sábado, 9 de março de 2013

MANIPULAR JUROS NÃO GERA CRESCIMENTO ECONÔMICO


É até possível que haja alguns políticos e burocratas que tenham conhecimento de alguns inexoráveis princípios econômicos, mas é fato que a maioria se deixa guiar apenas por aquela mística sensação gerada pelo poder político. Eles legislam e regulam qualquer atividade ou fenômeno econômico que chame sua atenção. A taxa de juros, que é o preço dos empréstimos, é um dos principais exemplos desta concupiscência pelo poder.

Desde o surgimento da história documentada, a taxa de juros tem sido o objeto que os políticos mais desejam controlar. Na Grécia antiga, os estadista e legislador ateniense Sólon proibiu a cobrança de juros em alguns mercados. Os judeus antigos, a Igreja Cristã, e o Islamismo chamavam este fenômeno de usura e proibiram sua prática entre seus congregados. Quando a proibição finalmente foi revogada nos países ocidentais, as taxas de juros passaram a ser rigidamente fixadas ou estreitamente limitadas pelos governos ou por seus bancos centrais. Os juros raramente foram deixados a cargo da livre interação das forças do mercado.

Em uma economia livre, na qual não houvesse uma agência governamental com a função de manipular os juros, estes teriam uma função similar àquela desempenhada pelos preços e pelos salários. Juros, preços e salários surgem naturalmente das escolhas e dos juízos de valor feitos pelas pessoas. E suas escolhas e juízos de valor dão origem ao fenômeno da "oferta e demanda", que é o que guiará os produtores em suas decisões sobre a amplitude do investimento que devem fazer e o tipo de atividade econômica a que devem se dedicar. A taxa de juros informa aos empreendedores a quantidade de recursos escassos disponíveis para serem investidos (ou seja, o capital), além de como eles devem utilizar este capital limitado ao longo do tempo — se ele deve utilizá-lo na produção para bens de consumo presentes ou se ele deve investi-lo para satisfazer aqueles desejos que os consumidores manifestarão mais no futuro. A função básica da taxa de juros, portanto, é guiar as decisões empreendedoriais.

A taxa de juros de mercado é uma taxa bruta normalmente formada por três componentes distintos: a taxa pura, a taxa de inflação, e o prêmio de risco em decorrência da chance de o empréstimo não ser pago. 

A taxa pura advém da simples realidade de que o homem é um ser mortal, o que o obriga a acrescentar o fator tempo em todos os fenômenos econômicos por ele vivenciados. Sendo assim, o homem atribui um valor menor para bens futuros em relação ao presente. Em outras palavras, tudo o mais constante, o homem prefere ter um bem hoje a ter este mesmo bem em uma data futura. Logo, ele valora um bem presente de maneira mais alta do que este mesmo bem no futuro. Ou, o que dá no mesmo, para abrir mão de um bem presente em troca de tê-lo de volta apenas no futuro, ele irá cobrar algo por isso.

Já o componente inflacionário surge sempre que Banco Central inflaciona e deprecia a moeda. A taxa de depreciação da moeda — mais especificamente, o quanto o emprestador imagina que a moeda será depreciada durante seu empréstimo — determina o tamanho deste componente.

Por fim, o prêmio de risco reflete a confiabilidade e a solvência do devedor.

O Banco Central, que legalmente possui a responsabilidade de manter as condições monetárias e creditícias favoráveis a uma economia robusta, raramente presta atenção à taxa de juros de mercado. Suas políticas são guiadas por doutrinas populistas que clamam pelo contínuo estímulo ao emprego e à renda. O Banco Central é alheio ao fato de que todas as taxas que não sejam determinadas pelo mercado fornecem sinais errôneos aos produtores e consumidores. Elas estimulam investimentos errôneos e insustentáveis, que geram desperdício de capital e subsequente empobrecimento.

Quando o Banco Central estipula uma taxa de juros menor do que as taxas de mercado, ele está estimulando o aumento da demanda por crédito. Empreendedores tomam empréstimos para investir em projetos de mais longo prazo (quanto menores os juros, mais rentáveis passam a ser os projetos de longo prazo). Ao mesmo tempo, os consumidores também se aproveitam dos juros baixos para se endividar e aumentar seu nível de consumo. A expansão do crédito aumenta aceleradamente. Esta maior demanda tanto por bens de consumo da parte dos consumidores quanto por bens de capital da parte dos empreendedores gera três efeitos: a taxa de desemprego cai, os salários aumentam e os preços sobem.

Esta expansão do crédito, que ocorreu por meio da simples criação de dinheiro do nada (tanto pelo Banco Central quanto pelo sistema bancário de reservas fracionárias) e que ocorreu sem que houvesse nenhum aumento na poupança, gera ganhos monetários ilusórios. Como a quantidade de dinheiro na economia cresce a taxas altas, as pessoas passam a ganhar dinheiro com mais facilidades. Elas genuinamente creem que estão vivendo um momento de prosperidade perene. Elas genuinamente creem que estão mais ricas do que realmente são. Durante este período de expansão do crédito, os preços das ações e dos imóveis disparam, o que atrai vários especuladores para este mercado em busca de ganhos fáceis. As construções e as reformas de imóveis viram febre. Quem está no setor aufere ganhos invejáveis. No entanto, todos os indivíduos, empreendedores e investidores, executivos e trabalhadores, estão apenas consumindo seu capital. 

Em um dado momento, em decorrência de toda essa expansão creditícia e monetária, preços e salários começam a apresentar uma aceleração mais forte. Ato contínuo, o Banco Central eleva os juros para conter esta escalada de preços. Os bancos restringem seus empréstimos. A quantidade de dinheiro na economia passa então a crescer a taxas menores. Com empresas e indivíduos endividados, preços em alta, e uma menor quantidade de dinheiro entrando na economia, gastos e investimentos são reduzidos. Empreendimentos vultosos descobrem que não têm aquela demanda que inicialmente havia sido imaginada. Vários são liquidados. Alguns imóveis ficam inacabados. Recursos escassos — como matérias-primas e materiais de construção — foram desperdiçados. Houve uma destruição de capital. A economia está mais pobre.

Neste momento, o Banco Central pode tentar reativar a economia reduzindo novamente a taxa básica de juros, na esperança de reestimular a atividade econômica. No entanto, dependendo da intensidade com que se deu a expansão econômica anterior, esta medida será inócua. 

A redução da taxa básica de juros durante uma recessão tende a ter seu efeito expansionista frustrado pela incerteza econômica. A incerteza desencoraja novos endividamentos. O temor quanto à duração da recessão pode até mesmo induzir os devedores a reduzir suas dívidas, o que reduzirá o volume de gastos na economia, levando a menores receita para as empresas, dificultando ainda mais sua situação. 

Adicionalmente, em um ambiente de adversidade e incerteza, os credores tendem a elevar os juros cobrados com o intuito de compensar o maior risco agora vigente neste cenário. Enquanto o Banco Central se esforça para reduzir a taxa básica de juros, o mercado pode se opor adotando medidas contrárias, mitigando seus efeitos.

No que mais, uma redução da taxa básica de juros afeta muito pouco os juros cobrados pelos bancos para a concessão de empréstimos. A taxa básica de juros controlada pelo Banco Central é uma taxa de curto prazo e os empréstimos bancários tendem a ser de longo prazo. As expectativas do mercado quanto à inflação futura — as quais podem aumentar em decorrência da postura mais agressiva do Banco Central — constituem um importante componente da formação dos juros cobrados pelos bancos em seus empréstimos. Em épocas inflacionárias, essas expectativas tendem a frustrar as políticas do Banco Central.

Portanto, por mais que o Banco Central tente reativar a economia reduzindo a taxa básica de juros, o mercado pode reagir de maneira oposta, contrariando a intenção dos burocratas. Com empresas e indivíduos endividados e gastando menos, e com um grande volume de capital tendo sido imobilizado em empreendimentos infrutíferos, os prejuízos forçam as empresas a finalmente se reajustarem às novas condições do mercado. É impossível evitar o reajuste.

Uma expansão creditícia inevitavelmente leva a uma recessão. E uma recessão nada mais é do que o período em que o mercado se reajusta, liquidando os investimentos errôneos que foram feitos na época da expansão econômica artificial. Enquanto alguns investimentos são liquidados, outros apenas têm seu valor reduzido. Mas, no final, houve empobrecimento, uma vez que recursos escassos foram desperdiçados em investimentos insustentáveis, para os quais não havia demanda. (Investidores sagazes podem reconhecer os reajustes que estão ocorrendo durante o período da expansão e enriquecer quando chegar a recessão, mas, no geral, a farra do consumo e os investimentos errados reduzirão a riqueza da sociedade).

Uma recessão, em vez de ser evitada, deve ser abraçada, pois é ela quem corrigirá os excessos do boom anterior. O mercado só se reajustará quando os juros puderem ir livremente para seu real valor de mercado, e preços e salários puderem cair para seus valores reais (e não os artificiais estimulados pela expansão do crédito).

Não existem milagres na economia. Não é possível enriquecer toda uma sociedade pela simples manipulação dos juros e pela simples criação de dinheiro. A realidade, cedo ou tarde, sempre irá se impor. E, quando isso ocorrer, políticos e funcionários do Banco Central serão relembrados de que manipular os juros não gera crescimento econômico.

Por: Hans F. Sennholz (1922-2007) foi o primeiro aluno Ph.D de Mises nos Estados Unidos. Ele lecionou economia no Grove City College, de 1956 a 1992, tendo sido contratado assim que chegou. Após ter se aposentado, tornou-se presidente da Foundation for Economic Education, 1992-1997. Foi um scholar adjunto do Mises Institute e, em outubro de 2004, ganhou prêmio Gary G. Schlarbaum por sua defesa vitalícia da liberdade.

Tradução de Leandro Roque

sexta-feira, 8 de março de 2013

DESMISTIFICANDO ALGUNS MITOS SOBRE BANCOS CENTRAIS

O moderno sistema mundial de bancos centrais se sustenta sobre mitos. E, como vários mitos, eles contêm um elemento de verdade que foi distorcido pelo exagero e pelo uso indevido. Em dezembro deste ano, o Banco Central americano, o Federal Reserve — aquela máquina que, ao inundar o mundo de dólares, obriga os bancos centrais de outros países a adotarem a mesma política monetária para evitar valorizações cambiais — fará seu 100º aniversário. A ocasião, portanto, é apropriada para se desfazer alguns mitos persistentes.


