sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

ERRO 404

Na chamada de um post recente, intitulado “As mentiras de Yoani Sánchez em 2012”, Yohandry anunciou o propósito de “narrar as falácias desta mulher, uma traiçoeira criação midiática”, com a finalidade de esclarecer “meus colegas de todo o mundo”, “alertando quem ainda possa estar confuso”. Yohandry Fontana provavelmente não existe. O nome de guerra serve como assinatura de um blog oficial, que surgiu como reação ao de Yoani para reproduzir as sentenças de propaganda e os insultos políticos fabricados pelo regime castrista. O curioso, quase onírico, é que Cuba é um país virtualmente sem internet: o blogueiro inventado pelo poder escreve para “colegas” internautas “de todo o mundo”, mas não para os cubanos comuns residentes na ilha. O totalitarismo dos Castro subsiste num espaço-tempo anterior às redes sociais. O cenário é radicalmente diverso na China, onde um regime totalitário tenta provar que pode sobreviver à revolução da informação.


Quando visitou o país, o criador do Facebook, Marck Zuckerberg, foi saudado pelo banner viral “Bem-vindo à China, fundador do website Erro 404”, difundido pelos blogueiros chineses. Fruto da eficácia negativa do Grande Firewall da China (GFC), a mensagem “Erro 404” alerta que o servidor não encontrou o endereço solicitado, repete-se em escala descomunal nas telas de computadores e celulares do país. O Escudo Dourado, nome oficial do GFC, encomendado pelo Ministério da Segurança Pública, começou a operar em 2003. As ambições do projeto ultrapassam largamente a simples censura: trata-se de avançar rumo à implantação de uma gigantesca base de dados analítica de textos e imagens publicados pelos usuários da rede virtual com tecnologias que abrangem reconhecimento facial e de voz.

Totalitarismo é algo bem diferente de autoritarismo. O segundo ampara-se, exclusivamente, na força e se contenta em calar, prender ou eliminar opositores. O primeiro também se ampara na força, mas nutre a pretensão de persuadir a sociedade a acreditar no seu enredo sobre a História — ou seja, numa narrativa que o torna depositário de uma legitimidade transcedental. George Orwell explicou isso: “O Estado totalitário é, efetivamente, uma teocracia e sua casta dirigente, a fim de conservar sua posição, deve ser vista como infalível. Mas como, na prática, ninguém é infalível, torna-se frequentemente necessário rearranjar os eventos passados de modo a mostrar que este ou aquele erro não ocorreu ou que este ou aquele triunfo imaginário realmente aconteceu.” Eis o motivo pelo qual a política do totalitarismo demanda o controle sobre a linguagem empregada pelas pessoas. Não é trivial exercer tal controle na era da internet.

Os totalitarismos do século XX detinham o monopólio dos grandes meios de comunicação da época: o rádio, o cinema, a televisão. Os regimes de Stalin, Mussolini e Hitler tinham consciência do valor político das mídias de massa e empenharam-se no seu desenvolvimento tecnológico e no aprimoramento técnico e artístico das mensagens que difundiam. Contudo, as redes sociais da internet são intrinsecamente distintas das mídias eletrônicas tradicionais, pois todos os participantes podem operar como emissores de mensagens. Na China, o Twitter é proibido, mas serviços nacionais similares contam com mais de 200 milhões de usuários. Por meio deles, dezenas de milhares de microblogueiros formam a vanguarda da dissidência política, organizando protestos de rua e denunciando a corrupção oficial.

À sombra do “Erro 404”, desenvolve-se um infindável jogo de gato e rato entre o GFC e os internautas. Na esfera da tecnologia, o desafio de circundar a censura estimula a invenção de softwares de codificação e a criação de rotas alternativas para acesso a servidores bloqueados. Na esfera da linguagem, ilude-se o Grande Irmão pelo emprego do método da analogia e pelo uso em profusão de metáforas, alegorias, parábolas e termos homófonos. A ironia é uma companheira inseparável dos microblogueiros subversivos: segundo eles, sites e blogs não são “suprimidos”, mas “harmonizados”, numa referência à meta declarada do regime de produzir uma “Sociedade Socialista Harmoniosa”.

Ai Weiwei saltou a etapa da ironia, entregando-se ao sarcasmo. O artista plástico, consultor dos arquitetos que projetaram o estádio olímpico Ninho do Pássaro, tornou-se um dos mais notórios dissidentes chineses. Multado, encarcerado e espancado, ele não se “harmonizou”. Meses atrás, postou no Youtube um vídeo em que aparece dançando no “estilo Gangnam” e usando algemas. Antes disso, diante da instalação de 15 câmeras para o monitoramento policial de seus movimentos, conectou à internet a “weiweicam”, uma câmera que filma sem parar o cenário de seu quarto. “Acho que eles não sabem como lidar com alguém como eu e meio que desistiram de me gerenciar”, sugeriu em entrevista recente. O escárnio fere o totalitarismo ainda mais que a acusação racional ou a denúncia moral.

Na opinião de Weiwei, a democracia chegará à China na década de 2020. Entre os analistas ocidentais, vulgarizou-se o precário paralelo com a Coreia do Sul e Taiwan, que transitaram para a democracia no compasso da modernização econômica, da urbanização e da consolidação de uma classe média cosmopolita. De acordo com essa linha otimista de interpretação, a própria elite dirigente chinesa administrará uma transição política gradual, dissolvendo aos poucos os grilhões do sistema totalitário.

Tudo é possível. O certo é que não há precedentes adequados para orientar a análise. Entre as inúmeras singularidades históricas da China, a mais relevante encontra-se justamente na universalização das redes sociais ao abrigo de um Estado totalitário. O poder de Mao Tsetung não foi abalado pela maior crise de fome do século XX. Em contraste, o “Erro 404” tem o potencial de arrasar a fortaleza de seus sucessores.
Por: Demétrio Magnoli O Estadão

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

OS "CRIMES CONTRA AS GERAÇÕES FUTURAS"





É preciso ter muito cuidado com os intelectuais em geral, mas com os de esquerda em particular.

É sabido, por este exemplo, que a esquerda (intelectual) é contra a pena de morte em relação aos crimes de sangue, incluindo os assassinos em série; mas, por outro lado, é a favor da pena de morte para as pessoas que negam o aquecimento global. E o mais interessante é o conceito escatológico de “crimes contra as gerações futuras” que justifica a pena de morte para os negacionistas do apocalipse “aquecimentista”.

Para a esquerda, a noção de “probabilidade” é irrelevante. A esquerda tem certezas. Trata-se de uma fé imanente, porque só a fé tem certezas. Por exemplo, neste texto de Galopim de Carvalho:

“Posteriormente a esta crise de frio, a temperatura do planeta subiu para os níveis atuais e vai continuar a subir, agora potenciada pelas emissões antropogênicas do dióxido de carbono e dos outros gases com efeito de estufa.”

Este “vai continuar a subir”, do Galopim, é uma certeza, e não uma probabilidade. É uma fé. Ou melhor: é umafézada. Se fosse uma probabilidade, o “vai continuar a subir” seria objeto de discussão científica; mas tratando-se de uma certeza, transforma-se em dogma que pode justificar, para alguns, a pena de morte para os hereges. Não se trata de ciência: em vez disso, é uma espécie de religião.

O mais extraordinário é que o Galopim constrói, em primeiro lugar, um discurso acerca das variações térmicas do planeta ao longo de centenas de milhares de anos — ou seja, ele parte de uma certeza acerca do passado —, reconhecendo que as temperaturas globais estão sujeitas a mudanças que não dependem do homem. Mas nem reconhecendo que as mudanças climáticas foram, no passado, imprevisíveis e independentes do homem, ele não deixa de ter a certeza de que a temperatura “vai continuar a subir” por culpa do homem. Trata-se de um novo tipo de “pecado original” que fundamenta uma nova religião imanente e escatológica.

Em ciência, mesmo que os dados do passado — as estatísticas — estejam corretos, em princípio nada nos garante que exista uma probabilidade de 100% — a tal “certeza” — de que os mesmos fenômenos verificados pela estatística ocorrerão no futuro. Embora o universo tenha sido concebido com grande estabilidade física, a ponto de ser possível a construção de leis (da natureza) por parte da ciência, essa estabilidade física não é total nem absoluta, e por isso nada nos garante que todos os dados da natureza já tenham sido descobertos pelo Homem, por um lado, e por outro lado, nada nos garante a 100% que as próprias leis da ciência não tenham que ser alteradas no futuro.

Segundo cálculos efetuados por eminentes matemáticos, a probabilidade de o planeta Terra deixar de orbitar o Sol e passar a orbitar uma outra estrela do universo não é de zero. Ou seja, não existe a certeza de que o planeta Terra não possa ser sujeito a um salto quântico e passe para a órbita da estrela Sírius, por exemplo. E no entanto, Galopim tem a certeza de que “a temperatura do planeta vai continuar a subir por culpa do Homem”, enquanto outros intelectuais concebem os “crimes contra as gerações futuras” que justificam a pena de morte.

Por: Orlando Braga

A VITÓRIA DOS DESPREPARADOS

Enquanto os investimentos desabam e o Produto Interno Bruto (PIB) rateia, continuam a aparecer notícias sobre o desempenho problemático das concessões de infraestrutura aprovadas desde 2007. A infraestrutura de transportes não se expande, deixando de ampliar a capacidade de produção interna e fazer a produtividade geral crescer. E a conta vai para os usuários e para o crescimento econômico futuro.


De acordo com o ex-ministro Delfim Netto, um interlocutor da presidente Dilma Rousseff, as intenções do governo parecem ser as melhores possíveis. Imagino mesmo que, nas reflexões sobre o travesseiro, a presidente deseja que se cobrem as tarifas mais baixas possíveis e que as concessões sejam implementadas pelas melhores empresas da praça. Mas o fato é que em todas as concessões rodoviárias de 2007 para cá, em que houve mudança do modelo pré-Lula, o desempenho está abaixo da crítica.

