séria, e o reconhecimento de que o sucesso ou fracasso de políticas derivadas delas serve como confirmação ou não das provas.

A fonte das convicções mais profundas de Robespierre e de sua certeza sobre elas era seu compromisso inquestionável com uma ideologia que ele tinha aprendido principalmente com Rousseau, a quem considerava “o tutor da raça humana.” Essa ideologia levou-o a acreditar que a política é uma aplicação da moralidade e que um bom governo é baseado em princípios morais que inevitavelmente levam os interesses dos indivíduos a se tornarem indistinguíveis do interesse geral. Dito de outra forma, os seres humanos não corrompidos intuitivamente reconhecem e agem no interesse geral. Qualquer divergência entre o interesse individual e o interesse geral indica a imoralidade e irracionalidade do indivíduo. Se qualquer indivíduo fracassa em ver que seus verdadeiros interesses são iguais ao interesse geral, ele deve ser forçado a agir como se tivesse visto, para seu próprio bem.

Mas quem são esses seres humanos não corrompidos que sabem o que é do interesse geral? Robespierre responde: “Existem almas puras e sensíveis. Existe uma suave, mas imperiosa e irresistível, paixão... um profundo horror da tirania, um zelo compassivo pelo oprimido, um amor sagrado por sua pátria, e um amor ainda mais sagrado e sublime pela humanidade, sem a qual uma grande revolução não é mais do que a destruição de um crime menor por um maior. Existe uma ambição generosa para fundar na terra a primeira república do mundo... Vocês podem sentir isso, neste momento, queimando em seus corações, eu posso sentir isso no meu próprio”. A mensagem clara quando a retórica bombástica é esvaziada é que, desde que as pessoas têm sido corrompidas, elas não podem ser confiáveis para saber o que é bom para elas, mas ele, Robespierre, sabe, porque ele é incorruptível.

Se ele ficado apenas nisso, sua crença em sua própria pureza não seria mais do que uma loucura atrevida de um megalomaníaco. Mas ele não ficou apenas nisso. Ele se considerou no dever de coagir a população corrompida a viver de acordo com o que ele em sua pureza considerava como virtude. Ele dizia: “Os inimigos da República são covardemente egoístas, ambiciosos e corruptos. Vocês têm expulsado os reis, mas vocês têm expulsado os vícios que a dominação fatal deles criou dentro de vocês?” Robespierre se convenceu – e coagiu os outros a acreditar ou a fingir acreditar – que sua vontade era a vontade geral, a vontade que todos agissem como se todos fossem tão puros como ele. Quando ele encontrou oposição, ele sabia com certeza absoluta que seus adversários eram ou corrompidos e tinham que ser exterminados pelo bem comum, ou ignorantes e tinham que ser coagidos para seu próprio bem a agir como se fossem tão puros e virtuosos quanto ele. A base da ideologia de Robespierre não era a razão e sim a paixão, que se tornou sua pedra de toque da razão e da moralidade. Ele não perguntou se ele deveria alimentar essa paixão, se a paixão era uma reação adequada aos fatos, se a paixão era muito forte, ou se ele deveria ser guiado por ela. O objetivo de sua política era adaptar o mundo a sua paixão, e não vice-versa. O resultado foi que se tornou cego às necessidades reais da razão e da moralidade e decretou o assassinato de milhares simplesmente por suspeitar que eles pudessem discordar de suas opiniões passionais. Enquanto tudo isso acontecia, ele hipocritamente proclamava que suas ações cruéis eram virtuosas e que ele era o campeão da razão e da moralidade.

Talvez possa ser dito, numa tentativa desajeitada de defender Robespierre, que ele sinceramente acreditava em sua ideologia e agia de boa fé. As pessoas não podem fazer mais que isso. É claro que, se essa desculpa fosse válida, serviria também para guardas da SS em campos de concentração, se eles fossem nazistas sinceros. Ou torturadores da KGB, desde que fossem comunistas dedicados. Ou terroristas islâmicos, se eles forem verdadeiros fanáticos. Mas as crenças reprováveis dos ideólogos aumentam ao invés de enfraquecer a responsabilidade por suas ações. As pessoas não devem manter crenças que levam a ações monstruosas. É o mínimo que se deve dizer em resposta a qualquer esforço para desculpar Robespierre. Se a sua ideologia o levou ao genocídio, ele não deveria tê-la seguido.

Muitas pessoas, é claro, não escolhem a ideologia que sustentam, mas a adquirem através de doutrinação. Pode ser demais exigir dessas pessoas que resistam à doutrinação, se esta for persistente e sofisticada, e se as pessoas não conhecem alternativas razoáveis. Não ser capaz de resistir à doutrinação ideológica, no entanto, é uma coisa, e cometer atrocidades em seu nome é outra completamente diferente. As pessoas têm uma escolha quando vão torturar ou assassinar. As pessoas decentes vão questionar sua ideologia se perceberem que ela as leva a cometer horrores. E se as pessoas não a questionam e cometem atrocidades, então elas devem ser com justiça consideradas responsáveis não pelo que acreditam, mas pelo que elas fazem.