O primeiro mito é o de que bancos centrais são intrinsecamente necessários para o funcionamento das economias de mercado. Tanto a teoria quanto a história contrariam e desmentem isso. Peguemos os exemplos dos bancos centrais mais famosos do mundo.

O Federal Reserve só foi criado em 1913, o que significa que durante o período de maior enriquecimento da história americana — 1865 a 1913 — não havia nenhum banco central. Mais ainda: quando foi criado, o Fed não possuía a função de gerenciar a oferta monetária do país. Os EUA ainda operavam sob um padrão-ouro clássico e, sendo assim, não havia necessidade de se ter um banco central para controlar a oferta monetária. O uso do ouro, ou de qualquer outra commodity, como moeda impõe uma limitação natural à criação de dinheiro, limitação essa representada pelo custo de se extrair da natureza quantidades adicionais desta commodity. É apenas quando se adota dinheiro de papel e sem nenhum lastro em commodity (o chamado dinheiro fiduciário), que os bancos centrais adquirem a função de controlar a oferta monetária. E é exatamente este gerenciamento da oferta monetária — que leva a uma criação cíclica de dinheiro — o que gera os ciclos econômicos que fustigam as economias de mercado. 

O Banco Central do Canadá só foi criado em 1935. O sistema bancário canadense passou incólume à Grande Depressão, não registrando nenhuma grande falência bancária. Em contraste, milhares de bancos americanos quebraram, não obstante a existência do Federal Reserve. Essas falências bancárias em larga escala só acabaram porque Franklin Roosevelt decretou feriado bancário e criou o FDIC, o seguro federal para depósitos (o que fez com que as pessoas parassem de retirar seu dinheiro dos bancos). O Fed não deu qualquer contribuição para a estabilidade bancária.

O segundo mito é o de que bancos centrais são necessários como emprestadores de última instância — isto é, para ofertar liquidez em épocas de tensão financeira, quando o mercado de crédito interbancário fica paralisado. As operações de liquidez criadas pelo Federal Reserve logo após o colapso do Lehman Brothers em 2008 vêm sendo usadas como o mais recente exemplo prático desta função. Mas o problema é que este argumento inverte causalidade e efeito.

Walter Bagehot, o eminente jornalista financeiro britânico do século XIX, cunhou a expressão "emprestador de última instância" em seu clássico livro "Lombard Street". Ele disse que esta era uma função essencial do Banco Central da Inglaterra.

No entanto, o contexto em que ele disse isso quase nunca é mencionado. Bagehot sabia que um banco central impunha que todos os bancos concentrassem nele suas reservas, automaticamente fazendo com que ele se transformasse em um emprestador de última instância. Se uma instituição ordena que os bancos repassem a ela parte do dinheiro que foi depositado neles, é óbvio que tal instituição se torna uma "emprestadora de última instância". Mas Bagehot não acreditava que um banco central era inevitável ou mesmo desejável.

Para Bagehot, o "sistema natural" era aquele que "surgiria naturalmente caso o governo não se intrometesse no sistema bancário". Haveria "vários bancos de tamanho semelhante ou pelo menos muito parecidos". Ele descreveu este arranjo como "o sistema de várias reservas", no qual cada banco seria responsável por suas próprias reservas, o que levaria a um sistema bancário mais robusto. No debate atual, o celebrado "emprestador de última instância" de Bagehot é uma solução de eficácia secundária — secundária a um arranjo de bancos operando concorrencialmente em um sistema sem um banco central para protegê-los e socorrê-los.

Após a Guerra Civil, o sistema bancário dos EUA não operou como o "sistema natural" visionado por Bagehot. Regulamentações governamentais concentraram as reservas bancárias nas principais cidades americanas, com o previsível resultado de que a economia americana se tornou sujeita a pânicos e corridas bancárias (as quais eram raras em outros países que também ainda não tinham um banco central), culminando no famoso Pânico de 1907. Em vez de corrigir os problemas do sistema bancário nacional, os legisladores, liderados por um presidente progressista, Woodrow Wilson, criaram um banco central, o Federal Reserve System.

Um terceiro mito é o da independência do banco central. Isso varia de país para país, mas em todos o banco central se submete aos caprichos do governo. Varia apenas a intensidade com que tal sujeição é percebida. Nos EUA, o Federal Reserve é visto como sendo uma entidade independente desde o Acordo de 1951 junto ao Tesouro. Após o acordo, o Fed não mais tinha a obrigação de manter os preços dos títulos do Tesouro (o que significa fixar a taxa de juros). Tal obrigação, oriunda das necessidades fiscais impostas pela Segunda Guerra Mundial, havia impedido o Fed de combater a inflação de preços por meio da elevação dos juros durante a Guerra da Coréia.

Desde 1951 não houve nenhuma alteração relevante no status legal do Fed. Ele atuou de forma independente durante algumas épocas — porém, durante outras, suas ações foram completamente submissas a outros setores do governo.

Durante a década de 1950, quando o presidente do Fed era William McChesney Martin, a inflação se manteve baixa. No entanto, isso pouco teve a ver com Martin. O presidente Dwight Eisenhower era resolutamente contra a inflação, e durante sua gestão o governo federal praticamente não apresentou déficits orçamentários. Quando os presidentes Kennedy e Johnson aceitaram o ativismo fiscal keynesiano, os déficits cresceram. Martin não demonstrou problema algum em acomodar o aumento dos gastos do governo com inflação monetária. Ele não acreditava que a política monetária poderia — ou deveria — operar de forma independente da política fiscal. O resultado foi a primeira contínua inflação de preços da história americana em períodos de paz.

A independência do Fed atingiu seu ponto mais baixo sob a gestão de Arthur Burns. O diário que ele mantinha durante os anos Nixon confirma que a política do Fed havia se tornado totalmente submissa aos objetivos do governo e à campanha à reeleição de Nixon. Como ele escreveu certa vez em seu diário, "Eu estava encarregado de cuidar da política monetária e ele [Nixon] não precisava se preocupar quanto à possibilidade de o Federal Reserve restringir a economia". O resultado desta postura foi a grande inflação da década de 1970.

Paul Volcker, que foi o presidente do Fed de 1979 a 1987, restaurou a reputação anti-inflacionária da instituição. Sua gestão é considerada até hoje o genuíno modelo de independência. E, verdade seja dita, havia vários políticos no legislativo, bem como pessoas fora do governo, que criticavam asperamente sua política de restrição monetária, a qual de fato domou a inflação e estimulou o crescimento econômico americano da década de 1980. Não obstante essas reclamações, Volcker, assim como seu antecessor Martin, tinha o apoio resoluto dos dois presidentes americanos a cujas administrações ele serviu: Jimmy Carter e Ronald Reagan.

Atualmente, é difícil ver algum resquício de independência no comportamento do Fed sob Ben Bernanke. Em 2011, o Fed comprou 77% dos títulos da dívida que foram emitidos pelo Tesouro, um comportamento sem precedentes. Com seu compromisso de manter a taxa básica de juros em praticamente zero durante um longo prazo, Bernanke vinculou a política monetária à política fiscal do governo Obama com o objetivo de inflar artificialmente os preços dos ativos (imóveis e ações) da economia americana. Isso é o oposto do que deve fazer um banco central independente — e denota um Fed ainda mais submisso a um presidente do que ele já havia sido durante a era Burns/Nixon.

A lição de toda esta história é aquilo que chamo de "banco central sem romance", parodiando um famoso artigo escrito pelo Nobel de economia James Buchanan intitulado "Política sem Romance". Um banco central é necessário apenas para uma economia que aceita que o governo detenha o monopólio da produção de papel-moeda fiduciário. E, durante alguns períodos, ele de fato pode se comportar de maneira independente — mas não quando o governo decide incorrer em déficits orçamentários de larga escala, como os atuais que estão ocorrendo nos EUA sob Obama.

Buscar a estabilidade de preços é um objetivo que praticamente todos concordam ser a responsabilidade de um banco central. No entanto, foi exatamente neste objetivo que tanto o Fed quanto vários outros bancos centrais do mundo fracassaram miseravelmente. Desde sua criação em 1913, os preços ao consumidor americano aumentaram 2.240%. 

Se um governo conseguir acabar com seus déficits orçamentários, a estabilidade de preços pode vir a ser um objetivo alcançável para seu banco central. Caso contrário, a existência de um banco central não passa de pura mitologia.

Por: Gerald P. O’Driscoll é membro sênior do Cato Institute e foi vice-presidente da sucursal do Federal Reserve em Dallas.

ATORMENTANDO A HUMANIDADE

Os luditas que não se cansam de atormentar o bem-estar da humanidade 


Há certas ideias econômicas que não apenas são logicamente erradas como também nunca foram confirmadas por nenhum fato histórico. Já se demonstrou por que elas estão erradas há pelo menos 250 anos. No entanto, elas ainda possuem ferrenhos defensores até hoje. E o que é pior: quanto mais se prova que elas não têm nenhuma lógica, mais seu número de defensores aumenta.

Há algo estranho que parece ser inerente à maneira como o homem pensa sobre sua própria riqueza. Há algo que parece persuadi-lo de que tudo aquilo que ele já viu acontecer repetidas vezes em vários países simplesmente não aconteceu. Ou, se claramente aconteceu, não mais continuará acontecendo.

Uma destas ideias é a de que impostos sobre o consumo de bens importados aumentam a riqueza de quase todas as pessoas da sociedade. Esta é a doutrina de que tarifas e cotas de importação impostas pelo governo irão de alguma forma deixar as pessoas mais ricas. Este erro foi refutado definitivamente por um dos maiores filósofos de todos os tempos, David Hume, em 1752. Aproximadamente 25 anos depois, foi refutado em detalhes por Adam Smith, amigo de David Hume, em seu livro clássico A Riqueza das Nações. Não obstante, apesar de haver uma concordância quase universal entre economistas sérios, e apesar dos repetidos sucessos econômicos de países que reduziram suas tarifas e cotas de importação, medida essa que levou a uma crescente prosperidade, ainda existe uma linha dura de pensamento anti-econômico que diz que o governo federal — mas nunca governos estaduais e municipais — deve aumentar os impostos sobre bens importados. Caso contrário, a população do país ficará pobre.