Imaginemos uma concessão rodoviária em cujo leilão só se candidatem concessionários preparados ou não oportunistas. Diante do edital, esses candidatos prepararão propostas da melhor qualidade e estabelecerão a tarifa mínima possível em função dos parâmetros do negócio e das oportunidades alternativas disponíveis no Brasil e no mundo. É assim que o sistema de mercado funciona: vence o que oferecer a menor tarifa possível, de acordo com as hipóteses de cada um. Se o governo fincar pé na menor tarifa imaginável – algo abaixo do razoável, como vem acontecendo – o resultado é simplesmente o leilão fracassar, sem qualquer vencedor. O mesmo raciocínio pode ser feito substituindo tarifa por taxa de retorno, já que uma implica a outra. Nesse caso, o governo teria de repensar seu modelo ou enfrentar a opinião pública, que clama por mudanças relevantes na infraestrutura.Tudo bem que agora se façam leilões pela menor tarifa, em vez da outorga máxima. Mas existe um defeito fundamental no atual modelo, que está na raiz dos resultados ruins. Trata-se da busca não da menor tarifa possível, mas da menor tarifa imaginável nos negócios – ou da menor taxa de retorno imaginável. A presidente pode estar pensando na primeira mas, na prática, a ação governamental busca a segunda. E há uma distância enorme entre as duas posições. Essa exigência está condicionando todo o processo de implementação das concessões e dificilmente produzirá uma concessão que se considere razoável.

A presença de concorrentes despreparados – para não dizer oportunistas – pode alterar esse quadro, pois estes podem aceitar taxas de retorno (tarifas) irrealistas – e assim vencer os demais -, na expectativa de obter algum “refresco” mais adiante sob alguma forma, como o mero descumprimento de compromissos de investimento. No final, o serviço fica precário, mas o governo, que sempre teme o desgaste político de anunciar o fracasso, pode apregoar que conseguiu aprovar uma concessão. Só que garantia de resultado para valer, com satisfação máxima do usuário, nem pensar.

Imaginando um edital bem feito de uma licitação, há fases que, idealmente, devem ser transpostas antes do leilão em si. A primeira é a pré-qualificação, para separar o joio do trigo. A segunda é a proposta técnica e a terceira é o plano de negócios, que às vezes são chamadas conjuntamente de plano de negócios. É aqui que os proponentes explicam direitinho como vão por em prática aquilo que o governo especificou como missão no respectivo edital. Só aqui pode se fazer um julgamento adequado sobre se os pré-selecionados entenderam bem a tarefa a ser executada, e se estão realmente em condições de implementá-la.

A última tarefa é o leilão em si. Ainda que pareça se justificar pela maior agilidade que imprime ao processo, a prática de “inversão de fases”, que vem sendo adotada desde algum tempo e coloca a última fase à frente das demais, se afigura como mais uma prática destinada a facilitar a atuação dos despreparados.

Se uma proposta ganha pelo menor preço porque ela não incluiu elementos importantes daquilo que o governo quer e assim reduziu seus custos, esta deve ser impugnada administrativamente. Só que, mais uma vez, o governo teme a reação dos órgãos de controle à rejeição da proposta de menor preço. Se o interesse do usuário e os ganhos macroeconômicos são prioritários, é obviamente preferível um processo mais demorado, mas que chegue onde se quer, e essa é a arma com que o Executivo deve enfrentar os demais poderes.

É chocante, assim, o anúncio de que, a partir de agora, além da inversão de fases, os planos de negócios não serão mais exigidos dos concorrentes (!?), nem mesmo para ganhar o leilão, para evitar contestações judiciais. Trata-se da crônica de um desastre anunciado. Com tantos equívocos, ou as empresas preparadas passam a adotar as manhas e artimanhas dos oportunistas, como induz o governo ao alterar as regras, ou então assistirão passivamente à vitória dos concorrentes despreparados.

Quem perde sempre é o usuário, que vai pagar pela concessão e não vai levar. E o governo obtém uma vitória de pirro. Baixa o preço, mas não consegue levar transformações ou qualquer melhoria à rodovia e, mais cedo ou mais tarde, cairá na armadilha de ter que assinar aditivos para “reequilibrar” um contrato que sequer tinha a salvaguarda de um plano de negócios. Por: Raul Velloso

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

OBCECADOS PELA MEGALOMANIA

A seguinte entrevista com Hans-Hermann Hoppe foi publicada no semanário alemão Junge Freiheit no dia 2 de novembro de 2012, e foi conduzida por Moritz Schwarz.


Professor Hoppe, em sua coleção de ensaios 'Der Wettbewerb der Gauner'("A Competição dos Escroques"), o senhor escreve que '99% dos cidadãos, caso perguntados se o estado seria necessário, responderiam que sim'. Confesso que eu também! Por que estou errado?

Todos nós, desde a infância, fomos moldados pelo estado ou por instituições licenciadas pelo estado — pré-escola, ensino fundamental, ensino médio e universidade, todas elas com currículos estipulados pelo estado. Fomos condicionados desde crianças a ver o estado como uma instituição necessária e salvadora. Sendo assim, esse resultado por você citado não deveria ser nada surpreendente. 

No entanto, se eu lhe perguntasse se você julga ser indispensável haver uma instituição que possua o poder supremo de decisão sobre todo e qualquer conflito, inclusive aqueles em que ela também está envolvida, você certamente diria que não — a menos, é claro, que você esperasse estar no comando dessa instituição.

Hum ... correto.

É claro. Porque tão logo você entende que tal instituição não irá se limitar a apenas mediar conflitos, uma vez que ela também pode criá-los, então você será também capaz de perceber que ela logicamente sempre irá resolver esses conflitos em benefício próprio. Tendo entendido isso, eu, de minha parte, garanto passaria a viver receoso pela segurança de minha vida e de minha propriedade.

No entanto, é exatamente isso, este poder supremo sobre decisões judiciais, que é a característica específicadessa instituição chamada estado. O estado detém o monopólio supremo da aplicação da lei e da justiça, e é inevitável que ele utilize esse monopólio para proveito próprio.

Correto, mas, por outro lado, o estado se baseia em um contrato social, o qual fornece ao indivíduo proteção e espaço para suas realizações pessoais — coisas que, sem o estado, ele não teria. Sem o estado, tudo seria uma contínua batalha contínua e violenta de todos contra todos.

Não, o estado é qualquer coisa, menos o resultado de um contrato! Nenhum indivíduo dotado de uma mínima quantidade de bom senso iria concordar com tal contrato. (Ver aqui e aqui). Tenho vários contratos em minha pasta de arquivos, mas não há nenhum igual a esse. O estado é resultado da força agressiva e da subjugação. Ele surgiu, cresceu e se expandiu sem nenhuma fundação contratual, exatamente como uma quadrilha mafiosa que prática extorsão em troca de "proteção". 

E, no que diz respeito à "batalha contínua e violenta de todos contra todos", isso é um mito. É claro que, em "seu" território, um escroque extorsionário protege suas vítimas da agressão de outros escroques; mas ele faz isso apenas para que ele próprio possa conduzir sua extorsão mais lucrativamente. Outra coisa: são os estados que são os responsáveis pelas mortes de centenas de milhões de pessoas, além de toda a incomensurável destruição ocorrida apenas no século XX. Comparadas a isso, as vítimas de crimes privados são praticamente irrisórias. 

E você realmente acredita que os conflitos entre os habitantes da região da tríplice fronteira [França, Alemanha e Suíça] perto da Basileia, que estão convivendo em uma condição de anarquia (não há um supraestado governando a interação diária dos cidadãos destes três países), são mais numerosos do que os conflitos entre os habitantes de Dortmund ou Düsseldorf, que são cidadãos de um mesmo estado [Alemanha]? Não que eu saiba.

Por que, na sua visão, a democracia é apenas uma "competição de escroques"?

Todas as formas mais desenvolvidas de religião proíbem cobiçar a propriedade alheia. Esta proibição é a base de todo e qualquer processo de cooperação social. Em uma democracia, por outro lado, qualquer pessoa pode cobiçar a (e de fato se apropriar da) propriedade de terceiros, agindo de acordo com este seu desejo — a única precondição é que ela consiga acesso aos corredores do poder. 

Assim, sob condições democráticas, todas as pessoas se tornam uma ameaça em potencial. Qualquer um pode expressar abertamente seu desejo pela propriedade alheia. O que antes era considerado imoral e era adequadamente suprimido, agora passa a ser considerado um sentimento legítimo. Todos agora podem cobiçar abertamente a propriedade de outros em nome da democracia; e todos podem agir de acordo com esse desejo pela propriedade alheia, desde que ele já tenha conseguido entrar no governo. Assim, em uma democracia, qualquer um pode legalmente se tornar uma ameaça.

O que tende a acontecer é que aqueles membros da sociedade que tentarão o acesso aos corredores do poder e ascender às mais altas posições na hierarquia política são justamente aqueles que não possuem inibições morais para se apropriar indevidamente da propriedade de terceiros. Consequentemente, sob condições democráticas, o popular — embora imoral e anti-social — desejo pela propriedade de outro homem é sistematicamente fortalecido. Toda e qualquer exigência passa a ser legítima, desde que seja proclamada publicamente. Em nome da "liberdade de expressão", todos são livres para exigir a tomada e a consequente redistribuição da propriedade alheia. Tudo pode ser dito e reivindicado, e tudo passa a ser de todos. Nem mesmo o mais aparentemente seguro direito de propriedade está isento das demandas redistributivas. 