Robespierre, no entanto, não foi doutrinado. Ele construiu sua ideologia por si mesmo, de suas leituras, educação, e experiências iniciais na política. Como um advogado treinado para garimpar provas e analisar as interpretações dos fatos, ele tinha habilidade para pensar criticamente sobre sua ideologia. Contudo, ele não o fez. Ele é, portanto, responsável pelos assassinatos em massa que causou. E o mesmo vale para os inúmeros comunistas, nazistas, maoístas, ou os terroristas que escolheram suas ideologias em detrimento de alternativas perfeitamente disponíveis, as quais eles não poderiam ignorar.

Mas e todos aqueles que seguiam Robespierre e que não partilhavam nem sua ideologia e nem sua paixão monstruosa? Muitos seguiram porque ele os deixava agir segundo seus piores instintos, os quais eles tinham tido que reprimir quando a lei e a ordem prevaleciam.

Outros – assustados com as mudanças políticas, com o caos generalizado e a insegurança, com o sangue que já tinha sido derramado – imploravam para entender o que estava acontecendo, o que o justificava, e qual era o seu objetivo. Muitas pessoas aceitaram a explicação de Robespierre, mesmo sendo bombástica e implausível, porque qualquer explicação para o que eles viviam era melhor do que nenhuma.

Mas a principal razão por que as pessoas o seguiram foi o medo. Ninguém estava seguro, e as pessoas ficavam ansiosas para provar com palavras e atos que eram leais e entusiasmados partidários. Robespierre exercia seu poder sobre a vida e a morte tão arbitrariamente como Hitler, Stalin e Mao. Arbitrariedade é a chave para o terror: se não há regras, justificativas, ou razões, então todo mundo está em risco. O único jeito de tentar minimizar o risco é superar os outros na adesão à norma. Ditadores entendem isso, o que explica muito das “manifestações espontâneas” e da adulação pública que extraem do povo enganado e apavorado a sua mercê.

Robespierre, que se via como um herói romântico numa luta quase desesperada, tinha sede de poder e era indiferente ao seu custo. Quando ele conseguiu inventar uma ideologia dos destroços de idéias de Rousseau e outros elementos, se agarrou a ela com dedicação fanática, pois essa ideologia o proporcionou não apenas um programa político, mas também com uma justificação da sua busca pelo poder. Quando os membros de seu círculo fechado e anormal cometeram os atos monstruosos do Terror, ele tomou a monstruosidade como prova da pureza de suas motivações e convicções. Robespierre e seus companheiros ideólogos eram os eleitos guiados por paixões para conhecer o bem e o mal, a verdade e a mentira, mesmo que suas ações possam parecer obscenas ou inadmissíveis para os não eleitos.

Embora o nazismo, o comunismo, vários tipos de terrorismo, e os racismos branco, negro ou amarelo demonstrem quão facilmente as ideologias levam a desumanidade, é claro que nem mesmo as ideologias mais irracionais e imorais conduzem necessariamente a genocídios. Ideólogos devem ter a oportunidade de agir de acordo com suas crenças – oportunidades que surgem a partir da combinação de ressentimento profundo e generalizado sobre o fardo que as pessoas devem carregar, um governo fraco ou enfraquecido, e a falta de perspectivas de melhora rápida e substancial. Foi a presença destas condições que permitiu a Robespierre se tornar o monstro que foi.

Condenar Robespierre mais de 200 anos depois de sua morte teria pouco sentido se ele não fosse uma amostra do sistema psíquico ideológico que hoje em dia nos é muito familiar. Se nós o entendermos, entenderemos também que é totalmente inútil apelar à razão e à moralidade quando tivermos que tratar com ideólogos. Pois eles estão convencidos de que a razão e a moralidade estão com eles e que seus inimigos são irracionais e imorais, apenas por serem inimigos. Negociações com essas pessoas só podem ter êxito se tivermos uma força esmagadora do nosso lado e nos mostrarmos determinados a usá-la. Uma justificativa do uso da força para o eleitorado de um país democrático – acostumado a pensar a política como um processo de negociação e de compromisso razoável – deve incluir a exposição com detalhes doentios das monstruosidades cometidas em nome da ideologia. E é por isso que faz sentido nos lembrarmos dos crimes do há muito tempo morto Robespierre.