Por mais que se escreva sobre isso, e eu o continuarei fazendo, não tenho a menor ilusão de que os ferrenhos obscurantistas irão algum dia entender que impostos sobre o consumo de mercadorias importadas não tornam uma população mais rica. Algumas pessoas simplesmente não possuem a capacidade intelectual de seguir uma linha de raciocínio econômico. Isso inclui pessoas que acreditam que tarifas e cotas de importação tornam a maioria das pessoas de um país mais ricas.

A mentalidade ludita

Existe outra falácia igualmente sem nenhuma lógica e que é idêntica à falácia dos indivíduos pró-tarifas de importação. Tal falácia também possui vários seguidores. Trata-se da crença de que as máquinas e a automação deixam os trabalhadores mais pobres. Esta crença é frequentemente rotulada de 'filosofia ludita'. Um sujeito chamado Ned Ludd supostamente saiu quebrando máquinas de tear durante um acesso de fúria em 1779. Em 1811, um artigo sobre Ludd foi publicado em um jornal. Isso inspirou várias pessoas a repetirem o feito. Quando então elas saíram quebrando máquinas, elas foram chamadas de luditas.

Quem eram esses agressores? Eram pessoas que até então possuíam empregos altamente bem pagos como fabricantes de determinados bens que atendiam às demandas de pessoas ricas. Era um mercado bem restrito. Com o tempo, essas pessoas foram descobrindo que sua clientela cativa estava diminuindo em decorrência do fato de outros produtores terem passado a utilizar máquinas para produzir em massa esses mesmos bens. Essa produção em massa aumentou a oferta desses bens. Tal aumento da oferta levou a uma redução de preços. Essas pessoas repentinamente descobriram que seu trabalho era caro e pouco produtivo.

Tais pessoas eram membros de uma guilda que por séculos havia utilizado seu poder político em áreas urbanas para adquirir o monopólio de mercados específicos. Elas descobriram que a concorrência de preços trazida pelas máquinas estava reduzindo suas rendas. Em resposta, eles destruíam as máquinas. Em outras palavras, elas utilizavam de violência contra produtores e proprietários de máquinas com o objetivo de manter seu monopólio. Antes, elas utilizavam seu poder político para alcançar este mesmo objetivo.

O termo "sabotador" vem de "sabot", que é sapato em francês. Operários atiravam sapatos nas máquinas com o intuito de destruí-las e, com isso, reduzir a produção de bens altamente específicos. Tal ato era visto pela maioria das pessoas como destrutivo, mas ele claramente trazia benefícios de curto prazo para aqueles que estavam enfrentando a concorrência das máquinas. No final, tudo era apenas mais um dos vários casos de violência contra proprietários e empreendedores.

Atualmente, a maioria das pessoas crê que tais atos de violência são moralmente errados. Elas também acreditam que são economicamente errados. Essa é uma vantagem que temos hoje. Há um número maior de pessoas que começou a entender princípios básicos de economia — no caso, que tudo aquilo que aumenta a oferta de bens, e que também é lucrativo para a pessoa que está aumentando a oferta de bens, é bom para a maioria dos cidadãos desta sociedade.

O problema é que a filosofia dos luditas ainda continua presente entre nós. Hoje, tal filosofia é encontrada mais especificamente naquele que criticam a automação e o uso da robótica. Ainda hoje, há várias pessoas cujo conhecimento econômico sobre a natureza do livre mercado e sua relação com a prosperidade econômica é precário. Tais pessoas são hostis a uso de robôs em todas as áreas de produção. Quero dizer, em quase todas. Curiosamente, elas aceitam a automação e o uso intensivo de máquinas naquelas tradicionais linhas de montagem, as que vêm utilizando robôs há 30 ou 40 anos (como o setor automotivo). Em outras palavras, para casos específicos, estes progressistas se tornam tradicionalistas. Para eles, o mundo de 30 ou 40 anos atrás era bom. Aqueles dias eram muito melhores do que os dias de 100 ou 200 anos atrás.

No entanto, o aumento da produtividade que levou o mundo aos bons tempos de 40 anos atrás foi baseado na adoção de técnicas de produção em massa as quais hoje chamaríamos de automação e robótica. Foi a adoção de máquinas no lugar da mão-de-obra humana, algo que por sua vez se baseou em novos suprimentos de energia, o que permitiu que todo o mundo se tornasse mais rico. Pense nas invenções do século XIX. Pense na ferrovia. Pense na colheitadeira. Pense na máquina de costura. Todas essas invenções substituíram o trabalho manual por equipamentos. Os condutores de charrete perderam a competição contra o motor a vapor, e o mundo ficou em melhor situação por causa disso.

Não importa quantas histórias sejam contadas e quantos exemplos práticos sejam relatados sobre o incremento no padrão de vida do mundo atual em decorrência do aumento do uso de energia e do aumento do uso de máquinas — a mentalidade ludita continua firme e forte entre nós. Há pessoas que continuam afirmando que a automação nós deixará mais pobres. Elas estão dizendo isso há 200 anos.

Aumentos no padrão de vida estão diretamente relacionados a um aumento na quantidade de bens e serviços disponíveis. E isso foi possibilitado pela automação.

Há uma regra fundamental na economia que nunca deve ser ignorada: qualquer coisa que possa ser feita lucrativamente por uma máquina deve ser feita por uma máquina. Por que isso é verdade? Porque a mão-de-obra humana é, de longe, a mais versátil e a mais móvel dentre todos os capitais. As pessoas são capazes de estar sempre aprendendo novas formas de servir seus clientes. Macaco velho realmente aprende novos truques. No entanto, para fazê-lo aprender novos truques, ele tem de enfrentar a realidade: o que quer que ele fazia antes para ganhar a vida pode agora ser feito de maneira mais eficiente e mais barata por uma máquina. Macaco velho pode aprender novos truques, mas a necessidade é a mãe da invenção. Macaco velho prefere fazer truques velhos. E ele prefere ganhar uma renda alta para fazer truques velhos. Mas o progresso econômico não os permitirá continuar auferindo uma renda alta fazendo truques velhos se surgirem novas ferramentas que irão possibilitar que novatos façam esses mesmos truques — e os façam de maneira até melhor — a um preço menor.

A maneira como o Ocidente enriqueceu após 1800 foi por meio do empreendedorismo, da criatividade, da redução do custo da energia (possibilitada por maiores investimentos e maior acumulação de capital) e da invenção de máquinas melhores e mais eficientes. Nós enriquecemos porque fomos capazes de aproveitar a produtividade da natureza, na forma de energia e por meio de equipamentos especializados, e utilizá-la para substituir a valiosa mão-de-obra dos seres humanos, mão-de-obra essa que consequentemente foi liberada para ser utilizada em outros setores, o que permitiu um aumento generalizado da oferta de bens e serviços.

Trabalhadores demitidos

Os luditas sempre afirmam estar falando em nome dos trabalhadores que foram substituídos pelas máquinas e cujos serviços não mais conseguem concorrer em um livre mercado. Os luditas se posicionam a favor do trabalhador demitido como se as necessidades de um trabalhador demitido gozassem de uma maior autoridade moral do que os desejos de consumidores que estão sempre à procura de bens melhores e mais baratos. O ludita parte do princípio de que o livre mercado deve funcionar em benefício do produtor e não em beneficio do consumidor.

Essa é a lógica da guilda. É a lógica de uma pessoa que não mais é capaz de competir com a produtividade de máquinas que podem operar dia e noite lucrativamente, com interrupções apenas ocasionais para manutenção. Sempre que for lucrativo para o empreendedor substituir um ser humano por uma máquina, a conclusão é uma só: os consumidores estão sendo mais bem servidos pela máquina. Quem diz isso? Os próprios consumidores. São eles que compram os produtos das máquinas. São eles que, ao propiciarem lucros para o empreendedor, mostram para ele que sua decisão foi acertada.

Por que deveríamos criticar consumidores em nome do operário dispensado, uma vez que o operário dispensado pode agora servir diferentes consumidores e produzir diferentes serviços, sendo que estes serviços são exatamente aqueles que estão sendo demandados pelos consumidores? Por que temos de defender o estilo de vida do operário que não mais é capaz de concorrer com uma máquina inanimada, em detrimento do consumidor?

Seguidas vezes, os suspeitos de sempre dizem que a automação deixará a sociedade mais pobre como um todo. Eles dizem que ficaremos mais pobres como nação ou como civilização porque haverá um constante fluxo de novos equipamentos que irão aumentar a produtividade dos produtores. 

Sempre que alguém se aproximar de você dizendo que o livre mercado nos deixará mais pobres, comece a procurar os reais objetivos desta pessoa. Pesquise quem são as pessoas que ele representa. Pesquise em nome de quem ele está falando. Siga o dinheiro. Se sua investigação não gerar nenhum resultado interessante, rastreie a ideia até suas origens. Pode estar certo de que não se trata de uma ideia nova. Pode estar certo de que outra pessoa, uma década ou um século atrás, surgiu com esse mesmo argumento. E defendendo os interesses de alguém mais poderoso.

Então o livre mercado nos deixará mais pobres. Por quê? Porque ele permitirá que pessoas criativas sirvam seus consumidores de maneira mais completa e mais eficaz. Isso é um perigo para produtores relaxados ou defasados que não são capazes de concorrer com novos métodos de produção. O ludita sempre falará em nome do produtor, e especificamente do produtor desalojado, que não é capaz de concorrer de maneira eficaz. Ele nunca falará em nome do consumidor, que é em sua maioria formada por pessoas mais pobres que o produtor. 

Avaliamos a riqueza per capita por meio daquilo que somos capazes de comprar; e quando podemos comprar mais coisas com nossa renda, estamos mais ricos. No entanto, os luditas entre nós alegam que, na condição de consumidores, estamos iludidos. Estamos tomando decisões de curto prazo quando compramos coisas mais baratas. Estamos julgando nossa situação econômica exclusivamente por meio do que podemos comprar. Eles nos dizem que deveríamos tomar nossas decisões que impeçam novos métodos de produção de serem implantados, pois estes novos métodos irão aumentar nossa renda real (poder de compra). Eles nos dizem que o aumento da renda real é um passivo terrível. O aumento da renda real nos deixará mais pobres. Com este raciocínio, os luditas agitam contra a adoção de catracas eletrônicas em ônibus e contra a substituição de condutores de metrôs por máquinas que fazem o mesmo serviço.

