sábado, 6 de abril de 2013

DEZ OBJEÇÕES TÍPICAS AO ANARQUISMO LIBERTÁRIO

Obs: O texto a seguir é a transcrição de um discurso improvisado. Daí seu tom mais coloquial.

Gostaria de abordar aqui algumas das principais objeções apresentadas ao anarquismo libertário. Tentarei responder a cada uma delas. Porém, antes de começar, não faria muito sentido eu tentar retrucar objeções a uma determinada visão de mundo sem antes oferecer alguma razão positiva para defender esta visão de mundo. Sendo assim, gostaria de explicitar rapidamente aquilo que creio ser um argumento positivo em prol do anarquismo libertário para, logo em seguido, fazer sua defesa contra suas principais objeções.

O argumento em defesa do anarquismo libertário

Problemas com o monopólio forçado

Pense desta forma: o que haveria de errado em se ter um monopólio da produção de sapatos? Suponha que eu e minha gangue sejamos as únicas pessoas que podem legalmente fabricar e vender sapatos. Ninguém mais pode, a menos que eu autorize. O que há de errado neste arranjo?

Para começar, de um ponto de vista puramente moral, a pergunta é: por que nós? O que há de tão especial em relação a nós para desfrutarmos deste monopólio? De onde foi que minha gangue e eu tiramos esse direito de que somente nós podemos fabricar e vender algo e que ninguém mais tem o direito de fazer o mesmo? Por que somente nós podemos ofertar um bem ou serviço que ninguém mais tem o direito de ofertar? 

Até onde se sabe, sou apenas um ser humano tão mortal quanto qualquer outro. Logo, de um ponto de vista moral, qualquer outra pessoa deve ter o mesmo 'direito' a este privilégio.

Logo, de um ponto de vista pragmático, qual é a consequência mais provável de minha gangue e eu termos o monopólio da produção de sapatos? Em primeiro lugar, há o problema dos incentivos. Se eu sou a única pessoa que tem o direito de fabricar e vender sapatos, você provavelmente não irá conseguir de mim sapatos muito baratos. Posso cobrar de você o tanto que eu quiser. Só não irei cobrar caro demais porque você pode acabar decidindo que é melhor não me dar dinheiro e ficar sem os sapatos. Porém, desde que você esteja disposto a comprar sapatos e tenha o dinheiro para tal, irei cobrar de você o maior preço que puder — como não há concorrência, você não tem outra opção. 

Da mesma maneira, e pelos mesmos motivos, você também não deve esperar que meus sapatos sejam de alta qualidade, pois, desde que eles sejam minimamente úteis, você irá preferir calçá-los a andar descalço — e, sendo assim, irá comprá-los de mim. 

Além dessa probabilidade de que os sapatos serão caros e de baixa qualidade, há também o fato de que eu ser a única pessoa que pode fabricar e vender sapatos me concede um grande poder de chantagem sobre você. Suponha que eu não goste de você. Suponha que você tenha me ofendido em outra ocasião. Eu simplesmente não irei vender sapatos para você — pelo menos por algum tempo, enquanto meu humor não melhorar. Logo, tal privilégio monopolista também me concede a capacidade do 'abuso de poder'.

No entanto, os problemas não se resumem apenas à questão dos incentivos. Suponha que eu seja um genuíno e perfeito santo, e esteja verdadeiramente disposto a fabricar os melhores sapatos possíveis para você, e a cobrar o menor preço que eu puder. Eu realmente não irei, em momento algum, abusar do meu poder, pois sou uma pessoa totalmente confiável; sou um príncipe entre os homens (não no sentido maquiavélico). Ainda assim haverá um problema incontornável: como saberei se realmente estou fazendo o melhor trabalho possível com estes sapatos? Afinal, não há concorrência. 

Sim, eu poderia fazer uma pesquisa junto aos consumidores para tentar descobrir que tipo de sapato eles querem. Mas o problema é que há várias maneiras distintas de se fabricar sapatos. Há métodos mais caros e há métodos mais baratos. Se não há um mercado na área de fabricação de sapatos, não há formação de preços para os métodos de produção empregados na fabricação de sapatos. Sem formação de preços, não há como eu calcular os métodos mais eficientes para se produzir sapatos. E, igualmente, por não haver um livre mercado na venda de sapatos, não há também formação de preços nesta área. Sem saber ao certo o preço de venda, e sem ter como calcular os métodos mais eficientes para se produzir sapatos, não terei como calcular custos, e minha contabilidade de lucros e prejuízos estará impossibilitada. Terei simplesmente de recorrer ao método da adivinhação. 

Portanto, mesmo que eu realmente esteja fazendo o meu melhor, a quantidade de sapatos que irei fabricar e a qualidade que empregarei podem não ser as mais bem indicadas para satisfazer as preferências das pessoas, e terei enormes dificuldades para descobrir o melhor procedimento.

O governo é um monopólio forçado

Portanto, estas são todas as razões para não se ter um monopólio na fabricação e na venda de sapatos. E, ao menos à primeira vista, estas também são boas razões para que absolutamente ninguém detenha um monopólio da oferta de serviços judiciários, de adjudicação de contendas, de proteção de direitos, e de todas as coisas relacionadas àquilo que pode ser mais amplamente chamado de exercício das leis.

Em primeiro lugar, há a questão moral: por que um pequeno agrupamento de pessoas deveria deter o direito de ser a única organização dentro de um dado território autorizada a oferecer certos tipos de serviços legais ou a poder impingir certos tipos de leis?

E há também as questões econômicas: quais serão os incentivos? Repetindo, trata-se de um monopólio. Parece bastante provável supor que, tendo consumidores cativos, essa organização monopolista irá cobrar preços maiores e ofertar serviços piores do que os que seriam praticados em um ambiente concorrencial. Pode até mesmo ocorrer eventuais abusos de poder. 

E, mesmo que fosse possível evitar todos estes problemas — colocando exclusivamente anjos e santos no governo —, ainda haveria o problema do cálculo econômico, tornando impossível saber se a maneira específica como esse grupo está ofertando seus serviços legais é realmente a melhor maneira. Dado que não há concorrência, este grupo de pessoas não tem como saber se o que está fazendo é realmente a melhor e mais bem-sucedida atividade que ele pode empreender. A única maneira de descobrir sua aptidão será tentando descobrir na prática o que e o que não irá funcionar. Quem gostaria de ser a cobaia?

Logo, o propósito destas considerações é justamente o de jogar o ônus da prova para o defensor do monopólio estatal. Sempre que um defensor do monopólio estatal de serviços jurídicos e de defesa levantar algumas objeções à livre concorrência nesta área, ele deve ser questionado sobre como é possível o monopólio destes serviços funcionar de maneira sequer razoável.

Dez objeções ao anarquismo libertário

(1) O governo não é um monopólio coercivo

Uma objeção que frequentemente é lançada não é exatamente uma objeção ao anarquismo, mas sim uma objeção ao argumento moral em prol do anarquismo: dizer que o governo, na realidade, não é um monopóliocoercivo.

Segundo este argumento, os cidadãos, ao aceitarem viver dentro das fronteiras de um determinado território e ao aceitarem os benefícios que o governo oferece — por exemplo, serviços policiais, jurídicos, educacionais, de saúde etc. —, estão na prática consentindo com este arranjo. Eles estão consentindo com o sistema vigente. 

A ideia é a mesma de quando você vai a um restaurante e pede uma carne. Ao fazer isso, você não tem de dizer explicitamente que você está concordando em pagar por aquele carne; há simplesmente um entendimento tácito de que é isso que você fará. Ao se sentar à mesa do restaurante e pedir a carne, você está automaticamente concordando em pagar por ela.

O argumento seria o mesmo para a não-coercividade do estado. Se você reside dentro de um determinado território e aceita, por exemplo, os benefícios da proteção policial fornecida pelo estado local, então você implicitamente aceitou obedecer a todas as ordens desta organização. 

Logo de cara, observe que, mesmo que este argumento fosse válido, ele ainda não resolve a questão pragmática sobre a funcionalidade deste sistema; ele não explica por que este é o melhor arranjo possível.

Mas há outros problemas com este argumento. É realmente verdade que, se eu for à propriedade de alguém, então há um consenso tácito de que, enquanto eu estiver nessa propriedade, eu tenho de seguir as regras locais. Se eu não quiser seguir as regras locais, então eu tenho de ir embora. 

Ou seja, eu convido você para vir à minha casa. Quando você chega, eu abro a porta e lhe digo: para ficar aqui em casa, você tem de usar este nariz de palhaço. Isto certamente vai lhe parecer bastante estranho, mas ainda assim eu posso dizer: "Ei, é a minha casa e estas são minhas regras. Se quiser entrar, tem de ser assim". Neste caso, sendo eu o proprietário, você não pode simplesmente dizer: "Olha, eu vou entrar na sua casa, sim, e não vou usar o nariz de palhaço." Se fizesse isso, você estaria invadindo a minha propriedade e desrespeitando as leis vigentes dentro dela, as quais foram estipuladas antes da sua entrada. Isso, portanto, é algo que você nãotem o direito de fazer.

Agora, imaginemos o cenário contrário. Suponha que eu vá à sua casa e lhe diga: "Você tem de usar um nariz de palhaço". Além do espanto total, sua outra provável reação será a de perguntar quando foi que você disse que concordava em ser obrigado a utilizar um nariz de palhaço dentro da sua casa. Ao que irei responder: "Ora, você se mudou para perto de mim. E eu uso nariz de palhaço na minha casa. Portanto, o simples fato de você estar morando perto de mim significa que você, de uma maneira um tanto mística e tácita, consente em também utilizar nariz de palhaço dentro da sua casa, mesmo que você não goste da ideia."

As pessoas que defendem o monopólio estatal simplesmente pegam este cenário que é evidentemente absurdo em nível local e o expandem para um nível nacional: se você está aqui, então você deu seu consentimento tácito com tudo o que se passa nele. Tais pessoas já partem da pressuposição de que o governo possui uma jurisdição legítima sobre um determinado território, de modo que quem está nele está automaticamente concordando com todas as regras vigentes.

O problema de tal raciocínio é que ele pressupõe exatamente aquilo que ele está tentando provar — no caso, que esta jurisdição sobre o território é legítima. No entanto, caso não se consiga provar que tal jurisdição é legítima, então se conclui que o governo é simplesmente apenas mais um grupo de pessoas que vive neste amplo território geográfico. 

O que nos leva a outro ponto. Eu vivo em minha propriedade. Não sei bem quais são as determinações do governo em relação ao resto do país, mas sei que vivo em minha propriedade e ela pertence a mim, e não ao governo. Logo, o fato de que estou vivendo "neste país" significa que estou vivendo em uma determinada região geográfica sobre a qual o governo possui certas pretensões. Logo, a questão é: estas pretensões são legítimas? Se o objetivo é justamente provar que elas são legítimas então não é válido já partir do pressuposto de que elas são legítimas. Pressupor algo não significa comprovar sua legitimidade.

Outro problema com este argumento do contrato social implícito é que ele não deixa claro qual exatamente é o contrato. Quando vou a um restaurante e peço comida, todos sabem perfeitamente qual é o contrato. Sendo assim, neste arranjo é válido apresentar o argumento do consentimento implícito. Porém, ninguém jamais diria que você pode comprar um imóvel desta mesma maneira. Para a compra de imóveis, as regras são outras. Ninguém diz que "Você meio que concordou com a compra ao ter balançado positivamente sua cabeça quando lhe mostrei o tamanho do banheiro". Você tem de ver o que realmente está escrito no contrato. Com o que exatamente você está concordando? Um contrato não é claro se ninguém sabe exatamente quais são seus detalhes. 

(2) Hobbes: o governo é necessário para a cooperação

Provavelmente, o mais famoso argumento contra a anarquia é o de Thomas Hobbes. O argumento de Hobbes é o de que a cooperação humana — a cooperação social — requer a existência de uma estrutura legal. O motivo de podermos confiar uns nos outros é que sabemos que existem forças legais que irão nos punir caso violemos os direitos de terceiros. Eu sei que eles irão me punir se eu violar seus direitos, e você sabe que eles irão lhe punir caso você viole meus direitos. Sendo assim, posso confiar em você sem conhecer seu caráter pessoal. Tenho apenas de confiar no fato de que você estará intimidado pela lei. 

Portanto, a cooperação social requer este arcabouço legal impingido à força pelo estado.

O problema é que, neste raciocínio, Hobbes está pressupondo várias coisas de uma só vez. Primeiro, ele está pressupondo que não é possível haver cooperação social sem leis. Segundo, ele está pressupondo que nenhuma lei realmente existe se ela não for impingida pela força física. E terceiro, ele está pressupondo que só é possível haver leis impingidas pela força física se tal força física for monopólio do estado.

Mas todas estas pressuposições são falsas. 

