segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

COMO O PORTE IRRESTRITO DE ARMAS GARANTIU A LIBERDADE DOS SUÍÇOS


Quando se trata da Segunda Guerra Mundial, a maioria das pessoas tende a pensar apenas em dois lados: o Eixo e os Aliados. Em termos modernos, foi um conflito de civilizações, por assim dizer, em que os defensores do bem e do mal lutarem até a morte. É claro que a realidade nunca é tão simples, como diria qualquer individualista.

A "grande história" é conhecida de todos. Porém, poucos sabem do papel da Suíça durante o conflito. Aquele pequeno país teve êxito em preservar sua tradicional liberdade até mesmo quando Hitler estava prestes a ganhar a guerra e estabelecer uma Nova Ordem Mundial. Os cidadãos suíços sempre estiveram unidos em oposição à ditadura nazista. Da mesma forma, eles jamais assinaram qualquer tipo de pacto ou aliança com a Grã-Bretanha, os EUA e a União Soviética. Eles mantiveram a política de 'neutralidade armada', e a dissuasão era sua mais poderosa arma — para não mencionar as armas que todo cidadão possuía privadamente, as quais eram uma grande ameaça para qualquer exército invasor, fosse ele alemão, soviético ou qualquer outro.

Recentemente, conversei sobre o comportamento da Suíça durante a Segunda Guerra Mundial — e tentei aprender algo útil para o nosso futuro — com Stephen P. Halbrook, autor do livro Target Switzerland — Swiss Armed Neutrality in World War II (Alvo: Suíça — A Neutralidade Armada Suíça na Segunda Guerra Mundial). 

O senhor Halbrook é também autor de vários livros e artigos sobre o direito de ter e portar armas: dentre eles, o famoso That Every Man Be Armed — The Evolution of a Constitutional Right.

STAGNARO: Muitas pessoas acreditam que a Suíça foi bastante "colaboracionista" com a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Seu livro, entretanto, mostra que as coisas na verdade foram bem diferentes. Como poderiam os suíços defender sua independência sem fazer concessões ao regime de Hitler?

HALBROOK: Cada homem na Suíça possuía um rifle em sua casa. Participar de caçadas e praticar tiro ao alvo era o esporte nacional. Dê uma olhada no mapa e você verá a pequena e democrática Suíça cercada por forças do Eixo que se estendiam por toda a Europa, indo do Norte da África até a Rússia. Essa nação de pessoas armadas, situada nos Alpes, conseguiu se manter neutra e dissuadir uma invasão nazista.

Winston Churchill, o líder inglês desse período de guerra, escreveu que os Aliados estavam empenhados em conquistar a Alemanha em 1944: "De todos os países neutros, a Suíça possui o direito à maior das honrarias... O país tem sido um estado democrático, sempre em prol da liberdade e praticando sua autodefesa entre suas montanhas. E em pensamento, não obstante sua raça, predominantemente ao nosso lado."

Em contraste, no ano anterior, Adolf Hitler havia declarado que "todo o entulho representado pelas pequenas nações que ainda existem na Europa deve ser liquidado o mais rápido possível", e que, se necessário, ele passaria a ser conhecido como o "Açougueiro da Suíça".

Porém Hitler sabia que os suíços eram cidadãos amplamente portadores de armas, e que por isso muitos nazistas seriam massacrados no processo. Residindo em Berna, o espião americano Allen Dulles, chefe do Office of Strategic Services (OSS, agência de inteligência do governo dos EUA, predecessora da CIA, estabelecida durante a Segunda Guerra Mundial), explicou que "No auge de sua mobilização, a Suíça possuía 850.000 homens fortemente armados prontos para a guerra ou apenas esperando em reserva, um quinto da população total..... Que a Suíça não tenha tido de lutar foi graças à sua disposição a resistir e ao seu amplo investimento em homens e equipamentos para sua própria defesa. O custo para a Alemanha de uma invasão à Suíça certamente teria sido extremamente alto."

Incidentalmente, alguns italianos sectários, partidários dos Aliados, frequentemente cruzavam a fronteira norte da Itália até Ticino, o cantão suíço onde se fala italiano, para combinar com a OSS entregas aéreas de suprimentos e de equipamentos de ajuda para suas tropas localizadas nas montanhas.

STAGNARO: Os generais alemães estudaram vários planos de invasão à Suíça. Todos eles se mostravam extremamente preocupados com a força do exército suíço, bem como com a capacidade dos suíços em fazê-los pagar um preço muito alto por essa invasão. Vamos exercitar um pouco a imaginação: caso os alemães realmente tivessem tentado invadir a Suíça, qual seria o provável destino deles?

HALBROOK: Quando Hitler chegou ao poder em 1933, a propaganda nazista retratava a Suíça como um dos vários países a serem anexados como parte da "Grande Alemanha". Ao contrário dos outros países neutros da Europa, que haviam gastado muito dinheiro com seu estado assistencialista, os suíços imediatamente começaram a se preparar militarmente para repelir um eventual ataque alemão. Em 1940, a Suíça era uma potencial rota de invasão para o sul da França, ao passo que a Bélgica e a Holanda eram as rotas de invasão para o norte da França. Os alemães evitaram a Suíça, onde todos os homens estavam armados e o espírito de resistência era predominante. 

Logo após a queda da França, as forças alemãs arquitetaram vários novos planos de invasão à Suíça — os nazistas ocupariam as áreas suíças que falavam alemão e francês, e a Itália fascista ocuparia a área que falava italiano. Esses planos reconheciam que os suíços eram atiradores exímios e, exatamente por isso, recomendavam a utilização de forças consideráveis e numerosas para o ataque. Embora Hitler odiasse a Suíça — que ele dizia ser uma "pústula" na face da Europa — por ela ter se recusado a aderir à Nova Ordem, ele teve sua atenção desviada para a Batalha da Grã-Bretanha (batalha aérea entre a força aérea britânica e a alemã nos céus da Inglaterra) e depois para a Operação Barbarossa, a batalha com a União Soviética em 1941.

Entretanto, apenas alguns dias antes do ataque à Rússia, Hitler e Mussolini se encontraram no Passo do Brennero. De acordo com os registros, "O Führer caracterizou a Suíça como a entidade nacional mais desprezível da Europa, formada por pessoas ignóbeis. Os suíços eram os inimigos mortais da nova Alemanha". Já o Duce disse que a Suíça era "um anacronismo". Planos de ataque contra a Suíça continuaram a ser concebidos.

Quando o governo fascista entrou em colapso e a parte sul da Itália começou a ser libertada, a Alemanha prontamente ocupou o norte da Itália — o que aumentou enormemente o risco para a Suíça. A Alemanha queria utilizar as rotas que passavam pelos Alpes suíços para poder enviar soldados e armas, e os suíços se recusaram a cooperar. Porém, a Suíça forneceu abrigo e proteção para dissidentes e refugiados italianos.

Uma invasão nazista à Suíça durante qualquer um dos períodos acima acarretaria no seguinte: as forças suíças situadas na fronteira teriam lutado até a morte, mas seriam eliminadas. Entretanto, as pontes e estradas da região estavam carregadas de explosivos e seriam destruídas, o mesmo acontecendo com os túneis Gotthard eSimplon, situados nas rotas alpinas para a Itália.

As forças suíças estavam concentradas em um Réduit localizado nos Alpes. Os Panzers e toda a Luftwaffe não podiam operar nessas montanhas íngremes, o que significa que a invasão teria de ser por terra. Nesse caso, toda a infantaria da Wehrmacht teria sido submetida a um impiedoso fogo cerrado disparado por artilharias suíças escondidas nas montanhas. Seria suicídio. As forças suíças poderiam resistir interminavelmente nos Alpes.

Qualquer ocupação alemã de partes da Suíça custaria muito sangue. Ao contrário dos outros países que a Alemanha já havia ocupado (mais notavelmente a França), cada cidadão suíço possuía um rifle em sua casa. O governo e o exército suíço decretaram que nenhuma rendição deveria ocorrer, e que qualquer relato de rendição deveria ser considerado propaganda do inimigo. Os suíços seriam capazes de fazer uma guerra de autodefesa sem precedentes na história europeia. Embora muitos suíços fossem morrer, os invasores teriam de enfrentar um franco-atirador suíço escondido atrás de cada árvore e de cada rocha.

STAGNARO: O senhor faz uma defesa forte e convincente da organização militar suíça: a Suíça conseguiu resistir a todo o exército da Alemanha graças aos seus cidadãos armados. O senhor acredita que esse sistema ainda é bom, não obstante todas as dramáticas mudanças que temos vivenciado nas últimas décadas, tanto no tipo do inimigo (por exemplo, agora é o terrorismo) quanto na maneira como se iniciam guerras atualmente?

HALBROOK: Pouco antes da Primeira Guerra Mundial, o Kaiser alemão estava na Suíça a convite do governo suíço para observar algumas manobras militares. Impressionado com o que viu, o Kaiser perguntou a um membro das milícias suíças: "Vocês são 500.000 homens e atiram muito bem. Porém, e se a Alemanha resolver atacá-los com um milhão de soldados? O que vocês vão fazer?" E o suíço respondeu: "Vamos atirar duas vezes e voltar pra casa."

Ainda hoje, todo homem suíço, ao completar 20 anos de idade, é obrigado a fazer um treinamento militar e, após a conclusão, ganha um Fuzil de Assalto 90 (modelo 1990, 5.6 mm, com funcionamento automático e semi-automático) para manter em casa. Muitas mulheres também participam de práticas de tiro esportivo, bem como adolescentes e idosos. As pessoas rotineiramente carregam armas consigo em transportes públicos, nas cidades e em hotéis — especialmente quando algum torneio de tiro está para ocorrer. Essa prática de andar armado é tão comum, que estrangeiros desavisados podem pensar que está ocorrendo alguma revolução no país. Para ver um relato de um corriqueiro torneio de tiro que ocorreu no cantão suíço de Ticino, veja aqui.