 Notas do tradutor:
 O tradutor sugere como leitura complementar desse artigo dois outros, de Olavo de Carvalho: A Mentalidade Revolucionária e Ainda a Mentalidade Revolucionária.
No original a expressão é “Kangaroo court”.
John Kekes é PhD em filosofia pela Australian National University e professor emérito de filosofia da Universidade de Albany.
Tradução: Jorge Nobre, estudante de Letras - Tradução Francês da UnB.

DEPENDÊNCIA RESTAURADA



Sábios que pediam autonomia aos EUA decidiram nos acoplar à China. O país está estagnado. O crescimento lembra os anos 1980. As exportações, a ColôniaAlguns fatos empolgavam o país até outro dia. A volta do crescimento econômico, a descoberta do pré-sal, o desvencilhamento dos credores estrangeiros e a criação dos Brics animaram o espírito nacional.

Velhos sábios nacionalistas da política externa brasileira resumiam tudo na ideia de autonomia. Em condições superiores, estaríamos livres de forças externas. As mudanças nos tornaram donos do nosso próprio nariz. Ouvimos frases assim de presidentes, ministros e até de muitos sentados em bancos acadêmicos.

O neoliberalismo dos anos 1990, diziam eles, tinha sido o culpado pelo sucateamento das forças produtivas do país. A Alca simbolizava toda forma de diminuição das nossas capacidades, submissos aos EUA. E por isso mesmo foi afogada em Mar del Plata (mais pelos "hermanos" do que por nós, na verdade). De qualquer forma, ninguém mais ditaria de fora o nosso destino.

Agora, a inserção brasileira no mundo passaria a ser altaneira. As próprias revistas internacionais nos colocavam no centro de tudo como um novo motor do crescimento global. O Cristo se tornou um foguete. O gigante despertou.

Nós já conhecíamos essa conversa do passado, mas a vaidade movida a elogios malandros nos subiu à cabeça mesmo assim. Vieram com os alaridos e roucos brados de independência. Tínhamos líderes, finalmente. Surge uma figura de proa.

As pessoas correriam para aprender o português, língua desconhecida e pouco usada desde as grandes navegações. Um ex-presidente se tornara o novo Pedro Álvares Cabral, e o ex-chanceler o seu Pero Vaz de Caminha. O Brasil era redescoberto.

A cada discurso na ONU, o mundo reconheceria em nosso país um dos eixos dinâmicos da nova multipolaridade. Desde que as caravelas trouxeram às pressas dom João 6° ao Brasil, há 200 anos, precipitando o processo de independência, poucas vezes se viu tamanha reviravolta e sentimento de nacionalidade.

Inventamos até um novo Visconde de Mauá carioca, com nome de americano e sobrenome de igreja puritana. Dedicado ao trabalho, temos, assim, similar nacional da ética protestante e espírito capitalista, ainda que seja para explorar reservas minerais.

De fato, as coisas iam bem até a crise global e a opção dos velhos sábios pelo acoplamento junto às potências asiáticas emergentes.

De lá para cá, já foram quatro anos de crescimento econômico abaixo do medíocre. Fora o vale tudo fiscal de 2010 para vencer as eleições, o Brasil cresce vegetativamente a uma média de 1,2% ao ano. Só comparável à década perdida de 1980.

Se houve milagre ou espetáculo, não foi de expansão econômica, mas da multiplicação de votos. Tivemos um período verdadeiramente desperdiçado. Pior: retrocedemos em um aspecto que definirá o futuro.

De agora em diante, o país terá que aprender um jeito de se desenvolver com pouca indústria. Com soja e minério de ferro, nossa economia volta a ser primária.

As possibilidades da panaceia pré-sal diminuem a cada dia que pedras de xisto e areias betuminosas são alavancadas na América do Norte com bem mais eficiência.

Algumas mentes brilhantes da diplomacia brasileira arquitetaram um liame com o Oriente em ascensão. Pensavam que se com o Barão deu certo em relação aos EUA há cem anos, daria de novo. Dedicada a suprir demandas internacionais básicas, a nossa economia se tornou então subsidiária da China.

Não só cresceríamos juntos, como formaríamos um novo bloco. Batizado por especuladores, os Brics seriam capazes de superar o Ocidente.

O Brasil buscou maior influência sobre a economia mundial em organismos como o FMI e o Bird, mas no lugar disso conseguiu é ficar numa situação inferiorizada, especializando-se numa área cujos preços não pode controlar. O valor das commodities é determinado pelos mercados internacionais.

Não foram os heterodoxos até 1992 nem os ortodoxos da era FHC. Foram os ditos nacionalistas que restabeleceram entre 2008 e 2012 um velho padrão colonial de relacionamento em que apenas suprimos matérias-primas a países que crescem muito mais do que nós.
Após 190 anos do grito do Ipiranga, a dependência econômica foi restaurada. 

Por: MARCELO COUTINHO, 37, é professor de relações internacionais da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro)