sábado, 2 de março de 2013

A ESCOLA AUSTRÍACA

A Escola Austríaca, o processo de mercado e a função empresarial

Obs: o artigo a seguir é a parte final de um texto escrito especialmente para a futura revista acadêmica do IMB. Leia a primeira parte aqui.



Mises, Hayek, Kirzner e a tendência ao equilíbrio

A vertente austríaca tradicional, composta por Menger, Mises, Hayek e Kirzner, entre outros, pode ser considerada, no que se refere a seu entendimento do fenômeno do mercado, como uma tentativa de reformulação e reconstrução das ideias neoclássicas fundamentais, conforme observou Sarjanovic. Com efeito, enquanto os neoclássicos enfatizavam a chamada análise de equilíbrio parcial ou geral e os problemas implicados por essa análise, colocando em uma posição secundária o estudo dos processos mediante os quais os mercados atingem o equilíbrio, a vertente principal dos austríacos prioriza como objeto de estudo o processo de mercado, relegando a análise das condições de equilíbrio a um plano não mais que instrumental.

Para a Escola Austríaca, o mercado é um processo de permanentes descobertas, o qual, ao amortecer as incertezas, tende sistematicamente a coordenar os planos formulados pelos agentes econômicos. Como as diversas circunstâncias que cercam a ação humana estão ininterruptamente sofrendo mutações, segue-se que o estado de coordenação plena jamais é alcançado, embora os mercados tendam para ele.

Carl Menger tem como quase todos os fundadores uma história complexa, na medida em que suas obras, como observou Langlois, contêm elementos que foram retomados de formas diversas por seus seguidores. Kirzner, por exemplo, sustenta que o fundador da Escola Austríaca não pode ser enquadrado como um teórico do desequilíbrio, ao passo que Jaffé, Alter e O'Driscoll sugerem que sua obra contém elementos que permitem classificá-lo como um precursor da abordagem que vê os mercados como processos de desequilíbrio. A leitura atenta dos trabalhos de Menger permite-nos verificar sua crença de que a economia não está permanentemente em equilíbrio, embora tenda sempre para o equilíbrio; contudo, não ficam claras suas posições nem sobre o papel do empresário, nem sobre o dos preços de equilíbrio.

Mises, por sua vez, sustentava que a principal característica da Escola Austríaca era sua teoria da ação e não uma teoria de equilíbrio ou de inação. Assim, seu objetivo é explicar os preços que são efetivamente praticados no mercado e não os preços que prevaleceriam em condições que jamais se verificam, como as que servem de apoio às teorias de equilíbrio de mercado. Por isso, ressaltava que "devemos reconhecer que sempre estudamos o movimento e nunca um estado de equilíbrio". De fato, o uso de "construções imaginárias", como o conceito de "economia uniformemente circular", que é uma das características da obra de Mises, não revela qualquer pretensão de representar a realidade; pelo contrário, seu objetivo é apresentar uma imagem tão essencialmente afastada da economia real que, a partir do forte contraste produzido em relação à complexa realidade econômica, seja possível compreendê-la tal como se apresenta.

A idéia hayekiana de coordenação intertemporal representa um avanço sobre a construção misesiana de "economia uniformemente circular", uma vez que o conceito de Hayek envolve, sem dúvida, uma aplicação mais consistente do subjetivismo, já que abandona o requisito de que os dados externos (preferências, tecnologia e recursos) não se alteram, requerendo, em troca, que esses dados não variem com respeito às expectativas que guiam os planos dos agentes econômicos. A contribuição de Hayek para a teoria do processo de mercado deriva, essencialmente, de sua visão de que o conhecimento humano é imperfeito. Essa limitação do conhecimento, que se traduz em informações incompletas e na possibilidade de ocorrência de alterações nas preferências, na tecnologia e nos recursos, reflete-se também nos planos de ação dos participantes do mercado. Assim, os agentes econômicos não apenas são parcialmente ignorantes, mas as informações que possuem em cada caso são diferentes e, não raro, contraditórias e, além disso, as expectativas que formam a respeito do futuro são, em boa parte, divergentes. Este problema, que Hayek denominou de "dispersão do conhecimento", é considerado por ele como a questão central a ser resolvida pela economia.

A pergunta relevante, para Hayek, deve ser: quanto conhecimento e que tipo de conhecimento por parte dos agentes econômicos tornam-se necessários para que possamos falar em coordenação perfeita entre os planos de todos os agentes econômicos, ou seja, em equilíbrio de mercado? O papel do mercado, então, é o de servir como um processo, mediante o qual, por tentativas e erros, tanto o conhecimento como as expectativas dos diferentes membros da sociedade vão se tornando paulatinamente mais compatíveis no decorrer do tempo. Surge desta maneira a importância fundamental, primeiro, do sistema de preços, com o papel de emitir sinais para que os diversos participantes do processo de mercado possam coordenar seus planos ao longo do tempo e, segundo, da competição, como o único meio de descoberta das informações que são realmente relevantes. Evidentemente, a ignorância gerada pela escassez de conhecimento e que envolve o processo de trocas, fará com que diversos planos fracassem e a tendência para um maior grau de coordenação dependerá, de um lado, da capacidade de cada agente aprender com seus próprios erros e, de outro, de sua capacidade de substituir por planos cada vez mais corretos os que fracassaram anteriormente.

Se desejarmos condensar para o leitor a posição de Hayek, podemos escrever que em sua concepção a importância do processo de mercado é a de servir como um mecanismo transmissor de informações, proporcionando economia de conhecimento. De fato, requer-se de cada participante do mercado um grau baixo de conhecimento, para que possa agir corretamente.
Dentre os "austríacos", contudo, é Israel Kirzner, londrino que viveu e estudou em Cape Town e que obteve seu PhD na Universidade de Nova Iorque, onde foi professor (atualmente está aposentado), quem mais se dedicou (juntamente com Lachmann, que pertence à geração anterior) à análise do processo de mercado e das características da atividade empresarial. Segundo ele, uma das causas da atual crise da teoria econômica é a ênfase excessiva que ela tem dedicado ao estudo dos casos de equilíbrio. Com efeito, embora não seja correto repelirmos de antemão a ideia de mercados em equilíbrio, o bom senso e a simples observação do mundo real, de um lado, e o espírito de seriedade acadêmica, de outro, obrigam-nos a reconhecer as limitações explicativas e normativas da ênfase no equilíbrio.

Ao adotarmos essa postura, deparamo-nos imediatamente com dois questionamentos aos modelos de equilíbrio geral derivados de Walras: se os agentes econômicos são tomadores de preços, como surgem, então, os preços? Além disso, como se coordenam as ações dos diferentes indivíduos? A corrente principal da teoria neoclássica recorreu ao conceito de "leiloeiro walrasiano" para dar resposta às questões, isto é, os preços seriam gerados por um ente fictício, não participante do mercado, cuja atuação também coordenaria a dos participantes. Kirzner, ao contrário, prefere explicar a formação de preços como o resultado da interação entre os agentes econômicos que atuam nos mercados.

Emerge, assim, a importância da função empresarial, cuja essência é um estado de permanente alerta, no sentido de conseguir captar oportunidades de lucros não descobertos anteriormente. Tais oportunidades, que se revelam nos mercados através de diferenciais entre preços, são descobertas gradualmente pelos empresários que, ao explorá-las, tendem a corrigir desequilíbrios anteriores e, com isso, a promover maior coordenação entre os planos individuais e, portanto, a gerar uma tendência de equilíbrio nos preços. Isto decorre do axioma fundamental da praxeologia, de que a ação humana, sendo motivada pela vontade de aumentar a satisfação individual, promove revisões nos erros anteriores que devem conduzir a erros sucessivamente menores. Na ausência de divergências de expectativas, o sistema tenderia automaticamente a um estado de completa coordenação que, no entanto, não é alcançado, na medida em que as divergências que cada participante do mercado formula subjetivamente tendem a gerar transformações permanentes.

O gráfico 4 é uma tentativa de ilustrar essa visão de tendência ao equilíbrio dos mercados como um processo que converge para o equilíbrio, sem, contudo, atingi-lo, devido às características que analisamos em Mises, Hayek e Kirzner. [Devo sua ideia economista Rezso Divenyi, ex-estudante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro]. Embora reconhecendo a impropriedade apontada pela metodologia austríaca no que se refere ao uso de gráficos de demanda e oferta para representar os mercados e também sabendo que o tempo, ao ser representado por uma reta, tal como no aparato newtoniano, assume as características de tempo estático (e não do tempo real, o relevante para a teoria econômica), podemos temporariamente deixar à parte essas críticas dos economistas austríacos e, contemporizando um pouco com a "mainstream economics", visualizar o processo de mercado ao longo do tempo como a série de diagramas de oferta e de demanda, cada um se referindo a um momento específico do tempo, que está representado pela linha diagonal.

Cada figura elíptica em um dado ponto do tempo representa o conjunto de possibilidades que podem estar acontecendo no mercado, naquele determinado momento, incluindo o ponto de equilíbrio. Com o decorrer do tempo o mercado converge para o equilíbrio, ou seja, para o vértice de cada um dos cones. Só que, antes que esse ponto de equilíbrio seja atingido, mudam as condições de mercado que determinam as curvas de oferta e demanda e, com isso, passamos para uma nova elipse. A partir daí, convergimos para o vértice de um novo cone, o qual, por sua vez, antes que seja atingido, já não representará mais uma situação de equilíbrio, e assim sucessivamente.

Algumas observações importantes

Mises e Hayek, obviamente, não são os únicos que ocupam teoricamente a metade do caminho entre Lachmann e Lucas: todas as visões concorrentes sobre a questão das tendências ao equilíbrio estão necessariamente em algum lugar entre os dois extremos polares. Os livros didáticos keynesianos, por exemplo, baseiam-se parcialmente no argumento da necessidade de "políticas de estabilização" para sustentar o equilíbrio de pleno emprego ao longo do tempo. Esta variante do keynesianismo, no entanto, negligencia erradamente o problema das perspectivas de se alcançar um equilíbrio intertemporal, preferindo enfatizar as perspectivas para equilibrar o mercado de trabalho em cada período, sejam ou não mediante despesas de gastos públicos em um determinado período para complementar os gastos do consumidor (que são vistos como insuficientes em algum período futuro) .

Mas o keynesianismo, convencionalmente interpretado, claramente ocupa, tal como a vertente austríaca principal, o meio termo (mas apenas na questão relativa ao equilíbrio): as forças de mercado podem ser efetivamente fortalecidas pelas políticas que os tornam mais eficazes do que Lachmann sugere, e que o fato em si delas deverem ser "aperfeiçoadas" pelas políticas as torna menos eficazes do que Lucas propõe.

A abordagem de Hayek, bem como suas críticas a Keynes, enfatiza diretamente a questão da coordenação intertemporal com uma pergunta: existe um conjunto de forças de mercado que vai transformar a trajetória desejada dos gastos dos consumidores e que se estende para o futuro, em uma trajetória correspondente de decisões de investimento? Hayek argumentou que a construção teórica de Keynes, de que não há um mecanismo de mercado para coordenar as decisões de investimento com decisões de consumo, contém uma deficiência fundamental: as forças inerentes ao mercado, que os coordenam intertemporalmente, foram negligenciadas por causa da agregação (macroeconomia) que caracterizou a formulação keynesiana. Nas próprias palavras de Hayek, "Os agregados do sr. Keynes escondem os mecanismos mais fundamentais das mudanças que ocorrem [no processo de mercado]".

Hayek chama também a atenção para o fato de que o setor de investimentos precisa ser desagregado mediante o conceito de estrutura de capital. Bens de consumo são produzidos por um processo de mercado que envolve uma sequência temporal de fases de produção. A alocação de bens de investimento individuais entre as várias fases de produção afeta o padrão de composição e tempo de saída final. A análise com base nessa teoria do capital vai além da distinção entre a procura de pneus e da demanda por veículos: por considerar a sequência de decisões individuais que dá origem à criação de uma montadora de automóveis, ele atribui um papel muito importante às expectativas. Cada investidor individual em cada etapa de produção deve tomar decisões de investimento com base em suas próprias expectativas.

O sucesso dos investimentos ao longo do tempo exige que as decisões dos investidores sejam coerentes tanto com as decisões subsequentes de outros investidores como com as demandas dos consumidores finais. Os modelos teóricos baseados na estrutura hayekiana de produção (derivada, como sabemos, de Eugen von Böhm Bawerk) são capazes de identificar qual sequência de decisões de investimentos são consistentes com uma determinada trajetória de consumo desejada. Mas isto é apenas uma primícia para a questão mais fundamental: temos razão para acreditar que os investidores, tomando essas decisões, tendem a ser exatamente aqueles cujas expectativas sejam corretas?

Tal como Hayek e Kirzner, a posição de Mises situa-se entre as de Lachmann e Lucas. A formulação misesiana não nos permite prever em uma dada situação como as expectativas de um investidor serão afetadas por alguma mudança particular nas condições de mercado. Nem tampouco sua formulação exige a suposição de que as expectativas sejam racionais, no sentido de Lucas. A alegação de que há uma tendência geral ao equilíbrio repousa sobre o entendimento austríaco de um processo de mercado, no qual cada investidor está investindo com base em suas próprias expectativas. Investidores cujas expectativas sobre as condições futuras do mercado acabam se revelando corretas vão ser premiados com uma acumulação de recursos, enquanto os investidores cujas expectativas terminam se mostrando erradas vão experimentar uma perda de recursos. As decisões de investimento do que obteve sucesso tornam-se cada vez mais influentes nos mercados ao longo do tempo, assim como as dos últimos perdem significância progressivamente. 

Ao enfatizar a importância de se enxergar o processo de mercado no mundo dos investimentos, a teoria de Mises e Hayek, bem como a de Kirzner, pode prever que expectativas em equilíbrio tendem a prevalecer, mesmo que não se possa prever o que em particular irá reger a formulação dessas expectativas. Reconhecendo a subjetividade e a imprevisibilidade das expectativas em qualquer dada circunstância, então, não implica a inexistência ou ineficácia de tendências equilibradoras, no que divergem de Lachmann. A existência e eficácia de tendências equilibrantes pressupõe que as expectativas corretas são recompensadas e expectativas incorretas são penalizados. E a realização de tais recompensas e penalidades depende da natureza das instituições em que as decisões de investimentos são feitas.

Para o Prof. Israel Kirzner, a coordenação intertemporal está ligada ao conceito de função empresarial, que nada mais é do que aquele atributo individual de perceber as possibilidades de lucros ou ganhos eventualmente existentes. Ora, como isso se constitui em uma categoria de ação, esta pode ser encarada como um fenômenoempresarial, que põe em destaque as capacidades perceptiva, criativa e de coordenação de cada agente. Como em qualquer ação humana, a ação empresarial se processa em ambiente de surpresa e de incerteza genuína e requer criatividade, uma vez que o futuro é sempre incerto e está sempre aberto ao desenvolvimento do potencial criativo dos agentes.

Outra característica da ação empresarial é que, em se tratando de escolhas ao longo do tempo e em condições de incerteza, há sempre outras ações a que se deve renunciar. O valor subjetivo dessas ações a que se renuncia é denominado de custo. Logicamente, os agentes agem porque acreditam subjetivamente que os fins escolhidos possuem um valor maior ao dos custos decorrentes da escolha por determinada ação e a diferença constitui o lucro, que é o elemento motivador da ação. Se as ações não acarretassem custos, os valores subjetivos dos fins coincidiriam com o lucro. Kirzner enfatiza que toda ação embute um componente empresarial puro e criativo em sua essência, que não requer qualquer custo e que é exatamente o que permite aproximar o conceito de ação do conceito de função empresarial.

Toda ação — e, portanto, toda atuação empresarial — tem a capacidade de gerar novas informações de cunho implícito, de natureza ao mesmo tempo prática e subjetiva e que muitas vezes não podem ser expressas. Sendo assim, o conjunto de ações ou atos empresariais induz cada agente a ajustar ou coordenar suas próprias atuações levando em consideração as necessidades, desejos e circunstâncias dos demais agentes, transmitidas pelo processo de mercado por meio de suas atuações. Essa dinâmica, no final das contas, é que torna possível e interessante, de maneira inteiramente espontânea e inconsciente, a própria vida em sociedade. Uma sociedade que abre mão da função empresarial está condenada à ausência de coordenação social e de cálculo econômico e, portanto, está abrindo todas as portas para a coerção institucional. Sem mercados livres e liberdade para agir, não pode haver ação empresarial; sem esta, não há como se falar em preços de mercado; e sem estes, é impossível existir coordenação e cálculo econômico.

Cabe mencionar que o conceito de incerteza genuína é corolário da aceitação das hipóteses de ignorância e de tempo real. As implicações mais importantes da ideia de incerteza genuína são: (1ª) a impossibilidade de listagem de todos os possíveis resultados provocados por um determinado curso de ação; e (2ª) a passagem da incerteza - que na teoria econômica convencional costuma ser tratada como uma variável exógena - para a categoria de variável endógena.

Essa característica importante da incerteza genuína, que é a endogeneidade, leva-nos a visualizar os mercados como processos dinâmicos ininterruptos, processos por si só geradores de mudanças às quais o sistema econômico deve adaptar-se. Isto significa que um estado de completa adaptação, ou um estado de equilíbrio, é algo incompatível com os conceitos de incerteza genuína e de tempo real.

Para Mises, uma ciência econômica que enfatize apenas os estados de equilíbrio deixa de ser uma ciência da ação humana, para ser uma ciência da inação, isto é, a própria negação da economia. Essa característica importante da incerteza genuína, que é a endogeneidade, leva-nos a visualizar os mercados como processos dinâmicos ininterruptos, processos por si só geradores de mudanças às quais o sistema econômico deve adaptar-se. Isto significa que um estado de completa adaptação, ou um estado de equilíbrio, é algo incompatível com os conceitos de incerteza genuína e de tempo real.

Como sublinham com brilhantismo O'Driscoll e Rizzo [ver referências bibliográficas no final], subjetivismo e ação humana dinâmica em condições de incerteza não bayesiana são ideias absolutamente inseparáveis sob a ótica da Escola Austríaca de Economia. Quando um agente econômico escolhe um determinado curso de ação, as consequências de sua escolha irão depender, pelo menos parcialmente, dos cursos de ação que outros indivíduos escolheram, estão escolhendo ou ainda vão escolher. Se considerarmos um mundo em que impere a autonomia das decisões individuais, isto significa que o futuro não apenas é eventualmente desconhecido, o que permitiria que ele fosse aprendido de maneira gradual, mas que ele simplesmente não pode ser conhecido e nem aprendido. Tal como em Lachmann, o futuro é incognoscível.

Por sua vez, a ignorância, entendida como imperfeição do conhecimento, não é um estado que possa ser totalmente evitado ou simplesmente ignorado, ou assintoticamente eliminado por algum processo. Por isso, os expedientes analíticos que costumam transformar a ignorância em uma mera variante do conhecimento, não refletem a ação humana no mundo real.

Resumo final

Sobre a questão fundamental de tendências equilibrantes, há teóricos da economia que ou são propensos a tomar uma posição que nega qualquer problema (Lucas) ou que descreem em sua solução (Lachmann), bem como os que acreditam que os governos os podem solucionar (keynesianos e afins). E os argumentos para uma posição intermediária devem colocar muita ênfase sobre o papel das expectativas. Apesar de reconhecerem a impossibilidade de especificar como as expectativas corretas podem ser formadas, os teóricos middlegrounddevem, contudo, utilizar suas hipóteses de que elas tendem a se equilibrar de acordo com a evolução temporal do processo de mercado, que se baseia em expectativas predominantemente corretas.

É verdade, como sugeriram Lachmann e Shakcle, que os economistas devem estudar tanto as tendências "equilibrantes" dos mercados como as "desequilibrantes", mas, enquanto o primeiro, mesmo vendo os mercados como um caleidoscópio, jamais propôs como solução para essa inexistência de uma convergência ao equilíbrio que os governos interferissem nos mercados, Shackle, que preferiu seguir Keynes (embora tenha recebido influências austríacas em seu subjetivismo), preferiu acreditar. Cabem, então, as perguntas: se os mercados sãocaleidoscópios, como poderão os homens do governo melhorar isso, a não ser que possuam um super-conhecimento? Não serão os governos, dada a experiência que o mundo vem vivendo, elementos ainda mais desestabilizadores, que terminam "quebrando" ou estilhaçando as peças do caleidoscópio? Deixo ao leitor a reflexão e a resposta, ambas óbvias.

No entanto, sob o ponto de vista da Escola Austríaca, com seu subjetivismo, sua ênfase na praxeologia, seu individualismo metodológico e sua metodologia hipotético-dedutiva, dois trabalhos muito difundidos no século passado causaram males enormes à ciência econômica, porque as afirmativas e propostas de seus dois autores passaram a ser tomadas como verdades indiscutíveis que, infelizmente, desde o final dos anos 40, vêm sendo transmitidas a gerações sucessivas de economistas, que mais parecem "engenheiros sociais".

O primeiro desses trabalhos é um livro de Paul A. Samuelson publicado em 1947, "Foundations of Economic Analysis". Nessa obra, que obteve enorme repercussão no mundo acadêmico já então dominado pelokeynesianismo e pelo positivismo, Samuelson apresentou uma estrutura matemática comum aos vários ramos da economia, a partir de dois princípios: (a) o comportamento maximizador dos agentes (como o de maximizar utilidades por parte dos consumidores, maximizar lucros por parte das empresas, maximizar retornos através dos investidores, etc.) e; (b) a estabilidade do equilíbrio nos sistemas econômicos, tanto de mercados particulares quanto da economia como um todo. Samuelson também aperfeiçoou a teoria dos números índices e generalizou a welfare economics. Ele é especialmente conhecido por estabelecer e formalizar definitivamente versões qualitativas e quantitativas de "estática comparativa" Uma de suas idéias sobre estática comparativa, o chamadoprincípio da correspondência, afirma que a estabilidade do equilíbrio implica previsões testáveis sobre como se dão as mudanças de equilíbrio quando os parâmetros são alterados. Para termos uma ideia da influência de Samuelson, basta lermos a seguinte frase extraída aleatoriamente da Wikipedia: "Finalmente, pode-se dizer que a partir de Samuelson passou a existir não somente a economia, como também o livro Economics. O livroEconomics ensinou os fundamentos desta ciência à maioria dos estudantes de economia da segunda metade do século XX". [negritos nossos]. Ao que acrescento: infelizmente!

E o segundo é o também famoso Essays in Positive Economics (1953), de Milton Friedman, uma coletânea de artigos anteriores do autor, com um ensaio original - "A Metodologia da Economia Positiva" -, cujo conselho básico é respeitar a distinção de John Neville Keynes (pai de John Maynard Keynes) entre economia "positiva" e "normativa", sugerindo que a última não seria adequada para lidar com assuntos econômicos. O ensaio apresenta um programa epistemológico para a pesquisa econômica e sustenta que esta deve ser livre de julgamentos normativos, para que possa ser respeitada como algo objetivo e informar e economia normativa (por exemplo, as discussões sobre salário mínimo). Julgamentos normativos, para Friedman, freqüentemente envolvem previsões implícitas sobre as conseqüências de diferentes políticas. Sua sugestão é que essas diferenças poderiam ser minimizadas pelo progresso na economia positiva (1953, p. 5).

A partir dessas obras, a ciência econômica, então, já impregnada pelos agregados de Keynes e despida de uma teoria do capital, passou a ser tratada pelos economistas como se fosse algo que nunca foi, não é e nunca poderá ser: uma ciência exata, em que os agentes maximizam tudo o que lhes interessa maximizar e, no caso dos keynesianos em todas as suas vertentes, como os agentes individuais não o fazem, o governo pode e deve fazer, "cientificamente". E os mercados, dentro desse positivismo açodado, passaram a ser representados por equações e sistemas de equações. Não foi por acaso que a econometria se desenvolveu especialmente a partir do início dos anos 50.

Assim, Friedman e Lucas, de quem discutimos algumas ideias sobre expectativas e sobre equilíbrio, foram produtos naturais — talentosos, digamos de passagem — desse afastamento da ciência econômica daquilo que realmente é, de acordo com a tradição de Carl Menger: uma ciência que estuda a ação humana ao longo do tempo real e sob condições de incerteza genuína. Essa visão nunca foi abandonada pelos economistas austríacos, o que explica a decadência de sua popularidade já a partir dos anos 40 do século XX. Mas, por outro lado, o fracasso retumbante de keynesianos, monetaristas e novos clássicos, frente à crise que vem abalando o mundo desde que a bolha hipotecária estourou nos Estados Unidos — malogro este que se estende aos "remédios" que receitam e que vêm sendo aplicados em larga escala — abre novas perspectivas para a economia da ação humana, sua metodologia, seu individualismo metodológico, sua negação da possibilidade de se fazer previsões em ciências sociais, sua ênfase nas características dessas ciências e seu subjetivismo. Não tenho dúvidas em afirmar categoricamente que a Escola Austríaca está renascendo em todo o mundo com maior força, porque suas rivais fracassaram e continuam a fracassar rotundamente.

Definitivamente, keynesianos, monetaristas e novos clássicos trabalham com modelos sofisticados que descrevem um mundo do faz de conta. Mas o mundo real, que os austríacos sempre procuraram explicar desde Menger, não é este e está longe de ser como imaginam.

Referências bibliográficas
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Shackle, George L. S., Business, Time and Tought, edited by Stephen F. Frowen, MacMillan, 1988
Shackle, G.L.S., "Epistémica y Economía", Fondo de Cultura Economica, México, 1972.

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).  Visite seu website.

sexta-feira, 1 de março de 2013

LULA, ALIÁS LINCOLN

Lula deu agora para se comparar com Abraham Lincoln. A maior afinidade com o presidente responsável pela abolição da escravatura nos Estados Unidos, Lula a vê diretamente relacionada com a postura crítica da imprensa em relação a ambos: "Esses dias eu estava lendo o livro do Lincoln. E fiquei impressionado como a imprensa batia no Lincoln em 1860, igualzinho bate em mim". Com seu habitual descompromisso com a seriedade, Lula pretendeu ombrear-se com um dos maiores vultos da História e, ao mesmo tempo, mais uma vez desqualificar o trabalho da imprensa, a quem acusa do imperdoável crime de frequentemente contrariar suas opiniões e interesses. Foi um dos melhores momentos de seu show de meia hora durante as comemorações dos 30 anos da CUT, na última quarta-feira em São Paulo.

Essa nova bravata do Grande Chefe do Partido dos Trabalhadores (PT) não chega a ser novidade. É apenas mais uma a enriquecer a já alentada antologia das melhores pérolas de seu sofisticado pensamento político-filosófico. Novidade é a revelação de que Lula anda lendo livros. Confessou-o explicitamente, em tom de blague, dirigindo-se ao ministro Gilberto Carvalho, que fazia parte da mesa. "Estou lendo muito agora, viu Gilberto? Só do Ricardo Kotscho e do Frei Betto, li mais de 300", exagerou, em simpática referência a dois ex-colaboradores com quem já manteve relações mais estreitas.

Depois de falar mal da imprensa, Lula sugeriu que, diante da "falta de espaço" para as questões de interesse dos assalariados na mídia "conservadora", os sindicatos de trabalhadores se articulem para ampliar e tomar mais eficazes seus próprios meios de comunicação. Uma recomendação um tanto ociosa, pelo menos do que diz respeito à CUT, que dispõe de uma ampla rede de comunicação integrada por uma emissora de televisão, três de rádio, dois sites de notícias, dois jornais e uma revista mensal. Mas o verdadeiro problema não é exatamente a existência ou não de veículos de comunicação abertos às questões de interesse das organizações sindicais, mas o nível de credibilidade e, consequentemente, de audiência e leitura desses veículos.

Na verdade, o que o lulopetismo ambiciona para a consolidação de seu projeto de poder é dispor de mecanismos de controle da grande mídia, dos jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão que atingem o grande público e por essa razão têm maior peso na formação de opinião. Por entenderem que a maior parte da grande mídia está comprometida com interesses das "elites" e, por essa razão, é "antidemocrática", o PT e seus aliados à esquerda defendem a criação de mecanismos que permitam a "democratização dos meios de comunicação". Trata-se de um argumento absolutamente falacioso, pela razão óbvia de que, se a grande mídia tivesse realmente o viés que lhe é atribuído pela companheirada, o petismo, que se diz discriminado e perseguido por ela, não venceria três eleições presidenciais consecutivas e não estaria comemorando 10 anos de hegemonia política no plano federal.

Ocorre que o pouco que existe de pensamento político em Lula e seus companheiros está hoje quase todo vinculado estritamente à garantia das vantagens materiais que o poder proporciona. O que vai além disso se deixou impregnar pelo autoritarismo que sustenta regimes como os do Irã, Coreia do Norte e China, no Oriente, e Cuba e as repúblicas "bolivarianas" da Venezuela, Equador, Bolívia e Nicarágua, no Ocidente. Ou seja, as autocracias às quais a diplomacia do governo petista se aliou.

Lula, a bem da verdade, não tem formação marxista - ou qualquer outra. Foi sempre um pragmático, avesso a dogmatismos. Forjado na luta sindical, seu pensamento se resume ao confronto de interesses entre empregados e patrões. O resultado desse pragmatismo é a indigência de valores que, como nunca antes na história deste país, predomina hoje na vida política nacional e tem seu melhor exemplo no nosso desmoralizado Parlamento.

Mas Lula é líder popular consagrado, glória que lhe subiu à cabeça e lhe permite acreditar no que quiser, inclusive que se parece com Abraham Lincoln. Editorial O Estadão

LINCOLN, LULA E A "COMPRA DE VOTOS"

Por que episódios semelhantes levam a resultados díspares?


Motivado pela última obra de Spielberg, voltamos a refletir sobre o episódio da aprovação da 13ª emenda à Constituição americana como um exemplo paradigmático de um líder político que foi capaz de aproveitar uma janela de oportunidade para mudar dramaticamente a história do seu país. Embora o Partido Republicano, do presidente Abraham Lincoln, desfrutasse da maioria de cadeiras nas duas Casas Legislativas, não reunia votos suficientes para aprovar no Senado a reforma que acabaria com a escravidão. O cenário politico era de Guerra Civil e, mesmo assim, Lincoln conseguiu unificar as mais variadas facções do Partido Republicano com o argumento de que o fim da escravidão seria condição necessária para que a guerra acabasse. Lincoln sabia que, com a rendição do sul, seria praticamente impossível manter seu partido unido em favor da aprovação da emenda.

Presumindo que todos os republicanos votariam a favor, ainda seria necessário convencer 20 senadores democratas que não haviam sido reeleitos. Esse foi o contexto em que Lincoln enxergou uma janela de oportunidade ao oferecer empregos públicos aos senadores democratas em troca de apoio. No jargão da ciência política, Lincoln fez uso de patronagem. O presidente cogitou comprar apoio com dinheiro vivo, mas tendo sido desencorajado por assessores, decidiu então enviar intermediários de sua confiança para negociar a adesão dos senadores em troca de empregos. Não tendo sido plenamente bem sucedido, Lincoln foi obrigado a "sujar" as próprias mãos, negociando diretamente o apoio de alguns senadores relutantes. Após a aprovação da emenda, Lincoln se reúne com a comissão de confederados do sul e negocia os termos de rendição, que levou ao fim da Guerra Civil e o fez entrar para a história.

No caso brasileiro, o presidente Lula percebeu, logo no início do seu primeiro mandato, que seria necessário encontrar formas de cortar custos e aumentar receitas. A opção foi reformar os sistemas tributário e previdenciário, agenda que criaria controvérsias inclusive no seu próprio partido. Dada a condição de minoria, o governo Lula optou por uma via rápida para a realização de sua agenda, "comprando" o apoio de partidos (não apenas de dentro, mas também de fora da coalizão).

Essas reformas só seriam aprovadas com os votos dos dois principais partidos de oposição. A reforma da Previdência, por exemplo, foi aprovada com 357 votos na Câmara dos Deputados em dois turnos. Porém, o governo recebeu apenas 213 votos dos membros de sua coalizão, um número muito menor do que os 308 necessários. O próprio PT enfrentou 4 defecções e 7 abstenções. O PSDB e PFL, além de compartilharem dessa agenda de reformas, foram fartamente recompensados com a execução de mais de 75% das emendas individuais ao Orçamento da União em 2003. Como a grande maioria de ministérios (60%) foi monopolizada pelo PT e os recursos de emendas ao Orçamento foram direcionados para os partidos de oposição, restou ao governo Lula montar um esquema paralelo e ilegal de compensação para os membros de sua própria coalizão, mantendo-os com isso unidos e disciplinados.

Os principais envolvidos no esquema, apelidado de mensalão, foram julgados culpados e exemplarmente condenados pelo Supremo Tribunal Federal. Além disso, o procurador-geral da República acaba de encaminhar para a primeira instância do Ministério Público Federal de Minas Gerais o depoimento do principal articulador financeiro do mensalão, Marcos Valério, que acusa o ex-presidente Lula de ter recebido recursos do mesmo esquema. Se as investigações prosseguirem e mais evidências da participação do ex-presidente forem encontradas, Lula corre o risco de enfrentar ainda mais custos reputacionais e/ou judiciais, além de 'sair' da história pelo seu legado de envolvimento em corrupção.

Por que episódios de compra de votos, aparentemente semelhantes, podem apresentar resultados tão díspares para o legado de seus governantes?

Uma possível resposta atribui as ações desviantes a uma eventual nobreza dos fins perseguidos. Ou seja, enquanto Lincoln foi capaz de acabar com a escravidão e colocar um ponto final na Guerra Civil, trocando apoio político por cargos públicos, o governo Lula conseguiu basicamente aprovar poucas reformas e governabilidade junto ao Legislativo fazendo uso do mensalão. Tal receita é perigosa, pois relativiza os malfeitos. Lincoln fez uso de patronagem, mas o governo Lula extrapolou, além da patronagem também fez uso de dinheiro público em quantias vultosas.

Outra resposta estaria relacionada à capacidade das instituições de freios e contrapesos de fiscalizarem e punirem desvios de governantes. Lincoln recorreu a ferramentas questionáveis de governo há 150 anos, quando o acesso à informação era restrita, a qualidade da burocracia pública embrionária, a independência das instituições de controle débil, enfim, em um momento histórico de construção do estado de direito muito diferente e incipiente. Nas democracias atuais, tanto a opinião pública quanto as instituições de controle são mais vigilantes a violações da moralidade pública. A barganha política sem princípios gera mais custos.

Uma terceira explicação estaria diretamente relacionada à diferença de instrumentos de governo e poderes constitucionais e de agenda do presidente. O presidente Lula dispunha de fortes ferramentas para implementação de sua agenda política no Legislativo (tais como medida provisória, poder de urgência, poderes orçamentários etc). Portanto, o uso de ferramentas não legais ou meios desviantes para a implementação de sua agenda se torna ainda menos escusável.

O sistema presidencialista americano, desde Lincoln até hoje, caracteriza-se por ter um Executivo com parcos poderes unilaterais de governo. Além do mais, Lincoln teve que lidar com um Congresso poderoso, especialmente no século XIX, e sob Guerra Civil que ameaçava o projeto unificado de república. É surpreendente que o governo Lula não considerasse suficientes os meios constitucionais de imposição de seu projeto de governo e ferisse, com isso, a imagem histórica de ética que seu partido político apregoou desde sua fundação. Por: Carlos Pereira Valor Econômico

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O MUNDO ENCANTADO DOS KEYNESIANOS

O caleidoscópio de Lachmann e o mundo encantado de keynesianos, monetaristas e novos clássicos
Obs: o artigo a seguir é a primeira parte de um texto escrito especialmente para a futura revista acadêmica do IMB.
1. Introdução

Uma das questões mais instigantes da teoria econômica é a discussão sobre a existência ou ausência de equilíbrio nos mercados. As diversas abordagens alternativas são para todos os gostos: há as que negam qualquer possibilidade de equilíbrio nos mercados, as que asseguram que os mercados sempre estão em equilíbrio e as que se colocam como um meio termo, tratando o equilíbrio como uma tendência para a qual tendem os mercados.

Entre os que negam peremptoriamente qualquer possibilidade de equilíbrio nos mercados o mais conhecido é o economista da Escola Austríaca Ludwig Lachmann, nascido na Alemanha, com sua sociedade caleidoscópica; entre os que tratam o equilíbrio como algo permanente — e imediato — o mais famoso é Robert Lucas, o principal mentor da chamada Escola de Expectativas Racionais; e entre os que enxergam os mercados como tendendo para o equilíbrio, mas sem que esse equilíbrio seja atingido, em razão de mudanças de circunstâncias de tempo e espaço, encontramos a maioria dos economistas austríacos, desde Carl Menger e especialmente Mises, Hayek e Kirzner. O objetivo deste paper é mostrar essas três visões, passando em revista a questão do equilíbrio.

2. Ludwig Lachmann e a negação do equilíbrio nos mercados

Ludwig Lachmann (1906-1990) acreditava que a Escola Austríaca havia se desviado da visão original de Menger, descurando-se de seu subjetivismo original e defendia que ela deveria ser baseada em uma perspectiva evolucionária, ou "genético-casual", como contraponto ao equilíbrio e às hipóteses de conhecimento perfeito da economia neoclássica. Mudou-se para a Inglaterra em 1933 e foi aluno e colega de Hayek na London School of Economics, o que aumentou seu interesse pela Escola Austríaca. A LSE na época era um centro de economia famoso, que abrigava, além de Hayek, o próprio Keynes e outros economistas de renome, que viriam a se tornar keynesianos. Em 1948, se mudou para Joanesburgo, onde foi aceito como professor na Universidade de Witwatersrand e onde viveu até o fim de seus dias.

A posição de Ludwig Lachmann difere radicalmente das demais, tanto austríacas como neoclássicas: sua visão do processo de mercado representa uma forte crítica, seja ao conceito neoclássico de equilíbrio, seja à explicação alternativa de Mises, Hayek e Kirzner. Lachmann foi bastante influenciado pelo pensamento de George Lennox Sharman Shackle (1903-1992), um keynesiano ultra-subjetivista que descartava tanto o equilíbrio como a existência de qualquer tendência coordenadora no mercado. Para ele, as forças que levam os mercados a desequilíbrios merecem o mesmo tratamento que o dispensado pelos economistas às forças que promovem o equilíbrio, pelo motivo de que os processos de mercado são formados por ambas, o que implica que, de acordo com circunstâncias diferentes, umas prevaleçam sobre as outras, gerando, assim, processos com características diferentes.

A idéia central de Lachmann é que o conceito de mercado em equilíbrio deve ser inteiramente abandonado, uma vez que pressupõe que as forças "equilibradoras" ou "coordenadoras" prevaleçam sempre sobre as forças "desequilibradoras" ou "descoordenadoras". Segundo sua visão, o mercado deve ser, portanto, interpretado como "um processo econômico, isto é, um processo em marcha, impulsionado pela diversidade de objetivos e recursos e pela divergência das expectativas, variando em um mundo de mudanças inesperadas". Ou, como escreveu em outra ocasião, o mercado deve ser considerado como "um processo sem princípio nem fim". Nisto, sem dúvida, ele não diferia da tendência prevalecente entre a maioria dos austríacos.

Observemos que os agentes econômicos, na concepção lachmaniana, agem em um mundo de características muito diferentes das que são normalmente consideradas: o subjetivismo radical está em um polo diametralmente oposto ao do equilíbrio geral, caracterizando-se por considerar que as variáveis são extremamente voláteis e as mudanças contínuas e incessantes. Shackle descreveu essa ordem econômica como um "processo caleidoscópico", marcado por avalanches sucessivas de reajustes em busca de novos, precários e efêmeros "pseudoequilíbrios".

A figura 1 ilustra a evolução desse mercado caleidoscópico para um determinado bem ao longo de vários momentos do tempo, que é representado no eixo diagonal. No gráfico, p é o preço, q a quantidade, S a oferta e D a demanda pelo bem. O tempo atual é tj e tm; ts e tu representam instantes futuros ao longo do tempo. Não há como conhecer o futuro, daí os pontos de interrogação nas curvas de demanda e oferta futuras, isto é, em tm, ts e tu.



Temos, assim, duas tendências na Escola Austríaca, que refletem duas abordagens diferentes do mercado: a de Lachmann e Shackle (embora este último não possa ser considerado, a rigor, um austríaco), que encara os mercados como processos simplesmente ordenados e que não vê necessidade em se postular uma tendência ao equilíbrio para que os processos de mercado sejam inteligíveis e a de Mises, Hayek, Kirzner e a maioria dosaustríacos, que enxerga os mercados como processos de coordenação, que tendem ao equilíbrio, embora não o alcancem, rechaçando tanto o extremo do equilíbrio geral quanto o do subjetivismo extremado, com base no argumento — bastante plausível — de que os indivíduos, ao atuarem nos mercados, se defrontam com circunstâncias que nem são fixas nem, tampouco, mudam incessantemente, o que lhes permite descobrir gradualmente quais as alternativas que tendem a aumentar sua utilidade, superando assim paulatinamente a limitação de seu conhecimento.

Esse às vezes denominado "fundamentalismo austríaco" (no sentido do subjetivismo levado às últimas consequências) de Lachmann era raro. Ele ressaltou a distinção de sua visão em alguns temas como o subjetivismo inerente à economia, o conhecimento imperfeito, a heterogeneidade do capital (foi um estudioso da obra de Böhm-Baverk e escreveu bastante sobre a teoria do capital), os ciclos econômicos, o individualismo metodológico e o processo de mercado, que via, tal como Shackle, como um caleidoscópio. Seu pensamento serve hoje como base de uma vertente de "subjetivismo radical" da Escola Austríaca de Economia.

Não é difícil intuir que toda a nossa discussão deverá necessariamente enfatizar a maneira como o fator tempo é incluído ou considerado em cada teoria. Para Lachmann, introduzir o tempo na análise econômica é o mesmo que introduzir sua proposição fundamental, a do desconhecimento (unknowability). Ora, ao fazer isso, ele coloca imediatamente dúvidas quanto à existência, ou pelo menos a eficácia de forças que operam ao longo do tempo para efetuar um equilíbrio intertemporal. Não podemos saber o futuro, e não temos razão para acreditar que o mercado vai se comportar como se o futuro fosse conhecido. Nós não temos nenhuma razão para acreditar que o mercado, por exemplo, de pneus de hoje é coordenado com o mercado de automóveis de amanhã.

Notemos que o conceito relevante de tempo aqui não é o de tempo newtoniano ou estático, associado a um eixo que correlaciona espaço e tempo, mas o de tempo subjetivo ou dinâmico, que significa um fluxo contínuo de novas experiências, as quais não estão no tempo, mas são o próprio tempo.

A incognoscibilidade fundamental associada com o elemento tempo fica mais fácil de ser entendida se olharmos para as expectativas dos participantes do mercado e como estes afetam o desenrolar do processo de mercado e são afetados por ele. Na microeconomia e na macroeconomia, as expectativas representam um problema sempre que acontece uma mudança em alguma condição de mercado, seja na oferta ou na demanda. Podemos deduzir que mudanças de preço e quantidades acontecerão sob as novas condições de mercado apenas apelando para a famosa suposição ceteris paribus. Mas o estado de expectativas não pode ser apreendido desta suposição. A mudança de uma condição de mercado pode causar expectativas sobre as condições futuras do mercado — e, portanto, sobre os preços futuros, que a levem a mudar novamente. Nós não podemos prever, no entanto, como estas expectativas serão formadas e reformuladas. Mudanças nas expectativas, então, não são nem uma variável exógena nem uma variável endógena.

Embora não possamos afirmar com segurança que as expectativas sejam consistentes com os preços concorrentes, podemos imaginar que sejam: o futuro não apenas é desconhecido, ele é desconhecível mas nada impede que possa ser imaginado. Se as expectativas podem ser assim consideradas, a análise usual de oferta e demanda á aplicável. Mas também podemos imaginar que as expectativas sobre um determinado preço, por exemplo, mudem e podemos supor que a mudança seja em qualquer sentido. Suponha que um aumento na oferta de pneus provoque uma queda no preço dos pneus. As expectativas de que o preço médio do pneu voltará logo a seu nível anterior fará com que a demanda de pneus aumente, pois os compradores tentarão tirar vantagem de uma oportunidade que é percebida como temporária.

Por outro lado, se as expectativas forem de que o preço dos pneus vai continuar a cair, a demanda vai diminuir, porque os compradores assim esperam para tirar proveito de uma oportunidade ainda melhor no futuro. Como Lachmann reconhece várias vezes, é possível classificar as expectativas como sendo "elásticas" ou "inelásticas" com respeito às alterações de preços, mas prever qual será o caso em uma situação particular é outro problema. Aqui devemos notar que a recomendação de Keynes de que preços e salários não podem cair em resposta ao desemprego generalizado foi baseada na suposição de que as expectativas seriam perversamente elásticas, ou seja, em um caso particular.

Sobre a questão do mercado de bens de capital de longo prazo, a visão de Lachmann está em perfeito acordo com a discussão de Keynes de expectativas de longo prazo. O preço atual de um iPhone reflete as expectativas sobre o preço do iPhone, tanto agora como no futuro. Mas o fato de que o objeto das expectativas está, em parte, no futuro distante é que é o problema, uma vez que os preços no futuro distante são inerentemente mais difíceis de serem previstos pelos participantes do mercado. Os preços atuais e as mudanças nos preços atuais podem — e muitas vezes isso acontece — proporcionar pouca ou nenhuma base para tais previsões. E, ainda, mais tempo terá que passar antes que as previsões atuais, formadas em qualquer base, posam ser demonstradas como corretas ou incorretas. Em que base alguém pode alegar que essas expectativas tendem a ser corretas e que a ação humana nos mercados ao longo do tempo com base nessas expectativas tendem a conduzir o mercado ao equilíbrio? Este é o ponto de Lachmann.

O problema das expectativas pode ser reformulado em um contexto macroeconômico simplesmente pela extrapolação dos pneus para os bens de consumo e de automóveis para bens de investimento ou de capital. Os investidores devem investir hoje, com base em suas expectativas atuais sobre os gastos de consumo em futuro relativamente distante. Essas expectativas podem ser baseadas em parte no nível atual (ou em mudanças neste) das despesas de consumo. Mas não é possível especificar como as despesas correntes são transplantadas em expectativas sobre as despesas futuras.

Podemos imaginar que uma redução nos gastos de consumo corrente seja considerada como uma indicação de que os consumidores estão poupando agora, a fim de poderem consumir mais no futuro. Tais expectativas, é claro, estimulariam os gastos de investimento atual, de modo a se produzir uma quantidade maior de bens de consumo disponíveis exatamente no tempo que os consumidores estarão dispostos a consumir mais. [Notemos que este caso é um exemplo claro da famosa Quarta Proposição de John Stuart Mill: "demanda por bens de consumo não é o mesmo que demanda por trabalho"].

Poderíamos também supor que a abstinência de gastos de consumo está servindo apenas para atingir um nível mais elevado permanentemente de saldos monetários. Se isso for corretamente refletido nas expectativas, este aumento na demanda de moeda teria apenas um efeito transitório no produto real e no consumo real. Ou poderíamos imaginar que uma redução nos gastos do consumidor é tomada como uma indicação de que os consumidores pretendem usufruir mais tempo de lazer. Se esse for o caso, as expectativas retardariam os investimentos até o ponto em que a disponibilidade de bens de consumo caísse para um nível compatível e consistente com o nível mais baixo de gastos de consumo.

Se imaginarmos que as expectativas dos investidores coincidem com as intenções dos consumidores, estaremos descartando o importante problema da coordenação intertemporal. Se considerarmos, como Keynes, que os gastos de consumo corrente são sempre o melhor indicador dos gastos de consumo futuro, estaremos assumindo a inevitabilidade da descoordenação intertemporal. Quando os consumidores consomem menos agora, a fim de poderem consumir mais no futuro, eles encontrarão, nesse futuro, uma disponibilidade menor, em vez de maior, de bens de consumo

Lachmann se abstém de afirmar alguma perversidade inerente ao processo de mercado: ele simplesmente deixa a questão sobre se podemos ou não contar com forças de equilíbrio para atingir a coordenação intertemporal em aberto, para ser considerada em algum momento futuro. Então, mesmo a afirmação de uma tendência para o equilíbrio intertemporal tem que ser qualificada e este é para Lachmann um entre outros problemas subjacentes à noção de equilíbrio.

3. Robert Lucas e a existência permanente de equilíbrio nos mercados

Lachmann faz uma distinção categórica entre o presente, em que os participantes do mercado sabem o suficiente para encontrar o equilíbrio em cada mercado, e o futuro, que é incognoscível. Já Robert Lucas nega essa distinção, pela maneira particular de tratar o problema das expectativas. O futuro, tanto o próximo como o distante, é considerado como se fosse analiticamente equivalente ao presente. Para Lucas, o problema da coordenação intertemporal, então, não é diferente do problema da, por exemplo, coordenação interespacial. Tempo e o espaço podem ser dimensionalmente diferentes para o físico, mas não para o economista, na visão de Lucas. Essas visões polares da distinção entre o presente e o futuro e do significado da passagem do tempo são os elementos que colocam Lachmann e Lucas em polos opostos em relação à questão das tendências ao equilíbrio nos mercados.

Na chamada "revolução das expectativas racionais", os modelos econômicos trabalham com três hipóteses fundamentais: a primeira é que todos os agentes econômicos estão permanentemente em seus pontos "ótimos", ou seja, os consumidores maximizando sua satisfação, os empresários os seus lucros, os poupadores o seu retorno, etc.; o segundo é que todos os preços são inteiramente flexíveis, tanto para cima como para baixo (daí os economistas da Escola de Expectativas Racionais serem conhecidos também como "novos clássicos"; e a terceira é a hipótese de que as expectativas dos agentes econômicos são racionais, o que pode ser traduzido como a suposição de que, na média, eles formulam expectativas para o período t+1 para uma variável qualquer, no final do período precedente, t, com base nas informações disponíveis neste período e, quando chega o período t+1, a esperança matemática (média) dessas expectativas se revela como correta.

Isto revolucionou a teoria econômica, especialmente a macroeconomia, a partir dos anos 70 e foi um duro golpe contra o keynesianismo, porque, com a hipótese de expectativas racionais, as políticas keynesianas de sintonia fina não produzem nenhum efeito sobre as variáveis reais, nem mesmo no curto prazo (os monetaristas acreditavam e ainda creem que no curto prazo essas políticas tinham e têm algum êxito, embora temporário e osneokeynesianos acreditam piamente que seus efeitos podem ser permanentes).

Esta conclusão de Lucas de que as políticas de expansão da demanda são ineficazes mesmo no curto prazo ficou conhecida como a proposição da invariância. Além disso, expansões na taxa de crescimento monetário também não produziriam nenhum efeito sobre a taxa de crescimento da economia, resultado conhecido como a superneutralidade da moeda.

Na figura 2, podemos comparar os resultados de uma política keynesiana de expansão da demanda nos modelos de Milton Friedman e dos monetaristas (com expectativas adaptativas) com os dos modelos de expectativas racionais de Bob Lucas e dos novos clássicos. No gráfico, P representa o "nível de preços", y o "PIB", S a oferta "agregada" e D a demanda "agregada"; yn, por sua vez, é o nível normal ou natural do produto e admite-se que a economia esteja no ponto A, com as expectativas ajustadas e que o nível de preços seja P0. Suponhamos que o governo expanda a demanda agregada (por exemplo, emitindo moeda) de D0 para D1.

No modelo monetarista, a economia iria de A para A', o PIB subiria de yn para y' e os preços também subiriam de P0 para P'. O governo, transitoriamente, conseguiria aumentar o PIB. Mas, com o decorrer do tempo os agentes econômicos perceberiam que o nível de preços observado, P', já era maior do que o esperado inicialmente, P0. Isso provocaria reajustes de custos, deslocando paulatinamente, por um processo de revisão das expectativas de preços (adaptativas, ou seja, mediante consertos nos erros do passado), a oferta agregada para a esquerda e para cima, de S0 para S1, eliminando assim o efeito positivo inicial da expansão monetária. A linha vertical que passa por yn representa, para os monetaristas a "curva de oferta agregada de longo prazo", definida como o lugar geométrico dos pares (y, P) em que as expectativas de preços estão corretas.

Já com expectativas racionais a expansão monetária levaria imediatamente a economia do ponto A para o ponto B, porque os agentes antecipariam o resultado final da política expansionista do governo. É a proposição da invariância a que aludimos, ou seja, o produto real (y) não varia em resposta a políticas anti-cíclicas.



Esses modelos — tanto o de Friedman como o de Lucas — pecam essencialmente, para não nos alongarmos muito, em cinco pontos: o primeiro é que trabalham com "agregados", algo inexistente no mundo real; o segundo é que em ambos a moeda nova "entra" na economia de maneira uniforme, como se em cada m2 do país um helicóptero do Banco Central despejasse, digamos, uma cédula de 50 reais; o terceiro é que se baseiam em uma metodologia positivista, completamente inadequada para uma ciência como a economia; o quarto é que ambos carecem de uma teoria do capital (qualquer que esta viesse a ser) e isto é fatal para sua invalidação como ferramenta que possa descrever o mundo dos negócios; e o quinto é que mudanças na oferta monetária (bem como nos gastos do governo) não afetam os preços relativos, o que é um verdadeiro absurdo em se tratando da economia real, já que a moeda nova "cai" em pontos específicos da estrutura de capital da economia e daí vai se espalhando como os círculos que se formam quando jogamos uma pedrinha em um lago. 

Adotando o termo expectativas racionais, cunhado por John Muth em 1961 e o aprofundando, Robert Lucas conseguiu a mágica de trazer todo o futuro para o presente. Racionalidade, para Muth, Lucas e os que o seguiram, como Thomas Sargent e Neil Wallace, não significa a usual "transitividade das funções de preferência", nem a ideia de comportamento intencional de estirpe austríaca (ação humana), mas ao resultado estatístico de que as expectativas são ditas racionais quando a probabilidades subjetivas na percepção dos participantes do mercado coincidem com as verdadeiras probabilidades de ocorrência dos eventos em estudo.

A figura 3 mostra como, sob a hipótese de expectativas racionais, o futuro é trazido imediatamente para o presente: tu, ts e tm, que são instantes de tempo no futuro, são trazidos para tj, que é o período atual. Assim, todas as decisões podem ser tomadas agora, sem necessidade de esperar pelo futuro. Pode-se, por exemplo, resolver comprar hoje um imóvel, porque você já sabe com certeza que seu valor em, digamos, quinze anos, será fantástico. É evidente que modelos desse tipo podem ser elegantes sob o ponto de vista matemático e estatístico, mas, em termos de explicar o mundo real, são uma brincadeira de faz-de-conta.



Para Lucas, a hipótese de expectativas racionais se aplica a todos os campos da teoria econômica. Sob condições de incerteza genuína, nmhum participante do mercado tem uma base para a formação de probabilidades subjetivas, Mas, sob tais condições, nenhum economista tem qualquer sustentação para a aplicação de qualquer argumento econômico. Em todas as outras condições, o raciocínio econômico é aplicável e as expectativas são consideradas como racionais. Sendo assim, as hipóteses seriam capazes de incorporar tanto os preços reais como as expectativas de preços, em perfeita igualdade.

Para Lachmann, naturalmente, essa visão está absolutamente equivocada.. Na ausência de incerteza genuína, a análise econômica reduz-se a um conjunto de exercícios de maximização de funções que estão mais para a engenharia do que para a economia. O processo de mercado — contrariamente aos seus resultados finais sob a condição assumida de ausência de incerteza, ou seja, de expectativas racionais — está sempre se modificando com a passagem do tempo e, portanto, sempre existem incertezas genuínas. No mundo real, os participantes do mercado são obrigados a tomar decisões sem saberem quais dentre as probabilidades relevantes são verdadeiras e também sem conhecerem todo o espectro de resultados possíveis. Roger Garrison afirma que, se Lachmann tivesse que adotar a terminologia de Lucas, ele provavelmente diria que as expectativas, em seu próprio ponto de vista, são desprovidas de racionalidade ("arrational").

Observemos que a noção de expectativas racionais não fornece uma base útil para a identificação de teorias alternativas que se baseiem em algum comportamento explícita ou implicitamente tido como irracional por parte dos agentes. Resultados teóricos que dependem de trabalhadores sistematicamente sobrestimando o seu salário real ou investidores sobrestimando seus ganhos perdem credibilidade, a não ser que tais erros sistemáticos possam ser explicados em termos de conhecimento e restrições enfrentadas pelos participantes do mercado. A visão crítica das expectativas racionais, para efeito de compará-las com as visões de Lachmann e a de Mises, Hayek e Kirzner não pretende discutir comportamentos irracionais desses vários tipos, mas sim enfatizar o aspecto de ausência de racionalidade ("arrationality") exigidos pela hipótese de incerteza genuína, que é fundamental para o subjetivismo da Escola Austríaca.

Lachmann é completamente cético sobre a existência de efetivas tendências equilibrantes, ao passo que Lucas toma como certos os resultados finais dessas tendências. Em suas construções teóricas, mesmo as voltadas para explicar os ciclos econômicos, ele admite que preços e quantidades sempre estão em equilíbrio. Dessa forma, Lucas não deixa qualquer possibilidade para a ausência de coordenação intertemporal, que é justamente o que, na formulação austríaca, o que caracteriza os ciclos. Para irmos além, em Lucas e nos novos clássicos não há qualquer possibilidade de ausência de coordenação de qualquer espécie..

Lucas não deixa claro se os "modelos de equilíbrio dos ciclos de negócios" ("equilibrium models of business cycles")consideram os ciclos econômicos como sendo um "problema" em algum sentido. Mas o fato de Lucas tratar os ciclos como um fenômeno de equilíbrio constitui mais um motivo para localizá-lo no polo oposto ao de Lachmann. Para este, quando o passar do tempo é levado em conta, as tendências de equilíbrio são postas em xeque, enquanto para Lucas nem mesmo o decorrer do tempo atravessando um ciclo completo e até mesmo além deste nos obriga a relaxarmos o pressuposto de equilíbrio. Entre o caleidoscópio de Lachman e a economia do faz-de-conta das expectativas racionais há visões intermediárias sobre as perspectivas de possibilidade de se alcançar a coordenação intertemporal. As visões de Mises, Hayek e Kirzner são bastante interessantes, exatamente por causa da importância que esses autores — bem como a maioria dos austríacos — devotam ao problema da coordenação intertemporal.

Elas serão analisadas na parte final deste artigo.  (Clique aqui para ir para a parte final)

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Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).  Visite seu website.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA

A questão da obsolescência programada - quanto tempo as coisas devem durar?


John Kenneth Galbraith, aquele insuportável moralista, escreveu em 1958 um bizarro livro intitulado A Sociedade Afluente, o qual exerceu uma enorme influência sobre várias gerações de ativistas anti-mercado. A ideia do livro era a de descaradamente alterar os termos do debate sobre socialismo e capitalismo. Se antes os socialistas argumentavam que o capitalismo produzia muito pouco, agora eles haviam mudado de ideia, utilizando a nova retórica de Galbraith, passaram a dizer que o capitalismo na verdade produz de forma excessiva as coisas erradas (coisas para serem consumidas) e muito pouco das coisas certas (bens públicos, igualdade etc.).

Um dos vários alvos do livro era a chamada "obsolescência programada" — a prática dos fabricantes de criar e desenvolver seus produtos de modo que eles se desgastem rapidamente e estraguem em um determinado momento no futuro, o que obrigaria os consumidores a terem de sair para comprar um novo e similar produto. Segundo esta teoria, para disfarçar esta obsolescência programada, estes espertos fabricantes fazem algumas mudanças cosméticas no produto para dar a impressão de que houve algum aprimoramento, mas tudo não passa de um mero truque para enganar o consumidor e fazê-lo crer que vale a pena pagar por este item remodelado, quando na verdade ele estaria apenas sendo espoliado, pois estaria pagando duas vezes por aquilo que deveria ser comprado apenas uma vez.