Em primeiro lugar, a cooperação pode surgir, e de fato surge, em um ambiente sem leis específicas. Ela pode não ser tão eficiente quanto seria em um ambiente com leis, mas ela ocorre. Há o livro de Robert Ellickson, Order Without Law, no qual ele fala sobre como vizinhos são capazes de resolver voluntariamente suas pendências. Ele também mostra um exemplo de o que acontece quando a vaca de um fazendeiro sai de suas delimitações e vai pastar na grama de outro fazendeiro, e de como eles resolvem o problema por meio de acordos consuetudinários, pois não há nenhum arcabouço legal voltado para esta situação específica. Talvez estes exemplos não sejam suficientes para economias complexas, mas certamente mostram que é possível haver algum tipo de cooperação sem a existência de um arcabouço jurídico específico.

Ademais, é possível existir um arcabouço legal que não seja impingido pela força. Um exemplo seria a Lex mercatoria do final da Idade Média: um sistema de leis comerciais que era mantido por ameaças de boicote. O boicote não é um ato de força. Os mercadores faziam seus contratos e, se algum deles desobedecesse as cláusulas, os tribunais simplesmente tornariam público que "esta pessoa não cumpriu o contrato pré-estabelecido; levem isso em consideração caso venham a firmar algum contrato com ela no futuro".

Por fim, é possível existir sistemas jurídicos formais que façam uso da força e que não sejam monopolistas. Dado que Hobbes nem sequer considerou esta possibilidade, ele não forneceu nenhum argumento contra ela. Mas é possível encontrar vários exemplos ao longo da história. Na Islândia medieval, por exemplo, não havia uma agência centralizada de imposição de leis. Embora houvesse algo que, com algumas concessões, pudesse ser chamado de governo, este não possuía absolutamente nenhum braço executivo. Não havia polícia, não havia soldados, não havia nada. Havia uma espécie de sistema judiciário que funcionava em bases concorrenciais. A aplicação de sanções ficava a cargo de quem quisesse. E vários sistemas se desenvolveram para cuidar disso.

(3) Locke: três "inconveniências" da anarquia

Os argumentos mais interessantes são de John Locke. Locke argumenta que a anarquia possui três características que ele considera serem "inconveniências". "Inconveniência", vale ressaltar, é um termo que soava mais grave no inglês do século XVII do que no inglês moderno. Seja como for, Locke referia-se meramente a "inconveniências" porque, ao contrário de Hobbes, ele acreditava que a cooperação social poderia sim existir de algum modo na anarquia. Ele era mais otimista do que Hobbes. Ele imaginava que, por causa de uma mescla entre afinidades morais e interesse próprio, a cooperação podia surgir.

Mas ele temia três problemas. Um problema, segundo ele, era que não haveria um conjunto de leis gerais que fosse conhecido, entendido e acordado por todos. As pessoas poderiam aceitar certos princípios básicos das leis da natureza, mas suas aplicações e seus detalhes exatos sempre seriam controversos. Afinal, nem mesmo libertários concordam plenamente entre si. Eles podem concordar em aspectos gerais, mas sempre estão discutindo acerca de vários pontos específicos. Logo, mesmo em uma sociedade composta exclusivamente por libertários pacíficos e cooperativos, haverá desavenças acerca de detalhes. E, sendo assim, a menos que haja um conjunto de leis gerais, o qual todo mundo conheça e com o qual todo mundo concorde, de modo que cada indivíduo sabe exatamente o que pode e o que não pode fazer, o arranjo não irá funcionar. Esse era o primeiro argumento de Locke. É necessário haver um conjunto universal de leis, amplamente conhecido, que seja aplicável a todos e que todos conheçam antecipadamente.

Um segundo problema seria a questão do poder de aplicação e imposição das leis. Locke imaginava que, sem um governo, não haveria um poder suficientemente unificado capaz de impingir o cumprimento das leis. Sem um governo, haveria apenas indivíduos impingindo coisas por conta própria. Mas dado que indivíduos são fracos e não são suficientemente organizados, eles poderiam facilmente ser sobrepujados por uma quadrilha de bandidos ou algo do tipo.

O terceiro problema é o fato de que, segundo Locke, não se pode deixar que indivíduos sejam os juízes de seus próprios processos. Se duas pessoas têm uma desavença, uma delas não pode simplesmente dizer "Eu sei qual é a lei natural e irei aplicá-la a você". As pessoas são tendenciosas e irão obviamente utilizar aquela interpretação da lei natural que favoreça de modo mais plausível a sua própria causa. Logo, Locke acreditava que não se podia deixar que as pessoas fossem os juízes de seus próprios processos. Consequentemente, seria moralmente necessário que elas aceitassem se submeter a um arbitrador, a um terceiro — e este teria de ser o estado.

Estes são os três problemas que Locke imaginava serem prementes em uma anarquia, e os quais não existiriam sob um governo — ou pelo menos não sob o tipo certo de governo. 

Porém, ouso dizer que o problema é justamente o oposto. É justamente a anarquia que pode resolver todos estes três problemas, ao passo que o estado, por sua própria natureza, está totalmente impossibilitado de resolvê-los.

Comecemos com um exemplo em que haja universalidade, isto é, em que haja um conjunto de leis universalmente conhecidas e aplicáveis a todos. Pode este arranjo surgir em um sistema sem estado? Ora, a Lex mercatoria surgiu exatamente porque os estados não estavam fornecendo este tipo de lei. Um dos fatores que contribuiu para o surgimento da Lex mercatoria foi a ausência de uma lei comum entre as nações da Europa. Cada país possuía diferentes conjuntos de leis para reger os comerciantes. Todas as leis eram diferentes. E um tribunal da França não iria endossar um contrato feito na Inglaterra sob as leis da Inglaterra, e vice versa. 

Sendo assim, a capacidade dos comerciantes de incorrerem no comércio internacional foi dificultada pelo fato de que não havia um sistema uniforme de leis comerciais para toda a Europa. Consequentemente, os comerciantes se juntaram e disseram: "Bom, vamos simplesmente fazer alguma lei por nossa conta. Os tribunais estão criando regras malucas e nenhum respeita as decisões dos outros — portanto nós iremos simplesmente ignorá-los e estabeleceremos nosso próprio sistema."

Portanto, este foi um caso em que uniformidade e previsibilidade foram produzidas pelo mercado e não pelo estado. E é possível entender por que isso não é nada surpreendente: afinal, é do total interesse daqueles que ofertam um sistema privado torná-lo o mais uniforme e previsível possível, se for isso que seus cliente querem.

É por esse mesmo motivo que não encontramos cartões de débito ou de crédito triangulares. Até onde se sabe, não existe nenhuma lei proibindo que tais cartões sejam triangulares. Mas se alguém tentasse comercializá-los, eles simplesmente não se tornariam muito populares, pois não se encaixariam em nenhum dos terminais existentes. Quando as pessoas querem diversidade, quando elas querem diferentes sistemas para diferentes pessoas, o mercado proporciona exatamente isso. Mas há algumas coisas para as quais a uniformidade é a melhor solução. Seu cartão de débito será mais útil para você se todas as outras pessoas também estiverem utilizando o mesmo tipo ou pelo menos algum tipo compatível com o seu, de tal modo que todos vocês possam utilizar as mesmas máquinas onde quer que estejam. Consequentemente, se os comerciantes desejam ter lucro, eles proporcionarão uniformidade.  

Portanto, ao contrário dos governos, o mercado possui todos os incentivos para oferecer uniformidade.

Quanto à questão da necessidade de se ter poder suficiente para organizar serviços de proteção e defesa, não há absolutamente nenhum argumento que diga que não é possível haver tal organização sem um estado. A ausência de estado não significa que cada pessoa tem de fabricar seus próprios sapatos. A alternativa a um arranjo em que o governo fornece todos os sapatos não é cada indivíduo tendo de fabricar os seus próprios sapatos. Analogamente, a alternativa a um arranjo em que o governo fornece todos os serviços legais não é cada pessoa tendo de se transformar em agente policial independente. Não há por que supor que elas não poderão se organizar e criar maneiras de suprir esta demanda. Com efeito, se a preocupação é a de não haver força suficiente para resistir a um agressor, então não há nada mais preocupante do que um monopólio estatal. Um monopólio estatal da violência é um agressor muito mais perigoso do que uma gangue de bandidos qualquer porque o monopólio estatal unifica todo este poder de agressão em apenas um ponto de toda a sociedade.

Mas, acima de tudo, eu creio que — e isso é muito interessante — o argumento de Locke sobre você não poder ser o juiz de seu próprio processo é um tiro que realmente sai pela culatra. Em primeiro lugar, tal raciocínio não é um bom argumento a favor de um monopólio porque se trata de uma construção falaciosa. Da alegação de que todo mundo deveria submeter suas contendas a uma entidade externa, Locke falaciosamente infere que deveria haver uma entidade externa para quem todo mundo submeteria suas contendas. Isso é semelhante a dizer que da afirmação todo mundo gosta de pelo menos um programa de TV pode-se inferir que existe apenas um programa de TV do qual todo mundo gosta. Uma coisa simplesmente não decorre da outra. É possível que todo mundo submeta suas contendas a terceiros sem que haja apenas um terceiro a quem todo mundo obrigatoriamente submete suas contendas.

Suponhamos que haja três pessoas em uma ilha. A e B podem submeter suas contendas a C; A e C podem submeter suas contendas a B; e B e C podem submeter suas contendas a A. Logo, não há nenhuma necessidade de haver um monopólio ao qual todas as pessoas deveriam submeter suas contendas.

No que mais, não somente não é necessário um governo, como na verdade um governo é exatamente o arranjo que não satisfaz esse princípio. Pois se você tiver uma contenda com o governo, o governo não irá submeter esta contenda a uma entidade externa. Se você tiver uma contenda com o governo, ela será resolvida em um tribunal do governo (isso se você tiver sorte — caso o governo seja do tipo mais "indelicado", você sequer conseguirá chegar a um tribunal).

Agora, é óbvio que é preferível que o governo seja dividido em três poderes, que haja todo um sistema de pesos e contrapesos e tudo mais. Isso faz com que haja algo um pouco mais parecido com entidades externas. Mas ainda assim tais entidades externas fazem parte do mesmo sistema; os juízes são funcionários do estado e são pagos com dinheiro dos pagadores de impostos. Portanto, existem aproximações melhores e aproximações piores em relação a esse princípio. Ainda assim, dado que se trata de um sistema monopolista, o que temos na prática é algo que, por sua própria natureza, opera sem lei. Em última instância, um sistema monopolista jamais submeterá suas contendas a uma entidade externa.

(4) Ayn Rand: agências de proteção privada irão guerrear entre si

Provavelmente, o argumento mais popular contra a anarquia libertária foi aquele apresentado por Ayn Rand. Suponha que eu creia que você violou meus direitos. Você nega. Eu então decido acionar minha agência de proteção privada para fazer valer meus direitos. Você, para se defender, aciona a sua agência de proteção privada. O que ocorrerá? As duas irão entrar em guerra? Quem garante que não?

A resposta, obviamente, é que ninguém pode garantir que elas não irão guerrear entre si. Seres humanos possuem livre arbítrio. Eles podem fazer todos os tipos de maluquices. Eles podem iniciar guerras sem motivo aparente. O presidente americano, por exemplo, pode apertar o botão nuclear amanhã se ele quiser. 

A questão é: o que é mais provável? Qual dos dois é mais propenso a resolver suas pendengas por meio da violência: governos ou agências de proteção privadas?

A diferença mais óbvia é que agências de proteção privada têm de arcar com todos os custos de sua eventual decisão de fazer uma guerra. Fazer guerra é algo extremamente caro. É péssimo para os lucros. Suponha que você pode escolher entre duas agências de proteção, uma que tende a resolver suas contendas por meio da violência e outra que tende a resolver suas contendas por meio do arbitramento. Se você for um indivíduo belicista, fanático por guerras, você pode até achar legal optar pela agência violenta — até o momento em que você receber sua fatura mensal.

Ainda assim, por mais que você realmente seja um sujeito tão fanático por guerra a ponto de continuar disposto a pagar valores exorbitantes, é certo que a imensa maioria dos outros clientes irá preferir agências que não cobrem toda esta quantia extra apenas para brincar de guerra. 

Por outro lado, tal opção nem sequer existe quando se trata de governo. Para começar, um governo possui clientes cativos, que não podem optar por não pagar, estejam eles de acordo ou não com a violência do governo. Ademais, dado que o governo tributa seus clientes, e dado que seus clientes não podem se recusar a repassar o dinheiro, os governos não apenas não precisam se preocupar com custos, como eles também podem simplesmente externalizar os custos de suas guerras de uma maneira extremamente eficaz: mandando a conta para seus cidadãos pagadores de impostos. Tal eficácia nenhuma agência privada jamais sonharia ser capaz de conseguir.