Pior: em decorrência da existência de eleições em massa, aqueles membros da sociedade com pouca ou nenhuma inibição em relação ao confisco da propriedade de terceiros — ou seja, amorais vulgares que possuem enorme talento em agregar uma turba de seguidores adeptos de demandas populares moralmente desinibidas e mutuamente incompatíveis (demagogos eficientes) — terão as maiores chances de entrar no aparato governamental e ascender até o topo da linha de comando. Daí, uma situação naturalmente ruim se torna ainda pior.

Ao dizer que políticos são parasitas preguiçosos o senhor não teme ser repreendido por estar reclamando em um nível semelhante ao utilizado pelo tablóide Bild?

E daí? Até o início do século XX, era difícil apontar um importante pensador político que não se referisse desdenhosamente à democracia. A palavra-chave utilizada para descrever a democracia era "multidão desorganizada", ou "oclocracia", ou mesmo "governo da turba".

As críticas mais populistas que fazem hoje à democracia, desde aquelas contidas na Bild até as do motorista de táxi, são boas, mas não são fundamentadas o bastante. Tampouco vão tão longe quanto deveriam. É claro que políticos são parasitas: eles vivem do dinheiro que extraem das outras pessoas sob a ameaça de violência — o que é chamado de "tributação". Mas, infelizmente, os políticos não são preguiçosos. Seria ótimo se tudo o que eles fizessem fosse farrear e esbanjar o dinheiro que pilharam das pessoas produtivas. Mas o que ocorre é justamente o contrário: eles são megalomaníacos obsessivos e obcecados em fazer tudo aquilo que consideram ser o certo — o que se resume a impor inúmeras dificuldades para suas vítimas (nós, os genuínos trabalhadores) por meio da criação de milhares de leis e regulamentações.

A democracia é apenas uma das possíveis variedades de organização do estado. Há alguma outra forma de existência do estado que seria mais aceitável para o senhor?

Em um estado monarquista, todos os indivíduos sabem quem é o soberano e quem são os súditos, de modo que tenderá a haver resistência contra qualquer tentativa de aumento do poder estatal. Em um estado democrático, essa distinção se torna indistinta, o que facilita em muito a expansão do poder do estado — quem está fora do aparato estatal hoje poderá entrar nele amanhã.

Um momento: é exatamente para isso que existem tribunais, leis e constituições: para limitar e controlar o estado — tanto o executivo quando o legislativo.

A máfia também possui sua divisão de poderes. A máfia possui seu "executivo", seu "legislativo" e seu "judiciário". É só você assistir novamente a "O Poderoso Chefão" para ver como estes três poderes funcionavam sempre em prol da própria expansão organizada do "empreendimento".

O que o senhor acha dos novos movimentos de ataque ao estado que têm surgido na internet, como os do movimento "Occupy" ou os "Piratas", que demandam transparência e participação mas tudo sem condenar diretamente o estado e a democracia em sua totalidade?

O movimento 'Occupy' é formado por ignorantes econômicos incapazes de entender que todos os truques sujos feitos pelos bancos, os quais eles corretamente deploram, só são possíveis porque existe um Banco Central capaz de imprimir dinheiro para socorrê-los e que, por isso, atua como um "emprestador de última instância"; e que a atual crise financeira não é, portanto, uma crise do capitalismo, mas sim uma crise do intervencionismo e do estatismo. O Banco Central é uma agência reguladora que existe para proteger o sistema bancário, blindá-lo de qualquer tipo de concorrência ou imprevisto, e socorrê-lo sempre que fizer operações insensatas. O movimento 'Occupy' em momento algum atacou isso, que é a raiz de toda a crise.

Já os 'Piratas', com sua demanda por uma renda básica incondicional, já estão bem avançados no inexorável destino de se tornar mais um partido que defende "cerveja de graça para todos". Eles possuem apenas um ponto que pode torná-los muito populares, bem como garantir-lhes a inimizade de inimigos poderosos, como as indústrias cinematográfica, musical e farmacêutica: a crítica aos 'direitos de propriedade intelectual'. Porém, mesmo neste quesito, eles são medrosos e ignorantes. A única coisa que eles têm de fazer é ir ao Google e digitar Stephan Kinsella. E então eles entenderiam que a Propriedade Intelectual não tem nada a ver com propriedade, mas sim com privilégios concedidos pelo estado. 

A PI permite que o inventor (I) ou o 'primeiro criador' de um produto — um texto, uma figura, uma musica ou qualquer outra coisa — proíba todas as outras pessoas de fazerem uma réplica deste produto; ou, no mínimo, que ele cobre uma licença de uso, mesmo que o replicador (R) esteja utilizando exclusivamente a sua propria propriedade (e não se aposse de nenhuma propriedade de I). Desta forma, I é elevado à condição de co-proprietário da propriedade de R. 

Ou seja, direitos de Propriedade Intelectual não são propriedade, mas sim um ataque à propriedade alheia — e, logo, completamente ilegítimos. Ideias — receitas, fórmulas, declarações, argumentações, algoritmos, teoremas, melodias, padrões, ritmos, imagens etc. — certamente são bens (na medida em que são bons e úteis), mas não são bens escassos. Tão logo as ideias são formuladas e enunciadas, elas se tornam bens não escassos, inexauríveis. Suponha que eu assobie uma melodia ou escreva um poema, e você ouça a melodia ou leia o poema e, ato contínuo, os reproduza ou copie. Ao fazer isso, você não expropriou absolutamente nada de mim. Eu posso assobiar e escrever como antes. Com efeito, o mundo todo pode copiar de mim e, ainda assim, nada me foi tomado. (Se eu não quiser que ninguém copie minhas ideias, tudo que eu tenho de fazer é mantê-las par mim mesmo, sem jamais expressá-las.)

Agora, imagine que eu realmente possua um direito de propriedade sobre minha melodia de tal modo que eu possa proibir você de copiá-la ou até mesmo exigir um royalty de você caso o faça. Primeiro: isso não implica, por sua vez, que eu também tenha de pagar royalties para a pessoa (ou para seus herdeiros) que inventou o assobio e a escrita? Mais ainda: para a pessoa (ou seus herdeiros) que inventou a linguagem e a criação de sons? Quão absurdo é isso?

Segundo: ao impedir que você assobie minha melodia ou recite meu poema, ou ao obrigá-lo a pagar caso faça isso, estou na realidade me transformando em seu proprietário (parcial): proprietário parcial de seu corpo, de suas cordas vocais, de seu papel, de seu lápis etc. porque você não utilizou nada exceto a sua própria propriedade quando me copiou. Se você não mais pode me copiar, então isso significa que eu, o dono da propriedade intelectual, expropriei de você a sua "real" propriedade. Donde se conclui: direitos de propriedade intelectual e direitos de propriedade real são incompatíveis, e a defesa da propriedade intelectual deve ser vista como um dos mais perigosos ataques à ideia de propriedade "real" (sobre bens escassos).

Em "A Competição dos Escroques", o senhor esquematiza um modelo alternativo baseado em uma "sociedade de leis privadas". Como ela funciona?

O conceito básico é simples. A ideia de haver uma agência que seja protetora da propriedade e mantenedora da lei, e, ao mesmo tempo, seja monopolista dessas atividades, é uma contradição. Este monopolista, seja ele um rei ou um presidente eleito, será sempre um 'expropriador protetor da propriedade' e um 'infrator mantenedor da lei' — e sempre irá caracterizar todas as suas ações como visando ao "interesse público".

Para garantir a proteção da propriedade e salvaguardar a lei, é necessário que haja livre concorrência também na área da lei. Outras instituições de fora do estado devem poder ofertar serviços de proteção à propriedade e serviços judiciais. O estado, desta forma, passaria a estar também sujeito às leis privadas, em pé de igualdade com todos os outros cidadãos. Ele não mais poderia sair unilateralmente elevando impostos ou promulgando leis. Seus funcionários teriam de ganhar sua renda da mesma maneira que os cidadãos comuns o fazem: produzindo e ofertando algo que seja voluntariamente demandado por consumidores; bens e serviços que sejam atraentes o suficiente para fazer com que alguns cidadãos estejam dispostos a pagar por eles.

Isso não levaria rapidamente a uma guerra entre essas instituições 'ofertantes'?

Guerras e agressões são atividades extremamente custosas. Estados fazem guerras porque podem, por meio de impostos e da criação de dinheiro, repassar os custos para todos os cidadãos que não estão diretamente envolvidos no esforço de guerra. Em contrapartida, para empresas cujo financiamento é voluntariamente obtido no mercado, fazer uma guerra seria suicídio econômico. 

Estando também sujeito às leis privadas, o estado terá, assim como todos os outros fornecedores de serviços de segurança, de oferecer aos seus clientes contratos que somente poderão ser alterados por meio de um acordo mútuo, e os quais determinarão especificamente o que deverá ser feito em caso de um conflito entre ele próprio e seus clientes, ou entre ele próprio e os clientes de outros fornecedores de serviços de segurança concorrentes. 

E para isso haverá apenas uma solução aceitável por todos: que nestes tipos de conflitos, não o estado mas sim uma entidade externa e independente dê o veredito — arbitradores e juízes que, por sua vez, estarão concorrendo entre si, e cujo ativo mais importante é sua reputação como mantenedores da lei, e cujas ações e julgamentos podem ser contestados e, se necessário, revisados, assim como ocorre com qualquer outra pessoa.

Quem deveria ser esta entidade externa e independente? E com quais instrumentos de poder ela asseguraria os interesses de um cidadão comum contra seu sócio contratual — a agência privada, a qual, obviamente, é muito mais poderosa?

Nos conflitos locais, em uma pequena cidade ou mesmo em um bairro, estas entidades muito provavelmente serão aquelas pessoas universalmente respeitadas, conhecidas como os "aristocratas naturais" ou mesmo as "elites naturais". Ou então organizações arbitradoras e cortes de apelação, cujos serviços seguradoras e segurados concordaram contratualmente em utilizar desde o início. Aquele, portanto, que não aceitar o veredito do julgamento não apenas estará inadimplente perante a lei, como também irá se tornar um pária no mundo dos negócios. Ninguém irá querer se envolver com ele, e ele imediatamente perderá todos os seus clientes e parceiros comerciais. Isso não é nada utópico. Ao contrário: essa já é a prática usual nas transações internacionais — anárquicas — que ocorrem atualmente.

Logo, eu devolvo a pergunta: como irá o cidadão comum assegurar seus interesses perante um estado monopolista e tributador? Este, sim, é muito mais poderoso que o indivíduo — e é sempre o dono da palavra final!

O senhor compreende o contínuo ceticismo com relação à sua proposição?

É claro que sim, uma vez que a maioria das pessoas nunca ouviu falar destas ideias. Muito menos já se deram ao trabalho de pensar seriamente sobre elas. Apenas não tenho simpatias por aquelas que já saem gritando histericamente quando ouvem essas ideias e imediatamente exigem a condenação de seus proponentes sem que tenham o mais mínimo conhecimento de economia e de filosofia política.

É muito improvável que uma maioria dos cidadãos irá algum dia apoiar um modelo tão estranho e desconhecido. Mas quais partes deles podem ser adotadas a fim de alcançarmos pelo menos alguns aperfeiçoamentos parciais em nosso atual sistema, sem que seja necessário um abandono completo do estado e da democracia?

Há uma solução interina. Ela se chama secessão e descentralização. Estados pequenos têm inevitavelmente de ser libertários — caso contrário as pessoas trabalhadoras e produtivas irão desertar. O desejável, portanto, é termos um mundo formado por milhares de Liechtensteins, Cingapuras e Hong Kongs. Por outro lado, um governo central europeu — e, pior ainda, um governo mundial — com uma política "harmonizada" de impostos e regulamentações representa a mais séria e grave ameaça à liberdade.

Para isso também o senhor provavelmente não terá uma maioria. Sendo assim, como o estado e a democracia irão evoluir no futuro? Onde finalmente iremos terminar?

O modelo assistencialista ocidental, também chamado de 'socialismo light', irá entrar em colapso assim como aconteceu com o socialismo 'clássico' — é claro que não sou capaz de dizer quando exatamente isso acontecerá, se daqui a cinco, dez ou quinze anos. As palavras-chave são: falência do estado, hiperinflação, reforma monetária e violentos conflitos distributivos. E disso surgirá ou um apelo por um 'homem forte', um ditador, ou — torçamos — enormes e intensos movimentos secessionistas.

Hans-Hermann Hoppe é um membro sênior do Ludwig von Mises Institute, fundador e presidente da Property and Freedom Society e co-editor do periódico Review of Austrian Economics. Ele recebeu seu Ph.D e fez seu pós-doutorado na Goethe University em Frankfurt, Alemanha. Ele é o autor, entre outros trabalhos, de Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo eThe Economics and Ethics of Private Property.

A SOCIEDADE NÃO PRECISA DE DIRIGENTES


Desde que existem, os governos sempre se ocuparam basicamente de uma atividade: encontrar novas maneiras de intervir nas relações humanas, inventando novas formas de gerenciar a sociedade e suas interações sociais e econômicas. Quando não estão fazendo isso, as legislaturas se ocupam de tentar reformar os sistemas que eles próprios criaram no passado.

Apenas pense na saúde pública, na educação pública, em toda a fraude criada pela Previdência Social, na injustiça da tributação, na infindável incapacidade de gerenciar a moeda e as finanças públicas, além de todas as outras áreas da sociedade e da economia em que o governo se arvora a responsabilidade de gerir, e responda: por que tais áreas são uma bagunça?

Políticas públicas devem ser abolidas

Alguns liberais creem que a liberdade que desejam pode ser imposta da mesma forma que os sistemas socialistas antigos eram impostos sobre as sociedades. A ideia é a de que caso sejam eleitos um Congresso e um presidente iniciados na teoria libertária, eles poderiam corrigir tudo o que está errado em um piscar de olhos. Assim, seria necessário apenas eleger políticos versados na Escola de Chicago e um presidente treinado nos méritos dos incentivos de mercado, e tudo começaria a se resolver.

Porém, infelizmente, não é simples assim; mais ainda: se de fato fossemos capazes de fazer isso, estaríamos apenas substituindo uma forma de planejamento central por outra. A genuína liberdade não advém de uma dada forma de gerenciamento governamental. A genuína liberdade significa ausência de gerenciamento governamental. 

Todas as reformas em todas as áreas da política, da economia e da sociedade deveriam se dar em apenas uma direção: mais liberdade para os indivíduos e menos poder para o governo. Indivíduos devem exercer seu direito de usufruir a maior liberdade possível, e o governo, o dever de exercer o menor poder possível.

Sim, essa é a posição que qualifica um indivíduo como libertário. Porém, essa palavra não possui o poder explanatório que já teve em outros tempos. Há uma tendência de ver o libertarianismo como uma espécie de política pública, ou apenas mais um emaranhado de propostas políticas, que enfatiza a importância da livre iniciativa e das liberdades pessoais em oposição à arregimentação burocrática.

Essa perspectiva, porém, é totalmente errada, e possui perigosas consequências. Imagine se Moisés tivesse procurado conselhos de burocratas governamentais e especialistas em políticas públicas quando estava em busca de meios para libertar o povo judeu da escravidão egípcia. Eles teriam lhe dito que marchar até o Faraó para pedir a ele que "liberte o meu povo" seria uma atitude altamente imprudente e inútil. A mídia não iria gostar e ele estaria exigindo muita coisa muito rapidamente. O que os israelitas deveriam fazer seria utilizar o sistema judicial. Fora isso, o governo deveria conceder-lhes incentivos de mercado, mais escolhas por meio de vouchers e subsídios, e uma maior participação na estrutura de regulamentações impostas pelo Faraó. Ademais, senhor Moisés, criticar o sistema é antipatriótico e extremista.

Em vez disso, Moisés adotou uma posição de princípios, e exigiu que seu povo fosse imediatamente libertado da opressão de todos os controles políticos — uma completa separação entre governo e a vida dos israelitas. Esse é o meu tipo de libertarianismo. O libertarianismo não é uma agenda política detalhando um melhor método de governança. Antes, trata-se da moderna incorporação de uma visão radical e singular que está acima de todas as ideologias políticas existentes.

O libertarianismo não propõe nenhum plano para reorganizar o governo; ele requer que planos desse tipo sejam abandonados. Ele não propõe que incentivos de mercado sejam empregados na formulação de políticas públicas; ele deseja uma sociedade na qual não haja políticas públicas no sentido em que tal termo é normalmente conhecido.

O verdadeiro liberalismo

Se essa ideia soa radical e até mesmo maluca hoje, ela era comum entre os pensadores dos séculos XVII e XVIII, dentre eles John Locke e Thomas Jefferson. A marca distintiva dessa teoria política é a de que a liberdade é um direito natural. Ela antecede a política e antecede o estado. O direito natural à liberdade não precisa ser concedido ou ganhado ou outorgado. Ele deve apenas ser reconhecido como um fato. É algo que existe naturalmente na ausência de um esforço sistemático para aboli-lo. O papel do governo não é nem o de conceder direitos, nem o de oferecer a eles algum tipo de permissão para existir, mas simplesmente se restringir de violá-los.

A tradição liberal do século XVIII em diante percebeu que era o governo a entidade que praticava os mais sistemáticos esforços para roubar as pessoas de seus direitos naturais — o direito à vida, à liberdade e à propriedade —, e é por isso que um estado deve existir apenas se tiver a expressa permissão de todos os membros de uma sociedade, estando limitado a realizar apenas aquelas tarefas que toda a população julgar essenciais. Era com relação a essa agenda que todo o movimento liberal estava comprometido.

Os liberais não estavam lutando para que certos direitos fossem dados ou impostos sobre as pessoas. Não se tratava de uma forma positiva de liberdade, a ser imposta sobre a sociedade. Tratava-se de algo não positivo, mas sim negativo, no sentido de que delineava aquilo que não deveria ser feito. Os liberais queriam acabar com a opressão, arrebentar os grilhões, livrar-se do jugo do estado, libertar as pessoas. O objetivo era acabar com o domínio do estado e iniciar uma governança feita pelas pessoas, as quais eram as únicas que deveriam controlar suas associações privadas e voluntárias. A sociedade não precisa de qualquer tipo de gerenciamento social. A sociedade se mantém coesa não pelo estado, mas sim pelas ações diárias e cooperativas de seus membros.

A nação não precisa de um ditador, nem de um presidente, e nem de atos de boa vontade para impor as bênçãos da liberdade. Essas bênçãos advêm da própria liberdade em si, a qual, como escreveu Benjamin Tucker, é a mãe da ordem, e não sua filha. 

Um bom exemplo do princípio da auto-organização — isto é, a capacidade das pessoas de se organizarem voluntariamente por meio do comércio e do respeito mútuo — pode ser visto nas modernas organizações tecnológicas. A internet é amplamente uma rede que se organiza sozinha, sem nenhum gerenciamento. As comunidades comerciais que se formaram na rede [Amazon, eBay, Mercado Livre etc.] já são maiores e mais vastas do que muitas nações já o foram. São comunidades formadas por indivíduos que se organizam voluntariamente e autonomamente, interagindo sob regras, fiscalizações e imposições amplamente privados. As inovações disponíveis em nossa era são tão espantosas que vivemos em uma época considerada revolucionária. E é verdade.

A vida moderna se tornou tão imbuída dessas pequenas esferas de administração — esferas de administração nascidas da liberdade —, que ela se assemelha em muitos aspectos a comunidades sociais anárquicas. Todas as grandes instituições de nossa época — desde grandes e inovadoras empresas tecnológicas, passando por redes varejistas até enormes organizações benevolentes internacionais — são organizadas na base do voluntarismo e do comércio. Elas não foram criadas pelo estado e não são gerenciadas em suas operações diárias pelo estado.

Um louvor à anarquia ordenada

Isso nos transmite uma lição e um modelo a ser seguido. Por que não permitir que esse bem sucedido modelo de liberdade e ordem seja a base de toda a sociedade? Por que não expandir tudo aquilo que funciona e eliminar tudo aquilo que não funciona? Tudo o que precisaria ser feito seria remover o governo do cenário.

Nem é preciso ressaltar que tal ideia não é amplamente aceita. Qualquer indivíduo que habita os quadros da burocracia estatal, de qualquer país, acredita que é o governo quem, de alguma forma, mantém a sociedade coesa, quem a faz funcionar, quem inspira grandeza, quem torna a sociedade justa e pacífica, e quem permite a liberdade e a prosperidade decretando e implantando toda uma cornucópia de leis e políticas.

Tal pensamento advém diretamente do antigo mundo dos faraós e imperadores romanos, em que os direitos de uma pessoa eram definidos e ditados pelo estado, o qual era visto como a expressão orgânica das vontades da comunidade, incorporadas na sua classe de líderes. Não havia fronteiras claras entre indivíduos e a sociedade, o estado e a religião. Todos eram vistos como parte da mesma unidade orgânica; daquela mesma coisa amorfa chamada ordem civil.

E foi justamente essa visão que passou a ser rejeitada pelo ideário cristão que afirmava que o estado não era o senhor da alma do indivíduo — a qual possui valor infinito —, e não podia se pretender o dono da consciência de todos. Mil anos depois, começamos a ver esse princípio sendo expandido. O estado já não era mais visto como o senhor nem da propriedade e nem da vida dos indivíduos. Quinhentos anos mais tarde, vimos o nascimento da ciência econômica e a descoberta dos princípios do comércio — através da obra dos escolásticos espanhóis e portugueses —, além da miraculosa constatação de que as leis econômicas funcionam independentemente do governo.

Tão logo a cultura ideológica começou a absorver a lição do quão desnecessário era o estado para o funcionamento da sociedade — uma lição que claramente, e atualmente mais do que nunca, deve ser reaprendida a cada geração —, a revolução liberal não mais podia ser contida. Déspotas caíram, o livre comércio reinou e as sociedades cresceram e se tornaram mais ricas, pacíficas e livres.

É natural que as pessoas que trabalham no governo e para o governo imaginem que, sem seus esforços, haveria a total calamidade. Porém, essa atitude é onipresente na política atual. Praticamente todos os lados do debate político querem utilizar o governo para impor sua visão de como a sociedade deve funcionar.

Governos não podem ser refreados

A pergunta é constante: qual emenda constitucional eu defenderia para pôr em prática a agenda misesiana? Você defenderia uma lei que proibisse impostos de serem aumentados acima de um certo nível? Uma lei impondo o livre comércio? Uma lei garantindo a liberdade de contratos?

No entanto, a resposta seria uma outra pergunta: por que deveríamos crer que novas leis e emendas funcionariam? O problema com leis e emendas é que elas pressupõem, paradoxalmente, um governo grande e poderoso o suficiente para implantá-las e fiscalizá-las. Mais ainda: um governo que está mais interessado no bem dos indivíduos do que em seu próprio bem. Afinal, leis e emendas nada mais são do que um mandato para o governo intervir, e não uma restrição sobre sua capacidade de intervir. Por que acreditar que "desta vez vai funcionar para o bem"?

Não necessitamos que o governo faça mais coisas, mas sim menos, cada vez menos, até o ponto em que a genuína liberdade possa triunfar. A única coisa positiva que um governo pode fazer é definhar permanentemente até finalmente deixar que a sociedade prospere, cresça e se desenvolva por conta própria. 

Ou seja, um governo não deve e nem pode impor a liberdade; ao contrário, ele deve apenas permitir que a liberdade continue existindo, cresça e se torne cada vez mais robusta perante todas as tentativas de transgressão e usurpação despóticas. Tal ideia, prevalecente no passado, encontra-se hoje totalmente perdida, e, como resultado, todos estão completamente confusos quanto ao papel do estado, o qual passou a ser visto por muitos como possuidor do toque de Midas, a única entidade capaz de impor e garantir a liberdade e o bem-estar de todos.

Esquecida, portanto, ficou a ideia de que a liberdade não deve ser imposta, mas sim apenas ter sua ocorrência permitida, sendo desenvolvida naturalmente desde o âmago da sociedade.

O fato é que, hoje, as pessoas nutrem um profundo temor quanto às consequências de apenas deixar as coisas correrem por si sós — laissez faire, na antiga frase francesa. A esquerda diz que, sob a genuína liberdade, as crianças, os idosos e os pobres sofreriam abusos, negligências, discriminação e privações. Já a direita diz que as pessoas cairiam no abismo da imoralidade, permitindo que movimentos revolucionários dominassem a sociedade. Economistas dizem que o colapso financeiro seria inevitável (mas não explicam por que ele de fato foi inevitável sob a tutela do estado, como está ocorrendo atualmente); ambientalistas afirmam que haveria uma nova era de insuportáveis mudanças climáticas, ao passo que especialistas em políticas públicas de todos os tipos evocam falhas de mercado de todos os tipos, tamanhos e formas.

Sim, várias pessoas continuam utilizando a retórica da liberdade. Políticos e legisladores aplaudem o termo e juram fidelidade à ideia. Porém, quantos hoje de fato acreditam nesse essencial postulado da antiga revolução liberal, de que a sociedade pode se gerenciar a si própria, sem um planejamento central, com seus éditos e regulações? Muito poucos. Em vez da liberdade, as pessoas acreditam em burocracia, bancos centrais, sanções, guerras, regulamentações, ditames, limitações, ordens, contenção de crise, "medidas macroprudenciais" e, principalmente, no financiamento de tudo isso por meio de impostos, endividamento e criação de dinheiro.

O governo sempre cresce

Ludwig von Mises já havia observado:

Há uma tendência inerente a todo poder governamental em não reconhecer empecilhos às suas operações e em ampliar a esfera de seu domínio o máximo possível. Controlar tudo, não deixar espaço para que nada aconteça espontaneamente fora do âmbito de interferência das autoridades — essa é a meta perseguida incansavelmente por todos os governantes.

O problema que ele identificou era como limitar o estado uma vez que ele começasse a se envolver com algo. Assim que você permite que o estado comece a gerenciar um aspecto da economia e da sociedade, você cria as condições que irão, no fim, fazer com que ele controle todo aquele setor. Dado que a tendência do governo é se expandir, é melhor nunca permitir que ele adquira uma participação majoritária na vida econômica e cultural da sociedade.

Uma objeção a essa tese é a de que medidas que impõem uma forma de liberdade pelo menos nos levam à direção correta. É verdade que mesmo um sistema parcialmente livre é melhor do que um completamente socialista. Entretanto, o problema é que vitórias parciais sempre são instáveis. Elas facilmente, e quase sempre, retrocedem ao completo estatismo, como comprovam todos os setores da economia que foram 'privatizados' e passaram a ser controlados por agências reguladoras.

A liberdade não pode ser imposta

A esquerda acredita que, ao restringir a liberdade de associação nos mercados de trabalho, ela está protegendo a liberdade dos marginalizados, ajudando-os a obter empregos. Porém, essa suposta liberdade é adquirida à custa de terceiros. O empregador não mais possui o direito de contratar e demitir. Como resultado, a liberdade de contrato passa a valer para apenas uma das partes envolvidas. O empregado é livre para aceitar as propostas do empregador e de sair do emprego quando quiser, mas o empregador não é livre para contratar de acordo com seus próprios termos e para demitir quando achar necessário.

O mesmo se aplica para uma ampla gama de atividades essenciais às nossas vidas. Na educação, dizem que o estado deve impor o ensino compulsório a todas as crianças, caso contrário seus pais serão negligentes. Apenas o estado pode garantir que nenhuma criança seja deixada para trás. A única divergência passa a ser os meios empregados: vamos utilizar sindicatos e burocracias defendidas pela esquerda, ou os incentivos de mercado e o sistema de vouchers defendidos pela direita. Não quero aqui entrar em um debate sobre qual meio é o melhor, mas apenas chamar a atenção para a realidade de que ambas as medidas são formas de planejamento que solapam a liberdade das famílias de gerenciar suas próprias vidas.

O catastrófico erro da esquerda foi o de subestimar o poder do livre mercado em gerar prosperidade para as massas. Porém, tão perigoso quanto é o erro que a direita comete ao imaginar que o mercado pode ser utilizado a seu bel-prazer para fazer gerenciamentos sociais e morais, como se o governo pudesse manusear uma série de alavancas para tal fim. Se um lado quer criar burocracias maiores e melhores, o outro prefere terceirizar serviços governamentais ou colocar empresas privadas na folha de pagamento do governo, tentando domar o mercado e canalizar seu poder para o 'bem comum'.

A primeira visão nega o poder da liberdade, mas a segunda é tão perigosa quanto, pois vê a liberdade puramente em termos instrumentais, como se ela fosse algo a ser orientada em prol da visão que um seleto grupo de pessoas considera ser do interesse nacional ou da moralidade geral.

Tal formulação implica a concessão de que cabe ao estado — seus governantes e intelectuais apoiadores — decidir como, quando e onde a liberdade deve ser permitida. Mais ainda: implica que o propósito da liberdade, da propriedade privada e do próprio mercado é permitir um melhor gerenciamento da sociedade, ou seja, permitir que o regime opere com mais eficiência.

Murray Rothbard já havia observado, ainda na década de 1950, que os economistas, mesmo aqueles pró-mercado, haviam se tornado "peritos em organizar eficientemente o estado". Eles haviam se especializado em ensinar os planejadores centrais a empregar incentivos de mercado para fazer com que o governo funcionasse melhor. Essa visão hoje já se disseminou e passou a ser dominante entre todos os economistas, principalmente aqueles que seguem a Escola de Chicago. 

É essa mesma visão que aparece em algumas propostas liberais, como a "privatização da Previdência Social" (que se resume à aquisição compulsória de ações por meio de corretoras favoritas do governo), vouchers escolares, mercados de crédito de carbono, e outras medidas "mercadológicas". Eles não cortam os grilhões e nem acabam com o jugo; eles simplesmente forjam o aço com materiais diferentes e afrouxam um pouco o jugo para torná-lo mais confortável.

(Em particular, medidas como "privatização" da Previdência, vouchers escolares e vouchers para a saúde poderiam acabar tornando o atual sistema ainda menos livre, pois gerariam novos gastos apenas para cobrir novas despesas necessárias para fornecer voucher e contas previdenciárias privadas.)

Há vários outros exemplos atuais dessas ideias maléficas. Nos atuais círculos políticos, utiliza-se a palavra 'privatização' não para denotar uma completa retirada do governo de um determinado aspecto da vida social e econômica, mas meramente para denotar uma terceirização de atividades estatistas para algumas empresas privadas com boas conexões políticas. 

O pior erro que os defensores da livre iniciativa podem cometer é vender nossas ideias como meios mais eficientes para se obter os fins desejados pelo estado. Em vários países ao redor do mundo, a ideia de capitalismo está desacreditada não porque já foi tentada e fracassou, mas simplesmente porque um falso modelo de capitalismo foi imposto pelas autoridades. Isso não quer dizer que tais países vejam o socialismo como uma alternativa, mas há neles uma procura em vão por uma mítica terceira via.

Não é necessário o governo fazer muito para distorcer completamente o mercado: basta um controle de preços em alguma área, um subsídio para um derrotado à custa de um vencedor, uma limitação ou restrição ou um favor especial. Todas essas medidas podem criar enormes problemas que acabam desacreditando o capitalismo por completo.

A única solução é abdicar

Qual seria a atitude correta a ser tomada por especialistas em políticas públicas e analistas do governo? A única coisa que o governo pode fazer bem feito (além de destruir a economia): não fazer nada. O papel apropriado para o governo seria simplesmente o de se retirar da sociedade, da cultura, da economia e de toda a política internacional. Deixe que tudo se governe por si só. O resultado não será um mundo perfeito, mas ao menos será um mundo que não poderá ser piorado pela intervenção do estado.

O livre mercado não é um arranjo que se resume a gerar lucros, produtividade e eficiência. O livre mercado não é apenas para gerar inovações e concorrência. O livre mercado diz respeito ao direito de indivíduos de tomarem decisões autônomas e de fazerem contratos voluntários, de buscarem uma vida que preencha seus sonhos, mesmo que tais sonhos não sejam aqueles aprovados pelos seus senhores governamentais.

Portanto, que ninguém se iluda com a crença de que é possível ter ambos; que liberdade e despotismo possam conviver pacificamente lado a lado, com o primeiro sendo imposto pelo último. Fazer uma transição do estatismo para a liberdade significa uma completa revolução na economia e na vida política, saindo de um sistema em que o estado e seus grupos de interesse dominam, para um sistema em que o poder estatal não tenha função alguma.

A liberdade não é uma política pública; ela não é um plano. Ela é o fim da própria política. Quem quiser tê-la, terá de agir menos como gerenciadores de burocracias e mais como Moisés.


Lew Rockwell é o presidente do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State

Tradução de Leandro Roque

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O ANÁRQUICO VELHO OESTE NÃO ERA NADA SELVAGEM


Um homem gloriosamente barbeado, com um bigode bem aparado, está em bar rústico sentado a uma mesa jogando baralho e rodeado por cowboys e prostitutas de faces surpreendentemente puras. Ele retira os olhos de suas cartas, olha para o homem defronte a ele e percebe que este está escondendo uma carta extra na manga. Enfurecido, o do bigode aponta a trapaça, chama o oponente de covarde e safado e o desafia para um duelo do lado de fora da taverna.

Segundos depois, ambos já estão na praça da cidade, um de frente para o outro a uns 20 metros de distância. Há um longo momento de pausa e silêncio. Repentinamente, o trapaceiro leva sua mão até o seu coldre em sua cintura, mas não é rápido o bastante. Veloz como um raio, o bigodudo saca seu revólver e, com um só disparo certeiro, coloca uma bala entre os olhos do trapaceiro.

Os cowboys e as prostituas que assistiam ao espetáculo voltam para o bar e para seus drinques, totalmente acostumados a ver rotineiramente esse tipo de violência aleatória. O homem do bigode, indiferente a tudo, rodopia seu revólver com seu dedo indicador e diz: "Este foi seu último blefe". E volta para o bar cheio de moral, e com várias prostitutas mais ávidas por ele.

Cem anos de filmes de faroeste nos ensinaram que era assim que se vivia e se morria no Velho Oeste americano. Aquele que fosse mais rápido no gatilho vivia apenas para duelar novamente no dia seguinte. Era como se a vida fosse um contínuo torneio eliminatório de pedra, papel e tesoura, o qual só acabava quando você morria.

Porém, a realidade era outra. E muito diferente.

Quantos assassinatos você acha que ocorriam, em um ano, nessas típicas cidades do velho oeste? Pense na mais violenta cidade, a mais sangrenta, aquela típica cidade onde criadores de gado disputavam à bala a propriedade de seus terrenos e onde os cowboys marcavam de duelar ao meio-dia para resolver suas diferenças (não foi isso que o cinema ensinou?). Quantas mortes em um ano? Cem? Mais?

Que tal cinco? Este foi o maior número de homicídios que qualquer cidade do velho oeste já testemunhou durante um dado ano, ao longo de toda a história da colonização. Cinco homicídios em um ano. A maioria das cidades apresentava uma média de 1,5 homicídios por ano, e nem todos eram homicídios por tiros. Você tem muito mais chances de ser assassinado em uma cidade como Baltimore hoje do que tinha em Tombstone em 1881, ano do famoso duelo no Curral O.K. (contagem de corpos: três) e o ano mais violento de toda a história daquela cidade.

Quanto aos tradicionais duelos e tiroteios retratados nos filmes, a imperfeição das armas fabricadas naquela época faria com que qualquer habilidade na rapidez dos saques fosse irrelevante: era simplesmente improvável que você acertasse um cara no primeiro, no segundo ou no terceiro disparo, de modo que realmente não faria muita diferença qual cara sacou sua arma primeiro. O mais perto que a história do Velho Oeste já chegou de registrar genuínos confrontos ao meio-dia foi na forma de um simples duelo, no qual um sujeito simplesmente ficava de frente para o outro, a uma certa distância, cada um apontando e atirando repetidas vezes até o momento em que um deles tivesse sorte, acertasse o alvo e matasse o outro. Esqueça aquelas cenas do Clint Eastwood utilizando uma mão para disparar em sequência um revólver ao mesmo tempo em que utiliza a outra para bater seguidamente no cão, praticamente transformando o revólver em uma metralhadora. E sem errar um tiro. (Veja a hilária cena). Você teria sorte se conseguisse acertar um capanga em um duelo dentro de um armário.

Por que então se criou esse mito do Oeste Selvagem?

Porque pistoleiros famosos como Billy the Kid queriam que acreditassem nisso. Se você assistir ao filme Jovem Demais Para Morrer, verá que ele matava alguém a cada dez minutos!

Exceto que, de acordo com fontes que não são Billy The Kid, sua contagem de corpos durante toda a sua vida chegou a apenas quatro. Criminosos gostam de exagerar suas estatísticas homicidas pelo mesmo motivo que homens gostam de exagerar suas experiências sexuais: isso os deixa bem perante os outros. Cidades comoDeadwood gostavam de exagerar sua natureza violenta e sem lei a fim de atrair colonizadores aventureiros. Livros foram escritos sobre eles e, tão logo a câmera foi inventada, filmes foram feitos sobre a cidade; e ninguém que conhecia a realidade e sabia que era mentira tinha interesse em corrigir essa ideia errada. Por que iriam desconstruir um mito que os fazia parecer bravos e valentes? Um século e meio depois, ainda adoramos essa mentira.

E acreditamos nela porque atirar no coração de um cara sem nome é infinitamente mais gratificante do que apresentar uma queixa na polícia ou escrever uma carta desaforada para os jornais. Nada de sistema legal de freios e contrapesos, nada de pensar duas vezes. Apenas você e a arma.
Por que o Velho Oeste era pacífico

Sim, havia casos isolados de violência, é claro, mas a verdadeira história do Oeste americano é uma história de cooperação, e não de conflito. A violência do Velho Oeste é um mito.

Meu colega Terry Anderson e eu estudamos a história do Oeste americano por quase 30 anos. E descobrimos que, sempre que os rancheiros se encontravam, eles normalmente acordavam maneiras de cooperar entre si, e não de brigarem entre si.

Comecemos com as minas de ouro de Sierra Nevada, na Califórnia. Após a descoberta de ouro em Sutter's Mill, milhares de campos de exploração e mineração foram criados nessa região para que se pudesse garimpar ouro. Em três anos, mais de 200.000 pessoas migraram para a Califórnia, a maioria delas querendo enriquecer rapidamente. Se houver uma receita para se criar o caos, essa certamente seria uma: pessoas de várias etnias e origens, praticamente sem nada a perder, todas elas armadas e em busca de recursos valiosos. 

Entretanto, a realidade é que os campos de exploração rapidamente, e voluntariamente, criaram e desenvolveram regras para arbitrar contendas envolvendo reivindicações de direito de posse. O fato de que cada indivíduo carregava consigo um revólver de seis balas significava que cada um estava investido de uma quantidade relativamente igual de poder. E isso minimizou a violência.

Viagens, tanto para os campos de exploração na Califórnia quanto para os novos povoados que iam se desenvolvendo no estado de Oregon, também eram atividades notavelmente pacíficas. De 1845 a 1860, praticamente 300.000 pessoas viajavam por terra em comboios de carroças, para os mais variados lugares do Oeste.

O preeminente historiador John Phillip Reed disse que o Velho Oeste era "um conto em que mais se compartilhava do que se discordava, uma época de adaptação e prestimosidade, e não de desavença". Um motivo para isso: "Longe de advogados e tribunais, o conceito de propriedade concorrente e coexistente se tornou uma força legal e não um fracasso jurídico; promoveu a paz social e não a desarmonia interna", diz ele. "ATrilha de Overland [uma trilha utilizada pelas diligências como rota alternativa entre Califórnia e Oregon] não era um lugar de conflitos."

Vários outros grupos de colonizadores, assentadores e exploradores interagiam pacificamente entre si, superando problemas como condições meteorológicas adversas e territórios inexplorados e não mapeados. Várias centenas de caçadores se encontravam todos os anos em locais pré-escolhidos das Montanhas Rochosos para vender a pele dos animais que abatiam. Mesmo com eles portando essas mercadorias que valiam milhares de dólares, a quantidade de roubos era irrisória. Os vários torneios e competições que envolviam bebedeiras, brigas e tiros eram basicamente uma forma de entretenimento, e não consequências de roubos ou pobreza.

Os rancheiros no norte das Grandes Planícies [vasta região localizada a leste das Montanhas Rochosas entre EUA e Canadá] enfrentaram alguns problemas singulares. Eles não puderam estabelecer ranchos de grande escala porque a Lei da Propriedade Rural limitou severamente o tamanho das terras que poderia se tornar propriedade privada. E então esses rancheiros tiveram de colocar seu gado para pastar em campos abertos e desapropriados, longe de suas propriedades.

A "tragédia dos comuns" é um fenômeno que pode ocorrer quando não há limitações à entrada e à exploração de um bem comum. Os rancheiros evitaram esse problema implementando excursões semestrais com o gado, nas quais eles levavam o gado para pastar nessas outras regiões desabitadas. Como as viagens eram longas, passavam por terrenos muito acidentados e por condições meteorológicas extremas, os rancheiros cooperavam entre si, ajudando-se uns aos outros. Embora eles não pudessem impedir que outras pessoas também utilizassem esses campos abertos, eles podiam impedir que elas pusessem seu gado para pastar junto aos seus. Sem poderem participar, essas pessoas teriam de ir procurar outros campos, o que fazia com que o pasto não fosse utilizado excessivamente até se tornar imprestável.

Assim que inventaram o arame farpado, tornou-se possível cercar e proteger esses campos abertos. Até então, fazer cercados era impraticável (exceto para pequenos terrenos), pois não havia árvores suficientes cujos troncos poderiam ser utilizados para se fazer os cercados tradicionais de toras de madeira (foto ao lado). Com o advento do arame, as novas cercas poderiam ser feitas com um número bastante limitado de toras — e os rancheiros foram rápidos em adotar essa nova tecnologia. Agora, eles podiam definir, impor, zelar e fazer cumprir seus direitos de propriedade. 

Os criadores de gado e os fazendeiros também adotaram um novo sistema de direitos de propriedade sobre a água, os mesmos que haviam sido adotados e desenvolvidos nos campos de exploração e mineração. Esses direitos foram batizados de 'doutrina da apropriação original' — ou "o primeiro a chegar, o primeiro a se apropriar".

Basicamente, se um indivíduo desviasse um curso d'água para a irrigação de sua propriedade, ele teria o direito perpétuo àquela quantidade de água. Isso significa que os direitos sobre um recurso valioso, a água, eram claramente definidos e defendidos em qualquer tribunal de justiça. E isso também significava que, à medida que outras pessoas fossem se instalando nas vizinhanças, formando municipalidades, elas poderiam comprar esses direitos sobre o uso da água caso valorassem a água mais do que os então proprietários dela — traduzindo, caso oferecessem um preço de compra que os fazendeiros locais considerassem satisfatório.

Havia, é claro, algumas exceções a essa história de relações harmoniosas. Após a Guerra Civil, os EUA possuíam um exército efetivo que não tinha muito o que fazer. Assim, os colonizadores se tornaram mais propensos a recorrer à cavalaria para tomar as terras dos índios do que em incorrer em práticas comerciais com as tribos nativas, como vinham fazendo até então.

Havia também trocas de socos em confusões de bar. Quando um grande grupo de homens sem laços familiares com ninguém da região ficava desocupado, a violência podia irromper.

Entretanto, mesmo em uma cidade rancheira como Abilene, Kansas, a taxa de homicídios era muito mais baixa do que na maioria das atuais cidades americanas. Larry Schweikart, historiador da Universidade de Dayton, estima que, durante todo o período de 1859 a 1900, houve provavelmente menos do que uma dúzia de assaltos a bancos em todo o Oeste durante a colonização. Schweikart resume: "O histórico é surpreendentemente claro: Há mais assaltos a bancos na atual Dayton (Ohio) em um ano do que houve em todo o Velho Oeste em uma década, ou talvez durante todo o período da colonização!"

Uma interessante conclusão do nosso estudo sobre o Velho Oeste é que o atual Novo Oeste é muito mais repleto de conflitos do que era o Velho Oeste. Agências governamentais como a United States Forest Service[departamento que administra as florestas americanas], o National Park Service [departamento que administra os parques americanos] e o Bureau of Land Management [departamento que controla o uso das terras públicas] hoje controlam praticamente um terço da terra nos EUA, a maioria delas na costa oeste.

Os benefícios do uso dessas terras são alocados por meio de processos políticos e burocráticos que suprimem qualquer incentivo à cooperação harmoniosa entre as pessoas. Os atuais conflitos sobre o uso de recursos excedem em muito qualquer pendenga já vista no Velho Oeste do século XIX.

Se alguém quiser ver o verdadeiro "Oeste Selvagem", basta comparecer a qualquer sessão do Congresso: manifestações políticas e discussões ambientalistas agressivas sobre como deve ser o uso, quem pode utilizar e de que maneira se pode utilizar as terras florestais.

Os processos de tomada de decisão não mais se dão de acordo com as necessidades e demandas locais, como ocorria no século XIX. O estado entrou em cena, assumiu o controle e hoje as atuais políticas premiam a rudeza, a aspereza e linha dura político-ambientalista.

Portanto, não procure pelo Oeste Selvagem em contos sobre cowboys justiceiros e vigilantes, tampouco em histórias sobre tiroteios no Curral O.K.. O verdadeiro Oeste Selvagem existe hoje, exatamente quando o estado está no controle de tudo.

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Para relatos detalhados sobre o Velho Oeste, você pode ler esta monografia ou este livro online.

Peter J. Hill é, junto com Terry L. Anderson, autor do livro "The Not So Wild, Wild West: Property Rights on the Frontier" (Stanford University Press, 2004).

Tradução de Leandro Roque

O DESARMAMENTO E AS LIÇÕES SOBRE A VIOLÊNCIA EUROPEIA


As recentes eclosões de violência indiscriminada na Europa realçam uma perturbadora tendência que há muito vem sendo alertada por filósofos e estudiosos das civilizações: o retrocesso da civilização ocidental. Palpiteiros e "especialistas" destilam na televisão e em artigos de jornais inúmeras teorias para tentar explicar o que está acontecendo. Algumas soam suficientemente plausíveis, mas somente aqueles dentre nós que possuem um sólido conhecimento da teoria econômica têm as ferramentas necessárias para decifrar o significado destes atuais eventos. 

Aqueles que utilizarem essas ferramentas irão descobrir que o estado não apenas causou diretamente estes distúrbios de várias maneiras (via assistencialismo, militarismo, inflação monetária, escolas públicas e muito mais), como também impediu as pessoas de defenderem a si próprias e a sua propriedade. Estou me referindo, é claro, às leis do desarmamento.

Inglaterra

Primeiro, consideremos os distúrbios que irromperam ao longo da Inglaterra na semana passada. Vândalos e saqueadores, de maneira arbitrária e petulante, saíram destruindo propriedades, incendiando, roubando bens de lojas de família e assaltando transeuntes. Pessoas inocentes ficaram compreensivelmente assustadas, temendo pelo seu bem-estar, especialmente quando viram que a polícia era evidentemente inepta para colocar fim às badernas. Um repórter, após ser assaltado e espancado, chamou as autoridades, e ouviu delas apenas a seguinte frase: "vá pra casa".

Não deveria ser nada surpreendente o fato de estas pessoas serem tão indefesas. Em 2007, no ranking de países listados de acordo com a posse de armas, Inglaterra, País de Gales e Escócia estavam abaixo de praticamente todos os outros países desenvolvidos. As leis de desarmamento britânicas podem ser descritas, no mínimo, como draconianas. O Decreto das Armas de Fogo, de 1997, baniu todas as armas do Reino Unido, inclusive revólveres e pistolas, permitindo no máximo o porte de pistolas a ar. (Curiosamente, essa legislação não foi aplicada à Irlanda do Norte, onde a posse de armas é muito mais difundida.)

Todas as armas de fogo "legais" requerem licença estatal para serem adquiridas. As pessoas que possuem licenças devem comunicar à polícia todas as suas compras de armas, além de serem obrigadas a enfrentar vários trâmites burocráticos para renovar suas licenças, sempre em um curto intervalo de tempo. As delegacias de polícia locais podem impor restrições adicionais ao porte de armas dentro de suas jurisdições. A polícia tem o poder de revogar a licença caso suspeite que o usuário violou uma regra dentre todo esse emaranhado.