O problema é que há várias pressuposições artificiais e insustentáveis nesta premissa. Primeiro, o modelo presume que os fabricantes são muito mais espertos do que os consumidores, que são tratados como vítimas passivas e inanimadas dos poderosos interesses dos capitalistas. Com efeito, no mundo real, são os fabricantes que estão sempre implorando para que os consumidores sejam mais fieis às marcas e menos instáveis, imprevisíveis, minuciosos, discriminadores e exigentes. Tudo que um fabricante quer é que seu consumidor não abandone seu produto em prol de outros sem nenhum motivo racional ou aparente.

Segundo, o modelo pressupõe, de forma excêntrica e normativa, que os produtos devem durar o máximo de tempo possível. Mas a realidade é que não existe nenhuma preferência de mercado predefinida acerca de quanto tempo os bens devem durar. Esta é uma característica de fabricação que é determinada totalmente pela demanda dos consumidores. 

E sempre vale lembrar que, na medida em que os fabricantes possuem algum poder de impor seus gostos aos consumidores, isso ocorre apenas em economias fechadas (cujas importações são dificultadas pelo governo) e em economias excessivamente reguladas e burocratizadas, em que não há livre entrada de concorrentes no mercado.

Estes "argumentos" galbraithianos voltaram com força total recentemente, pois vários comentaristas da mídia observaram que utensílios de cozinha e outros aparelhos elétricos, bem como vários outros produtos, simplesmente parecem não durar tanto quanto duravam antigamente. Naqueles bons e velhos tempos, você ganhava um liquidificador de presente de casamento e, dali a vários anos, a sua filha ainda o utilizaria sempre que chegasse da faculdade. Nos dias de hoje, temos sorte se um liquidificador ou uma batedeira durarem alguns poucos anos. O mesmo parece ser válido para máquinas de lavar e secadoras, roupas e equipamentos eletrônicos, amoladores e cortadores de grama, e até mesmo imóveis. Nada dura o mesmo tanto ou possui a mesma robustez que antigamente.

Mas seria isso um argumento contra o mercado ou seria meramente um reflexo da preferência dos consumidores por valores (preços baixos, tecnologia de última geração, e várias outras amenidades) em detrimento da longevidade? Sugiro que seja esta última. Com a acentuada inovação tecnológica que vivenciamos, vários processos de produção se tornaram mais eficientes e, logo, mais baratos. Consequentemente, faz mais sentido substituir continuamente um produto do que criar um que dure para sempre. Você prefere um liquidificador de $200 que dure 30 anos ou um liquidificador de $10 que dure cinco anos? Aquilo que os consumidores preferem no longo prazo será aquilo que irá dominar o mercado.

Como podemos estar certos disso? Concorrência. Digamos que todos os fabricantes produzam liquidificadores que durem apenas 5 anos, e que este fato seja amplamente desprezado pelos consumidores. Um fabricante poderia roubar vários clientes da concorrência ao ofertar um produto que enfatize a longevidade em detrimento de outros aspectos. Se os consumidores realmente valorizam a longevidade, eles estarão dispostos a pagar a diferença. A mesma lógica se aplica a automóveis, computadores, apetrechos eletrônicos, imóveis e tudo mais. Podemos saber qual é a preferência dominante (em um livre mercado) ao simplesmente olharmos qual prática é a mais comum no mercado.

Imagine que um fabricante de computadores produzisse uma máquina que fosse comercializada como sendo um computador de duração vitalícia, o último computador que você necessitaria ter enquanto vivesse, completo com softwares que irão similarmente durar para sempre. Qualquer pessoa com algum conhecimento seria cética quanto a essa proposta, pois é fácil perceber que este arranjo é a última coisa que você realmente quer. Idealmente, o seu computador deve durar o tempo que você quiser que ele dure até você estar pronto para adquirir um modelo superior. Longe de ser uma espoliação, portanto, a obsolescência é um sinal de crescente prosperidade.

Em uma época de maciços e frequentes aprimoramentos tecnológicos, seria um enorme desperdício se os fabricantes direcionassem recursos caros e escassos para a manufatura de produtos que durassem muito além de sua utilidade. No caso de computadores, por exemplo, fazer com que todos eles durassem mais de 6 anos seria um grande erro no ambiente de hoje. Ele seria caro e rapidamente já estaria obsoleto. O mesmo, inclusive, pode ser dito sobre casas. Todos sabem que casas antigas podem ser charmosas, mas também são extremamente difíceis de serem manuseadas em termos de aquecimento, refrigeração, encanamento, fiação e todas as outras amenidades. Em determinados casos, a solução mais eficiente pode ser simplesmente a de derrubar a casa antiga e construir uma nova em vez de tentar implementar várias melhorias na antiga.

Existe desperdício apenas quando você força o quesito longevidade em detrimento do aperfeiçoamento tecnológico. Um indivíduo consumidor é livre para querer isso e buscar produtos que tenham essa configuração, mas não há nenhuma base para se declarar que tal preferência é a melhor e, por isso, deveria ser fixa e imutável para todos. Não vivemos, e nem queremos viver, em um mundo estático, no qual o desenvolvimento jamais ocorre, onde o que existe sempre existiu e sempre irá existir.

Pense em termos de vestuário, mobílias e outros bens. À medida que a renda disponível das pessoas vai aumentando, elas querem ser capazes de substituir o que usam de acordo com sua mudança de gostos. Uma sociedade em que as roupas fossem sempre remendadas, os aparelhos eletrônicos fossem sempre consertados, e todos os produtos sofressem a famosa "gambiarra" para que pudessem se arrastar o máximo de tempo possível não seria uma sociedade rica. Poder descartar o que está desgastado e quebrado é um sinal de crescente riqueza e prosperidade.

É comum as pessoas olharem para uma porta oca ou para uma mesa simples de madeira compensada e dizer: "Que coisa barata e fajuta! Antigamente, os marceneiros e artesãos se preocupavam com a qualidade do que faziam! Já hoje ninguém se importa com nada, e acabamos rodeados por coisas baixa qualidade!" Bem, a verdade é que aquilo que chamamos de 'alta qualidade do passado' não estava disponível para as massas com a mesma facilidade que está hoje. Automóveis, casas e alguns outros utensílios podiam até ser mais duráveis no passado, mas eram muito poucas as pessoas capazes de adquirir aqueles produtos, pois eles eram muito mais caros (em termos reais). Hoje, um mesmo produto está disponível para todas as classes sociais, sua qualidade variando exatamente de acordo com seu preço. Nada é mais inclusivo do que isso.

Em uma economia de mercado, aquilo que é chamado de 'qualidade' é algo que está sempre sujeito a mudanças de acordo com as preferências do público consumidor. Se os produtos devem ser vitalícios (como alianças de casamento) ou devem durar apenas um dia (pão fresco) é algo que não pode ser determinado fora do arcabouço de uma economia de mercado. Nenhum planejador central pode dizer com certeza e exatidão. É algo constantemente sujeito a mudanças.

Se o seu livro se despedaça, se suas roupas se rasgam com facilidade ou se a sua máquina de lavar repentinamente pára de funcionar, resista à tentação de denunciar o declínio da civilização. Lembre-se de que você pode substituir todos estes itens a uma fração do preço que sua mãe ou sua avó tiveram de pagar por eles. E você pode fazer isso rapidamente, com o mínimo de aborrecimento e transtorno. Você pode até comprar pela internet, sem ter de sair de casa. E é bastante provável que as novas versões do produto que você comprar tenham mais apetrechos e amenidades do que as antigas.

Pode chamar isso de obsolescência programada caso queira. Ela é programada pelos fabricantes porque os consumidores preferem o aperfeiçoamento à continuidade, a disponibilidade à longevidade, a substitutibilidade à reparabilidade, o progresso e a mudança à durabilidade. Não se trata de desperdício justamente porque estão sendo utilizados os processos de produção de menor custo possível. Ademais, não há um padrão eterno e imutável por meio do qual podemos mensurar e avaliar a racionalidade econômica por trás do uso de recursos na sociedade. Isso é algo que pode ser determinado e julgado somente por indivíduos utilizando recursos escassos em um arranjo de mercado.

É claro que uma pessoa deve ser livre para morar em uma gélida casa de pedra, para ouvir música em uma vitrola, para lavar roupas sobre uma tábua com um esfregão, para marcar as horas com um relógio de sol ou com uma ampulheta, e para fazer as próprias roupas com sacos de farinha. Hoje, tudo isso ainda é possível. Uma pessoa deve ser livre para ser completamente obsoleta. Mas, por favor, não igualemos este comportamento à riqueza, e não aspiremos a viver em uma sociedade na qual todos são obrigados a preferir coisas permanentes em detrimento de coisas aperfeiçoadas.

Lew Rockwell é o presidente do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State.  Tradução de Leandro Roque