As milícias armadas suíças consistem primordialmente de uma infantaria formada pela própria população armada, mas também inclui artilharia moderna — parte da qual está escondida em fortificações localizadas nos Alpes — e caças. Quanto ao terrorismo, dependendo das circunstâncias, uma população armada e vigilante pode ser essencial para impedir um massacre. Se atos terroristas ocorrerem em solo suíço, os cidadãos irão resistir o tanto quanto possível.

STAGNARO: A maioria dos defensores do direito irrestrito de ter e portar armas garante que o desarmamento e o controle de armas são o caminho mais curto para a tirania. De fato, Hitler desarmou seus inimigos (começando pelos judeus alemães) antes que eles pudessem organizar alguma resistência. O senhor acredita que haja um elo entre a tradição suíça de ser um povo armado e a tradição de liberdade daquele país?

HALBROOK: Maquiavel foi quem resumiu melhor: os suíços são "armatissimi e liberissimi". Desde 1291, quando a Confederação Suíça foi criada, camponeses e vaqueiros suíços se armaram para resistir à agressão de alguns dos grandes exércitos da Europa. Cada homem tinha a obrigação de arranjar sua própria arma para se defender contra qualquer invasão.

Quando Hitler chegou ao poder, seus capangas incendiaram o Reichstag e colocaram a culpa nos comunistas — foi a desculpa perfeita para suspender todos os direitos constitucionais e desarmar toda a oposição política. Utilizando as rígidas leis de controle de armas aprovadas pela progressista República de Weimar, os nazistas começaram a desarmar os judeus. E então veio a Reichskristallnacht (A Noite dos Cristais) em 1938, na qual os nazistas saíram destruindo lojas e casas sob a justificativa de que os judeus eram perigosos e tinham de ser desarmados. O chefa de Gestapo, Heinrich Himmler, ameaçou mandar para o campo de concentração por 20 anos qualquer judeu que fosse flagrado com alguma arma.

Quando os nazistas ocuparam a França e outros países, eles acharam, nas delegacias de polícia, as listas de registros contendo os nomes de todas as pessoas que possuíam armas de fogo. Os proprietários que não entregassem suas armas de fogo em 24 horas seriam mortos, o mesmo acontecendo àqueles que não delatassem seus amigos e parentes. Por algum motivo obscuro, os historiadores não demonstram interesse algum em ressaltar o cruel destino de judeus e demais cidadãos nos países ocupados que eram proprietários de armas de fogo.

Ainda mais importante: algumas dessas pessoas que possuíam armas de fogo conseguiram enganar os nazistas e utilizaram suas armas para salvar suas famílias, refugiados e demais pessoas, chegando até a montar uma resistência armada. O Levante do Gueto de Varsóvia, em 1943, foi iniciado com apenas meia dúzia de revólveres e pistolas ilegais.

Na Suíça, existe apenas uma lei de "controle de armas": todo homem deve saber atirar perfeitamente a 300 metros de distância. Caso invadissem a Suíça, os nazistas não precisariam se preocupar em sair procurando registros com os nomes dos proprietários de armas — eles poderiam simplesmente presumir que cada homem possuía uma arma. Quando a guerra já parecia inevitável, em 1938, no Campeonato Mundial de Tiro realizado em Lucerna, na Suíça, o Presidente da Confederação suíça, Philipp Etter, declarou:
Provavelmente não há outro país que, como a Suíça, dá ao soldado sua arma, para que ele a leve para sua casa. . . . Com esse rifle, ele torna-se capaz de, a qualquer momento que seu país o chamar, defender seu lar, sua família, seu lugar de origem. A arma é para ele uma garantia e um símbolo de honra e liberdade. O suíço não se desfaz de seu rifle.

Os nazistas ouviram essa mensagem em vários foros e meios de comunicação. Eles sabiam que não poderiam executar cada suíço que possuísse uma arma — ao contrário, eles sabiam que inúmeros soldados alemães seriam mortos pelos atiradores suíços. O poderoso exército alemão poderia transformar a Suíça em uma terra devastada, mas o sangue alemão que seria derramado nesse processo seria inaceitavelmente alto, e o país se tornaria ingovernável.

STAGNARO: Os pais fundadores dos EUA sempre alertavam que um exército permanente e profissional poderia ser uma ameaça às liberdades, pois tal formação induz a uma forte tentação imperialista. Na sua visão, há alguma correlação entre essa peculiar organização militar da Suíça e sua neutralidade?

HALBROOK: Os pais fundadores americanos reconheceram que exércitos efetivos eram perigosos para a liberdade porque tais exércitos oprimiam a população domesticamente e se aventuravam em agressivas guerras imperialistas. É por isso que os Estados Unidos originalmente seguiram o modelo suíço de republicanismo, de ter uma milícia armada e da neutralidade. Os fundadores da América queriam evitar "alianças complexas" na Europa, e os EUA entraram nas duas guerras mundiais relutantemente.

Um exército miliciano é formado virtualmente por todos os homens saudáveis e fisicamente capazes de um país, o que desafia qualquer invasor a incorrer em uma tática de guerrilha que pode nunca ter fim. Já um exército efetivo consiste de soldados profissionais formados por uma pequena fatia da população do país. Vários exércitos efetivos da Europa se esfacelaram antes do violento ataque da blitzkrieg de Hitler — as elites governamentais se renderam e ordenaram a seus soldados que baixassem as armas. Um ataque à Suíça não contaria com nenhuma rendição de sua elite; ao contrário, haveria uma resistência armada contra-atacando cada passo do invasor.

A organização do exército suíço como uma milícia significa que, embora ela possa proteger o país, ela não pode invadir outro país. Essa tem sido a experiência desde tempos medievais. Cidadãos comuns da suíça, obviamente armados, derrotaram os poderosos exércitos de cavaleiros invasores em inúmeras batalhas — eles deixaram Carlos, o Audaz em uma vala com sua cabeça esmagada por uma alabarda em Nancy, em 1477 — porém, foram derrotados quando se aventuraram em terras estrangeiras, como na Batalha de Marignano, em 1515.

O que foi dito acima é o segredo da neutralidade suíça. Milícias armadas são boas para defender seus próprios países, mas não são propícias a atacar outros países — e isso previne guerras imperialistas. Tanto a autodefesa na forma de milícias quanto a neutralidade que uma milícia estimula promovem os ideais da paz.

Por fim, uma última consideração. A Segunda Emenda da Constituição americana declara que "Com uma milícia bem regulada, sendo necessária para a segurança de um país livre, o direito das pessoas de ter e portar armas não deve ser infringido." Além de terem sido influenciados pelo exemplo suíço, os fundadores dos EUA também se inspiraram em Dei delitti e delle pene (1764), de Cesare Beccaria, que caracterizou como sendo uma "false idee di utilità" as leis que proíbem cidadãos pacíficos de portarem armas, proibição essa que estimula ataques de criminosos armados contra vítimas desarmadas.

Ou aprendemos com as lições da história, ou repetiremos todos os seus erros perniciosos.

Carlos Stagnaro é co-editor da revista libertária italiana "Enclave" e editou o livro "Waco -- Una strage di stato americana." Participa também do website Forces.org.

Tradução de Leandro Roque



DESARMAMENTO E GENOCÍDIOS


395264_268506006556285_894269043_n.jpgNo dia 24 de abril deste ano, o primeiro genocídio do século XX completará 98 anos: o governo turco dizimou mais de um milhão de armênios desarmados. A palavra-chave da frase é justamente esta última: "desarmados".



Os turcos escaparam de uma condenação mundial porque utilizaram a desculpa de tudo ter sido uma 'medida de guerra'. Findada a Primeira Guerra Mundial, eles não sofrerem nenhuma represália por este ato de genocídio. É como se o governo turco não houvesse conduzido absolutamente nenhuma medida de homicídio em massa contra um povo pacífico.

Outros governos perceberam que o ardil funcionara e rapidamente tomaram nota do fato. Era um precedente internacional conveniente demais para ser ignorado.

Setenta e nove anos após o início daquele genocídio, o famoso Hotel Ruanda abriu as portas.

Os Hutus também se safaram. Ironicamente, pelo menos uma década antes do massacre em Ruanda — gostaria de me lembrar da data exata -, a revista americana Harper's publicou um artigo em que profetizava com acurácia este genocídio, e por uma razão muito simples: os Hutus tinham metralhadoras; os Tutsis, não. O artigo foi escrito em um formato de parábola, sem se preocupar em fazer previsões especificamente políticas. Lembro-me vivamente de, ao ler aquele artigo, ter imediatamente pensado: "Se eu fosse um Tutsi, emigraria o mais rápido possível".

O fato é que, em todo o século XX, não foi um bom negócio ser um civil. As chances sempre estavam contra você.

Péssimas notícias para os civis

Tornou-se um lugar comum dizer que o século XX, mais do que qualquer outro século na história conhecida da humanidade, foi o século da desumanidade do homem para com o homem. Embora esta frase seja memorável, ela é um tanto enganosa. Para ser mais acurada, o certo seria modificá-la para "o século da desumanidade dos governos para com civis desarmados". No caso do genocídio, no entanto, tal prática não pode ser facilmente descartada como sendo um dano colateral imposto a um inimigo de guerra. Trata-se de extermínio deliberado.

O século XX começou oficialmente do dia 1º de janeiro de 1901. Naquela época, uma grande guerra já estava em andamento; portanto, vamos começar por ela. Mais especificamente, era a guerra iniciada pelos EUA contra as Filipinas, cujos cidadãos haviam sido acometidos da ingênua noção de que a libertação da Espanha não implicava uma nova colonização pelos EUA. Os presidentes americanos William McKinley e Theodore Roosevelt enviaram 126.000 tropas para as Filipinas para ensinar àquele povo uma lição sobre a moderna geopolítica. Os EUA haviam comprado as Filipinas da Espanha por US$20 milhões em dezembro de 1898. O fato de que os filipinos haviam declarado independência seis meses antes dessa compra era irrelevante. Um negócio é um negócio. Aqueles que estavam sendo comprado não podiam dizer nada a respeito, muito menos protestar.

Naquela época, era uma prática comum fazer a contagem de corpos dos combatentes inimigos. A estimativa oficial foi de 16.000 mortos. Algumas estimativas não-oficiais falam em aproximadamente 20.000. Para os civis, tanto naquela época quanto hoje, não há estimativas oficiais. O número mais baixo fala em 250.000 mortos. A estimativa mais alta é de um milhão.

E então veio a Primeira Guerra Mundial e as comportas foram abertas — ou melhor, os banhos de sangue foram institucionalizados.

Turquia, 1915

O genocídio armênio de 1915 foi precedido por uma limpeza étnica parcial, a qual durou dois anos, 1895—97. Aproximadamente 200.000 armênios foram executados.

Os armênios eram facilmente identificáveis. Alguns séculos antes, os invasores turcos otomanos os haviam forçado a acrescentar o "ian/yan" aos seus sobrenomes. Como os armênios estavam dispersos por todo o império, eles não possuíam o mesmo tipo de concentração geográfica que outros cristãos possuíam na Grécia e nos Bálcãs. Eles nunca organizaram uma força armada para oferecer resistência. E foi isso o que os levou à destruição. Eles não tinham como lutar e resistir.

Os armênios eram invejados porque eram ricos e mais cultos do que a sociedade dominante. Eles eram os empreendedores do Império Otomano. O mesmo ocorreu na Rússia. O mesmo ressentimento existia na Rússia, embora não com a intensidade do ressentimento que existia na Turquia.

As estimativas não-turcas falam em algo entre 800.000 e 1,5 milhão de armênios mortos. Embora a maioria destes homicídios tenha ocorrido com o uso de baixa tecnologia, os métodos eram extremamente eficazes. O exército capturava centenas ou milhares de civis, levava-os até áreas desertas e inóspitas, e os deixava lá até que literalmente morressem de fome.

O nome Arnold Toynbee é bem conhecido. Já na década de 1950 ele era um dos mais eminentes historiadores do planeta. Seu estudo, compilado em 12 volumes (1934—61), sobre 26 civilizações não possui precedentes em sua amplitude. Sua obra O Tratamento dos Armênios no Império Otomano foi sua primeira grande publicação.

Por que algumas organizações armênias não dão ampla divulgação e notoriedade a este documento é algo que me escapa completamente. O livro está em domínio público. A seção a seguir, que está na Parte VI, "As Deportações de 1915: Procedimento", é iluminadora. Leia-a com atenção. Trata-se do aspecto crucial de todo o genocídio. O governo confiscou as armas dos cidadãos.

Um decreto foi expedido ordenando que todos os armênios fossem desarmados. Os armênios que serviam no exército foram retirados das fileiras combatentes, reagrupados em batalhões especiais de trabalho, e colocados para construir fortificações e estradas. O desarmamento da população civil ficou a cargo das autoridades locais. Um reino de terror foi instaurado em todos os centros administrativos. As autoridades exigiram a produção de uma quantidade estipulada de armas. Aqueles que não conseguissem cumprir as metas eram torturados, frequentemente com requintes satânicos; aqueles que, em vez de produzir, adquirissem armas para repassá-las ao governo — comprando de seus vizinhos muçulmanos ou adquirindo por qualquer outro meio —, eram aprisionados por conspiração contra o governo.

Poucos desses eram jovens, pois a maioria dos jovens havia sido recrutada para servir o estado. A maioria era de homens mais velhos, homens de posse e líderes da comunidade armênia, e tornou-se claro que a inquisição das armas estava sendo utilizada como um disfarce para privar a comunidade de seus líderes naturais. Medidas similares haviam precedido os massacres de 1895—96, e um mau presságio se espalhou por todo o povo armênio. "Em uma certa noite de inverno", escreveu uma testemunha estrangeira desses eventos, "o governo enviou soldados para invadir as casas de absolutamente todos os armênios, agredindo as famílias e exigindo que todas as armas fossem entregues. Essa ação foi como um dobre de finados para vários corações".

Desarmamento

Lênin desarmou os russos. Stalin cometeu genocídio contra os kulaks ucranianos durante a década de 1930. Pelos menos seis milhões de pessoas foram mortas.

Como mostrou a organização Jews for the Preservation of Firearms Ownership (Judeus pela Preservacao da Propriedade de Armas de Fogo), o modelo do Decreto do Controle de Armas de 1968 nos EUA — até mesmo as palavras e o fraseado — foi copiado da legislação de 1938 de Hitler, a qual, por sua vez, era uma revisão da lei de 1928 aprovada pela República de Weimar. Uma boa introdução a esta história politicamente incorreta da história do controle de armas pode ser vista aqui.

Quando as tropas de Mao Tsé-Tung invadiam um vilarejo, elas capturavam os ricos. Em seguida, elas ofereciam a devolução das vítimas em troca de dinheiro. As vítimas eram libertadas quando o pagamento fosse efetuado. Mais tarde, o governo voltou a sequestrar essas mesmas pessoas, só que desta vez exigindo armas como resgate. Ato contínuo, assim que as armas eram entregues, as vítimas eram libertadas. Essa mudança de postura — exigir armas em vez de dinheiro — fez com que a negociação parecesse razoável para as famílias das próximas vítimas. Porém, tão logo o governo se apossou de todas as armas de uma comunidade, os aprisionamentos e as execuções em massa começaram.

A ideia de que o indivíduo tem o direito à autodefesa era tão comum e difundida no século XVIII que ela foi escrita na Constituição americana: a segunda emenda. Carroll Quigley, eminente historiador e teórico da evolução das civilizações, era também um especialista na história do uso de armas pela população. Ele escreveu um livro de 1.000 páginas sobre o uso de armas como meio de defesa durante a Idade Média. Em sua obra Tragedy and Hope (1966), ele argumenta que a Revolução Americana foi bem sucedida porque os americanos possuíam armas de poder de fogo comparável àquelas em posse das tropas britânicas. Foi exatamente por isso, disse ele, que houve toda uma série de revoltas contra governos despóticos em todo o século XVIII. 

Tão logo as armas em posse do governo se tornaram superiores, os movimentos e manifestações em prol da redução do tamanho do estado deixaram de ter o mesmo êxito que haviam tido nos séculos anteriores.

Há uma razão por que os governos são tão empenhados em desarmar seus cidadãos: eles querem manter seu monopólio da violência a todo custo. A ideia de haver cidadãos armados é apavorante para a maioria dos políticos. Afinal, para que serve um monopólio se ele não pode ser exercido? Cidadãos armados impõem um limite natural à tirania do estado. 

Conclusão

Genocídios acontecem.

Mas não há genocídio quando os alvos estão armados.


Gary North , ex-membro adjunto do Mises Institute, é o autor de vários livros sobre economia, ética e história.

FATOS E MITOS SOBRE A "REVOLUÇÃO INDUSTRIAL"


Autores socialistas e intervencionistas costumam dizer que a história do industrialismo moderno, e especialmente a história da "Revolução Industrial" na Inglaterra, constitui uma evidência empírica da procedência da doutrina denominada "realista" ou "institucional", e refuta inteiramente o dogmatismo "abstrato dos economistas".

Os economistas negam categoricamente que os sindicatos e a legislação trabalhista possam e tenham beneficiado a classe dos assalariados e elevado o seu padrão de vida de forma duradoura. Porém, dizem os antieconomistas, os fatos refutaram essas ideias capciosas.

Segundo eles, os governantes e legisladores que regulamentaram as relações trabalhistas revelaram possuir uma melhor percepção da realidade do que os economistas. Enquanto a filosofia do laissez-faire, sem piedade nem compaixão, pregava que o sofrimento das massas era inevitável, o bom senso dos leigos em economia conseguia terminar com os piores excessos dos empresários ávidos de lucro. A melhoria da situação dos trabalhadores se deve, pensam eles, inteiramente à intervenção dos governos e à pressão sindical.

São essas ideias que impregnam a maior parte dos estudos históricos que tratam da evolução do industrialismo moderno. Os autores começam esboçando uma imagem idílica das condições prevalecentes no período que antecedeu a "Revolução Industrial". Naquele tempo, dizem eles, as coisas eram, de maneira geral, satisfatórias. Os camponeses eram felizes. Os artesãos também o eram, com a sua produção doméstica; trabalhavam nos seus chalés e gozavam de certa independência, uma vez que possuíam um pedaço de jardim e suas próprias ferramentas. Mas, aí, "a Revolução Industrial caiu como uma guerra ou uma praga" sobre essas pessoas. O sistema fabril transformou o trabalhador livre em virtual escravo; reduziu o seu padrão de vida ao mínimo de sobrevivência; abarrotando as fábricas com mulheres e crianças, destruiu a vida familiar e solapou as fundações da sociedade, da moralidade e da saúde pública. Uma pequena minoria de exploradores impiedosos conseguiu habilmente subjugar a imensa maioria.

A verdade é que as condições no período que antecedeu à Revolução Industrial eram bastante insatisfatórias. O sistema social tradicional não era suficientemente elástico para atender às necessidades de uma população em contínuo crescimento. Nem a agricultura nem as guildas conseguiam absorver a mão de obra adicional. A vida mercantil estava impregnada de privilégios e monopólios; seus instrumentos institucionais eram as licenças e as cartas patentes; sua filosofia era a restrição e a proibição de competição, tanto interna como externa.

O número de pessoas à margem do rígido sistema paternalista de tutela governamental cresceu rapidamente; eram virtualmente párias. A maior parte delas vivia, apática e miseravelmente, das migalhas que caíam das mesas das castas privilegiadas. Na época da colheita, ganhavam uma ninharia por um trabalho ocasional nas fazendas; no mais, dependiam da caridade privada e da assistência pública municipal. Milhares dos mais vigorosos jovens desse estrato social alistavam-se no exército ou na marinha de Sua Majestade; muitos deles morriam ou voltavam mutilados dos combates; muitos mais morriam, sem glória, em virtude da dureza de uma bárbara disciplina, de doenças tropicais e de sífilis.

Milhares de outros, os mais audaciosos e mais brutais, infestavam o país vivendo como vagabundos, mendigos, andarilhos, ladrões e prostitutos. As autoridades não sabiam o que fazer com esses indivíduos, a não ser interná-los em asilos ou casas de correção. O apoio que o governo dava ao preconceito popular contra a introdução de novas invenções e de dispositivos que economizassem trabalho dificultava as coisas ainda mais.

O sistema fabril desenvolveu-se, tendo de lutar incessantemente contra inúmeros obstáculos. Teve de combater o preconceito popular, os velhos costumes tradicionais, as normas e regulamentos vigentes, a má vontade das autoridades, os interesses estabelecidos dos grupos privilegiados, a inveja das guildas. O capital fixo das firmas individuais era insuficiente, a obtenção de crédito extremamente difícil e cara. Faltava experiência tecnológica e comercial. A maior parte dos proprietários de fábricas foi à bancarrota; comparativamente, foram poucos os bem-sucedidos. Os lucros, às vezes, eram consideráveis, mas as perdas também o eram. Foram necessárias muitas décadas para que se estabelecesse o costume de reinvestir a maior parte dos lucros e a consequente acumulação de capital possibilitasse a produção em maior escala.

A prosperidade das fábricas, apesar de todos esses entraves, pode ser atribuída a duas razões. Em primeiro lugar, aos ensinamentos da nova filosofia social que os economistas começavam a explicar e que demolia o prestígio do mercantilismo, do paternalismo e do restricionismo. A crença supersticiosa de que os equipamentos e processos economizadores de mão de obra causavam desemprego e condenavam as pessoas ao empobrecimento foi amplamente refutada. Os economistas do laissez-faire foram os pioneiros do progresso tecnológico sem precedentes dos últimos duzentos anos.

Um segundo fator contribuiu para enfraquecer a oposição às inovações. As fábricas aliviaram as autoridades e a aristocracia rural de um embaraçoso problema que estas já não tinham como resolver. As novas instalações fabris proporcionavam trabalho às massas pobres que, dessa maneira, podiam ganhar seu sustento; esvaziaram os asilos, as casas de correção e as prisões. Converteram mendigos famintos em pessoas capazes de ganhar o seu próprio pão.

Os proprietários das fábricas não tinham poderes para obrigar ninguém a aceitar um emprego nas suas empresas. Podiam apenas contratar pessoas que quisessem trabalhar pelos salários que lhes eram oferecidos. Mesmo que esses salários fossem baixos, eram ainda assim muito mais do que aqueles indigentes poderiam ganhar em qualquer outro lugar. É uma distorção dos fatos dizer que as fábricas arrancaram as donas de casa de seus lares ou as crianças de seus brinquedos. Essas mulheres não tinham como alimentar os seus filhos. Essas crianças estavam carentes e famintas. Seu único refúgio era a fábrica; salvou-as, no estrito senso do termo, de morrer de fome.

É deplorável que tal situação existisse. Mas, se quisermos culpar os responsáveis, não devemos acusar os proprietários das fábricas, que — certamente movidos pelo egoísmo e não pelo altruísmo — fizeram todo o possível para erradicá-la. O que causava esses males era a ordem econômica do período pré-capitalista, a ordem daquilo que, pelo que se infere da leitura das obras destes historiadores, eram os "bons velhos tempos".

Nas primeiras décadas da Revolução Industrial, o padrão de vida dos operários das fábricas era escandalosamente baixo em comparação com as condições de seus contemporâneos das classes superiores ou com as condições atuais do operariado industrial. A jornada de trabalho era longa, as condições sanitárias dos locais de trabalho eram deploráveis.

A capacidade de trabalho do indivíduo se esgotava rapidamente. Mas prevalece o fato de que, para o excedente populacional — reduzido à mais triste miséria pela apropriação das terras rurais, e para o qual, literalmente, não havia espaço no contexto do sistema de produção vigente —, o trabalho nas fábricas representava uma salvação. Representava uma possibilidade de melhorar o seu padrão de vida, razão pela qual as pessoas afluíram em massa, a fim de aproveitar a oportunidade que lhes era oferecida pelas novas instalações industriais.

A ideologia do laissez-faire e sua consequência, a "Revolução Industrial", destruíram as barreiras ideológicas e institucionais que impediam o progresso e o bem-estar. Demoliram a ordem social na qual um número cada vez maior de pessoas estava condenado a uma pobreza e a uma penúria humilhantes. A produção artesanal das épocas anteriores abastecia quase que exclusivamente os mais ricos. Sua expansão estava limitada pelo volume de produtos de luxo que o estrato mais rico da população pudesse comprar. Quem não estivesse engajado na produção de bens primários só poderia ganhar a vida se as classes superiores estivessem dispostas a utilizar os seus serviços ou o seu talento. Mas eis que surge um novo princípio: com o sistema fabril, tinha início um novo modo de comercialização e de produção.

Sua característica principal consistia no fato de que os artigos produzidos não se destinavam apenas ao consumo dos mais abastados, mas ao consumo daqueles cujo papel como consumidores era, até então, insignificante. Coisas baratas, ao alcance do maior número possível de pessoas, era o objetivo do sistema fabril. A indústria típica dos primeiros tempos da Revolução Industrial era a tecelagem de algodão. Ora, os artigos de algodão não se destinavam aos mais abastados. Os ricos preferiam a seda, o linho, a cambraia. Sempre que a fábrica, com os seus métodos de produção mecanizada, invadia um novo setor de produção, começava fabricando artigos baratos para consumo das massas. As fábricas só se voltaram para a produção de artigos mais refinados, e portanto mais caros, em um estágio posterior, quando a melhoria sem precedentes no padrão de vida das massas tornou viável a aplicação dos métodos de produção em massa também aos artigos melhores.

Assim, por exemplo, os sapatos fabricados em série eram comprados apenas pelos "proletários", enquanto os consumidores mais ricos continuavam a encomendar sapatos sob medida. As tão malfaladas fábricas que exploravam os trabalhadores, exigindo-lhes trabalho excessivo e pagando-lhes salário de fome, não produziam roupas para os ricos, mas para pessoas cujos recursos eram modestos. Os homens e mulheres elegantes preferiam, e ainda preferem, ternos e vestidos feitos pelo alfaiate e pela costureira.

O fato marcante da Revolução Industrial foi o de ela ter iniciado uma era de produção em massa para atender às necessidades das massas. Os assalariados já não são mais pessoas trabalhando exaustivamente para proporcionar o bem-estar de outras pessoas; são eles mesmos os maiores consumidores dos produtos que as fábricas produzem. A grande empresa depende do consumo de massa. Em um livre mercado, não há uma só grande empresa que não atenda aos desejos das massas. A própria essência da atividade empresarial capitalista é a de prover para o homem comum. Na qualidade de consumidor, o homem comum é o soberano que, ao comprar ou ao se abster de comprar, decide os rumos da atividade empresarial. Na economia de mercado não há outro meio de adquirir e preservar a riqueza, a não ser fornecendo às massas o que elas querem, da maneira melhor e mais barata possível.

Ofuscados por seus preconceitos, muitos historiadores e escritores não chegam a perceber esse fato fundamental. Segundo eles, os assalariados labutam arduamente em benefício de outras pessoas. Nunca questionaram quem são essas "outras" pessoas.

O Sr. e a Sra. Hammond [citados na nota de referência número 2] nos dizem que os trabalhadores eram mais felizes em 1760 do que em 1830. Trata-se de um julgamento de valor arbitrário. Não há meio de comparar e medir a felicidade de pessoas diferentes, nem da mesma pessoa em momentos diferentes.

Podemos admitir, só para argumentar, que um indivíduo nascido em 1740 estivesse mais feliz em 1760 do que em 1830. Mas não nos esqueçamos de que em 1770 (segundo estimativa de Arthur Young) a Inglaterra tinha 8,5 milhões de habitantes, ao passo que em 1830 (segundo o recenseamento) a população era de 16 milhões. Esse aumento notável se deve principalmente à Revolução Industrial. Em relação a esses milhões de ingleses adicionais, as afirmativas dos eminentes historiadores só podem ser aprovadas por aqueles que endossam os melancólicos versos de Sófocles: "Não ter nascido é, sem dúvida, o melhor; mas para o homem que chega a ver a luz do dia, o melhor mesmo é voltar rapidamente ao lugar de onde veio".

Os primeiros industriais foram, em sua maioria, homens oriundos da mesma classe social que os seus operários. Viviam muito modestamente, gastavam no consumo familiar apenas uma parte dos seus ganhos e reinvestiam o resto no seu negócio. Mas, à medida que os empresários enriqueciam, seus filhos começaram a frequentar os círculos da classe dominante. Os cavalheiros de alta linhagem invejavam a riqueza dos novos-ricos e se indignavam com a simpatia que estes devotavam às reformas que estavam ocorrendo. Revidaram investigando as condições morais e materiais de trabalho nas fábricas e editando a legislação trabalhista.

A história do capitalismo na Inglaterra, assim como em todos os outros países capitalistas, é o registro de uma tendência incessante de melhoria do padrão de vida dos assalariados. Essa evolução coincidiu, por um lado, com o desenvolvimento da legislação trabalhista e com a difusão do sindicalismo, e, por outro, com o aumento da produtividade marginal. Os economistas afirmam que a melhoria nas condições materiais dos trabalhadores se deve ao aumento da quota de capital investido per capita e ao progresso tecnológico decorrente desse capital adicional. A legislação trabalhista e a pressão sindical, na medida em que não impunham a concessão de vantagens superiores àquelas que os trabalhadores teriam de qualquer maneira, em virtude de a acumulação de capital se processar em ritmo maior do que o aumento populacional, eram supérfluas. Na medida em que ultrapassaram esses limites, foram danosas aos interesses das massas. Atrasaram a acumulação de capital, diminuindo assim o ritmo de crescimento da produtividade marginal e dos salários. Privilegiaram alguns grupos de assalariados às custas de outros grupos. Criaram o desemprego em grande escala e diminuíram a quantidade de produtos que os trabalhadores, como consumidores, teriam à sua disposição.

Os defensores da intervenção do governo na economia e do sindicalismo atribuem toda melhoria da situação dos trabalhadores às ações dos governos e dos sindicatos. Se não fosse por isso, dizem eles, o padrão de vida atual dos trabalhadores não seria maior do que nos primeiros anos da Revolução Industrial.