(5) Robert Bidinotto: não existe um arbitrador supremo para as contendas

Outra objeção comum — esta você encontra, por exemplo, nos escritos de Robert Bidinotto, que é um randiano que já escreveu vários artigos contra a anarquia — é que, em um arranjo sem governo, não há um arbitrador supremo para as contendas. Em um arranjo com governo, em algum momento um arbitrador supremo será chamado e irá resolver a disputa de um jeito ou de outro. Já em um arranjo sem governo, dado que não há nenhuma agência que detém o direito de resolver as contendes de uma vez por todas — ou seja, não há um arbitrador supremo —, tem-se que as contendas de certa forma nunca acabam, podendo nunca ser resolvidas, permanecendo em aberto para sempre.

Qual a resposta a isso?

Creio que nesse caso há uma ambiguidade quanto ao conceito de arbitrador supremo. Normalmente, pensa-se em no termo "arbitrador supremo" de uma forma muito platônica — isto é, alguém ou alguma instituição que, de alguma forma, consegue garantir de maneira absoluta que a contenda está resolvida para sempre; que garanta de maneira absolutamente incontestável a resolução de todas as pendengas. 

Por outro lado, "arbitrador supremo" também pode ser simplesmente alguma pessoa ou algum processo ou alguma instituição que, de uma maneira relativamente confiável e autêntica, garanta na maior parte das vezes que os problemas sejam resolvidos. 

É verdade que, no sentido platônico — no sentido de uma garantia absoluta dada por um arbitrador final —, um arranjo sem governo não pode propiciar tal solução. E nem nenhum outro sistema. Imaginemos uma república constitucional minarquista, do tipo defendido por Bidinotto. Será que haveria um arbitrador supremo neste sistema, algo que garantiria de modo absoluto o fim definitivo de um processo de contenda judiciária? 

Imaginemos: eu sou processado por você. Perco. Apelo. Perco de novo. Apelo para o Supremo Tribunal. Eles ficam contra mim. Faço lobby no Congresso para mudarem as leis para que elas agora me favoreçam. Eles não mudam. Tento então criar um movimento para conseguir fazer uma emenda à Constituição. Não dá certo. Tento então convencer as pessoas a elegerem novos membros para o Congresso que irão votar a favor da emenda. Não consigo. Tento de novo dali a alguns anos. E assim por diante. Observem que, de certa forma, posso continuar para sempre. A contenda não está resolvida.

Na prática, porém, a maioria das contendas judiciais sempre chega a um fim. Chega-se a um ponto que se torna caro demais continuar brigando. Do mesmo modo, em um arranjo sem governo, não há nenhuma garantia de que o conflito não irá se arrastar para sempre. Aliás, existem poucas garantias férreas sobre qualquer assunto. Mas isso não é motivo para esperar que as coisas não funcionem.(6) Leis sobre propriedade não podem surgir no mercado

Outro argumento popular, também muito usado pelos randianos, é que as transações de mercado pressupõem um histórico de leis de propriedade. Você e eu só podemos trocar bens por serviços, ou dinheiro por serviços, ou fazer qualquer outra transação, se já existir leis de propriedade estáveis que assegurem a veracidade dos títulos de propriedade que temos. E dado que o mercado, para funcionar bem, pressupõe a existência de todo um arcabouço de leis de propriedade, tais leis não podem ser elas próprias um produto do mercado. 

Segundo este raciocínio, as leis de propriedade têm de surgir de algum lugar — provavelmente será criada por algum robô infalível ou algo do gênero. Não sei bem de onde exatamente ela surge, mas sei que, por algum motivo, ela não pode surgir do mercado.

Ironias à parte, um raciocínio deste tipo é o equivalente a dizer que, primeiro, as leis sobre propriedade foram surgindo do nada e tudo foi sendo estabelecido sem nenhuma transação de mercado acontecendo — todo mundo ficou quieto, apenas esperando que toda a estrutura legal ficasse pronta. E então, após algum tempo, com a estrutura finalmente já completada, as pessoas enfim começaram a fazer negócios umas com as outras. 

É verdade que não é possível haver mercados funcionando corretamente se não houver um sistema legal operante. Mas não faz sentido imaginar que primeiro criaram todo um sistema legal para então, só então, começarem a fazer transações econômicas. Ambos nasceram e evoluíram juntos. Instituições jurídicas e transações econômicas surgem conjuntamente em um mesmo local e ao mesmo tempo. O sistema legal não é algo totalmente independente das atividades que ele restringe. Afinal, um sistema legal não é um robô ou um deus ou algo externo completamente separado de nós. A existência de um sistema legal consiste em pessoas obedecendo a suas regras. Se todos ignorassem o sistema legal, ele não teria poder nenhum. Logo, é justamente porque as pessoas geralmente apóiam e concordam com o sistema legal, que ele sobrevive. O sistema legal também depende de um respaldo voluntário das pessoas.

Creio que um dos motivos por que várias pessoas temem um arranjo sem governo é que elas imaginam que, sob um governo, ao menos existe algum tipo de garantia que não mais irá existir sem o governo; que de algum modo existe este firme arcabouço ao qual podemos recorrer, e o qual, sem governo, simplesmente desapareceria. Mas este firme arcabouço é apenas o produto de pessoas interagindo de acordo com os incentivos que possuem. 

Do mesmo modo, quando anarquistas dizem que as pessoas, em um arranjo sem governo, provavelmente teriam incentivos para fazer isto ou aquilo, as pessoas respondem exasperadas "Bem, isso não é suficiente! Eu não quero que apenas seja provável que elas terão incentivos para fazer isso. Quero que o governo garanta de maneira absoluta que elas farão isso!" Mas o governo nada mais é do que um conjunto de pessoas. E, dependendo da estrutura constitucional do governo, é provável que elas façam isso ou aquilo. É impossível elaborar uma constituição que garanta que as pessoas no governo irão se comportar de uma determinada maneira. É possível estruturar uma constituição de modo a tornar mais provável que as pessoas façam uma coisa e menos provável que elas façam outra coisa. E a anarquia pode ser considerada como sendo uma ampliação dos sistemas de pesos e contrapesos para um nível mais amplo.

(7) O crime organizado controlará tudo

Outra objeção é que, em um arranjo sem estado, o crime organizado tomará conta de tudo. Bom, é possível. Mas é improvável. O crime organizado surge justamente naquelas áreas que foram tornadas ilegais pelo estado. O crime organizado adquire seu poder ao se especializar em atividades que foram proibidas pelo estado — coisas como drogas, prostituição, jogos, agiotagem e assim por diante.

Durante os anos em que o álcool era proibido, o crime organizado especializou-se no comércio de álcool. Hoje, após o fim da proibição, praticamente não se ouve falar de crime organizado no comércio de álcool. O poder do crime organizado, em grande parte, depende do poder do governo. Ele é uma espécie de parasita das atividades do governo. Os governos, ao proibirem certas atividades, criam mercados negros. Os mercados negros são atividades perigosas de desempenhar porque seus membros têm de se preocupar tanto com o governo quanto com outras pessoas nada simpáticas que estão interessadas na sua fatia de mercado. Adicionalmente, como os tribunais não fazem valer aqueles contratos que o estado considera ilegais, todas as pelejas contraídas no mundo do crime organizado têm de ser cumpridas na base da violência. Todos estes fatores explicam por que uma indústria que é perseguida por agentes armados do governo acaba se tornando fortemente militarizada também.

Se a análise acima está correta, e o crime organizado (e gangues violentas em geral) prospera apenas naquelas áreas infestadas de intervenção estatal, então parece óbvio que uma anarquia de mercado iria emascular esses grupos criminosos. Colocando em outras palavras, à medida que o governo legalizasse mais e mais setores, o crime organizado teria de concentrar suas atividades em negócios cada vez mais restritos. No limite, se tudo fosse legalizado (do ponto de vista de legislação estatal), o crime organizado não teria como obter nenhuma vantagem especial. Da mesma forma que a máfia não aguenta concorrer diretamente com uma fabricante de cervejas como a Budweiser, ela também perderia sua fatia de mercado para empreendedores honestos dos setores judiciário e policial caso o estado cancelasse seu monopólio sobre esses serviços.(8) Os ricos irão dominar

Outra preocupação é que os ricos irão dominar. Afinal, se os serviços legais forem transformados em um bem econômico, a justiça não estará a serviço daquele que pagar mais? Trata-se de uma objeção comum. O interessante é que tal objeção é particularmente comum entre os randianos, que repentina e curiosamente se transformam em seres extremamente preocupados com os desvalidos. 

Mas sob qual sistema os ricos são mais poderosos? Sob o atual sistema ou sob um sistema sem estado? 

Certamente, você sempre terá algum tipo de vantagem se for rico. É bom ser rico. Sendo rico, você sempre estará em uma posição privilegiada para subornar pessoas. Porém, no atual sistema, o poder dos ricos é amplificado.

Suponha que eu seja um rico malvado e queira que o governo faça algo que custará $5 milhões. Teria eu de subornar algum burocrata em $5 milhões para conseguir que a coisa fosse feita? Não, pelo simples motivo de que, se a coisa for feita, o político não estará utilizando nenhum centavo de seu próprio bolso. Pelo mesmo motivo, se eu estivesse pedindo que ele fizesse o trabalho com seu próprio dinheiro, então obviamente eu não conseguiria convencê-lo a gastar $5 milhões dando a ele uma propina menor que $5 milhões. Eu teria de dar pelo menos cinco milhões e um centavo.

Pessoas que controlam o dinheiro de impostos de terceiros, dinheiro este que não pertence a elas — o que significa que elas não podem fazer com ele o que quiserem —, não podem simplesmente embolsar os $5 milhões e ir pra casa (muito embora elas façam coisas que cheguem muito perto disso). Tudo o que eu tenho de fazer é subornar o burocrata em alguns milhares, e ele, por sua vez, irá desviar estes $5 milhões em dinheiro de impostos para aquele projeto que eu defendo. 

Ou seja, no atual sistema, meu poder de propina é multiplicado.

Por outro lado, se você fosse o presidente de uma agência de proteção privada e eu estivesse tentando fazer você gastar em algo que custasse $5 milhões, eu teria de lhe pagar uma propina de valor (muito) superior a $5 milhões. Logo, o poder do rico é na realidade menor em um sistema sem governo. 

Ademais, obviamente, qualquer tribunal que adquirisse a má reputação de favorecer milionários contra os pobres também, presumivelmente, teria a reputação de favorecer bilionários contra milionários. Por conseguinte, os milionários não iriam querer lidar com esse tribunal. Eles só iriam querer lidar com ele quando estivessem em uma contenda contra pessoas mais pobres, e não contra pessoas mais ricas. Mas a questão é que as repercussões de uma má reputação não fariam nada bem para a imagem deste tribunal no mercado.

Há também preocupações quanto ao fato de vítimas pobres não serem capazes de arcar com serviços jurídicos, ou com vítimas que morrem sem deixar herdeiros (de novo, os randianos são muito preocupados com vítimas que morrem sem herdeiros). No caso de vítimas pobres, é possível fazer o que se fazia na Islândia medieval. Se você é pobre demais para pagar por serviços jurídicos e alguém prejudicou você, você tem o direito de requerer indenização daquela pessoa. Você pode vender esse direito à indenização — toda ela ou apenas uma parte dela — para outra pessoa. Na realidade, funciona como se você contratasse um advogado na condição de só pagar honorários se houver ganho de causa. Você poderá vender sua indenização para alguém que tenha condições de impingir suas reivindicações. Ou, se você morrer e não deixar herdeiros, em certo sentido os bens que você deixar passam a ser a reivindicação de indenização, e poderão ser objetos de apropriação.(9) Robert Bidinotto: as massas irão demandar leis ruins

Outra preocupação que aflige Bidinotto — e esta é praticamente oposta à preocupação de que os ricos irão dominar — tem a ver com a questão de o mercado ser, como Mises havia dito, uma grande democracia na qual a soberania do consumidor decide quem prospera e quem vai à falência. Segundo Bidinotto, esse tipo de democracia é ótimo quando se trata de geladeiras, celulares, automóveis, computadores etc. Mas certamente não é uma coisa boa quando se trata de leis. Porque, afinal, as massas nada mais são do que um bando de ignaros intolerantes que, se puderem criar as leis que quiserem, certamente inventarão as coisas mais pavorosas imagináveis.

A diferença entre a democracia econômica do tipo misesiano e a democracia política é óbvia: na democracia econômica, você consegue o que quer, mas tem de pagar por isso. Por outro lado, é verdade que, em um arranjo sem governo, se houver pessoas suficientemente fanáticas que desejam impor algo ignóbil a outras pessoas, e tal grupo de pessoas for grande o suficiente, então de fato a anarquia poderá levar a resultados nada libertários.

Se você vive em um estado povoado por pessoas de mentalidade mais progressista, você certamente estará rodeado de fanáticos que querem banir o cigarro de tudo quanto é lugar. Se você vive em um estado mais conservador, a tendência é que, em vez do cigarro, as pessoas queiram banir a homossexualidade — neste caso, pode ser que tais pessoas sejam tão fanáticas, que elas irão conseguir a proibição. Mas vale lembrar que elas terão de pagar por isso. 

Logo, quando elas receberem suas apólices mensais de suas agências de segurança privada, lá vai constar o preço do serviço básico — proteção contra agressões — e depois uma taxa adicional pelo serviço extra de posicionar agentes de tocaia para espiar os vizinhos pelas janelas e se certificar de que eles não estavam fumando ou praticando atos homossexuais.

Agora, as pessoas realmente fanáticas dirão "Sim, vou desembolsar mais dinheiro para pagar por isso." (Obviamente, se elas forem fanáticas a esse ponto, serão um problema em um arranjo minarquista também). Mas se elas não forem tão fanáticas assim, dirão: "Bem, se tudo o que eu preciso fazer é apoiar e votar em candidatos que defendem leis que restrinjam a liberdade das outras pessoas, então é claro que farei isso, é muito fácil ir e votar." Porém, se elas tiverem efetivamente de pagar um preço para impor seus desejos, então são enormes as chances de que elas se resignem e desistam de suas tentações totalitárias.(10) Robert Nozick e Tyler Cowen: agências de proteção privada irão se transformar em um genuíno governo

Meu último ponto. Essa é uma questão que foi originalmente levantada por Robert Nozick e, desde então, vem sendo desenvolvida por Tyler Cowen. Nozick disse: se não houver governo, um destes três fenômenos ocorrerá. As agências de proteção brigarão entre si — e isso, segundo Nozick, levará a dois cenários distintos. Porém, como já falei acima sobre o que aconteceria se elas brigassem, não irei me concentrar nestes dois cenários e vou pular logo para a terceira opção. 

E se elas não brigarem? Então, segundo ele, se elas concordarem com todos esses contratos de arbitramento mútuo, então basicamente todo o arranjo de agências de proteção iria simplesmente se transformar em um governo.

Tyler Cowen desenvolveu ainda mais essa argumentação. Ele disse que, basicamente, todo esse arranjo viraria um cartel, e seria do total interesse desse cartel se transformar em um governo. Qualquer nova agência privada que porventura quisesse entrar no mercado seria imediatamente boicotada pelo o cartel.

E o argumento prossegue: assim como é do seu interesse, caso você invente um novo cartão de débito, que ele seja compatível com as máquinas de todos os estabelecimentos, se você criar uma nova agência de proteção também será de seu interesse conseguir fazer parte do mesmo sistema de contratos e arbitramento do qual as agências existentes já fazem parte. Você não conseguirá clientes caso as pessoas descubram que sua agência não possui nenhum acordo com as outras agências especificando o que ocorrerá caso um cliente de sua agência entre em uma contenda com um cliente de outra agência. Sendo assim, agindo desta forma, esse cartel seria capaz de boicotar a entrada de novas agências no mercado.

E então, isso poderia ocorrer? Sim, é claro que poderia. Qualquer tipo de coisa pode ocorrer. Metade da população do país pode se suicidar amanhã. Mas isso é provável? Seria provável que esse cartel conseguisse abusar de seu poder dessa maneira? O problema é que cartéis são arranjos inerentemente instáveis, pois, por sua própria organização, as possibilidades de ganhos para quem furar o cartel, ofertar preços menores e com isso atrair mais clientes são enormes. Isso não significa que é impossível um cartel ser bem-sucedido; afinal, as pessoas têm livre arbítrio. No entanto, tal sucesso é algo improvável, pois os mesmos incentivos que levam você a formar um cartel também levam você a querer romper o acordo — pois é sempre do interesse econômico de alguém fazer acordos fora do cartel quando se está dentro dele.

Bryan Caplan faz uma distinção entre boicotes que se mantêm automaticamente e boicotes que não se mantêm automaticamente. Os boicotes que se mantêm automaticamente são bastante estáveis porque são boicotes contra, por exemplo, pessoas que trapaceiam seus parceiros comerciais. Você não precisa ser uma pessoa dotada de extrema rigidez moral para não querer fazer negócios com pessoas conhecidas por trapacear seus parceiros comerciais. Você tem um total interesse próprio em não querer fazer negócio com este tipo de pessoa.

Por outro lado, pense no que ocorreria caso você não quisesse fazer negócios com um determinado indivíduo porque você não gosta da religião dele, ou da opção sexual dele, ou da cor dele ou simplesmente porque ele é cliente de uma agência de proteção com a qual a sua agência recomenda não fazer negócio — sim, o boicote poderá funcionar. Transpondo este raciocínio para um cartel, talvez uma quantidade suficiente de pessoas (talvez todo mundo) no cartel esteja tão decidida a manter esse cartel, que elas simplesmente não se relacionarão com este indivíduo. Isso seria possível? Sim. Mas a que custo de oportunidade? Esse é um boicote que não se mantém automaticamente.

Se essas pessoas formaram um cartel motivadas por um interesse econômico próprio, então esse interesse próprio é exatamente o que levará à quebra do cartel, pois é do interesse econômico delas lidar com o indivíduo em questão, assim como é sempre do seu interesse incorrer em transações econômicas mutuamente benéficas.

Roderick T. Long é membro sênior do Ludwig von Mises Institute, professor de filosofia na Universidade de Auburn, Alabama, e autor do livro Reason and Value: Aristotle Versus Rand. Ele preside o Molinari Institute e a Molinari Society. Seu website: Praxeology.net.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

INTELECTUAIS E RAÇA - O ESTRAGO INCORRIGÍVEL


Há tantas falácias ditas sobre raça, que é difícil escolher qual é a mais ridícula. No entanto, uma falácia que costuma se sobressair é aquela que afirma haver algo de errado com o fato de que as diferentes raças são representadas de forma numericamente desproporcional em várias instituições, carreiras ou em diferentes níveis de renda e de feitos empreendedoriais.

Cem anos atrás, o fato de pessoas de diferentes antecedentes raciais apresentarem taxas de sucesso extremamente discrepantes em termos de cultura, educação, realizações econômicas e empreendedoriais era visto como prova de que algumas raças eram geneticamente superiores a outras.

Algumas raças eram consideradas tão geneticamente inferiores, que a eugenia foi proposta como forma de reduzir sua reprodução. O antropólogo Francis Galton chegou a exortar "a gradual extinção de uma raça inferior".

E as pessoas que diziam essas coisas não eram meros lunáticos extremistas. Muitos deles eram Ph.D.s oriundos de várias universidades de ponta, lecionavam nas principais universidades do mundo e eram internacionalmente reputados.

Reitores da Universidade de Stanford e do MIT estavam entre os vários acadêmicos defensores de teorias sobre inferioridade racial — as quais eram aplicadas majoritariamente aos povos do Leste Europeu e do sul da Europa, uma vez que, à época, era dado como certo o fato de que os negros eram inferiores.

E este não era um assunto que dividia esquerda e direita. Os principais proponentes de teorias sobre superioridade e inferioridade genética eram figuras icônicas da esquerda, de ambos os lados do Atlântico.

John Maynard Keynes ajudou a criar a Sociedade Eugênica de Cambridge. Intelectuais adeptos do socialismo fabiano, como H.G. Wells e George Bernard Shaw, estavam entre os vários esquerdistas defensores da eugenia.

Foi praticamente a mesma história nos EUA. O presidente democrata Woodrow Wilson, como vários outros progressistas da época, eram sólidos defensores de noções de superioridade e inferioridade racial. Ele exibiu o filme O Nascimento de uma Nação, que glorificava a Ku Klux Klan, na Casa Branca, e convidou vários dignitários para a sessão.

Tais visões dominaram as primeiras duas décadas do século XX. 

Agora, avancemos para as últimas décadas do século XX. A esquerda política desta era já havia se movido para o lado oposto do espectro das questões raciais. No entanto, ela também considerava que as diferenças de sucesso entre grupos étnicos e raciais era algo atípico, e clamava por uma explicação única, vasta e arrebatadora.

Desta feita, em vez de os genes serem a razão predominante para as diferenças nos êxitos pessoais, o racismo se tornou o motivo que explicava tudo. Mas o dogmatismo continuava o mesmo. Aqueles que ousassem discordar, ou até mesmo questionar o dogma predominante em ambas as eras, era tachado de "sentimentalista" no início do século XX e de "racista" na era multicultural.

Tanto os progressistas do início do século XX quanto os novos progressistas do final do século XX partiram da mesma falsa premissa — a saber, que há algo de estranho quando diferentes grupos raciais e étnicos alcançam diferentes níveis de realizações.

No entanto, o fato é que minorais raciais e étnicas sempre foram as proprietárias — ou gerentes — de mais da metade de todas as principais indústrias de vários países. Dentre estas minorias bem-sucedidas, temos os chineses na Malásia, os libaneses na África Ocidental, os gregos no Império Otomano, os bretões na Argentina, os indianos em Fiji, os judeus na Polônia, os espanhóis no Chile — entre vários outros.

Não apenas diferentes grupos raciais e étnicos, como também nações e civilizações inteiras apresentaram níveis de realizações extremamente distintos ao longo dos séculos. A China do século XV era muito mais avançada do que qualquer país europeu. Com o tempo, no entanto, os europeus ultrapassaram os chineses — e não há nenhuma evidência de ter havido alterações nos genes de nenhuma destas civilizações.

Dentre os vários motivos para estes diferentes níveis de realizações está algo tão simples quanto a idade. A média de idade na Alemanha e no Japão é de mais de 40 anos, ao passo que a média de idade no Afeganistão e no Iêmen é de menos de 20 anos. Mesmo que as pessoas destes quatro países tivessem absolutamente o mesmo potencial intelectual, o mesmo histórico, a mesma cultura — e os países apresentassem rigorosamente as mesmas características geográficas —, o fato de que as pessoas de determinados países possuem 20 anos a mais de experiência do que as pessoas de outros países ainda seria o suficiente para fazer com que resultados econômicos e pessoais idênticos sejam virtualmente impossíveis.

Acrescente o fato de que diferentes raças se desenvolveram em diferentes arranjos geográficos, os quais apresentaram oportunidades e restrições extremamente diferenciadas ao seu desenvolvimento, e as conclusões serão as mesmas.

No entanto, a ideia de que diferentes níveis de realização são coisas atípicas — se não sinistras — tem sido repetida ad nauseam pelos mais diferenciados tipos de pessoas, desde o demagogo de esquina até as mais altas eminências do Supremo Tribunal.

Quando finalmente reconhecermos que as grandes diferenças de realizações entre as raças, nações e civilizações têm sido a regra, e não a exceção, ao longo de toda a história escrita, restará ao menos a esperança de que haja pensamentos mais racionais — e talvez até mesmo alguns esforços construtivos para ajudar todas as pessoas a progredirem.

Até mesmo um patriota britânico como Winston Churchill certa vez disse que "Devemos Londres a Roma" — um reconhecimento de que foram os conquistadores romanos que criaram a mais famosa cidade britânica, em uma época em que os antigos bretões eram incapazes de realizar esta façanha por conta própria.

Ninguém que conhecesse os iletrados e atrasados bretões daquela era poderia imaginar que algum dia os britânicos criariam um império vastamente maior do que o Império Romano — um império que abrangeria um quarto de toda a área terrestre do globo e um quarto dos seres humanos do planeta.

A história apresenta vários exemplos dramáticos de ascensão e queda de povos e nações, por uma variada gama de motivos conhecidos e desconhecidos. Mas há um fenômeno que não possui confirmação histórica, um fenômeno que, não obstante esta ausência de exemplos práticos, é hoje presumido como sendo a norma: igualdade de realizações grupais em um dado período do tempo.

As conquistas romanas tiveram repercussões históricas por séculos após a queda do Império Romano. Um dos vários legados da civilização romana foi o alfabeto latino, o qual gerou versões escritas dos idiomas da Europa ocidental séculos antes de os idiomas do Leste Europeu serem transformados em letras. Esta foi uma das várias razões por que a Europa ocidental se tornou mais desenvolvida que a Europa Oriental em termos econômicos, educacionais e tecnológicos.

Enquanto isso, as façanhas de outras civilizações — tanto da China quanto do Oriente Médio — ocorreram muito antes das façanhas do Ocidente, embora a China e o Oriente Médio posteriormente viessem a perder suas vantagens.

Há tantas reviravoltas documentadas ao longo da história, que é impossível acreditar que um único fator sobrepujante seja capaz de explicar tudo, ou quase tudo, do que já aconteceu ou do que está acontecendo. O que realmente se sabe é que raramente, para não dizer nunca, ocorreram façanhas iguais alcançadas por diferentes pessoas ao mesmo tempo.

No entanto, o que mais temos hoje são grupos de interesse e movimentos sociais apresentando estatísticas — que são solenemente repercutidas pela mídia — alegando que, dado que os números não são aproximadamente iguais para todos, isso seria uma prova de que alguém foi discriminatório com outro alguém.

Se os negros apresentam diferentes padrões ocupacionais ou diferentes padrões gerais em relação aos brancos, isso já basta para despertar grandes suspeitas entre os sociólogos — ainda que diferentes grupos de brancos sempre tenham apresentado diferentes padrões de realizações entre si.

Quando os soldados americanos da Primeira Guerra Mundial foram submetidos a exames mentais durante a Primeira Guerra Mundial, aqueles homens de ascendência alemã pontuaram mais alto do que aqueles de ascendência irlandesa, sendo que estes pontuaram mais alto do que aqueles que eram judeus. Carl Brigham, o pioneiro do campo da psicometria, disse à época que os resultados dos exames mentais do exército tendiam a "desmentir a popular crença de que o judeu é altamente inteligente".

Uma explicação alternativa é que a maioria dos imigrantes alemães se mudou para os EUA décadas antes da maioria dos imigrantes irlandeses, os quais por sua vez se mudaram para os EUA décadas antes da maioria dos imigrantes judeus. Alguns anos depois, Brigham viria a admitir que a maioria dos mais recentes imigrantes havia sido criada em lares onde o inglês não era a língua falada, e que suas conclusões anteriores, em suas próprias palavras, "não possuíam fundamentos".

Nessa época, os judeus já estavam pontuando acima da média nacional dos exames mentais, e não abaixo. 

Disparidades entre pessoas do mesmo grupo, em qualquer área que seja, não são obviamente uma realidade imutável. Mas uma igualdade geral de resultados raramente já foi testemunhada em qualquer período da história — seja em termos de habilidades laborais ou em termos de taxas de alcoolismo ou em termos de quaisquer outras diferenças — entre aqueles vários grupos que hoje são ajuntados e classificados como "brancos".

Sendo assim, por que então as diferenças estatísticas entre negros e brancos produzem afirmações tão dogmáticas — e geram tantas ações judiciais e trabalhistas por discriminação — sendo que a própria história mostra que sempre foi comum que diferentes grupos seguissem diferenciados padrões ocupacionais ou de comportamento?

Um dos motivos é que ações judiciais não necessitam de nada mais do que diferenças estatísticas para produzir vereditos, ou acordos fora de tribunais, no valor de vultosas somas monetárias. E o motivo de isso ocorrer é porque várias pessoas aceitam a infundada presunção de que há algo de estranho e sinistro quando diferentes pessoas apresentam diferentes graus de êxito pessoal.

O desejo de intelectuais de criar alguma grande teoria que seja capaz de explicar padrões complexos por meio de algum simples e solitário fator produziu várias ideias que não resistem a nenhum escrutínio, mas que não obstante têm aceitação generalizada — e, algumas vezes, consequências catastróficas — em vários países ao redor do mundo.

A teoria do determinismo genético, que predominou no início do século XX, levou a várias consequências desastrosas, desde a segregação racial até o Holocausto. A teoria atualmente predominante é a de que algum tipo de maldade explica as diferenças nos níveis de realizações entre os vários grupos étnicos e raciais. Se os resultados letais desta teoria hoje em voga gerariam tantas mortes quanto no Holocausto é uma pergunta cuja resposta requereria um detalhado estudo sobre a história de rompantes letais contra determinados grupos odiados por causa de seu sucesso.

Estes rompantes letais incluem a homicida violência em massa contra os judeus na Europa, os chineses no sudeste asiático, os armênios no Império Otomano, e os Ibos na Nigéria, entre outros. Exemplos de chacinas em massa baseadas em classes sociais e voltadas contra pessoas bem-sucedidas vão desde os extermínios stalisnistas do kulaks na União Soviética até a limpeza promovida por Pol Pot de pelo menos um quarto da população do Camboja pelo crime de serem pessoas cultas e de classe média, crime este que era evidenciado por sinais tão tênues quanto o uso de óculos.

Minorias que se sobressaíram e se tornaram mais bem-sucedidas do que a população geral são aquelas cujo progresso provavelmente em nada está ligado ao fato de terem ou não discriminado as maiorias politicamente dominantes. No entanto, foram exatamente estas minorias que atraíram as mais violentas perseguições ao longo dos séculos e dos países ao redor do mundo.

Todos os negros que foram linchados durante toda a história dos EUA não chegam ao mesmo número de homicídios cometidos em apenas um ano contra os judeus na Europa, contra os armênios no Império Otomano ou contra os chineses no sudeste asiático.

Há algo inerente aos sucessos de determinados grupos que inflama as massas em épocas e lugares tão distintos. O que seria? Esse fenômeno inflama não apenas as massas, como também leva a genocídios cometidos por governos, como os da Alemanha nazista ou o regime de Pol Pot no Camboja. Podemos apenas especular as razões, mas não há como fugir desta realidade.

Aqueles grupos que ficam para trás frequentemente culpam seu atraso nas malfeitorias cometidas por aqueles grupos mais bem-sucedidos. Dado que a santidade não é comum a nenhum ramo da raça humana, é óbvio que nunca haverá escassez de pecados a serem mencionados, inclusive a arrogância e a insolência daqueles que calham de estar no topo em um determinado momento. Mas a real pergunta a ser feita é se esses pecados — reais ou imaginários — são de fato o motivo destes diferentes níveis de êxitos pessoais.

O problema é que os intelectuais — pessoas de quem normalmente esperaríamos análises racionais que se contrapusessem à histeria das massas — frequentemente sempre estiveram na vanguarda daqueles movimentos que promovem a inveja e o ressentimento contra os bem-sucedidos. Tal comportamento é especialmente perceptível naquelas pessoas que possuem diplomas mas que não possuem nenhuma habilidade economicamente significativa que lhes permita obter aquele tipo de recompensa que elas esperavam ou julgavam ter o direito de auferir.

Tais pessoas sempre se destacaram como líderes e seguidoras de grupos que promoveram políticas anti-semitas na Europa entre as duas guerras mundiais, o tribalismo na África, e as mudanças sociais no Sri Lanka, um país que, outrora famoso por sua harmonia intergrupal, se rebaixou, por influência de intelectuais, à violência étnica e depois se degenerou em uma guerra civil que durou décadas e produziu indescritíveis atrocidades.

Intelectuais sempre estiveram por trás da inflamação de um grupo contra outros, promovendo a discriminação e a violência física em países tão díspares quanto Índia, Hungria, Nigéria, Tchecoslováquia e Canadá.

Tanto a teoria do determinismo genético como sendo a causa dos diferentes níveis de realizações pessoais quanto a teoria da discriminação como o motivo destas diferenças, ambas contraditórias e criadas por intelectuais, geraram apenas polarizações raciais e étnicas. O mesmo pode ser dito da ideia de que uma dessas teorias tem de ser a verdadeira.

Essa falsa dicotomia de que uma delas tem de ser a verdadeira deixa aos grupos mais bem-sucedidos duas opções: ou eles se assumem arrogantes ou se assumem culpados criminalmente. Da mesma forma, deixa aos grupos menos exitosos a opção entre acreditar que sempre foram inerentemente inferiores durante toda a história ou que são vítimas da inescrupulosa maldade de terceiros.

Quando inumeráveis fatores fazem com que a igualdade de resultados seja virtualmente impossível, reduzir estes fatores a uma questão de genes ou de maldade é a fórmula perfeita para se gerar uma desnecessária e perigosa polarização, cujas consequências frequentemente são escritas em sangue ao longo das páginas da história.

Dentre as várias e ignaras ideias a respeito de grupos raciais e étnicos que polarizaram as sociedades durante séculos e ao redor de todo o mundo, poucas foram mais irracionais e contraproducentes do que os atuais dogmas do multiculturalismo.

Aqueles intelectuais que imaginam que, ao utilizar uma retórica multicultural que redefine e até mesmo revoga o conceito de atraso, estarão ajudando grupos raciais e étnicos que ficaram para trás estão, na realidade, levando estas pessoas para um beco sem saída.

O multiculturalismo é um tentador paliativo aplicado àqueles grupos que ficaram para trás porque ele simplesmente afirma que todas as culturas são iguais, ou "igualmente válidas", em algum sentido vago e sublime. De acordo com este dogma, as características culturais de todas as etnias e raças seriam apenas diferentes — nem melhores nem piores.

No entanto, tomar emprestadas características particulares de outras culturas — como os algarismos arábicos que substituíram os algarismos romanos, mesmo nas culturas ocidentais oriundas de Roma — implica que algumas características não são simplesmente diferentes, mas sim melhores, inclusive os números utilizados. Algumas das mais avançadas culturas de toda a história pegaram emprestados comportamentos e características de outras culturas; e isso pelo simples fato de que até hoje nenhuma coleção única de seres humanos foi capaz de criar as melhores respostas para todas as questões da vida.

Todavia, dado que os multiculturalistas veem todas as culturas como sendo iguais ou "igualmente válidas", eles não veem nenhuma justificativa para as escolas insistirem, por exemplo, que as crianças negras aprendam seu idioma materno. Em vez disso, cada grupo é estimulado a se apegar ferreamente à sua própria cultura e a se orgulhar de suas próprias glórias passadas, reais ou imaginárias.

Em outras palavras, membros de grupos minoritários que são atrasados educacionalmente e economicamente devem continuar se comportando no futuro como sempre se comportaram no passado — e, se eles não conseguirem os mesmos resultados dos outros, então a culpa é da sociedade. Essa é a mensagem principal do multiculturalismo.

George Orwell certa vez disse que algumas ideias são tão insensatas, que somente um intelectual poderia acreditar nelas. O multiculturalismo é uma dessas ideias. A intelligentsia sempre irrompe em indignação e ultrajes a qualquer "diferença" ou "disparidade" de resultados educacionais, econômicos ou outros — e denuncia qualquer explicação cultural para esta diferença de resultados como sendo uma odiosa tentativa de "culpar a vítima".

Não há dúvidas de que algumas raças ou até mesmo nações inteiras foram vitimadas por terceiros, assim como não há dúvida de que câncer pode causar morte. Porém, isso é muito diferente de dizer que as mortes podem automaticamente ser imputadas ao câncer. Você pode pensar que intelectuais seriam capazes de fazer essa distinção. Mas muitos não são.

Ainda assim, intelectuais se veem a si próprios como amigos, aliados e defensores das minorias raciais, ao mesmo tempo em que empurram as minorias para a estagnação cultural. Isso permite à intelligentsia se congratular e se lisonjear de que estão ao lado dos anjos contra as forças do mal que estão conspirando para manter as minorias oprimidas.

Por que pessoas com altos níveis de capacidade mental e de talentos retóricos se entregam a este tipo de raciocínio deturpado é um mistério. Talvez seja porque elas não conseguem abrir mão de uma visão social que é extremamente lisonjeira para eles próprios, não obstante quão deletéria tal visão possa ser para as pessoas a quem elas alegam estar ajudando.

O multiculturalismo, assim como o sistema de castas, encurrala e amarra as pessoas naquele mesmo segmento cultural e social no qual elas nasceram. A diferença é que o sistema de castas ao menos não alega beneficiar aqueles que estão na extremidade inferior.

O multiculturalismo não serve apenas aos interesses ególatras dos intelectuais; ele serve também aos interesses de políticos que têm todos os incentivos para promover uma sensação de vitimização — e até mesmo de paranóia — entre grupos de cujos votos eles precisam em troca de apoio material e psicológico.

A visão multicultural do mundo também serve aos interesses daqueles que estão na mídia e que prosperam ao explorar os melodramas morais. O mesmo pode ser dito de todos os departamentos universitários voltados para estudos étnicos e sociais, bem como de toda a indústria de assistentes sociais, de especialistas em "diversidades" e da ampla gama de vigaristas que prosperam ao fazer proselitismo racial.

Os maiores perdedores de toda essa história são aqueles membros das minorias raciais que se permitem ser conduzidos para esse beco sem saída do ressentimento e da raiva, mesmo quando há várias outras avenidas de oportunidades disponíveis. E todos nós perdemos quando a sociedade fica polarizada.

Thomas Sowell , um dos mais influentes economistas americanos, é membro sênior da Hoover Institution da Universidade de Stanford. Seu website: www.tsowell.com.

PROPOSTAS PARA UMA REFORMA BANCÁRIA COMPLETA E ESTABILIZADORA


A crise financeira mundial vem explicitando a instabilidade do nosso atual sistema bancário, que opera sob reservas fracionárias. Após o estouro da bolha imobiliária americana, vários bancos faliram nos EUA, o que levou o governo americano a utilizar dinheiro público para trazer alguma estabilidade ao setor. Na Europa, a situação segue caótica. Sempre que a situação parece estar se tranquilizando, surgem novas notícias de que algum grande banco de algum país está insolvente e necessitando de novos pacotes de socorro. Caso tal pacote de socorro não seja concedido, o temor é o de que todo o sistema bancário do país pode se tornar insolvente — o que, por conseguinte, pode contaminar os bancos de todo o continente.

As causas das crises bancárias são as mesmas: os bancos detêm o privilégio de criar dinheiro do nada para conceder crédito para empresas e para pessoas físicas. Durante o processo de expansão artificial do crédito — orquestrado pelo Banco Central em conjunto com o sistema bancário de reservas fracionárias —, uma bolha especulativa é desencadeada, dando início a uma fase de crescimento econômico que, nas palavras do próprio Alan Greenspan, pode ser caracterizada por uma "exuberância irracional". 

Esta fase da expansão creditícia provoca uma série de desequilíbrios e descoordenações na economia real, fazendo com que vários projetos e empreendimentos de longo prazo, que antes da expansão do crédito se mostravam desvantajosos, se tornem agora, por causa da queda dos juros, aparentemente (muito) lucrativos. A expansão do crédito gera um aumento da quantidade de dinheiro na economia. Como consequência, a renda nominal das pessoas aumenta, o que gera nos empreendedores a crença de que haverá demanda futura para seus investimentos de longo prazo.

No entanto, por causa desta inflação monetária, os preços dos bens e serviços na economia começam a subir, o que leva o Banco Central a subir os juros e os bancos a cobrarem mais caro por seus empréstimos. No final deste ciclo, quando a expansão creditícia — que não pode se perpetuar para sempre — for desacelerada, a realidade virá à tona, o mercado inevitavelmente apontará os erros cometidos durante esta época de exuberância, e todos os empreendimentos que foram iniciados porque pareciam lucrativos revelar-se-ão excessivamente ambiciosos e acabarão sendo um grande desperdício. 

A redução da expansão do crédito faz com que a renda nominal dos consumidores, que até então era crescente, se estagne. Como os preços ainda seguem crescendo, e como os consumidores estão mais endividados, sua capacidade de consumo estará afetada. A demanda esperada para os investimentos não se concretiza. 

Vários bens de capital produzidos durante o período da euforia, bem como vários empreendimentos imobiliários, se tornam ociosos, revelando que sua produção foi um erro e um esbanjamento desnecessário (o que os fez ser distribuídos incorretamente no tempo e no espaço) porque os empreendedores se deixaram enganar pela abundância do crédito, pela facilidade de seus termos e pelos juros baixos estipulados pelas autoridades monetárias.

O resultado de tudo isso é que o padrão de vida dos consumidores não aumentou em nada. Pelo contrário: os consumidores estão agora relativamente mais pobres em decorrência de todos estes investimentos errôneos e insustentáveis que foram empreendidos em decorrência da expansão artificial do crédito, investimentos estes que imobilizaram capital e recursos escassos para seus projetos, recursos estes que agora não mais estão disponíveis para serem utilizados em outros setores da economia. No geral, a economia está agora com menos capital e menos recursos escassos disponíveis. 

Todos estes empreendimentos que foram iniciados porque pareciam lucrativos não teriam sido feitos caso não houvesse ocorrido uma expansão artificial do crédito. Tais empreendimentos não foram financiados por um aumento na poupança real dos cidadãos. Ninguém reduziu seu consumo para que recursos escassos fossem liberados para ser utilizados nestes empreendimentos. Tudo foi possibilitado pela simples criação de dinheiro pelos bancos. A criação de dinheiro pelo sistema bancário faz com que haja uma disputa por recursos: de um lado, consumidores aumentam seu consumo; de outro, empreendedores aumentam seus investimentos. O resultado é que os preços e salários da economia aumentam.

Quando a expansão creditícia é interrompida e o processo de reajuste é estabelecido, as empresas que fizeram os investimentos errôneos entram em dificuldades financeiras. Consequentemente, elas começam a ter dificuldades em quitar seus empréstimos tomados junto aos bancos. Muitas dão o calote. Isso faz com que os bancos sofram reduções no valor de seus ativos (empréstimos são ativos). Caso se torne óbvio que um determinado banco está em dificuldades, seus correntistas podem querer sacar o dinheiro de suas contas, levando o banco imediatamente à falência. A quebra de um banco pode gerar um efeito dominó, levando à queda de todo o sistema bancário.

A resposta a esse tipo de crise financeira e bancária sempre envolve um aumento da regulamentação estatal sobre os bancos, como um aumento das exigências de capital e da proibição de determinadas operações. Mas tais medidas apenas atacam os sintomas, deixando impávida a raiz real do problema: a capacidade dos bancos, com o aval e com o incentivo do governo, de criar dinheiro do nada para expandir o crédito.

A reforma bancária

No capítulo 9 do meu livro Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos, apresento um detalhado processo de transição rumo à única ordem financeira que, sendo totalmente compatível com o sistema de livre iniciativa, pode eliminar as crises financeiras e as recessões econômicas que ciclicamente afetam as economias mundiais. Tal proposta de reforma financeira internacional é, obviamente, extremamente relevante em nossa época atual, tendo em vista os recentes acontecimentos no sistema bancário europeu. Como explico em detalhes ao longo dos nove capítulos do meu livro, qualquer reforma futura irá fracassar tão miseravelmente quanto as reformas passadas caso ela não ataque as raízes dos problemas atuais e seja baseada nos seguintes princípios:


1. Abolição da prática das reservas fracionárias e o restabelecimento de 100% de reservas para todos os depósitos em conta-corrente e demais depósitos que na prática funcionem como conta-corrente (como aqueles depósitos em poupança que podem ser movimentados por meio de cheque ou cartão de débito);

2. Abolição dos bancos centrais, que, além de serem intrinsecamente perniciosos por atuarem como uma agência de planejamento central, também estimulam e intensificam o risco moral ao funcionarem como emprestadores de última instância. Adicionalmente, um banco central se torna imediatamente desnecessário caso o primeiro princípio seja aplicado; e

3. Desestatização do dinheiro, que atualmente nada mais é do que uma moeda fiduciária, sem nenhum lastro, emitida monopolisticamente pelo estado, sem nenhuma restrição. Deve haver completa liberdade de escolha da moeda (a tendência é que o ouro seja a escolha predominante).

Esta reforma radical e definitiva marcaria essencialmente a culminação da queda do Muro de Berlim e do real socialismo, uma vez que ela significaria a aplicação dos mesmos princípios de liberalização e de propriedade privada àquela esfera — setor bancário e monetário — que até hoje é sinônimo de planejamento central (pois controlada pelos bancos "centrais"), de extremo intervencionismo (o governo estipula a taxas de juros e impõe todo um emaranhado de regulamentações ao setor), e de monopólio estatal (as leis de curso forçado, as quais impõem a aceitação obrigatória do papel-moeda fiduciário emitido pelo estado) — medidas com desastrosas consequências, como temos visto.

Devo enfatizar que o processo de transição — descrito detalhadamente em meu livro, e sintetizado na próxima seção — também permite, desde o início, a estabilização imediata do sistema bancário, impedindo o seu atual colapso e a inevitável contração monetária que ainda pode ocorrer se os bancos continuarem tendo seus empréstimos caloteados e se, em um ambiente de crescente perda de confiança no sistema bancário, os correntistas decidirem sacar um significativo volume de depósitos bancários. Mais ainda: ele permite a total, ou quase total, abolição da dívida pública do país.

O que fazer

Este objetivo — a estabilização do sistema bancário —, o qual os governos ocidentais estão desesperadamente tentando alcançar por meio dos mais variados e pirotécnicos planos (que envolvem a compra maciça de ativos "tóxicos" em posse dos bancos, como hipotecas caloteadas; uma impossível garantia federal a todos os depósitos bancários; e até mesmo a total estatização do sistema bancário), poderia ser alcançado muito mais rapidamente e efetivamente, e de maneira muito menos danosa para a economia de mercado, se a primeira medida da minha proposta de reforma fosse imediatamente implantada: lastrear a quantidade total de depósitos bancários à vista (em conta-corrente e equivalentes) com dinheiro. 

Mais especificamente, o banco central imprimiria e daria aos bancos a quantidade de cédulas necessárias para lastrear 100% dos depósitos bancários. Obviamente, essa impressão de dinheiro não seria de modo algum inflacionária, pois este novo dinheiro iria para os cofres dos bancos e ali permaneceria não com o intuito de ser emprestado, mas sim de satisfazer qualquer necessidade de saques, retiradas e transferências.

Concomitantemente, todos os outros ativos bancários (empréstimos pendentes, investimentos, títulos do governo etc.) nos balancetes dos bancos seriam transformados em quotas de fundos de investimento, cujo gerenciamento passaria então a ser a principal atividade dos bancos.

E quem serão os proprietários destas quotas destes fundos de investimento? A proposta é que seus proprietários sejam aqueles que estão hoje em posse de títulos da dívida do governo. A ideia é simples: os proprietários dos títulos do governo abririam mão deles e, em troca, receberiam quotas de valor correspondente nestes fundos de investimento. Os títulos da dívida do governo seriam consequentemente cancelados.

Esta medida eliminaria, se não toda, ao menos uma grande parte da dívida pública do país, algo que beneficiaria todos os cidadãos, uma vez que dali em diante eles não mais teriam de pagar impostos para arcar com o serviço da dívida. Adicionalmente, os atuais detentores destes títulos do governo não seriam afetados, pois a atual renda fixa que eles auferem com os títulos seria substituída por quotas que, desde o momento da reforma, já teriam um valor de mercado e uma taxa de retorno conhecidos. No que mais, existem outros passivos governamentais (por exemplo, as pensões da Previdência Social) que também podem ser convertidos em títulos e consequentemente trocados por quotas nestes novos fundos de investimento, com efeitos econômicos altamente benéficos.

Teríamos então a seguinte situação:

a) Depósitos à vista (conta-corrente e outros que funcionem como conta-corrente) 100% lastreados por cédulas de dinheiro (sendo que esta porcentagem tem de ser mantida sob toda e qualquer circunstância);

b) Todos os outros ativos bancários transformados em fundos mútuos e gerenciados pelos bancos. Títulos da dívida do governo que estavam em posse dos bancos são cancelados e abolidos de seus balancetes.

Deste ponto em diante, a atividade dos bancos consistiria em gerenciar os fundos de investimento criados com seus ativos. Empréstimos seriam concedidos normalmente: um depositante compraria novas quotas nestes fundos (nada mais que um depósito a prazo) e o banco investiria este dinheiro, emprestando para empresas e pessoas físicas. Durante o período do empréstimo, o emprestador obviamente não teria como utilizar seu dinheiro. Adicionalmente, os bancos continuariam incorrendo naquelas outras atividades legítimas que eles sempre praticaram, como transferências bancárias, pagamento de contas e demais serviços, podendo cobrar os correspondentes preços de mercado por estes serviços.

Deste ponto em diante, com os bancos operando com 100% de reservas, a expansão artificial do crédito iria desaparecer completamente. Nesta etapa, o banco central estaria limitado a aumentar a oferta monetária em uma pequena porcentagem — sugere-se 2% ao ano, que é a taxa histórica do crescimento da oferta mundial de ouro —, sendo que este aumento seria utilizado para financiar uma fatia dos gastos do governo. De forma alguma este dinheiro poderá ser usado para fazer operações de mercado aberto (ou seja, manipular os juros) ou para expandir o crédito. 

Estas reformas levariam à quase completa eliminação das crises financeiras e das recessões econômicas. A partir deste estágio, o comportamento dos poupadores, consumidores e empreendedores no livre mercado estaria estreitamente coordenado pelas taxas de juros naturalmente formadas no mercado de poupança e empréstimo.

O estabelecimento de um sistema bancário com 100% de reservas é uma condição necessária para a abolição definitiva do banco central, que seria a etapa final. Com efeito, tão logo o sistema bancário esteja subordinado aos mesmos princípios jurídicos que governam todos os outros empreendimentos (como a proibição de fraude e de falsificação de dinheiro, e o respeito à propriedade alheia), a completa liberdade bancária — com plena liberdade de entrada e de concorrência no setor — deve ser permitida, e o banco central deve ser abolido. 

A abolição do banco central exigirá que o atual dinheiro fiduciário, o qual apenas o banco central tem o poder de emitir, seja substituído por uma forma de dinheiro privado. É impossível dar um salto no escuro e do nada estabelecer um padrão monetário artificial que não tenha surgido ao longo de um processo evolucionário. Sendo assim, a nova forma de dinheiro provavelmente irá consistir naquele elemento que a humanidade historicamente sempre considerou como sendo dinheiro por excelência: o ouro.

(Como exatamente poderá ser feita esta transição do dinheiro de papel para o ouro é um outro debate, também coberto em meu livro).

Concluo esta seção com um importante alerta: naturalmente (e nunca é demais ser repetitivo), esta solução que proponho só é válida em um contexto de uma irrevogável decisão de se estabelecer um sistema bancário sujeito a 100% de reservas sobre depósitos à vista. Qualquer uma das reformas mencionadas acima, caso adotada sem a prévia e resoluta convicção de se alterar o sistema bancário e financeiro da maneira sugerida, seria totalmente desastrosa: um sistema bancário que continuasse operando com reservas fracionárias (orquestrado por um banco central) iria gerar — em um efeito cascata, em decorrência do dinheiro criado para lastrear os depósitos — uma expansão inflacionária sem precedentes na história, uma que certamente poderia aniquilar todo o nosso sistema econômico.

Benefícios

Além da redução drástica da dívida pública (e, dependendo, da resolução do problema previdenciário), quais os benefícios de um sistema bancário com 100% de reservas, cuja moeda é o ouro?

1) Um sistema com 100% de reservas impossibilita crises bancárias. Havendo 100% de reservas para seus depósitos à vista, não há como os bancos terem problemas de liquidez. Correntistas podem sacar seu dinheiro no momento em que quiserem e na quantia que desejarem. Os bancos não se tornarão insolventes em decorrência desses saques.

2) Este sistema impede a ocorrência de crises econômicas cíclicas. O privilégio de operarem apenas com reservas parciais para seus depósitos permite que os bancos possam criar dinheiro do nada para conceder empréstimos. Tais empréstimos não exigem nenhuma abstenção de consumo (poupança) por parte do depositante. Cria-se o fenômeno do investimento sem a prévia poupança. Esta expansão do crédito gera um aumento da quantidade de dinheiro na economia e leva a um crescimento econômico artificial, o qual inevitavelmente se reverte em recessão algum tempo depois. Bancos operando com 100% de reservas tornam tal expansão creditícia impossível.

3) A abolição da prática das reservas fracionárias está em completa harmonia com o conceito de propriedade privada. Mantendo reservas de 100%, os princípios tradicionais do direito de propriedade também são aplicados aos depósitos bancários. Bancos não mais podem emprestar dinheiro cuja custódia lhes foi confiada.

4) O modelo de padrão-ouro proposto estimula um crescimento econômico estável e sustentável. Prejuízos em decorrência de investimentos errôneos e insensatos podem ser evitados. Com um crescimento médio anual de 2% na produção de ouro e de 3% na economia, os preços dos bens e serviços diminuíram aproximadamente 1% ao ano. Isso levaria a aumentos salariais reais, dispensando a necessidade de tensas negociações sindicais. As pessoas não mais teriam de perder tanto tempo pesquisando oportunidades de investimento no mercado financeiro para tentar proteger o poder de compra do seu dinheiro. Apenas deixar seu dinheiro guardado já lhe permitiria usufruir um crescente aumento em seu poder de compra.

5) Este sistema colocaria um fim nas especulações financeiras. A criação de dinheiro pelos bancos permite que eles próprios, bem como seus contumazes tomadores de empréstimos, se enriqueçam facilmente. A tentação em praticar atos fraudulentos e inescrupulosos é praticamente irresistível. Os incentivos para se ser honesto, responsável, poupador, trabalhador e voltado para o longo prazo são rejeitados em prol da oportunidade de se enriquecer de modo rápido e fácil pela simples criação de dinheiro, prejudicando terceiros que terão seu poder de compra reduzido.

6) Um padrão-ouro com reservas de 100% é um poderoso limitador ao crescimento do estado. Uma grande fatia dos gastos governamentais atuais é financiada diretamente pela criação de dinheiro. O sistema bancário de reservas fracionárias, em conjunto com o banco central, cria dinheiro do nada e o empresta ao governo. Se esta opção for abolida, o estado seria restringido e deixaria mais espaço para o setor privado. 

7) Este sistema proposto promove a paz. Sem a capacidade de criar dinheiro do nada para financiar o esforço de guerra, algo que oculta de maneira eficaz os reais custos militares de conflitos contra populações, as guerras dos dois últimos séculos poderiam ter sido evitadas. No mínimo, sua intensidade seria muito reduzida.

Em suma: este novo sistema bancário não apenas impediria injustiças e evitaria sofrimentos, como também permitiria um crescimento econômico constante, harmonioso e estável.


Jesús Huerta de Soto , professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo libertário ao redor do mundo. Ele é o autor da monumental obra Money, Bank Credit, and Economic Cycles.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

PRODUÇÃO VERSUS CONSUMO - A C CONFUSÃO QUE CAUSA MISÉRIA


Há duas visões fundamentais em relação à economia. Uma é dominada pela filosofia econômica do século XIX, sob a influência dos economistas clássicos britânicos, como Adam Smith e David Ricardo. A outra é dominada pela filosofia econômica do século XVII, sob a influência do Mercantilismo. Esta última voltou a dominar a filosofia econômica do século XX, em grande parte sob a influência de Lord Keynes.

O que distingue essas duas visões é o seguinte: no século XIX, os economistas identificaram que o problema fundamental da economia era como expandir a produção. Implícita ou explicitamente, eles perceberam que a base tanto da atividade econômica quanto da teoria econômica estava no fato de que a vida e o bem-estar do homem dependem da produção de riqueza. A natureza do homem faz com que ele necessite de riqueza; seus critérios mais elementares o fazem desejar riqueza. O problema, disseram esses economistas, é como produzir a riqueza. A teoria econômica, portanto, dava como fato consumado o desejo de se consumir, e se concentrava em como desenvolver meios e maneiras de aumentar a produção.

No século XX, os economistas voltaram a assumir a visão diretamente oposta. Ao invés de o problema ser como expandir continuamente a produção em vista de um desejo ilimitado por riqueza — dado que são infinitas as possibilidades de se aprimorar a satisfação das necessidades do homem —, passou-se a acreditar erroneamente que o problema na verdade seria como expandir o desejo de se consumir, de modo que o consumo possa se adequar à produção. A teoria econômica do século XX passou a ver a produção como um fato consumado, e se concentrou em como desenvolver meios e maneiras de aumentar o consumo. Passou-se a acreditar que o problema da economia não é a produção de riqueza, mas sim a produção do consumo.

Essas duas premissas básicas — diametralmente opostas e mutuamente excludentes — acerca do problema fundamental da economia estão para a teoria econômica assim como as contradições da metafísica estão para a filosofia. Ponto a ponto, ou elas resultam em conclusões opostas ou fazem com que raciocínios opostos cheguem à mesma conclusão. Elas determinam a teoria econômica tão profunda e fundamentalmente, que dão origem a dois sistemas completamente distintos de pensamento econômico.

Duas visões sobre o emprego

O seguidor da premissa "producionista" do século XIX entende acima de tudo que não existe algo como "o problema de se criar empregos". Há o problema de se criar empregos remunerativos, mas não o de se criar empregos. Em qualquer momento, afirma o producionista, há tanto trabalho a ser feito — e tantos empregos em potencial a serem preenchidos — quanto há desejos humanos ainda não satisfeitos e que poderiam ser satisfeitos com uma maior produção de riqueza; e como esses desejos são ilimitados, a quantidade de trabalho a ser feita — o número de empregos em potencial a serem preenchidos — também é ilimitada.

Portanto, argumenta o producionista, o emprego de mais e melhores maquinários não causa desemprego. As máquinas meramente permitem que os homens — na medida em que eles não preferem o lazer — produzam mais e, com isso, satisfaçam suas necessidades de maneira melhor e mais completa. Tampouco uma jornada mais longa de trabalho ou o emprego de mulheres, crianças, estrangeiros ou pessoas de raça e religião minoritárias impedem que outros também arrumem empregos. Isso apenas torna possível uma expansão da produção.

Já o seguidor da premissa "consumista" do século XX possui outra visão em relação às máquinas e ao emprego de mais pessoas. Ele considera cada expansão da produção como uma ameaça para parte daquilo que já está sendo produzido. Ele imagina que a produção é limitada pelo desejo de se consumir. Ele teme que esse desejo possa ser insuficiente e, por conseguinte, ele teme que uma expansão da produção em qualquer segmento irá necessariamente forçar uma contração da produção em algum outro segmento. 

Consequentemente, ele teme que o trabalho efetuado pelas máquinas irá deixar menos trabalho a ser feito pelas pessoas, que o trabalho efetuado pelas mulheres irá deixar menos trabalho a ser feito pelos homens, que o trabalho efetuado por crianças irá deixar menos trabalho a ser feito por adultos, que o trabalho efetuado por judeus irá deixar menos trabalho a ser feito por cristãos, que o trabalho efetuado por negros irá deixar menos trabalho a ser feito por brancos, e que o trabalho extra de uns significa uma escassez de trabalho disponível para outros.

Nem o producionista nem o consumista desejam longas horas de trabalho ou defendem o trabalho infantil. Nesses dois quesitos, ambos chegam à mesma conclusão. Porém, seus motivos são completamente distintos. O consumista não deseja longas horas de trabalho e nem defende o trabalho infantil porque ele acredita que há um problema com o que fazer com os produtos resultantes. Para ele, tais medidas gerariam um aumento na produção, o que necessariamente faria com que outros produtos deixassem de ser produzidos e consequentemente outros trabalhadores ficassem desempregados. Já o producionista não deseja longas horas de trabalho e nem defende o trabalho infantil porque ele não atribui nenhum valor à fadiga e ao esforço prematuro. O problema, aos olhos do producionista, não é o que fazer com os produtos adicionais produzidos pelas longas horas de trabalho ou pelo trabalho infantil — somente uma intensa necessidade de produtos adicionais necessitaria dessa mão-de-obra adicional —, mas sim como elevar a produtividade da mão-de-obra a um nível em que as pessoas possam se dar ao luxo de ter tempo para o lazer e de dispensar o trabalho de suas crianças.

Riqueza por meio da escassez?

Como o consumista imagina que a produção está limitada pelo desejo de se consumir (ao invés de o consumo ser naturalmente limitado pela capacidade da produção), ele não valoriza a riqueza, mas sim a ausência de riqueza. Por exemplo, após a Segunda Guerra Mundial, ele imaginou que a relativa ausência de casas, automóveis, aparelhos de televisão e geladeiras na Europa era na verdade uma benção para a economia européia, pois significava que havia uma grande e reprimida demanda por consumo. Similarmente, ele imaginou que a relativa abundância desses bens nos EUA era na verdade uma desvantagem para a economia americana, pois significava que o desejo de se consumir era baixo, havendo portanto uma fraca demanda por consumo.

Para o teórico consumista, a prosperidade depende da ausência de riqueza, e a pobreza é consequência de sua abundância; para ele, o desejo de se consumir — essa inestimável mercadoria, cuja oferta é mais limitada que a de diamantes — é algo produzido pela ausência de riqueza e consumido pela presença de riqueza. É baseando-se nesse princípio que o consumista se delicia com guerras e destruição, pois as vê como fontes de prosperidade, ao passo que atribui a pobreza resultante das depressões à "produção exagerada".

O consumista não acredita que a destruição de riqueza é a única maneira de se atingir a prosperidade. Embora creia ser de difícil realização, ele tem esperanças de que a oferta de sua preciosa mercadoria — o desejo de consumir — pode no entanto ser aumentada por meio de medidas positivas. Uma dessas medidas é uma alta taxa de natalidade. Ao se trazer mais pessoas ao mundo, traz-se também mais desejo de consumo ao mundo. A existência de um grande número de pessoas, diz o consumista aos empresários, possibilitará às empresas ter sobre quem descarregar seus bens que de outra forma seriam supérfluos.

Os negócios irão prosperar porque sua oferta de bens encontrará uma contrapartida nesse suposto aumento do desejo de se consumir bens. Na ausência de uma alta taxa de natalidade, ou em conjunto com uma alta taxa de natalidade, o consumista acredita que a propaganda pode fazer com que o outrora saciado consumidor tenha novos desejos. E, em um plano um pouco diferente, o progresso tecnológico, argumenta o consumista, pode fornecer novos usos para uma crescente oferta de bens de capital, os quais de outra forma não teriam "onde serem investidos". Ou, se tudo o mais falhar, pode-se recorrer ao governo para que ele forneça um consumo ilimitado — mesmo na ausência de desejo. Ou talvez, espera o consumista, um país pode ser afortunado o bastante para estar na iminência de sofrer ataques de inimigos externos, o que o obrigará a incorrer na necessidade de manter um amplo aparato de defesa. De toda forma, o consumista imagina que o governo será capaz de promover a prosperidade caso saia consumindo os produtos das pessoas.

A produção limita o consumo

O producionista, obviamente, tem uma visão diferente em relação a estas questões. Ele argumenta que o nascimento e a criação de filhos sempre constituem uma despesa para os pais. Ao criarem seus filhos, os pais têm de gastar com eles um dinheiro que, de outra forma, teria sido gasto para proveito próprio. É claro que os pais — ou, ao menos, é de se esperar — consideram que o dinheiro será mais bem e mais prazerosamente gasto com seus filhos; porém, ainda assim, trata-se de uma despesa. E se eles tiverem uma quantidade alta o bastante de filhos, serão reduzidos à pobreza.