Todas essas barreiras e burocracias elevam significativamente o custo de se comprar uma arma de fogo, mesmo que seja apenas para guardá-la em casa. A ciência econômica ensina que, quando o custo e a burocracia de se obter algo aumentam, haverá menos desses bens nas mãos das pessoas comuns. No caso inglês, o resultado foi menos armas nas mãos de cidadãos decentes e menos maneiras de pessoas inocentes defenderem a si próprias, suas famílias e suas propriedades.

Como resultado desse recente surto de violência, os britânicos que quiseram defender suas propriedades tiveram de recorrer a meios alternativos de autodefesa. A Amazon.co.uk relatou que as vendas de porretes e de tacos de beisebol de alumínio dispararam mais de 5.000% na noite do terceiro dia de badernas. Um cliente escreveu no site a seguinte crítica:

Este taco tem um peso perfeito, é bem equilibrado e vai servir otimamente a qualquer proprietário de loja no Reino Unido que queira proteger sua propriedade. Graças ao seu cabo ergonômico, um simples movimento de tacada já deve ser o suficiente para destroçar rótulas, crânios ou qualquer outro osso que você queira estraçalhar no vândalo que está lhe atacando. Pessoalmente, recomendaria também investir em algumas luvas sem dedos, apenas para melhor a aderência de sua mão ao taco.

Outra questão a ser mencionada sobre a débâcle da Inglaterra envolve o assassinato que desencadeou tudo isso. Um rapaz de 29 anos, chamado Mark Duggan, foi morto a tiros por agentes do estado no dia 4 de agosto de 2011, em Tottenham, onde os tumultos começaram logo em seguida. Os policiais rapidamente acusaram a vítima de disparar contra eles, mas a Comissão Independente de Queixas da Polícia relatou, no dia 10 agosto, que não há nenhuma evidência de que a arma da vítima encontrada no local do crime tenha sido disparada uma só vez.

Talvez a polícia estaria menos propensa a assassinar cidadãos a sangue frio caso ela estivesse lidando com uma população armada.

Noruega

Também nada surpreendentemente, a Noruega é também um bastião do fanatismo desarmamentista, embora a posse de armas seja mais prevalecente entre os noruegueses do que entre os britânicos. (A posse de armas em ambos os países é bem mais baixa do que nos EUA). As leis norueguesas baniram todas as armas automáticas. Revólveres e pistolas só são permitidos caso sejam de um determinado calibre, e há restrições sobre os tipos e quantidades de munição que um indivíduo pode comprar. Andar nas ruas portando armas ocultas é ilegal. (Nos EUA, isso é legal em vários estados, sendo que Alaska, Vermont, Arizona e Wyoming permitem que seus cidadãos carregam armas sem exigir qualquer registro).

Como lamentavelmente é a regra em nosso mundo, todos os pretensos proprietários de armas têm primeiro de requerer licenças, as quais normalmente são concedidas apenas a caçadores e a atiradores profissionais. Se você for sortudo o suficiente para obter uma licença, a polícia automaticamente adquire o direito de inspecionar sua casa para averiguar se suas armas estão adequadamente armazenadas.

Como bem sabemos, essas rígidas leis de nada adiantaram para impedir Anders Behring Breivik de massacrar 69 pessoas na minúscula ilha de Utøya. Com efeito, se apenas um orientador daquele acampamento possuísse uma arma de fogo, talvez a tragédia teria terminado de maneira diferente, certamente com muito menos sangue e mortes.

É incompreensível para mim o fato de os organizadores de um acampamento juvenil ocorrendo em um local deserto e descampado não terem planejado antecipadamente meios de defender as crianças. Isso é o ápice da irresponsabilidade. É realmente alguma surpresa que o acampamento tenha sido organizado pelo esquerdista Partido Trabalhista?

Mais uma vez, os agentes do estado comprovaram sua incompetência. A polícia só chegou a Utøya uma hora depois de o maníaco ter começado sua carnificina. É isso o que ocorre quando se dá a um grupo estatal — a polícia — o monopólio prático da propriedade de armas.

Aqueles de nós familiarizados com a teoria misesiana sabemos que o estado sempre reagirá às desastrosas consequências do intervencionismo com ainda mais intervencionismo. Como se estivessem ansiosos para dar razão a Mises, políticos finlandeses rapidamente anunciaram, após os ataques na Noruega, que irão acelerar a imposição de políticas desarmamentistas muito mais rígidas na Finlândia. Essas novas regras farão com que revólveres e pistolas passem a ser muito menos acessíveis, irão elevar a idade mínima para a posse de armas e irão impor aos requerentes de licenças que se submetam a "testes para averiguar sua adequação". 

Os políticos, sem dúvida, estão prometendo que tais leis deixarão as pessoas mais seguras. Os seguidores da 'Lei de Rockwell', entretanto, já sabem exatamente o que esperar e como devem reagir: "Sempre acredite no oposto daquilo que o governo diz, e sempre faça o oposto daquilo que ele recomenda."

Conclusão

A sociedade ocidental está claramente se degradando. À medida que as pessoas e os governos vão se afundando em dívidas, o crescimento econômico permanecerá, na melhor das hipóteses, estagnado. As classes dependentes, que vivem do assistencialismo, verão seu padrão de vida se deteriorando rapidamente à medida que a crise vai se desdobrando. Se a história nos serve de guia, ondas de crimes e inquietações sociais não estão muito longe no horizonte. Já estamos testemunhando o início dessa tendência em países como Inglaterra e Noruega, onde restrições à posse de armas estimulam a violência, a destruição e a pilhagem, além de deixarem cidadãos de bem completamente desarmados, sem proteção policial e totalmente à mercê de vândalos. 

A principal lição a ser retirada de tudo isso é a importância de ser ter meios de se proteger a si próprio, a sua propriedade e a seus parentes amados nessas épocas vindouras de pânico e incerteza. Se você confiar no governo, poderá perder tudo o que construiu.

Brian Foglia é bacharel em Economia com honrarias, formado no Richard Stockton College.

Tradução de Leandro Roque

O PT E SEU LABIRINTO

Agita-se o Partido dos Trabalhadores (PT). Após a agressiva mobilização em defesa dos condenados no processo do mensalão, a vanguarda petista começa a propor, a seu modo, uma reflexão sobre os rumos do partido, aquele que se orgulhava de ser modelo de correção radical e que hoje é pilhado em sucessivos escândalos. Ingênuos podem ver nisso um mea culpa, um esforço para retornar às origens "puras" do partido, mas, em se tratando de PT, não cabe nenhuma ingenuidade: digladiam-se forças para a ocupação dos espaços perdidos pelas lideranças mensaleiras e, principalmente, para salvar as aparências do lulismo, emparedado por denúncias de cama e mesa.

A mais recente manifestação da cúpula petista, a carta convocatória para o 5.º Congresso Nacional do PT, a ser realizado em 2014, dá uma ideia dessa crise. O documento reafirma as linhas gerais da defesa do legado de Lula e diz que o ex-presidente, assim como o partido, é vítima de uma campanha de difamação "insidiosa", semelhante à que sofreram os presidentes Getúlio Vargas e João Goulart. O primeiro suicidou-se, em 1954, denunciando "as forças e os interesses contra o povo" que o pressionavam. "Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes", escreveu Getúlio, quando se descobriu que os porões do Palácio do Catete haviam se transformado num mar de lama em que chafurdavam Gregorio Fortunato e a sua quadrilha. Lula não parece inclinado a gesto tão dramático, mas o discurso é o mesmo, como mostra o documento petista: "A verdade é que os donos do poder não aceitam essa irrupção de pobres na vida social e política do País".

O texto afirma que, graças às "distorções do sistema político", Lula teve de aliar-se ao que há de pior na política brasileira, como Sarney, Collor e Maluf, para "dar sustentação parlamentar ao governo". A direção petista argumenta que só assim foi possível manter o poder e enfrentar as elites, que, embora tenham se beneficiado da era Lula, jamais admitiram o "êxito de um nordestino, sem educação formal, como presidente da República". A missão histórica do lulopetismo está, portanto, acima de quaisquer considerações éticas. Aliás, dissemina-se há algum tempo, entre pensadores simpáticos ao PT, a ideia de que a corrupção é intrínseca ao capitalismo e que os pobres, agraciados com a fartura creditícia patrocinada pelo governo petista, não estão nem um pouco preocupados com os malfeitos, razão pela qual mantêm seu apoio a Lula e à presidente Dilma Rousseff. O clamor pela ética na política, prossegue a tese, restringe-se às "elites". O documento petista é claro sobre isso, ao dizer que "denúncias sobre corrupção sempre foram utilizadas pelos conservadores no Brasil para desestabilizar governos populares".

Antes de chegar ao poder, porém, quem utilizava denúncias de corrupção como bandeira política era o PT, cujo líder máximo apontou a existência de "300 picaretas" no Congresso. Hoje, sabe-se, o governo petista costuma comprar o apoio desses "picaretas". O documento do PT admite que o partido já não é mais o mesmo, pois "perdeu densidade programática e capacidade de mobilização sobre setores que nos acompanharam nos primeiros anos de nossa existência". Traduzindo: rasgou suas bandeiras e abandonou os que acreditavam nelas, distanciando-se de sua militância. Admitir isso não é penitência, mas estratégia. A cúpula petista, conforme diz seu texto, acredita que seja necessário retomar as discussões programáticas para fortalecer sua "capacidade de intervenção na conjuntura", isto é, para pressionar Dilma a atuar com mais firmeza em favor dos interesses do partido. Aqui e ali, militantes têm manifestado descontentamento com a presidente por sua suposta leniência em relação à mídia e aos empresários. Portanto, para entender esse movimento interno no PT não se pode esquecer de que a sucessão de 2014 já começou, que Dilma não é a presidente dos sonhos dos petistas e que Lula precisa de palanque sólido para defender-se e continuar a construir a tal "narrativa petista". Editorial O Estadão