Certamente essa controvérsia não pode ser resolvida pela simples recorrência à experiência histórica. Os dois grupos não têm divergências quanto a quais tenham sido os fatos ocorridos. Seu antagonismo diz respeito à interpretação desses fatos, e essa interpretação depende da teoria escolhida. As considerações de natureza lógica ou epistemológica que determinam a correção ou a falsidade de uma teoria são, lógica e temporalmente, antecedentes à elucidação do problema histórico em questão. Os fatos históricos, por si só, não provam nem refutam uma teoria. Precisam ser interpretados à luz da compreensão teórica.

A maioria dos autores que escreveu sobre a história das condições de trabalho no sistema capitalista era ignorante em economia e disso se vangloriava. Entretanto, tal desprezo por um raciocínio econômico bem fundado não significa que esses autores tenham abordado o tema dos seus estudos sem preconceitos e sem preferência por uma determinada teoria; na realidade, estavam sendo guiados pelas falácias tão difundidas que atribuem onipotência ao governo e consideram a atividade sindical como uma bênção. Ninguém pode negar que os Webbs, assim como Lujo Brentano e uma legião de outros autores menores, estavam, desde o início de seus estudos, imbuídos de uma aversão fanática pela economia de mercado e de uma entusiástica admiração pelas doutrinas socialistas e intervencionistas. Foram certamente honestos e sinceros nas suas convicções e deram o melhor de si. Sua sinceridade e probidade podem eximi-los como indivíduos; mas não os eximem como historiadores. As intenções de um historiador, por mais puras que sejam, não justificam a adoção de doutrinas falaciosas. O primeiro dever de um historiador é o de examinar com o maior rigor todas as doutrinas a que recorrerá para elaborar suas interpretações históricas. Caso ele se furte a fazê-lo e adote ingenuamente as ideias deformadas e confusas que têm grande aceitação popular, deixa de ser um historiador e passa a ser um apologista e um propagandista.

O antagonismo entre esses dois pontos de vista contrários não é apenas um problema histórico: está intimamente ligado aos problemas mais candentes da atualidade. É a razão da controvérsia naquilo que se denomina hoje de relações industriais.

Salientemos apenas um aspecto da questão: em vastas regiões — Ásia Oriental, Índias Orientais, sul e sudeste da Europa, América Latina — a influência do capitalismo moderno é apenas superficial. A situação nesses países, de uma maneira geral, não difere muito da que prevalecia na Inglaterra no início da "Revolução Industrial". Existem milhões de pessoas que não encontram um lugar seguro no sistema econômico vigente. Só a industrialização pode melhorar a sorte desses desafortunados; para isso, o que mais necessitam é de empresários e de capitalistas.

Como políticas insensatas privaram essas nações do benefício que a importação de capitais estrangeiros até então lhes proporcionava, precisam proceder à acumulação de capitais domésticos. Precisam percorrer todos os estágios pelos quais a industrialização do Ocidente teve de passar. Precisam começar com salários relativamente baixos e com longas jornadas de trabalho. Mas, iludidos pelas doutrinas prevalecentes hoje em dia na Europa Ocidental e na América do Norte, seus dirigentes pensam que poderão consegui-lo de outra maneira. Encorajam a pressão sindical e promovem uma legislação pretensamente favorável aos trabalhadores. Seu radicalismo intervencionista mata no nascedouro a criação de uma indústria doméstica. Seu dogmatismo obstinado tem como consequência a desgraça dos trabalhadores braçais indianos e chineses, dos peões mexicanos e de milhões de outras pessoas que se debatem desesperadamente para não morrer de fome.

A atribuição da expressão "Revolução Industrial" ao período dos reinados dos dois últimos reis da casa de Hanover — George III e George IV (1760-1830) — resultou do desejo de dramatizar a história econômica, de maneira a ajustá-la aos esquemas marxistas procustianos.* A transição dos métodos medievais de produção para o sistema de livre iniciativa foi um processo longo que começou séculos antes de 1760 e que, mesmo na Inglaterra, em 1830, ainda não tinha terminado. Entretanto, é verdade que o desenvolvimento industrial na Inglaterra acelerou-se bastante na segunda metade do século XVIII. Consequentemente, é admissível usar a expressão "Revolução Industrial" ao se examinarem as conotações emocionais que lhe foram imputadas pelo fabianismo, pelo marxismo e pela Escola Historicista.

* Relativo a Procusto, gigante salteador da Ática que, segundo a mitologia grega, despojava viajantes e torturava-os deitando-os num leito de ferro: se a vítima fosse maior, cortava-lhe os pés; se menor, esticava-a por meio de cordas até que atingisse as dimensões do leito. O termo serve para metaforizar o ato de se tentar ajustar arbitrariamente a realidade a um sistema ou teoria previamente concebidos. (N.T.)

J.L. Hammond and Barbara Hammond, The Skilled Labourer, 1760-1832, 2. ed., Londres, 1920, p. 4.

Na guerra dos Sete Anos, 1.512 marinheiros ingleses morreram em combate, enquanto 133.708 morreram de doenças ou desapareceram. Ver W.L.Dorn, Competition for Empire 1740-1763, Nova York, 1940, p.114.

No sistema feudal inglês, a maior parte da área rural constituía-se de campos e florestas. Grande parte dessas áreas era utilizada para o cultivo de grãos e criação de gado para consumo próprio. Com o advento da produção agrícola para o mercado e não para o senhor feudal, essas terras começaram a ser cercadas e apropriadas. Diversos atos do Parlamento, no século XVIII e parte do século XIX, endossaram esse movimento, que tinha oposição das classes inferiores. Tal situação resultou num aumento da produção agrícola e na criação de um proletariado rural, que veio a se tornar a força de trabalho usada pelas fábricas inglesas na "Revolução Industrial".

J.L. Hammond e Barbara Hammond, op. cit.

F.C. Dietz, An Economic History of England, Nova York, 1942, p. 279 e 392.

Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".

domingo, 6 de janeiro de 2013

LEI, SECA LEI

O álcool não é, de forma nenhuma, o maior responsável por esse Vietnã anual das estradas brasileiras.

Alguma coisa está errada na estrutura e na aplicação dessa lei, que trata igualmente os desiguais.

As leis sempre existiram para frear aqueles indivíduos com a bússola moral defeituosa. Para o cidadão moralmente são, as leis são inúteis, pois ele viveria normalmente sem elas e sem tampouco prejudicar ninguém.

Urge na atualidade a necessidade de se resolver problemas nevrálgicos com medidas contundentes de curto prazo, o que, à primeira vista, parece perfeitamente revestido de lógica. O que passa despercebido, como sempre nessas tentativas, é que, em alguns casos, essas medidas contundentes acabam por atingir aqueles que não precisavam ser atingidos e deixam escapar aqueles que deveriam.

A quantia enorme de mortes no trânsito a cada ano levou os brasileiros a aceitar de forma passiva leis abusivas que, à primeira vista, parecem ter vindo para diminuir o problema em foco, mas na verdade só servem para diminuir ainda mais as liberdades individuais e pouco, muito pouco resolvem aquilo que deveriam resolver. O álcool não é, de forma nenhuma, o maior responsável por esse Vietnã anual das estradas brasileiras. Os verdadeiros responsáveis são a imprudência, a negligência, e a imperícia. A combinação destes fatores, sim, é assassina. Mas, quando num caso de grande repercussão é constatada a presença do fator álcool, isso rapidamente se aplica a todos os milhares de ocorrências como se fizesse parte específica de cada uma. Aparvalhados com esses dados, os cidadãos passam a achar certo que lhe restrinjam ainda mais nos seus direitos individuais, dos quais constam dirigir sem ser parado e não ser obrigado a fazer testes sem ter dado motivo algum.

O aumento das mortes no trânsito nesse feriado de Natal em relação a 2011 foi grande em todo Brasil. Só no Sul 28 mortes (http://www.clicrbs.com.br/pioneiro/rs/impressa/11,3992216,499,21072,impressa.html) sendo que não se flagrou um caso sequer de alcoolemia nos motoristas envolvidos. Ao mesmo tempo, uma verdadeira enxurrada de motoristas que estavam conduzindo seus veículos de forma segura, são autuados todos os dias por uma ingerência mínima de álcool.

Acima do Equador, onde estão as nações que gostamos de denominar como ‘primeiro mundo’, há muito tempo que álcool e direção, combinação que pode causar danos a terceiros, são combatidos pelos governos sem leis que proíbem a ingestão de álcool de forma tão radical como a adotada aqui. Decididamente não há por lá a perseguição de todos os motoristas de forma geral e sem exceções. Ora, por que um motorista que dirige dentro das normas atuais regidas pelo Código Nacional de Trânsito, com seu veículo, bem como sua documentação pessoal, em dia, deve ser obrigado a fazer o teste de alcoolemia? Existem testes de natureza extremamente simples que podem constatar se o motorista tem as condições motoras e cognitivas necessárias para guiar. Por que não aplicar esses testes?

As forças de segurança deveriam direcionar seus recursos logísticos para identificar o motorista embriagado, aquele que dirige em zigue-zague, atropela, etc., que ao ser interpelado por um agente, não consegue concatenar uma frase com sentido lógico. Sobre esse deve-se fazer pesar a dureza da lei, não ao motorista que retorna para casa após ter jantado com a família e ingerido uma quantidade de álcool que nem de longe pode fazê-lo entrar no rol de motoristas irresponsáveis e que, como gostam de rotular os juristas, estão em “dolo eventual”, uma vez que assumiram o risco de matar alguém. Ora, quem após ingerir duas taças de vinho ou uma cerveja, estará pondo a vida de terceiros em risco? É de uma arbitrariedade ímpar tratar um motorista que ingeriu uma quantidade civilizada de álcool como um perigoso risco à sociedade. Esse motorista está fadado a sofrer uma sanção a partir do momento em que for parado por um fiscal de trânsito, não há escapatória. Se fizer o teste e for constatado que ingeriu, mesmo que muito pouco álcool, ficando dentro dos limites aceitáveis em qualquer parte do hemisfério norte, vai ter a carteira apreendida, pagará multa e responderá um processo administrativo. Se por acaso recusar-se a fazer o teste vai ter a carteira igualmente apreendida, pagará multa e responderá a processo. Não há distinção no tratamento. Ou será tratado como um bêbado perigoso, ou será tratado como um bêbado perigoso que não quer fazer o teste.