A mentalidade ludita é impermeável à lógica econômica. É impermeável ao entendimento da história. Para um ludita, o livre mercado age contra os verdadeiros interesses dos consumidores. Ao redor de todo o mundo, os consumidores, desde 1980, aumentaram suas aquisições de bens e serviços. Por quê? Porque, dado que consumidores também são produtores, eles aumentaram a oferta de bens e serviços. A oferta criou demanda. A única maneira de alguém poder ir ao mercado e comprar bens e serviços é tendo anteriormente produzido bens e serviços. E a única maneira de se adquirir algo sem antes ter ofertado algo é fazendo com que políticos tributem pessoas produtivas e transfiram o dinheiro para grupos de interesse. Em todo caso, sem uma produção anterior, não pode haver nova demanda. Falando de outra forma, "Você não pode conseguir algo em troca de nada".

O raciocínio ludita se baseia nesta suposição: indivíduos que agem segundo seus próprios interesses, comprando bens e serviços de baixo custo, estão atuando contra os interesses do país. Este era o argumento dos mercantilistas do final do século XVII. Este foi o argumento que Adam Smith criticou em A Riqueza das Nações. Esta é a essência de todos os sistemas que recorrem à interferência estatal na economia. O argumento afirma que políticos sabem melhor do que todos os cidadãos o que é bom para o país. O argumento diz que consumidores, que agem individualmente em busca de seus próprios desejos da maneira menos cara possível, estão totalmente desorientados e equivocados. Enquanto indivíduos, eles estão tomando decisões que solapam sua própria riqueza. Essa é a essência do argumento coletivista. Essa é a essência do keynesianismo. Essa é a essência de todas as formas de intervencionismo estatal.

O argumento diz que indivíduos, na condição de tomadores de decisões responsáveis pela administração de sua própria riqueza, estão cegos em relação ao que é realmente bom para a sociedade. Em outras palavras, o livre mercado, ao permitir que indivíduos possuam esse tipo de autoridade independente, leva a uma situação em que a vasta maioria das pessoas fica em uma situação pior. Em suma, a liberdade econômica é autodestrutiva.

Conclusão

Sempre haverá políticos que recebem doações de alguma guilda de produtores e trabalhadores prestes a serem desalojados pela concorrência das máquinas. Tais pessoas querem fechar o mercado para si próprias, e estão dispostas a pedir que o governo envie homens com armas e distintivos para impedir que empreendedores eficientes satisfaçam os desejos de consumidores.

A mais séria ameaça, no entanto, é intelectual. É o raciocínio ludita, presente na academia e na mídia, que solapa a esperança das pessoas no futuro. Se o livre mercado é autodestrutivo, pois a busca individual pelo interesse próprio é destrutiva para a nossa renda real, então não podemos confiar na liberdade. Não podemos também nutrir nenhuma esperança legítima em relação ao futuro. Dois séculos de liberdade econômica enriqueceram o mundo de uma maneira que era totalmente inimaginável em 1800; mas isso não pode continuar, dizem os luditas. A liberdade econômica não mais irá produzir uma cornucópia. Por que não? Porque a busca individual pelo interesse próprio, feita de maneira voluntária e sem nenhuma coerção, é, segundo os coletivistas, uma cilada e uma ilusão.

Conclusão: precisamos de mais funcionários públicos com armas e distintivos para restringir o empreendedorismo e a busca pelo interesse próprio. Em suma, precisamos de mais governo para suprimir nossos desejos de melhorarmos de vida. Isso nos deixará em melhor situação.

Quem são os iludidos?

Por: Gary North , ex-membro adjunto do Mises Institute, é o autor de vários livros sobre economia, ética e história. Visite seuwebsite.

quinta-feira, 7 de março de 2013

CONFLITOS CULTURAIS

Uma maneira efetiva de evitar os conflitos culturais e sociais inerentes à democracia atual


Em seu livro From Dawn to Decadence, lançado em 2001, o historiador Jacques Barzun afirmou que o separatismo seria uma "forte tendência" do século XXI. Ele forneceu vários exemplos ilustrando que "a maior criação política do Ocidente, o estado-nação, estava seriamente afetada."

Entre outros exemplos, Barzun citou os esforços dos bascos e dos alsacianos por uma maior independência em relação à França; o desejo de independência da Córsega; as guerras civis na Irlanda do Norte, na Argélia e no Líbano; os espanhóis bascos lutando para se separar da Espanha; o colapso da União Soviética em vários territórios menores e os problemas da Rússia com a Chechênia; as brigas dos governos turcos e iraquianos com os separatistas kurdos; os zapatistas rebeldes do México; as demandas periódicas de Quebec por mais autonomia em relação ao governo canadense; e os conflitos étnicos e religiosos nos Bálcãs. Com efeito, ao redor de todo o mundo, encontramos evidências de estados-nação sendo fragilizados e se debatendo contra movimentos separatistas.

Nos EUA, a força de tais movimentos nunca esteve tão evidente quanto atualmente. Foi possível testemunhar a divisão do país durante a última eleição presidencial, na qual os densos conglomerados urbanos da região leste se contrapuseram às amplas comunidades do centro e do meio-oeste do país. Vários movimentos separatistas estão aflorando no Texas. O que antes se manifestava timidamente, hoje já se mostra mais explicitamente. A eleição americana simplesmente salientou todas as diferenças políticas profundamente incompatíveis em relação a uma ampla gama de questões.

Em termos globais, embora haja forças neutralizantes que visam a contrabalançar tendências separatistas — por exemplo, os esforços de entidades governamentais internacionais como a União Europeia ou as Nações Unidas —, estas forças conseguem no máximo mascarar toda a turbulência inerente a um arranjo que tenta forçosamente integrar pessoas com visões políticas conflitantes. 

A questão é que, assim como a intervenção estatal na economia faz com que capital e outros recursos escassos sejam investidos de forma errônea e insustentável, a intervenção estatal em outros aspectos sociais de nossas vidas também gera fissuras políticas e cria relações antagonistas entre vários grupos distintos, uma vez que cada grupo almeja objetivos diferentes e muitas vezes contraditórios. Seria correto dizer que a intervenção estatal em nossas vidas cria uma situação exatamente igual àquela descrita por Auberon Herbert no final do século XIX:



Sob uma organização política centralizada, você forçosamente mistura todos os tipos de indivíduos, os semelhantes e os completamente opostos, e os obriga a atuar e a falar por meio de um mesmo representante político.

As consequências desta mistura não-natural já eram nítidas àquela época. Atualmente, as subdivisões dentro da sociedade aumentaram. Além do eterno conflito entre pagadores de impostos e consumidores de impostos, há agora também o novo conflito entre os "cidadãos opressores" e os vários grupos vitimistas, que se autodenominam 'minorias oprimidas'. Não importa o que um cidadão faça ou como ele aja: suas características étnicas e raciais, bem como suas preferências sexuais e ideológicas irão automaticamente classificá-lo em um destes dois grupos. No final, tudo se resume ao mesmo objetivo: um grupo querendo viver à custa do outro; um grupo querendo confiscar a renda do outro; um grupo querendo tolher a liberdade do outro em prol de seus "direitos".

É evidente que até mesmo o mais justo, imparcial e ponderado indivíduo irá inevitavelmente se tornar intolerante se você colocá-lo em uma situação na qual ele possui apenas duas opções desagradáveis: devorar ou ser devorado. 

Como fazer com que volte a ser possível que um indivíduo mantenha suas convicções e ainda assim seja completamente tolerante a tudo o que seu vizinho diz ou faz? E como fazer com que este seu vizinho tenha o mesmo comportamento?

A política cria um arranjo em que, nas palavras do poeta Longfellow, "o homem tem de ser ou a bigorna ou o martelo". Assim, uma vasta máquina política é criada com o intuito de representar uma ampla variedade de interesses, cada qual fazendo de tudo para sobrepujar os interesses dos outros grupos.

À medida que o estado-nação cresce, essa mistura de semelhantes e opostos vai se tornando cada vez mais problemática. Aqueles grupos que possuírem mais conexões políticas irão utilizar o estado para seus interesses próprios, o que inevitavelmente significa a opressão dos grupos opostos. Vai se tornando cada vez mais difícil, se não impossível, reconciliar as diferenças dentro de um mesmo território. O estado-nação se torna um instável composto de pluralidades, incapaz de formar aquela maioria contente que é quem dá a liga à sociedade de um país. É neste solo pantanoso que as sementes do separatismo prosperam.

A ideia de que o tamanho do governo possui limites naturais que não podem ser excedidos — pois isso desencadearia as forças do separatismo — é similar à ideia misesiana de que o socialismo é impossível. A tradição misesiana sempre afirmou que o socialismo é impossível. A incapacidade de um sistema socialista de fazer cálculos econômicos — ou, em outras palavras, sua incapacidade de determinar lucros e prejuízos — torna a economia incapaz de incorrer nos mais básicos processos de produção. Sendo incapaz de racionalmente escolher os meios disponíveis com os quais alcançar os fins desejados, uma economia puramente socialista (isto é, uma na qual o governo é o proprietário dos meios de produção) se dissolveria no mais completo caos.

(A longeva existência da velha União Soviética e de outros países socialistas pode ser explicada pelo fato de que seus planejadores centrais recorriam aos preços de mercado utilizados pelos países capitalistas ao redor do mundo. O experimento soviético também foi mantido vivo pelo vibrante mercado negro que subsistia em paralelo à economia oficial. Ironicamente, o socialismo só conseguiu se manter operante — e muito longe daquele esplendor teórico prometido — por causa da existência daqueles mesmos mercados que os socialistas haviam jurado abolir).

Parece verossímil que, assim como o governo não é capaz de calcular no que tange a recursos econômicos, ele também não é capaz de calcular no que diz respeito a decidir aspectos não-econômicos da vida social dos cidadãos. As diferenças fundamentais entre os vários indivíduos da população fazem com que o problema seja insolúvel; as pessoas sempre serão forçadas a apoiar políticas ou a fazer certas coisas que em outras circunstâncias não apoiariam ou não fariam. Porém, assim como uma economia socialista como a União Soviética tinha seus mercados negros e recorria a pontos de referência nas economias de mercado de todo o mundo, as pessoas coagidas por um estado-nação também podem se organizar e alterar este arranjo, readquirindo algumas liberdades individuais e com isso tornando sua vida mais suportável.

O que é possível fazer? O que pode ser feito quando suas liberdades individuais estão cada vez mais oprimidas, tanto em termos econômicos quanto em termos sociais?

Um arranjo viável e eficaz já no curto prazo é a descentralização. O federalismo pleno. Plena autonomia local em relação ao governo federal. Isso pode não ser fácil de ser alcançado, pois exige organização política, muita persistência e, acima de tudo, uma fatia da população educada nos princípios da liberdade. Trata-se de uma tarefa bastante árdua. O objetivo é simples, mas sua implementação é trabalhosa. No entanto, vale ressaltar, não há outro arranjo que possa ser efetivado em um prazo humanamente suportável. 

Do nosso lado, ajudando a ganhar adeptos para a causa, temos o fato de que a experiência e toda a história intelectual do liberalismo comprovam que um governo descentralizado é o arranjo mais compatível com as aspirações de longo de prazo para a liberdade.

Por que a postura em prol da descentralização? Há vários motivos.

Primeiro: em um arranjo descentralizado, as jurisdições têm de concorrer entre si para atrair residentes e capital. Isso fornece algum incentivo para maiores graus de liberdade, nem que seja porque o despotismo em nível local não é nem popular e nem produtivo. Se os déspotas ainda assim insistirem em ser totalitários, as pessoas e o capital sempre poderão sair dali e ir para outra jurisdição. Por outro lado, se há apenas uma vontade soberana e uma grande máquina burocrática e autoritária para impingir esta vontade, você não tem para onde correr.

Segundo: quanto mais perto estão das pessoas, menos ruins e menos opressoras tendem a ser as leis. E sob estas condições é mais propício haver um genuíno 'poder emanando do povo'. Mesmo que isso não ocorra, pequenas unidades de governo permitem que as pessoas se locomovam de uma jurisdição para outra. Essa concorrência entre jurisdições leva todo o sistema a um maior grau de liberalização. Capital e mão-de-obra irão para as áreas que permitem mais liberdade, uma vez que jurisdições despóticas afugentam riqueza e talento.

Terceiro: o localismo internaliza a corrupção, de modo que ela passa a ser mais rapidamente descoberta e extirpada. Sob esta mesma perspectiva, a corrupção de um governo local pode ser até benigna em comparação à corrupção federal: é mais fácil, tendo uma renda apertada, subornar um guarda que vai lhe dar uma multa de trânsito a subornar todo o DENATRAN.

Quarto: a tirania em nível local minimiza os estragos na mesma intensidade que a tirania em nível macro a maximiza. Se Hitler governasse somente Berlim, Stalin somente Moscou e Franklin Roosevelt somente Washington, os efeitos de suas políticas dementes poderiam ter sido contidos. E isso não é uma consideração meramente utilitarista, pois significa que pessoas más são impedidas de violar os direitos das outras pessoas que estão fora de sua jurisdição.

Quinto: não é possível crer que algum governo utilizará seus poderes para intervir de forma sensata. Gozando de tamanha concentração de poder, governos centralizados irão sempre invocar bons motivos para suas medidas, mesmo que tais motivos sejam uma mera camuflagem para se adquirir ainda mais poder e controle sobre a vida da população. O roteiro típico é mais ou menos assim: o governo se autoconcede um determinado poder para intervir em um arranjo voluntário — por exemplo, nas relações trabalhistas entre empregadores e empregados. Tal medida é imediatamente celebrada pelos progressistas como sendo sensata e necessária. Porém, tão logo este poder é adquirido pelo governo, ele é utilizado para impor legitimidade a todo tipo de planejamento central, impedindo os governos locais de adotar legislações próprias (por exemplo, localidades mais pobres não podem revogar o salário mínimo, o que leva ao desemprego da mão-de-obra menos produtiva).

Sexto: uma pluralidade de formas de governo — uma "separação vertical de poderes" — impede que o governo central acumule poder excessivo. Governos locais são compreensivelmente ciosos e zelosos quanto à sua jurisdição, e tendem a resistir a investidas hostis do governo central. Isso é ótimo. Com efeito, toda a história da liberdade está ligada aos gloriosos resultados gerados por estruturas institucionais concorrentes, sendo que em momento algum se pode confiar a alguma delas o completo controle sobre uma determinada área.

Apenas para deixar claro, tudo isso que foi dito não implica que libertários devem ser agnósticos em relação à questão de como deve ser o governo. As leis devem proteger o indivíduo e sua propriedade contra qualquer tipo de agressão. Este princípio tem de ser seguido em todas as épocas e em todos os lugares. Mas isso não significa que deve haver um único legislador. Para maximizar as chances de que as boas leis prevalecerão sobre as ruins no longo prazo, e impedir tomadas de poder desde cima, é necessário haver uma multiplicidade de formas jurídicas.

Murray Rothbard costumava recorrer a uma ótima frase para resumir esta posição: direitos são universais, mas devem ser impingidos localmente. Esses dois princípios frequentemente estão em conflito. No entanto, se você abrir mão de um deles, estará colocando toda a sua liberdade em risco. Ambos são importantes. Nenhum deve prevalecer sobre o outro. Um governo local que viola direitos é intolerável. Um governo central que governa em nome dos direitos universais é igualmente intolerável. O paraíso seria direitos universais localmente impingidos. Não, isso ainda não existe. Mas é por isso que os libertários existem: para trabalhar em prol deste ideal.

Por fim, existe uma outra forma de descentralização sobre a qual você certamente ouve bastante. Ela é frequentemente defendida por aqueles que vociferam contra todas as formas atuais de globalização, especialmente na forma de corporações multinacionais. Eles reclamam da centralização da vida moderna e sentem nostalgia dos tempos antigos. Eis o problema: esse tipo de centralização que eles lastimam é resultado de decisões voluntárias tomadas no mercado. Trata-se de uma centralização livremente escolhida. Os planos destas pessoas para fazer retroceder essa centralização iriam requerer uma maciça coerção e iriam produzir acentuadas calamidades econômicas.

No que diz respeito a associações voluntárias e economia de mercado, libertários não podem tomar uma decisãoa priori sobre qual seria a melhor maneira de organizar este arranjo. Rothbard defendia corporações multinacionais e o livre comércio global, mas ele também sabia que uma integração excessiva da estrutura de produção é ruim para os negócios. As empresas perdem a capacidade de calcular seus lucros e prejuízos quando elas se tornam responsáveis por grande parte da produção interna de seus próprios bens de capital. No extremo, se uma única empresa fosse a proprietária de todos os meios de produção, ela estaria sujeita ao mesmo tipo de caos calculacional que aflige uma economia socialista. Sua incapacidade de alocar recursos racionalmente rapidamente levaria a prejuízos.

Qual o impacto que esse raciocínio gera sobre a organização de outras instituições da sociedade, como a igreja, a família, as associações civis e os movimentos ideológicos? É melhor a centralização ou a descentralização? A resposta deve ficar por conta da experiência. A Igreja Católica é doutrinariamente centralizada, mas descentralizada administrativamente. A família, entre as gerações, não é centralizada. Os avós estão lá para dar conselhos e serem amados, e não para administrar e dar ordens. Associações civis assumem vários formatos, desde associações nacionais até clubes locais.

Na vida intelectual, precisamos de uma vasta multiplicidade de mecanismos que impeçam a corrupção e a concessão a ideias estatizantes. Mesmo no movimento libertário é necessário haver diversidade e experimentações, e não centralização, comando e controle.

Na gerência de empreendimentos, na organização de ideias e nas ponderações sobre a própria vida, é recomendável ter equilíbrio e temperança. Sendo assim, podemos articular estes dois princípios. Nas questões públicas, precisamos de direitos universais localmente impingidos. Nas questões privadas e econômicas, não precisamos nem de centralização nem de descentralização, mas de equilíbrio e temperança, tentativa e erro. Em minha visão, essas formulações representam o ápice do pensamento virtuoso, das boas leis e da sociedade próspera.

Por: Lew Rockwell é o presidente do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State.  Tradução de Leandro Roque

quarta-feira, 6 de março de 2013

A ORIGILIDADE NÃO EXISTE

Em 1916, um obscuro autor alemão, Heinz von Lichberg, escreveu um conto. O "Times Literary Supplement", anos atrás, publicou esse conto. História simples: um jovem estudante aluga um quarto de hotel e apaixona-se pela filha pré-púbere dos donos. O final é lúgubre para a "ninfeta" em questão. Nome do conto? "Lolita."


Quando li essa revelação, caí do céu. "Lolita", o romance de Vladimir Nabokov publicado em 1955, é um dos meus livros da vida. Mas agora existia uma sombra de ilegitimidade a pairar sobre a obra: teria Nabokov roubado a história a Heinz von Lichberg?

Nas semanas seguintes, a polêmica instalou-se nas páginas do "TLS". Conclusão possível: sim, Nabokov provavelmente lera o conto durante a sua passagem pela Alemanha. Mas era impossível estabelecer com certeza se o roubo foi consciente ou inconsciente.

E não seria de excluir que, décadas depois de o ler, Nabokov tenha iniciado a sua "Lolita" como se a ideia fosse sua e apenas sua.

Eis a tese do neurocientista Oliver Sacks em ensaio magistral para o "The New York Review of Books". Sacks não se ocupa de Nabokov, claro, embora o título do seu texto seja, ironicamente, um evocação do escritor ("Speak, Memory"). Sacks está interessado em analisar o fenômeno da "criptomnésia", que por vezes se confunde com o rasteiro "plágio".

Um erro, avisa Sacks. "Plagiar" é roubar de forma intencional e consciente o trabalho
intelectual de terceiros. Mas "criptomnésia" é outra coisa: esquecermos as fontes do que lemos, deixando que a memória construa a sua própria "originalidade" sobre elas.

Isso é recorrente no trabalho intelectual e não existe autor --de Shakespeare a Coleridge, de Milton a T.S. Eliot-- que não tenha apresentado como seus os conceitos, as ideias e até as frases que nasceram de outras penas esquecidas.

Mas a "criptomnésia" não precisa do trabalho literário para tiranizar a nossa memória. O próprio Sacks relata uma experiência da sua juventude na Inglaterra, durante a Segunda Guerra, que nunca foi uma experiência real. Sim, ele julgava ter escapado a dois bombardeamentos nazistas. Até escreveu sobre eles com impressionante vivacidade.

Mas foi preciso o testemunho de um irmão mais velho para que a "verdadeira verdade" substituísse a "subjetiva verdade": ele, Oliver, experienciou o primeiro bombardeamento, não o segundo. Do segundo, lera apenas a respeito --e o impacto dessa leitura fez com que a memória diluísse a fronteira entre a "verdade histórica" e a "verdade narrativa". Ou, melhor dizendo, a "verdade narrativa" transformou-se em "verdade histórica".

A nossa memória é ambígua porque toma como verdade o que por vezes não foi verdade. Incorpora experiências, ou ideias, ou conceitos que não são radicalmente nossos. Mas que se oferecem como nossos quando as pegadas da originalidade já desapareceram do nosso areal interior.

Será isso uma fraqueza, que no limite impede qualquer criação ou recordação "autênticas"?

Longe disso, escreve Oliver Sacks: a "criptomnésia" é fundamental para qualquer atividade criativa. Se o nosso cérebro fosse um arquivo rigoroso, catalogando cada experiência ou referência com precisão mecânica, nós seríamos incapazes de funcionar ou criar. Não pela consciência insuportável de que nada é nosso.

Mas pelo motivo mais básico de que todas as informações, mesmo as mais desprezíveis, ocupariam todo o "espaço" mental.

Paradoxalmente, criamos porque esquecemos. E esquecemos, de forma ainda mais paradoxal, o que a nossa memória registrou como significativo para nós: um reservatório de conhecimentos ou encantamentos onde iremos voltar um dia --anos depois, décadas depois-- para construir as nossas "originalidades".

Por mim falo: escrevo porque leio. E esqueço o muito que li. Mas sei que nesse esquecimento a minha memória não dorme. Ela será sempre um ladrão silencioso e noturno, jogando para dentro da sacola uma ideia aqui, uma imagem acolá, uma provocação mais além.

Sem falar das minhas experiências de vida --as experiências vividas, as experiências escutadas, as experiências inventadas-- e que já fazem parte do meu DNA.

Serei uma fraude, como o velho Vladimir e a sua "ninfeta"?

Melhor, leitor, muito melhor: como todos nós, sou uma fraude que se julga original. Por: João Pereira Coutinho  Folha de SP

terça-feira, 5 de março de 2013

FAZ 100 DIAS

Faz 100 dias que Lula afronta o Brasil decente com o silêncio sobre o caso de polícia em que se meteu ao lado de Rose
Faz 100 dias que os brasileiros decentes foram afrontados pela descoberta do  escândalo em que Lula se meteu ao lado de Rosemary Noronha. Faz 100 dias que o país que presta é afrontado pela mudez malandra do caçador de votos que promoveu uma gatuna de quinta categoria a chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo. Faz 100 dias que o ex-presidente foge de perguntas sobre o caso de polícia que protagonizou em companhia da Primeiríssima Amiga e dos bebês quadrilheiros de Rosemary.
Surpreendido pela divulgação das maracutaias comprovadas por policiais federais engajados na Operação Porto Seguro, Lula fez o que sempre faz quando precisa costurar algum álibi menos cretino: perdeu a voz e sumiu. Passou a primeira semana enfurnado no Instituto Lula. Passou as duas seguintes longe do Brasil, driblando repórteres com escapadas pela porta dos fundos ou pela cozinha do restaurante.
Recuperou a voz no começo do ano, mas ainda garimpa no porão das desculpas esfarrapadas alguma que o anime a enfrentar jornalistas armados apenas de perguntas sem resposta. Para impedir que a aproximação do perigo, tem recorrido a cordões de isolamento, cercadinhos, muralhas humanas e outras mesquinharias improvisadas para livrá-lo de gente interessada no enredo da pornochanchada financiada por cofres públicos que apresentou ao Brasil, entre outros espantos, os talentos ocultos de Rosemary Noronha.
O silêncio que vai completando 2.500 horas, insista-se, só vale para o caso Rose. Entre 23 de novembro de 2012 e 3 de março de 2013, excluídos os poucos dias em que teve de desativar o serviço de som, o palanque ambulante continuou desempenhando simultaneamente os papeis de co-presidente da República, presidente honorário da base alugada, chefe supremo da seita, protetor dos pecadores companheiros, arquiteto do Brasil Maravilha e consultor-geral do mundo.
Abençoou catadores de lixo e metalúrgicos, leu mais de 300 livros, fingiu entender o que Sofia Loren disse em italiano, avisou que os EUA nunca mais elegerão um negro se Barack Obama fizer besteira, louvou bandidos de estimação, insultou a oposição, deliberou sobre a tragédia ocorrida no jogo do Corithians em Oruro, explicou aos governantes europeus como se transforma tsunami em marolinha, recomendou a FHC que pare de dizer o que pensa e descobriu que Abraham Lincoln reencarnou no Brasil com o nome de Luiz Inácio Lula da Silva. Fora o resto.
Só não falou sobre o que importa, agarrado à esperança de sobreviver sem fraturas expostas ao primeiro escândalo que não pode terceirizar. Não houve intermediários entre Lula e Rose. Não há bodes expiatórios que a apresentar. É natural que fuja como o diabo da cruz de pelo menos 40 perguntas formuladas pelo timaço de comentaristas:
1. Por que se recusa a prestar esclarecimentos sobre um escândalo investigado pela Polícia Federal que o envolve diretamente?
2. Considera inconsistentes as provas reunidas pela Operação Porto Seguro?
3. Por que disse em Berlim que não se surpreendeu com a Operação Porto Seguro?
4. Desta vez sabia de tudo ou, de novo, nunca soube de nada?
5. Onde e quando conheceu Rosemary Noronha?
6. Como qualifica a relação que mantém com Rose há 17 anos?
7. Em quais critérios se baseou para instalar uma mulher sem experiência administrativa na chefia do gabinete presidencial em São Paulo?
8. Por que pediu a Dilma Rousseff que mantivesse Rose no cargo?
9. Por que criou os escritórios da Presidência da República?
10. Continua achando necessária a existência de escritórios e chefes de gabinete?
11. Além de demitir Rose, Dilma Rousseff extinguiu o cargo que ocupava. A presidente errou?
12. Por que  Rose foi incluída na comitiva presidencial em pelo menos 20 viagens internacionais?
13. Por que foi contemplada com um passaporte diplomático?
14. Quem autorizou a concessão do passaporte?
15. Por que o nome de Rosemary Noronha nunca apareceu nas listas oficiais de passageiros do avião presidencial divulgadas pelo Diário Oficial da União?
16. Quem se responsabilizou pelo embarque de uma passageira clandestina?
17. Por que Marisa Letícia e Rose não eram incluídas numa mesma comitiva?
18. Quais eram as tarefas confiadas a Rose durante as viagens?
19. Todo avião utilizado por autoridades em missão oficial é considerado Unidade Militar. Os militares que tripulavam a aeronave sabiam que havia uma clandestina a bordo?
20. Como foram pagas e justificadas as despesas de uma passageira que oficialmente não existia?
21. Por que nomeou os irmãos Paulo e Rubens Vieira, a pedido de Rose, para cargos de direção em agências reguladoras?
22. Examinou o currículo dos nomeados?
23. Por que o aliado José Sarney, presidente do Senado, convocou irregularmente uma terceira sessão que aprovou a nomeação de Paulo Vieira, rejeitada em votação anterior?
24. Acha que são culpados?
25. Por que comunicou à imprensa, por meio de um diretor do Instituto Lula, que não comentaria o episódio por considerá-lo “assunto pessoal”?
26. Por que Rose se apresentava como “namorada do presidente”?
27. Se teve o nome usado indevidamente, por que não processou Rosemary Noronha?
28. Conversou com Rose nos últimos 100 dias?
29. Por que Rose tinha direito ao uso de cartão corporativo?
30. Por que foram mantidos em sigilo os pagamentos feitos por Rose com o cartão corporativo ?
31. Autorizou a inclusão, na decoração do escritório da Presidência em São Paulo, da foto em tamanho família em que aparece simulando a cobrança de um pênalti?
32. O blog do deputado federal Anthony Garotinho afirmou que Rose embarcou para Portugal com 25 milhões de euros. Se a denúncia é improcedente, por que não processa quem a divulgou?
33. Por que alegou que não comentaria o episódio por considerá-lo “assunto pessoal”, conforme comunicou à imprensa um dos diretores do Instituto Lula?
34. Era previamente informado por Rose das reuniões que promoveria no escritório da presidência?
35. Depois das reuniões, era informado por Rose do que fora discutido e decidido?
36. Por que, mais uma vez, alegou ter sido “traído”? Quem o traiu?
37. Se pudesse recuar no tempo, faria tudo de novo?
38. Não se arrepende de nada?
39.Não sente vergonha por nada?
40. Que história contou em casa?
Há dias, Lula acusou a imprensa de negar-lhe o espaço que merece. Está convidado a preencher o espaço que quiser com respostas a essas perguntas. Todas serão publicadas na íntegra.
Coragem, Lula.

segunda-feira, 4 de março de 2013

O QUE É O SOCIALISMO

O que é realmente o socialismo e qual o seu maior problema

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Não há nada mais prático do que uma boa teoria. Por isso, proponho-me a explicar em termos teóricos o que é o socialismo e por que ele não apenas é um erro intelectual, como também é uma impossibilidade científica. Mostrarei por que ele se desmoronou — ao menos o socialismo real — e por que o socialismo que segue existindo na forma de intervencionismo econômico nos países ocidentais é o principal culpado pelas tensões e conflitos de que padece o mundo atual. 

Ainda estamos vivendo em um mundo essencialmente socialista, não obstante a queda do Muro de Berlim; e continuamos tolerando os efeitos que, segundo a teoria, são próprios da intervenção do estado sobre a vida social.

Para definir o socialismo, é necessário antes entendermos o conceito de "função empresarial". Os teóricos da economia dizem que a função empresarial é uma capacidade inata do ser humano. Não estamos nos referindo aqui ao empresário típico que leva adiante um empreendimento. Estamos nos referindo, isso sim, à capacidade inata que todo ser humano tem de descobrir, criar, tomar conhecimento das oportunidades de lucro que surgem ao seu redor e atuar de modo a se aproveitar das mesmas. Com efeito, etimologicamente, a palavra 'empresário' evoca o descobridor, alguém que percebe algo e aproveita a oportunidade. Em termos mais figurativos, seria a lâmpada que se acende.

A função empresarial é a mais essencial das capacidades do ser humano. Essa capacidade de criar e de descobrir coisas é o que, por natureza, mais nos distingue dos animais. Neste sentido geral, o ser humano, mais do que um homo sapiens é um homo empresario. Quem seria, portanto, um empresário? Não se trata apenas de Henry Ford ou de Bill Gates, que sem dúvida alguma são grandes empresários no âmbito comercial e econômico. Um empresário é toda e qualquer pessoa que tenha uma visão criativa, uma visão revolucionária. Madre Teresa de Calcutá, por exemplo. Sua missão era ajudar aos mais necessitados, e ela buscava fazer isso de forma criativa, unindo voluntários e canalizando os desejos de todos para o seu objetivo. Por isso, Teresa de Calcutá foi um exemplo paradigmático de empresário.

Portanto, entendamos a função empresarial como sendo a mais íntima característica de nossa natureza como seres humanos, a característica que explica o surgimento da sociedade e o seu desenvolvimento como uma extremamente complicada rede de interações. A sociedade é formada por inúmeras relações de interação e troca entre indivíduos, relações estas que são empreendidas porque, de alguma forma, imaginamos que estaremos melhor após elas. Todas estas relações são impulsionadas por nosso espírito empresarial.

Todo ato empresarial produz uma sequência de três etapas. A primeira consiste na criação da informação: quando um empresário descobre ou cria uma ideia nova; quando ele gera em sua mente uma informação que antes não existia. Para colocar essa descoberta em prática, ele parte para a segunda etapa, que é quando ele combina recursos para satisfazer necessidades. Se, de um lado, ele percebe que há um recurso barato e mal aproveitado, e, do outro, ele descobre que há demandas que podem ser satisfeitas com este recurso, ele irá atuar de modo a coordenar este "desarranjo". Ele irá comprar barato o recurso, utilizá-lo, transformá-lo, e vendê-lo a um preço maior, satisfazendo assim a demanda que ele havia percebido. Desta forma, a informação é transmitida a todos, o que nos leva à terceira e última etapa, que é quando os agentes econômicos, atuando de maneira descoordenada, observam, aprendem e descobrem que devem conservar e economizar melhor um determinado recurso porque alguém o está demandando. 

Estes são os três planos que completam a sequência: criação de informação, transmissão de informação e, o mais importante, o efeito de coordenação gerado pelas duas etapas anteriores. Desde o momento em que acordamos e nos levantamos da cama até o momento em que voltamos a dormir, disciplinamos nosso comportamento em função das mais distintas necessidades, em função das necessidades de pessoas que nem sequer conhecemos; e fazemos isso por iniciativa própria porque, seguindo nosso próprio interesse empresarial, sabemos que assim saímos ganhando. É importante entendermos tudo isso porque, em contraste, vejamos agora o que é o socialismo.

O socialismo deve ser definido como sendo "todo e qualquer sistema de agressão institucional e sistemática contra o livre exercício da função empresarial". O socialismo consiste em um sistema de intervenção que se impõe pela força, utilizando todos os meios coercitivos do estado. O socialismo poderá apresentar determinados objetivos como sendo bons, mas terá de impor estes objetivos supostamente bons por meio de intervenções coercivas que provocarão distúrbios neste processo de cooperação social protagonizado pelos empresários. Sendo assim — e essa é sua principal característica —, o socialismo funciona por meio da coerção. Esta definição é muito importante porque os socialistas sempre querem ocultar sua face coerciva, a qual é a essência mais distintiva de seu sistema.

A coerção consiste em utilizar a violência para obrigar alguém a fazer algo. De um lado temos a coerção do criminoso de rua que assalta um indivíduo qualquer; de outro temos a coerção do estado, que é a coerção que caracteriza o socialismo. Quando a coerção é aleatória, não sistemática, o mercado tem, na medida do possível, seus próprios mecanismos para definir direitos de propriedade e defender-se da criminalidade. Porém, se a coerção é sistemática e advém institucionalmente de um estado que detém todos os instrumentos do poder, a possibilidade de nos defendermos destes instrumentos e evitá-los é muito reduzida. É neste ponto que o socialismo manifesta sua realidade em toda a sua crueza.

O socialismo não deve ser definido unicamente em termos de propriedade pública ou privada dos meios de produção. Isso é um arcaísmo. A essência do socialismo é a coerção, a coerção institucional oriunda do estado, por meio da qual se pretende que um órgão planejador se encarregue de todas as tarefas supostamente necessárias para se coordenar toda uma sociedade. A responsabilidade é retirada à força dos indivíduos — que são naturalmente os únicos responsáveis por sua função empresarial, e que almejam seus objetivos e querem alcançá-los utilizando os meios mais adequados para tal — e repassada a um órgão planejador que, "lá de cima", pretende impor por meio da coerção sua visão específica de mundo e seus objetivos particulares. Nesta definição de socialismo, vale enfatizar que é irrelevante se este órgão planejador foi ou não eleito democraticamente. O teorema da impossibilidade do socialismo se mantém intacto, sem nenhuma modificação, independentemente de ser democrática ou não a origem do órgão planejador que quer impor à força a coordenação de toda a sociedade.

Definido o socialismo desta maneira, expliquemos então por que ele é um erro intelectual. 

O socialismo é um erro intelectual porque é impossível que o órgão planejador encarregado de exercer a coerção para coordenar a sociedade obtenha todas as informações de que necessita para fornecer um conteúdo coordenador às suas ordens. Este é o grande paradoxo do socialismo, e o seu maior problema. O planejador da economia necessita receber um fluxo ininterrupto e crescente de informação, de conhecimento e de dados para que seu impacto coercivo — a organização da sociedade — tenha algum êxito. Mas é obviamente impossível uma mente ou mesmo várias mentes obterem e processarem todas as informações que estão dispersas na economia. As interações diárias entre milhões de indivíduos produzem uma multiplicidade de informações que são impossíveis de serem apreendidas e processadas por apenas um seleto grupo de seres humanos.

Os teóricos da Escola Austríaca de Economia, Mises e Hayek, elaboraram quatro argumentos básicos no debate que mantiveram durante a primeira metade do século XX contra os teóricos da economia neoclássica, os quais nunca foram capazes de entender o problema inerente ao socialismo. E por que não foram capazes de entendê-lo? Pelo seguinte motivo: eles acreditavam que a economia funcionava exatamente como nos livros-textos de faculdade. Mas o que os livros-textos ensinam em relação ao funcionamento da economia de mercado é radicalmente falso e fictício. Tais manuais baseiam suas explicações sobre o mercado em termos matemáticos que supõem um ajuste perfeito. É como se o mercado fosse uma espécie de computador que ajusta de maneira automática e perfeita os desejos dos consumidores à ação dos produtores. O modelo ideal dos manuais é o da concorrência perfeita, descrito pelo sistema de equações simultâneas de Walras. 

Quando era universitário, minha primeira aula de economia foi com um professor que começou sua explanação com a seguinte e espantosa frase: "Suponhamos que todas as informações sejam conhecidas". E logo em seguida ele se pôs a encher o quadro-negro com funções, curvas e fórmulas. Esta é exatamente a hipótese da qual partem os neoclássicos: todas as informações são conhecidas e nada se altera; tudo é estático. Mas esta hipótese é radicalmente irreal. Ela vai contra a característica mais típica do mercado: a informação nunca é conhecida por todos; ela está dispersa pela economia. Ela não é um dado constante que está ali para ser consultado a qualquer momento. O conhecimento dos dados surge continuamente em decorrência da atividade criativa dos empresários: novos fins são almejados, novos meios são criados e utilizados. Logo, qualquer teoria econômica construída a partir deste pressuposto irreal está fatalmente errada.

Os economistas neoclássicos pensaram que o socialismo era possível porque supuseram que todos os dados necessários para elaborar o sistema de equações simultâneas de Walras e encontrar sua solução eram "conhecidos". Não foram capazes de apreciar o que ocorria neste mundo que tinham de investigar cientificamente; por conseguinte, não conseguiram entender o que realmente se passava.

Somente a Escola Austríaca seguiu um paradigma distinto. Ela nunca supôs que as informações já estavam dadas e eram conhecidas por todos. Ela sempre considerou que o processo econômico era impulsionado por empresários que continuamente incorrem em transações e descobrem novas informações. Somente ela foi capaz de entender e explicar que o socialismo era um erro intelectual. Ela desenvolveu seu argumento utilizando quatro enunciados: dois podem ser considerados "estáticos" e os outros dois podem ser considerados "dinâmicos".

Em primeiro lugar, a Escola Austríaca afirma, como já dito, ser impossível o órgão planejador coletar e utilizar corretamente todas as informações de que necessita para imprimir um conteúdo coordenador às suas ordens. O volume de informações que os seres humanos manejam e com as quais lidam diariamente é imenso, de modo que é impossível gerir o que sete bilhões de seres humanos têm na cabeça. Embora os neoclássicos não tenham sequer conseguido entender este argumento, ele é o mais fraco e o menos importante. Ao fim e ao cabo, nos dias de hoje, com toda a capacidade informática existente, é um pouco mais fácil lidar com volumes imensos de informação.

O segundo argumento é muito mais profundo e contundente. A informação com que lida o mercado não é objetiva; não é como a informação que se encontra impressa em um catálogo. A informação empresarial possui uma natureza radicalmente distinta; ela é uma informação subjetiva, e não objetiva. Ela é tácita, por assim dizer. Ela é do tipo "sabemos algo, temos a técnica, a prática e o conhecimento, mas não sabemos no que tudo isso consiste detalhadamente." Explicando de outra forma: é como a informação necessária para andar de bicicleta. É como se alguém quisesse aprender a andar de bicicleta estudando as fórmulas físicas e matemáticas que expressam o equilíbrio que mantém o ciclista enquanto ele pedala. O conhecimento necessário para saber andar de bicicleta não é adquirido desta forma, mas sim mediante um processo prático de aprendizagem, normalmente bem acidentado, que finalmente permite entender como se equilibra sobre uma bicicleta, além de detalhes fundamentais, como o de que, ao fazermos as curvas, temos de nos inclinar para não cairmos. É bem provável que Lance Armstrong desconheça os detalhes das leis da física que o permitiram vencer o Tour de France várias vezes, mas ele indubitavelmente possui o conhecimento de como se anda em uma bicicleta.

A informação implícita não pode ser moldada de maneira formalizada e objetiva; tampouco pode ser transmitida corretamente a um órgão planejador. Só é possível transmitir a um órgão planejador — de modo que este assimile e imponha uma coerção, dando um conteúdo coordenador às suas ordens — uma informação unívoca que não dê brechas a mal entendidos. Porém, a esmagadora maioria das informações das quais dependemos para sermos bem-sucedidos em nossas vidas não é objetiva; não é informação de catálogo. É informação subjetiva e tácita.

Mas estes dois argumentos — que as informações são extremamente volumosas e que possuem um caráter subjetivo — não bastam. Existem outros dois, de caráter dinâmico, que são ainda mais contundentes e cuja implicação inevitável é a impossibilidade do socialismo.

Nós seres humanos somos dotados de uma inata capacidade criativa. Continuamente descobrimos coisas "novas", almejamos objetivos "novos", e escolhemos meios "novos" para alcançá-los. É impossível transmitir a um órgão planejador a informação ou o conhecimento que ainda não foi "criado" pelos empresários. O órgão planejador pode se empenhar o quanto quiser em construir um "nirvana social" por meio de uma publicação diária de decretos e da imposição da força. Mas, para fazer isso — ou seja, para se alcançar o "nirvana social" — ele tem de saber exatamente o que ocorrerá amanhã. E o que vai ocorrer amanhã dependerá de uma informação empresarial que ainda não foi criada hoje, e que não pode ser transmitida ainda hoje para que nossos governantes nos coordenem eficientemente amanhã. Este é o paradoxo do socialismo, a terceira razão.

Mas isso ainda não é tudo. Existe um quarto argumento que é definitivo. A própria natureza do socialismo — que, como dito, se baseia na coerção, no impacto coercivo sobre o corpo social ou a sociedade civil — bloqueia, dificulta ou impossibilita a criação empresarial de informação, que é precisamente aquilo de que necessita o governante para dar um conteúdo coordenador às suas ordens.

Esta é a demonstração em termos científicos do motivo de o socialismo ser teoricamente impossível. É impossível o órgão planejador socialista coletar, apreender e colocar em prática todas as informações de que necessita para imprimir um conteúdo coordenador aos seus decretos. Esta é uma análise puramente objetiva e científica. Não é necessário pensar que o problema do socialismo está no fato de que "aqueles que estão no comando são maus". Nem mesmo anjos, santos ou seres humanos genuinamente bondosos, com as melhores intenções e com os melhores conhecimentos, poderiam organizar uma sociedade de acordo com o esquema coercivo socialista. Ela seria convertida em um inferno, já que, dada a natureza do ser humano, é impossívelalcançar o objetivo ou o ideal socialista.

Todas estas características do socialismo têm consequências que podemos identificar em nossa realidade cotidiana. A primeira é seu poder de encanto. Em nossa natureza mais íntima, sempre encontramos o risco de ceder ao socialismo porque seu ideal nos tenta, porque o ser humano sempre tende a se rebelar contra sua natureza. Viver em um mundo cujo futuro é incerto é algo que nos inquieta, e a possibilidade de controlar este futuro, de erradicar a incerteza, nos atrai. Em seu livro A Arrogância Fatal, Hayek diz que, na realidade, o socialismo é a manifestação social, política e econômica do pecado original do ser humano, que é a arrogância. O ser humano sempre teve o devaneio de querer ser Deus — isto é, onisciente. Por isso, sempre, geração após geração, temos de estar em guarda contra o socialismo, continuamente vigilantes, e entender o fato de que nossa natureza é criativa, do tipo empresarial. 

O socialismo não é uma simples questão de siglas, abreviações, sindicatos ou partidos políticos em determinados contextos históricos. O socialismo é uma ideia que está e sempre estará se infiltrando de maneira insidiosa em famílias, comunidades, bairros, igrejas, empresas, movimentos, partidos políticos de todas as ideologias etc. É necessário lutar continuamente contra a tentação do estatismo porque ele representa o perigo mais original que há dentro dos seres humanos, nossa maior tentação: crer que somos Deus. O socialista acredita ser genuinamente capaz de superar o problema da impossibilidade da coleta, da apreensão e da utilização de informações dispersas, problema esse que desacredita totalmente a essência do sistema que ele defende. Por isso, o socialismo sempre decorre do pecado da soberba intelectual. Por trás de todo socialista há um arrogante, um intelectual soberbo. E isso é algo fácil de constatarmos ao nosso redor.

O socialismo não é somente um erro intelectual. É também uma força verdadeiramente antissocial, pois sua mais íntima característica consiste em violentar, em maior ou menor escala, a liberdade empresarial dos seres humanos em seu sentido criativo e coordenador. E, como é exatamente isso o que distingue os seres humanos dos outros seres vivos, o socialismo é um sistema social antinatural, contrário a tudo o que o ser humano é e aspira a ser.

Jesús Huerta de Soto , professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo libertário ao redor do mundo. Ele é o autor da monumental obra Money, Bank Credit, and Economic Cycles.

domingo, 3 de março de 2013

EM TORNO DE YOANI SANCHEZ


Certas controvérsias surgidas dias atrás a propósito da blogueira Yoani Sanchez, uns considerando-a uma heroína, os outros uma perigosa agente camuflada dos irmãos Castro, podem ser resolvidas facilmente se a ânsia de julgar ceder o passo ao desejo de compreender.

Os próprios dados do problema trazem a sua solução, bastando ordená-los de maneira razoável.

1. Desde logo, é insensato pensar que as denúncias da blogueira possam fazer algum bem ao regime cubano. Mais do que ninguém nos últimos tempos, ela tem contribuído para divulgar crimes e atrocidades que mancham de uma vez para sempre a reputação dos irmãos Castro. Quando, por exemplo, os horrores da ditadura cubana foram expostos no nosso Congresso Nacional com a visibilidade que lhes deu a visita de Yoani Sanchez? Imaginar que o governo cubano se alegre com isso é levar longe demais a conjeturação de planos secretos.

2. Igualmente insensato é supor que, para fazer o que faz, Yoani tenha de ser uma direitista ou conservadora ou deva satisfações ideológicas aos que assim se definem. Ela nunca foi direitista nem conservadora, e não faz o menor sentido julgar a confiabilidade, a idoneidade ou a utilidade do seu trabalho por um imaginário dever de fidelidade a uma corrente política à qual ela nunca pertenceu.

3. Yoani é uma protegida de George Soros, o que basta para situá-la historicamente como um instrumento -- voluntário ou involuntário, pouco importa -- do grande processo de renovação interna do movimento revolucionário, empenhado em desfazer-se de sua antiga casca bolchevista para assumir feições mais sedutoras e lançar-se a novas e mais ambiciosas conquistas.

4. Nesse processo, os velhos bolchevistas que não puderem se adaptar às novas condições serão sacrificados, como ciclicamente acontece na história das revoluções, que progridem e crescem por autodestruição, limpando-se na sua própria sujeira cuja existência negavam até a véspera. Nessas transições, o movimento revolucionário se renova e se fortalece, mas torna-se temporariamente vulnerável, de modo que suas contradições internas podem ser aproveitadas pelos seus adversários, se estes não caírem nas duas esparrelas opostas: ou imaginar que os dissidentes internos do socialismo se converteram todos às idéias democráticas e conservadoras ou, inversamente, condená-los como falsos conservadores e agentes infiltrados quando seu discurso não coincide com aquilo que em outras nações se entende como conservadorismo “autêntico”.

5. Malgrado todas as ambigüidades e hesitações no curso do processo, em última instância é impossível que Yoani sirva igualmente ao novo e ao velho esquema revolucionário. A opção dela está feita, na prática. Como ela encara isso subjetivamente é irrelevante no momento. Seus motivos íntimos só se revelarão mais tarde, e até lá toda tentativa de julgá-la moralmente, seja para aplaudi-la, seja para condená-la, é ejaculação precoce.

6. A destruição do regime cubano é um bem em si, independentemente do seu futuro aproveitamento pelo movimento revolucionário, cuja nova encarnação terá de ser combatida num outro quadro de condições, totalmente diverso da luta contra a ditadura castrista.

7. Os conceitos descritivos e categorias mentais em que se expressa o conflito interno em Cuba não coincidem com os da luta politica no resto do continente latino-americano nem muito menos no Brasil em especial ou no quadro geral do mundo. Como diria um trotsquista, historicamente esses fenômenos pertencem a “fases” diferentes. Numa ditadura socialista totalitária, não é muito urgente saber se seus dissidentes são conservadores, liberais ou apenas socialistas com pretensões democráticas desiludidos com algo que lhes parece um pseudo-socialismo – diferenças que, no quadro de uma democracia, ou mesmo de um regime meramente autoritário como o brasileiro, podem se tornar essenciais. O “novo” socialismo do sr. George Soros só existe hoje fora de Cuba. Nesse quadro, ele representa o inimigo número um da democracia tradicional e de todos os conservadores. Dentro de Cuba, ele aparece junto com estes como a quintessência do direitismo reacionário – assim como, mutatis mutandis, no Brasil o socialismo light dos tucanos é pintado pelo governo com as cores da “extrema direita”. A diferença é que no Brasil algo à direita dos tucanos ainda pode subsistir em relativa liberdade, o que não acontece em Cuba. Se o governo cubano concede a Yoani Sanchez a margem de ação que nega a seus concorrentes de direita é por dois motivos: teme o apoio internacional que ela desfruta e, não excluindo a possibilidade de uma mudança de regime amanhã ou depois, embora lute para evitá-la, está preparado para aceitá-la com a condição de que ela não destrua de todo a idéia socialista, mas apenas lhe dê novo formato.

8. No presente momento, o trabalho de Yoani é da mais alta importância e não cabe depreciá-lo sob pretexto nenhum. O que importa é estar preparado para combater, mais tarde, as tentativas de aproveitar os resultados dele em favor do “novo” movimento revolucionário. Transformar isso numa luta pró e contra Yoani Sanchez, do ponto de vista da fidelidade ou infidelidade da blogueira a valores democráticos tradicionais que objetivamente nunca foram os dela, é processar o cão em vez do dono que o atiçou. Revelar os compromissos de Yoani com o movimento revolucionário é decerto útil e necessário, mas fazer disso um motivo para fulminá-la com anátemas ideológicos é extemporâneo e contraproducente. POR OLAVO DE CARVALHO Publicado no Diário do Comércio.