A partir de agora, o agente da lei terá o poder de decidir, através de um exame visual e quem sabe até através daqueles testes que já são aplicados há décadas nos EUA, se o condutor está ou não alcoolizado. Isso é ótimo. É uma boa maneira de driblar a negativa dos motoristas realmente bêbados em fazer o teste. Nada de errado nisso. Mas por que o agente de trânsito não pode usar esse mesmo discernimento, o que o faz constatar que o indivíduo não tem condições de dirigir, para chegar à conclusão de que um motorista que até tenha bebido um pouco, tem plenas condições de chegar em casa sem botar a vida de ninguém em risco? O mesmo poder que serve para declarar que um motorista não tem condições de dirigir, obrigatoriamente tem que servir para atestar que um motorista que embora tenha ingerido alguma quantidade de álcool, pode dirigir, pois não demonstra estar com suas habilidades comprometidas. 

O bêbado irresponsável e perigoso, aquele para qual as leis foram feitas e que nunca irá respeitá-las mesmo assim, justamente por ter a formação moral degenerada, é conduzido a uma delegacia onde faz o famoso teste do bafômetro que afere quantias estratosféricas de álcool, em seguida paga uma fiança miserável e é prontamente liberado. Alguma coisa está errada na estrutura e na aplicação dessa lei, que trata igualmente os desiguais. Acaba se tornando uma lei seca, seca de conteúdo, seca daquilo que mais se espera em qualquer pena que seja aplicada: a proporcionalidade. Por: Valter Heller Dani é policial civil.

ZECA PAGODINHO E O HEROÍSMO ERÓTICO

Não é estranho, Zeca, ter nojo de alguém só quando as vítimas de seu descaso nos são próximas?
Não, respondo eu. Não é estranho. É brasileiro.


"Dá nojo de político", disse Zeca Pagodinho, o herói da semana em Xerém. Mas de qual político, Zeca? Não seria a hora de você se desculpar por ter apoiado Lula tantas vezes? Sim, eu sei, o governador não é ele; é Sérgio Cabral, eleito com o apoio dele. Não é uma trágica ironia ver o naufrágio de uma cidade abandonada pelo afilhado político - e maior discípulo moral - do seu candidato?

Mais do que isso: não é estranho ter nojo de político que nada faz para evitar a morte de 2 moradores, o desaparecimento de mais alguns e o desalojamento de outras centenas em função de uma tempestade de verão (e que mal se move para socorrê-los); e apoiar político que nada faz para evitar, ou melhor, tudo faz para fomentar o assassinato de até 50 mil compatriotas por ano em tempos de "paz"? Não é estranho, Zeca, ter nojo de alguém só quando as vítimas de seu descaso nos são próximas?

Não, respondo eu. Não é estranho. É brasileiro. Zeca Pagodinho representa a índole da cultura nacional. O Brasil é tradicionalmente o país da chamada emoção erótica. Uma emoção limitada ao contato, à proximidade, ao vínculo familiar ou social. Brasileiro é muito unido a quem está dentro de seu círculo e muito indiferente a quem está fora. Ele ama e se preocupa apenas com os seus.

Meira Penna descreve este traço no livro ‘Em berço esplêndido’, o estudo mais útil já escrito sobre o assunto. Diz ele: "O brasileiro traduz literalmente o mandamento cristão de amar o próximo. Acredita que a caridade começa em casa... e talvez nela termine. É a solidariedade do contíguo e do consanguíneo. O próximo é antes de tudo o parente, mas também o amigo, o sócio, o cliente; todos os conhecidos, aqueles com quem se convive e se trabalha; que podem ser vistos, ouvidos e sentidos diariamente. Só estes merecem a expansão específica da cordialidade e da philia. Os desconhecidos, que se danem!"

José Ingenieros, em seu incontornável livro ‘O homem medíocre’, descreve esta mesma limitação afetiva como sintoma de mediocridade: "O medíocre limita seu horizonte afetivo a si mesmo, à sua família, aos seus camaradas, à sua facção; mas não sabe estendê-lo até a Verdade ou a Humanidade, que apenas pode apaixonar ao gênio."

Longe de mim recriminar Zeca Pagodinho por dirigir seu quadriciclo "desde 6 da manhã" pela cidade alagada, ajudando as vítimas da tragédia serrana. Este é o Zeca que representa justamente o que o brasileiro tem de melhor: o amor aos seus. É o Zeca afetuoso com seus amigos e vizinhos, e solidário quando estes mais precisam dele. É o Zeca que eu ia assistir moleque no antigo Imperator, no Méier, e no Teatro Rival, na Cinelândia - quando seu público ainda cabia ali -, e com quem tanto aprendi sobre simplicidade, espontaneidade e afeto por quem nos é próximo, como ele nunca cansou de demonstrar no palco e na carreira a seus músicos, ídolos, padrinhos e afilhados. Na verdade, há 20 anos acostumado com este Zeca, nem sequer me foi surpresa vê-lo encharcado e emocionado na TV, fazendo pelos seus o que os políticos não fizeram.

Mas Zeca é brasileiro e, como tal, diria Olavo de Carvalho, "decide as questões mais graves do destino humano pelo mesmo critério de atração e repulsa imediatos com que julga a qualidade da pinga ou avalia o perfil dos bumbuns na praia. Daí sua tendência incoercível de tomar a simpatia pessoal, a identidade de gostos (...) como sinais infalíveis de alta qualificação moral". Não à toa, o sambista já se referiu a Lula como "um homem de bem", defendendo que ele certamente "não sabia de nada", porque "Eu mesmo às vezes não sei de coisas da minha vida".

Em outras palavras: Zeca é tão solidário às pessoas próximas, como Lula, que nem se importa em saber o efeito das ações delas na vida alheia, mesmo quando esses efeitos respingam em seu próprio quintal e até o devastam. O ódio ao conhecimento, a maior desgraça "deste país", é isso: uma forma de indiferença - um "que se danem!" - ao desconhecido e aos desconhecidos, que sempre acaba por prejudicar, mesmo da maneira mais indireta, aqueles que se conhece. Quem não sabe estender seu horizonte afetivo "até a Verdade ou a Humanidade" pode até praticar o bem com uma mão, mas o mais provável é que, consciente ou inconscientemente, esteja afagando o mal com a outra.

Zeca Pagodinho faria muito bem à população que o aplaude se dissesse ter nojo, especificamente, de Cabral e de Lula, confessando a vergonha de ter apoiado este último, que não só se aproveitou da cisão afetiva nacional, como também, pelo exemplo e pelas atitudes, elevou-a até os limites da crueldade pura e simples, favorecendo sempre os "companheiros" (inclusive os terroristas das Farc), enquanto deixava 50 mil brasileiros desconhecidos morrerem assassinados por ano. Se não fizer isso, Zeca é apenas mais um cidadão ativista que luta bravamente para limpar na vizinhança a sujeira que ajudou a criar no país.

Na sociedade erótica brasileira, como se sabe, até os heróis são (amigos dos) bandidos.
Por: Felipe Moura Brasil

COICES E RELINCHOS

A maneira mais estúpida, autoritária e desonesta de responder a alguma crítica é tentar desqualificar quem critica, porque revela a incapacidade de rebatê-la com argumentos e fatos, ideias e inteligência. A prática dos coices e relinchos verbais serve para esconder sentimentos de inferioridade e mascarar erros e intenções, mas é uma das mais populares e nefastas na atual discussão politica no Brasil.


A outra é responder acusando o adversário de já ter feito o mesmo, ou pior, e ter ficado impune. São formas primitivas e grosseiras de expressão na luta pelo poder, nivelando pela baixaria, e vai perder tempo quem tentar impor alguma racionalidade e educação ao debate digital.

Nem nos mais passionais bate-bocas sobre futebol alguém apela para a desqualificação pessoal, por inutilidade. Ser conservador ou liberal, gay ou hetero, honesto ou ladrão, preto ou branco, petista ou tucano, não vai fazer o gol não ser em impedimento, ser ou não ser pênalti. Numa metáfora de sabor lulístico, a politica é que está virando um Fla x Flu movido pelos instintos mais primitivos.

Na semana passada, Ferreira Gullar, considerado quase unanimemente o maior poeta vivo do Brasil, publicou na “Folha de S.Paulo” uma crônica criticando o mito Lula com dureza e argumentos, mas sem ofensas nem mentiras. Reproduzida em um “site progressista”, com o habitual patrocínio estatal, a crônica foi escoiceada pela militância digital.

Ler os cento e poucos comentários, a maioria das mesmas pessoas, escondidas sob nomes diferentes, exigiria uma máscara contra gases e adicional de insalubridade, mas uma pequena parte basta para revelar o todo. Acusavam Gullar, ex-comunista, de ter se vendido, porque alguém só pode mudar de ideia se levar dinheiro, relinchavam sobre a sua idade, sua saúde, sua virilidade, sua aparência, sua inteligencia, e até a sua poesia. E ninguém respondia a um só de seus argumentos.

Mas quem os lê? Só eles mesmos e seus companheiros de seita. E eu, em missão de pesquisa antropológica. Coitados, esses pobres diabos vão morrer sem ter lido um só verso de Gullar, sem saber o que perderam.
Por: Nelson Motta, O GLOBO

ESFRIANDO OS TEMORES A RESPEITO DAS 'MUDANÇAS CLIMÁTICAS"


Esqueça a fanfarronice ocorrida em Doha no início de dezembro. As discussões teológicas no Qatar sobre os segredos dos tratados climáticos são irrelevantes. De longe, o mais importante debate sobre mudanças climáticas está ocorrendo entre os cientistas, e versa sobre a questão da sensibilidade climática: qual será o aquecimento realmente gerado caso a quantidade de dióxido de carbono na atmosfera seja duplicada? 

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC — Intergovernamental Panel on Climate Change) irá pronunciar sua resposta a esta questão em seu Quinto Relatório de Estimativas no ano que vem.

O público geral não está a par deste debate dentro do IPCC, mas eu tenho conversado bastante com alguém que entende do assunto: Nic Lewis. Um semi-aposentado financista bem-sucedido de Bath, Inglaterra, com uma robusta formação em matemática e física, o senhor Lewis fez contribuições significativas para o debate das mudanças climáticas.

Primeiro, ele colaborou com outros para expor enormes e essenciais erros estatísticos em um estudo de 2009 sobre as temperaturas na Antártica. Em 2011, ele descobriu que o IPCC havia, por meio de uma injustificada manipulação estatística, alterado os resultados de um extremamente importante artigo de 2006 escrito por Piers Forster, da Reading University, e Jonathan Gregory, do Met Office (o serviço nacional de meteorologia do Reino Unido). O artigo havia demonstrado que o risco de a sensibilidade climática ser alta era muito baixo. O IPCC alterou as estatísticas com o intuito de elevar sobremaneira esse risco. O senhor Lewis também descobriu que o IPCC havia relatado de maneira imprópria os resultados de outro estudo, o que levou o próprio IPCC a emitir uma errata em 2011.

Nic Lewis me disse que as mais recentes observações empíricas para o efeito dos aerossóis (tais como partículas sulfurosas da fumaça do carvão) mostram que eles possuem um efeito refrigerante muito menor do que o imaginado quando o último relatório do IPCC foi escrito. Outra: a taxa a qual o oceano está absorvendo o aquecimento induzido por gases do efeito estufa também é hoje reconhecida como sendo bastante modesta. Em outras palavras, as duas desculpas utilizadas para explicar o lento e suave aquecimento que o mundo vivenciou no século XX — o qual já terminou, dado que as temperaturas globais hoje são as mesmas de 16 anos atrás — não mais são válidas.

Em suma: agora já é possível estimar, por meio de observações empíricas, o quão sensível a temperatura é ao dióxido de carbono. Não é mais necessário ter de confiar excessivamente em modelos não comprovados. Comparar a tendência da temperatura global ao longo dos últimos 100-150 anos com a mudança no "forçamento radiativo" (o poder aquecedor ou refrigerador) do dióxido de carbono, dos aerossóis e de outras fontes, e disso descontar a absorção de calor feita pelos oceanos, permite uma boa estimativa da sensibilidade climática.

A conclusão — pegando-se as melhores observações empíricas das mudanças ocorridas na temperatura global média entre 1871-80 e 2002-11, e das correspondentes mudanças no forçamento radiativo e na absorção de calor dos oceanos — é esta: se a quantidade de CO2 for duplicada, isso levará a um aquecimento de 1,6º-1,7ºC.

Este valor é bem menor do que a melhor estimativa atual do IPCC, de 3ºC.

O senhor Lewis foi um revisor do recentemente vazado rascunho do Relatório Científico WG1 do IPCC. O IPCC o proibiu de fazer citações do relatório, mas ele está a par de todas as melhores estimativas e de todos os graus de incerteza contidos no rascunho do relatório. E o que ele me relatou é pura dinamite.

Dado tudo o que hoje já sabemos, simplesmente não há nenhuma chance de que o tão temido aumento nas temperaturas médias irá ocorrer. Segundo o senhor Lewis: "Levando-se em conta o cenário hipotético em que o IPCC supõe uma duplicação do CO2, mais um aumento de 30% nos outros gases do efeito estufa até 2100, o mais provável é que vivenciemos um aumento das temperaturas médias de não mais do que 1ºC".

Uma mudança cumulativa de menos de 2ºC até o final deste século não fará nenhum mal ao ecossistema. Ao contrário: o resultado líquido será positivo — e isso os próprios cientistas do IPCC já disseram abertamente no último relatório da instituição. As chuvas irão aumentar ligeiramente, os períodos propícios ao cultivo agrícola serão alongados, as calotas glaciais da Groelândia irão derreter muito lentamente, e por aí vai.

Algumas das melhores pesquisas empíricas recentes também mostram que a sensibilidade climática é de 1,6ºC para uma duplicação do CO2. Um impressionante estudo publicado este ano (2012) por Magne Aldrin e colegas do Centro Computacional da Noruega afirma que a estimativa mais provável é de 1,6ºC. Michael Ring e Michael Schlesinger da Universidade de Illinois, utilizando o mais confiável histórico de temperaturas, também estimam 1,6ºC.

A grande pergunta é: será que os principais autores do relevante capítulo do vindouro relatório científico do IPCC reconhecerão que as melhores evidências empíricas não mais dão suporte à atual afirmação do IPCC de que o intervalo "mais provável" para a sensibilidade climática é de 2º—4,5ºC? Infelizmente, isso parece improvável — especialmente quando se leva em conta o histórico desta organização de substituir políticas baseadas em evidências por criação de evidências baseadas em politicagem, bem como a relutância de cientistas acadêmicos em aceitar que tudo aquilo que eles vinham dizendo há anos está errado.

Outra pergunta bastante comum: Como pode haver tanta discordância em relação à questão da sensibilidade climática se as propriedades de efeito estufa do CO2 já estão bem estabelecidas? O problema é que a maioria das pessoas supõe que a teoria do aquecimento global é construída inteiramente sobre o dióxido de carbono. Mas não é.

Há pouca controvérsia entre os cientistas a respeito da quantidade de aquecimento que o CO2 sozinho pode produzir, tudo o mais constante: de aproximadamente 1,1º—1,2ºC para uma duplicação da quantidade de CO2 vigente antes da industrialização. O aquecimento gerado pelo CO2 se torna realmente perigoso dependendo da maneira como o fenômeno ocorre: mais especificamente, por meio da amplificação de retroalimentações positivas — principalmente vapor d'água e das nuvens que este vapor produz.

Funciona assim: um pequeno aquecimento (qualquer que seja a causa) esquenta os oceanos, o que aumenta a evaporação e torna o ar mais úmido — e o vapor d'água é em si um gás gerador do efeito estufa. As alterações nas nuvens (geradas pela simulação destes modelos) geralmente aumentam ainda mais o aquecimento, de modo que ele pode ser duplicado, triplicado ou até mais.

É exatamente esta suposição que está no cerne de todos os modelos utilizados pelo IPCC. Mas o problema é que nem mesmo o mais ardoroso cientista climático afirmaria que esta triplicação é um fato estabelecido. Para começar, o vapor d'água pode nem estar aumentando. Um recente estudo da Colorado State University concluiu que "não podemos nem provar nem negar que haja uma robusta tendência nos dados sobre o vapor d'água em todo o globo". Depois, como um físico ganhador do Prêmio Nobel (e com um papel destacado no combate às mudanças climáticas) recentemente admitiu para mim: "Nem sequer sabemos o sinal" do efeito do vapor d'água — em outras palavras, os cientistas não sabem se o vapor d'água acelera ou retarda o aquecimento da atmosfera.

Modelos climáticos são conhecidos por fazer uma simulação bastante falha das nuvens, e dado que as nuvens possuem efeitos muito fortes sobre o sistema climático — alguns tipos de nuvem resfriam a Terra, seja porque a protegem do sol ou porque transportam o calor para cima e o frio para baixo em tempestades; e outros tipos aquecem a Terra ao bloquearem a saída da radiação —, continua sendo algo altamente plausível que não haja nenhum efeito líquido de retroalimentação positiva do vapor d'água.

Se este de fato for o caso, então até hoje vivenciamos um aquecimento de 0,6ºC; e nossos dados empíricos estariam apontando para um aquecimento de 1,2ºC até o fim do século. 

Ano que vem, os cientistas do IPCC terão de decidir se irão admitir — contrariamente do que indicam seus modelos computacionais complexos e inverificáveis — que a evidência empírica agora aponta para uma insignificante alteração climática sem nenhum dano líquido efetivo. 

Em nome de todas as pessoas pobres cujas vidas estão sendo arruinadas pelos altos preços dos alimentos e dos combustíveis — provocados pelo fato de o milho estar sendo maciçamente usado na produção de biocombustível, pelo fato de a agropecuária estar sendo tolhida em várias partes do mundo (o que reduz a oferta de alimentos), e também pelos amplos subsídios à energia renovável concedidos por burocratas a seus empresários e empresas favoritos —, podemos apenas torcer para que os cientistas tenham esta honestidade intelectual.

Matt Ridley: escreve a coluna Mind and Matter no The Wall Street Journal e vem escrevendo sobre questões climáticas para várias publicações há 25 anos.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A DÉCADA PERDIDA

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 foi recebida como um conto de fadas. O País estaria pagando uma dívida social. E o recebedor era um operário.

Operário que tinha somente uma década de trabalho fabril, pois aos 28 anos de idade deu adeus, para sempre, à fábrica. Virou um burocrata sindical. Mesmo assim, de 1972 a 2002 - entre a entrada na diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e a eleição presidencial -, portanto, durante 30 anos, usou e abusou do figurino do operário, trabalhador, sofrido. E pior, encontrou respaldo e legitimação por parte da intelectualidade tupiniquim, sempre com um sentimento de culpa não resolvido.

A posse - parte dos gastos paga pelo esquema do pré-mensalão, de acordo com depoimento de Marcos Valério ao Ministério Público - foi uma consagração. Logo a fantasia cedeu lugar à realidade. A mediocridade da gestão era visível. Como a proposta de governo - chamar de projeto seria um exagero - era inexequível, resolveram manter a economia no mesmo rumo, o que foi reforçado no momento da alta internacional no preço das commodities.

Quando veio a crise internacional, no final de 2008, sem capacidade gerencial e criatividade econômica, abriram o baú da História, procurando encontrar soluções do século 20 para questões do século 21. O velho Estado reapareceu e distribuiu prebendas aos seus favoritos, a sempre voraz burguesia de rapina, tão brasileira como a jabuticaba. Evidentemente que só poderia dar errado. Errado se pensarmos no futuro do País. Quando se esgotou o ciclo de crescimento mundial - como em tantas outras vezes nos últimos três séculos -, o governo ficou, como está até hoje, buscando desesperadamente algum caminho. Sem perder de vista, claro, a eleição de 2014, pois tudo gira em torno da permanência no poder por mais um longo tempo, como profetizou recentemente o sentenciado José Dirceu.

Os bancos e as empresas estatais foram usados como instrumentos de política partidária, em correias de transmissão, para o que chamou o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, de "projeto criminoso de poder", quando do julgamento do mensalão. Os cargos de direção foram loteados entre as diferentes tendências do Partido dos Trabalhadores (PT) e o restante foi entregue à saciedade dos partidos da base aliada no Congresso Nacional. O PT transformou o patrimônio nacional, construído durante décadas, em moeda para obter recursos partidários e pessoais, como ficou demonstrado em vários escândalos durante a década.

O PT era considerado uma novidade na política brasileira. A "novidade" deu vida nova às oligarquias. É muito difícil encontrar nos últimos 50 anos um período tão longo de poder em que os velhos oligarcas tiveram tanto poder como agora. Usaram e abusaram dos recursos públicos e transformaram seus Estados em domínios familiares perpétuos. Esse congelamento da política é o maior obstáculo ao crescimento econômico e ao enfrentamento dos problemas sociais tão conhecidos de todos.

Não será tarefa fácil retirar o PT do poder. Foi criado um sólido bloco de sustentação que - enquanto a economia permitir - satisfaz o topo e a base da pirâmide. Na base, com os programas assistenciais que petrificam a miséria, mas garantem apoio político e algum tipo de satisfação econômica aos que vivem na pobreza absoluta. No topo, atendendo ao grande capital com uma política de cofres abertos, em que tudo pode, basta ser amigo do rei - a rainha é secundária.

A incapacidade da oposição de cumprir o seu papel facilitou em muito o domínio petista. Deu até um grau de eficiência política que o PT nunca teve. E o ano de 2005 foi o ponto de inflexão, quando a oposição, em meio ao escândalo do mensalão, e com a popularidade de Lula atingindo seu nível mais baixo, se omitiu, temendo perturbar a "paz social". Seu principal líder, Fernando Henrique Cardoso, disse que Lula já estava derrotado e bastaria levá-lo nas cordas até o ano seguinte para vencê-lo facilmente nas urnas. Como de hábito, a análise estava absolutamente equivocada. E a tragédia que vivemos é, em grande parte, devida a esse grave erro de 2005. Mas, apesar da oposição digna de uma ópera-bufa, os eleitores nunca deram ao PT, nas eleições presidenciais, uma vitória no primeiro turno.

O PT não esconde o que deseja. Sua direção partidária já ordenou aos milicianos que devem concentrar os seus ataques na imprensa e no Poder Judiciário. São os únicos obstáculos que ainda encontram pelo caminho. E até com ameaças diretas, como a feita na mensagem natalina - natalina, leitores! - de Gilberto Carvalho - ex-seminarista, registre-se - de que "o bicho vai pegar". A tarefa para 2013 é impor na agenda política o controle social da mídia e do Judiciário. Sabem que não será tarefa fácil, porém a simples ameaça pode-se transformar em instrumento de coação. O PT tem ódio das liberdades democráticas. Sabe que elas são o único obstáculo para o seu "projeto histórico". E eles não vão perdoar jamais que a direção petista de 2002 esteja hoje condenada à cadeia.

A década petista terminou. E nada melhor para ilustrar o fracasso do que o crescimento do produto interno bruto (PIB) de 1%. Foi uma década perdida. Não para os petistas e seus acólitos, claro. Estes enriqueceram, buscaram algum refinamento material e até ficaram "chiques", como a Rosemary Nóvoa de Noronha, sua melhor tradução. Mas o Brasil perdeu.

Poderíamos ter avançado melhorando a gestão pública e enfrentado com eficiência os nossos velhos problemas sociais, aqueles que os marqueteiros exploram a cada dois anos nos períodos eleitorais. Quase nada foi feito - basta citar a tragédia do saneamento básico ou os milhões de analfabetos.

Mas se estagnamos, outros países avançaram. E o Brasil continua a ser, como dizia Monteiro Lobato, "essa coisa inerme e enorme". Por: Marco Antonio Villa  
O Estado de S.Paulo - 31/12

2013, O ANO DA VOLTA AO PASSADO

O governo Lula beneficiou-se do ciclo de reformas institucionais lideradas por Fernando Henrique Cardoso que resultaram no aumento da produtividade e, assim, do potencial de crescimento da economia. A produtividade explica 88% da diferença de expansão do PIB nos dois períodos (1995-2002 e 2003-2010), da ordem de 2,3% e 4,1 %, respectivamente.


As reformas de FHC impressionam: Plano Real; privatização das telecomunicações e de rodovias; eliminação de restrições ao capital privado (nacional e estrangeiro), inclusive no petróleo; câmbio flutuante; metas para a inflação; modernização das normas cambiais; reestruturação de dívidas estaduais e municipais; Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF); e maior abertura da economia, para citar as principais. Tudo isso levaria tempo para frutificar.

O PT foi contra a maioria dessas reformas. Duvidou do Plano Real, mobilizou multidões contra a privatização da Telebras, questionou a LRF no Judiciário e tachou de neoliberais os avanços institucionais. No governo, mais amadurecido, Lula teve a coragem de manter as mudanças que condenava. Por isso, pôde colher os frutos dos plantios anteriores e da emergência da China como o principal parceiro comercial do país. O maior crescimento permitiu expandir as políticas sociais, incluindo aumentos reais do salário mínimo. Lula se consagrou como grande presidente, ainda que os escândalos em áreas do governo possam turvar esse brilho.

Nos seus dois primeiros anos, Lula continuou o ciclo de reformas de FHC: nova Lei de Falências, reforma do Judiciário e inovações no sistema financeiro. Estas ampliaram o acesso ao crédito a milhões de brasileiros, inclusive para a casa própria. De 2005 em diante, tudo parou. Muitos de seus companheiros nunca aceitaram a política econômica. Depois da crise mundial de 2008, foram despertadas idéias contrárias, que estavam adormecidas pelo êxito econômico e pelo pragmatismo de Lula. Iniciou-se crescente intervenção estatal na economia e partiu-se para a reedição de políticas do passado, notadamente as do govemo Geisel (1974-1979).

A confusa intervenção no mercado de energia elétrica escancarou o DNA autoritário e antilucro do governo

No governo Dilma, tais idéias triunfaram de vez. A taxa de juros baixou na marra, o regime cambial deixou de ser flutuante, o cumprimento da meta de superávit primário passou a depender de malabarismos financeiros e artifícios contábeis. O Banco Central (BC) se tornou tolerante à inflação e o controle de preços da gasolina – que fragiliza a Petrobras e os produtores de eta- nol – voltou à cena. A famigerada “conta movimento”, pela qual o BC supria o Banco do Brasil de recursos e constituía canal para subsídios generosos, foi ressuscitada, agora via Tesouro e BNDES. Entre 2008 e 2012, os aportes ao BNDES saltaram de 15 bilhões de reais para 270 bilhões de reais, e o acumulado deve aumentar em 2013. O protecionismo reapareceu. A confusa intervenção no mercado de energia elétrica escancarou o DNA autoritário e antilucro do governo. O foco principal da política econômica é o estímulo à demanda, um equívoco (o problema está na oferta, sobressaindo a baixa competitividade da indústria).

A nova política econômica era reivindicada por lideranças empresariais e por economistas. Dizia-se que o investimento e o PIB cresceriam com uma combinação de juros baixos, câmbio desvalorizado, crédito subsidiado e proteção à indústria. Não funcionou. Desconsiderou-se a relevância da produtividade, que despencou por causa da paralisia das reformas. O intervencionismo excessivo criou incertezas que inibem o investimento. O potencial de crescimento caiu. A expansão do PIB em 2012 pode ficar abaixo de 1%. Para 2013, as previsões otimistas do ministro da Fazenda (crescimento de 4%) podem não se confirmar (mais uma vez).

O desempenho medíocre de 2012 não mudou as convicções do governo. Basta, diz-se. paciência para esperar os efeitos positivos das medidas na taxa de investimento – que cai há cinco trimestres seguidos e pode cair novamente no trimestre em curso – e no crescimento do PIB. Dilma tem legitimidade política e instrumentos para dobrar a aposta na estratégia, cuja validade será testada em 2013. Esperemos e torçamos para que dê certo. Eu tenho cá minhas dúvidas. Por: Mailson Ferreira Da Nóbrega  Fonte: revista “Veja”

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

HOMENS-FORMIGA

O meio urbano de nossas cidades mostra uma desoladora angustia de espaços. Um instinto de formiga move o povo e como tal carregam coisas. É no metrô que esse instinto de formiga mais se revela: todos com mochilas às costas. E antenas implantadas pelos celulares comunicam. Enormes edifícios para apartamentos minúsculos. Angústia desoladora de espaços. Inferno claustrofóbico. Homens-formiga escalam alto. Ruas de carros não cabem gente; ruas de gente não têm carros. Multidões caminham sem rumo sob o peso do seu destino. Pombal projetado para homens, os edifícios modernos. Horrenda arquitetura do fim dos tempos. Pobreza de espaço e de beleza. Prisão! Arquitetura do fim dos tempos nessa angústia de espaços, devoradora de dignidade, de felicidade, de bem viver. Prisão! Espaço minúsculo para numerosos ocupantes. Vida projetada no nada espacial, exíguo metro quadrado para muitos. Dormir por turnos e comer também. Até cemitérios aéreos na forma de pombal fizeram. Consistência aeroespacial. Corpos que se elevam para espíritos de gravidade prisioneiros. Cadáveres que se elevam para espíritos que não podem subir. Prisioneiros dos pombais. Espírito de gravidade que não sai do pó da terra. Homens-massa. Multidões sem rumos. Zumbis habitantes de pombais. Angústia desoladora de espaços. Anel de ferro dos presos à terra. Prisão! Prisão vitalícia na angústia desoladora de espaço. Do berço ao túmulo. Claustrofobia indolor. Arquitetura de perdição. Almas mortas. Na arquitetura de pombal não cabe a liberdade. Não cabe amor. Talvez sexo. Não cabe família, nem filhos. Homens sós. Formigas atomizadas. Horror! POR NIVALDO CORDEIRO