Trata-se de um fato, argumenta o producionista, que todos podem observar em qualquer grande família que não possua uma renda correspondentemente alta. A presença de crianças não faz com que os pais gastem mais do que gastariam de outra forma; apenas faz com que eles gastem de modo diferente do que gastariam na ausência de filhos. Eles compram comida de bebê, brinquedos e bicicletas ao invés de gastarem com mais jantares em restaurantes, em um carro melhor ou em férias mais extravagantes. Não há nenhum estímulo adicional à produção. A produção simplesmente é redirecionada para uma diferente distribuição de demanda.

Poderia ocorrer um aumento na produção, afirma o producionista, apenas se os pais tivessem de arrumar um emprego extra, ou tivessem de trabalhar mais horas para sustentar seus filhos, e ainda assim serem capazes de manter seu padrão de vida anterior. E quando as crianças crescerem, o mercado de consumo adicional que eles supostamente representarão para imóveis, automóveis e afins irá se materializar apenas se eles, os filhos agora adultos, forem capazes de produzir um valor equivalente a esses bens e com isso ganharem o dinheiro com o qual poderão comprar tais bens. Será apenas em decorrência de sua produção, e não em decorrência de seu desejo de consumir, que eles serão capazes de constituir um mercado de consumo adicional.

Tecnologia e bens de capital

O valor do progresso tecnológico, afirma o producionista, não está na criação de "oportunidades de investimento" para a crescente oferta de bens de capital. Se o conceito de bens de capital for corretamente entendido — isto é, aqueles bens que seu comprador utiliza para produzir outros bens que serão vendidos —, então nunca haverá algo como uma falta de "oportunidades de investimento" para bens de capital. Enquanto houver desejo por mais e melhores bens de consumo, haverá necessidade de uma maior oferta de bens de capital.

Por exemplo, dez milhões de automóveis de uma dada qualidade requerem o emprego do dobro da quantidade de bens de capital — o dobro da quantidade de aço, de vidro, de pneus, de tintura, de motores e de maquinários — em sua produção do que requerem cinco milhões de automóveis. Se a intenção for aprimorar a qualidade dos automóveis, então uma maior quantidade de bens de capital será necessária para a produção do mesmo número de automóveis. Por exemplo, um dado número de carros da qualidade de uma Toyota irá requerer para a sua produção uma quantidade de bens de capital maior do que a necessária para produção do mesmo número de carros da qualidade de um Volkswagen simples; o mesmo número de carros da qualidade de um Cadillac irá requerer uma quantidade ainda maior de bens de capital; e o mesmo número de carros da qualidade de uma Rolls Royce irá requerer ainda mais bens de capital.

O mesmo princípio se aplica a imóveis de diferentes tamanhos e qualidades. Uma dada quantidade de casas de oito quartos requer o emprego de uma quantidade de bens de capital maior do que a requerida para o mesmo número de casas de sete quartos e da mesma qualidade. Um dado número de casas de tijolo requer uma oferta de bens de capital maior do que requer o mesmo número de casas de madeira e do mesmo tamanho daquelas; os tijolos ou quaisquer outros materiais mais caros constituem uma maior oferta de bens de capital porque uma maior quantidade de mão-de-obra é necessária para produzi-los. O mesmo princípio se aplica a alimentos e vestuários, a móveis e eletrodomésticos, a utensílios, máquinas e a quaisquer outros bens. Enquanto houver desejo por uma maior quantidade de qualquer bem de consumo, e enquanto todos os bens de consumo produzidos ainda não forem da melhor qualidade possível, haverá uma necessidade de uma maior oferta de bens de capital. 

À medida que a tecnologia avança

O producionista também argumenta que, caso haja uma interrupção no progresso tecnológico, não haverá uma aumento na oferta de bens de capital; e, consequentemente, não seremos capazes de explorar qualquer porção considerável das virtualmente ilimitadas "oportunidades de investimento" que já existem dentro do atual padrão de tecnologia vigente.

O valor do progresso tecnológico, afirma o producionista, consiste no fato de que ele nos permite obter uma maior oferta de bens de capital, e não que ele resolve o problema do que fazer com essa maior oferta. Os avanços tecnológicos que tornaram possível a construção de canais e ferrovias no século XIX, e o desenvolvimento da indústria do aço, foram valiosos não porque eles absorveram bens de capital, como dizem os consumistas, mas porque eles possibilitaram a acumulação de bens de capital. O consumista não entende que os bens de capital somente podem ter sua oferta expandida por meio de uma expansão de sua produção, e que é exatamente isso que o progresso tecnológico possibilita. Não tivessem ocorrido os avanços tecnológicos que possibilitaram as primeiras ferrovias da década de 1830, não teria sido viável a oferta dos bens de capital necessários para a expansão e aprimoramento das ferrovias na década de 1840; não fosse isso, tal feito seria viável apenas ao custo da expansão de alguma outra indústria.

Consequentemente, não tivesse havido nenhuma avanço tecnológico na construção e operação de ferrovias na década de 1840, a oferta de bens de capital na década de 1850 teria sido menor, tanto para as ferrovias quanto para as outras indústrias. E assim teria sido década após década, caso os avanços tecnológicos ocorridos no setor ferroviário ou em qualquer outra indústria não tivessem ocorrido.

Para que continue havendo acumulação de capital, o progresso tecnológico é indispensável. Apenas ele pode possibilitar contínuos aumentos na produção; e apenas contínuos aumentos na produção podem possibilitar uma contínua acumulação de capital. O consumista não está ciente de que exatamente aquilo que ele considera ser a solução (um alto nível de consumo) para seu suposto problema (a baixa demanda) é na verdade a fonte daquilo que ele imagina ser o problema. Tampouco está ele ciente de que, quando ele defende o progresso tecnológico como a solução para o problema do que fazer com mais bens de capital, ele está se confrontando a si próprio com o problema do que fazer com uma maior oferta de bens de consumo, a qual mesmo ele admite ser resultado do progresso tecnológico. O consumista tem assim de lidar com o dilema de explicar como é que o progresso tecnológico pode aumentar a taxa de lucro — ao, como ele próprio diz, "aumentar a demanda por capital" — ao mesmo tempo em que, como ele próprio admite, aumenta a produção de bens de capital — algo que, como ele próprio diz, reduz a taxa de lucro em decorrência da "sobreprodução".



Consumismo e parasitismo

A ideia de que, ao se consumir um produto, seu produtor será beneficiado — pois terá o trabalho de tornar possível tal consumo — é absurda, diz o producionista. Somente o uso do dinheiro pode emprestar a essa afirmação a mínima aparência de plausibilidade. Se realmente tal afirmação fosse verdade, então todo escravo deveria se regozijar a cada novo desejo de seu mestre, dado que a satisfação desse desejo exigiria do escravo mais trabalho. Um escravo deveria ficar agradecido caso seu mestre desejasse uma reforma em sua casa, uma melhoria nas estradas, mais comida, mais festas etc.; pois o fornecimento dos meios que possibilitariam a satisfação desses desejos daria ao escravo ainda mais trabalho.

A crença de que o consumo do governo beneficia e ajuda o sistema econômico segue o mesmo raciocínio — argumenta o producionista — da crença de que o consumo do mestre beneficia e sustenta o escravo. Trata-se de uma crença cujo absurdo equipara-se apenas à injustiça criada. É o meio através do qual grupos de interesse parasitas, que utilizam o governo como agente da pilhagem, procuram iludir suas vítimas, fazendo-as a imaginar que estão sendo beneficiadas e auxiliadas por aqueles que estão ali justamente para confiscar os frutos de seu trabalho e não dar nada em troca.

O único benefício econômico que alguém pode dar a um produtor, argumenta o producionista, é quando esse alguém troca seus próprios produtos ou serviços pelos produtos ou serviços desse produtor. É por meio daquilo que esse alguém produz e oferece em troca que ele irá beneficiar os produtores, e não por meio daquilo que ele consome.

Se alguém consome os produtos ou serviços de outros sem oferecer produtos ou serviços em troca, ele estará consumindo à custa dos produtores.

O uso do dinheiro torna esse ponto um tanto menos óbvio, mas não menos verdadeiro. Quando o dinheiro é utilizado, os produtores não trocam bens e serviços diretamente, mas indiretamente. O comprador troca seu dinheiro pelos bens de um vendedor. O vendedor, por conseguinte, troca esse dinheiro pelos bens de outros vendedores, e assim por diante. Porém, cada comprador dessa série deverá ou já ter vendido bens e serviços equivalentes àqueles que ele compra, ou ter obtido seus fundos de alguém que já o fez.

O fato de que, em uma economia monetária, todos mensuram seu benefício de acordo com a quantidade de dinheiro que se obtém em troca dos bens e serviços que vendem é algo que faz os consumistas crerem que o mero gasto de dinheiro é uma virtude, e que a prosperidade econômica pode ser atingida por meio da simples criação e gasto de quantidades cada vez maiores de dinheiro — isto é, por meio de uma política de inflação monetária.

Como resposta, o producionista argumenta que, para cada pessoa que gastou dinheiro que foi recém-criado, e que, por meio disso, obteve bens e serviços sem que tenha produzido bens e serviços equivalentes, haverá outra pessoa que sofrerá uma perda correspondente. Sua perda, diz o producionista, pode assumir a forma ou de uma redução do estoque de capital, ou de uma diminuição de seu consumo, ou de uma não recompensa pelo trabalho adicional que tiveram de efetuar — uma perda que corresponde precisamente aos bens e serviços correspondentes que foram obtidos pelos compradores que nada produziram.

A defesa que o consumista faz daqueles que consomem sem produzir, com o argumento de que estes estão assegurando a prosperidade daqueles que produzem, é, de acordo com o producionista, uma reação patológica a um mundo econômico o qual o consumista imagina ser gerido pela patologia. O consumista sempre tem diante de si a patologia do "avarento", aquele sujeito que guarda todo o seu dinheiro debaixo da cama. O consumista é atormentado pela visão de pilhas de dinheiro trancadas dentro de um cofre, sem nunca serem utilizadas. Ele acredita que uma parte da humanidade é guiada pela despropositada meta de trabalhar sem receber — o que requer, para a sua realização, a existência de outra parte da humanidade ávida por aceitar receber sem trabalhar.

Esse é o significado da crença de que um grupo de homens deseja apenas produzir e vender, mas não comprar e consumir, e sua necessária contrapartida é a existência de outro grupo de homens que querem comprar e consumir, mas que não irão produzir e vender. No mundo do consumista, imagina-se que os produtores produzam apenas pelo prazer de obter dinheiro, para em seguida guardá-lo para sempre. O consumista está sempre pronto para dar-lhes dinheiro em troca de seus bens — ele propõe (1) que se tome deles o dinheiro que, segundo sua crença, eles não irão gastar, para em seguida entregá-lo para alguém que irá, ou (2) que se imprima mais dinheiro e se permita que eles, os produtores, acumulem papel enquanto outros adquirem seus bens.

Deixar o dinheiro guardado não é o único fenômeno que aflige o consumista. Quando nada da realidade se adapta à sua causa, o consumista é exímio em apontar causas totalmente imaginárias que, segundo ele, levarão a inevitáveis catástrofes econômicas. Invariavelmente, a solução defendida é fazer com que aqueles que nada produziram possam consumir à custa daqueles que produzem. O objetivo sempre será o de demonstrar a necessidade e os efeitos benéficos do parasitismo — apresentar o parasitismo como uma fonte de prosperidade geral.

A racionalidade da vida econômica

Em decorrência das avassaladoras absurdidades e contradições do consumismo, e a brutal perversão de valores que ele produz, pode-se apenas concluir que seu apoio se fundamenta nos interesses a que ele obviamente serve: o parasitismo. Isso, é claro, não libera o economista da tarefa de identificar os erros particulares de cada argumento consumista. Isso, no entanto, desqualifica todo consumista como economista. Nenhum cientista, de qualquer campo que seja, pode aceitar a ideia de que a realidade é irracional ou que é necessária uma ação irracional para lidar com ela.
Aqueles economistas da atualidade que proclamam aberta e provocativamente que o mundo econômico é "não-euclidiano", fazem-no abertamente. É assim que eles gostariam que o mundo econômico fosse. Se eles simplesmente acreditassem que a vida econômicaparecesse ser irracional, mas ao mesmo tempo não desejassem que ela fosse irracional, eles jamais diriam que ela de fato é.

Após o mais básico exame do assunto, ao invés de correrem em defesa do consumismo, eles não iriam descansar enquanto não tivessem identificado os erros que os fizeram acreditar que a vida econômica possuía a aparência da irracionalidade; e, quanto maior fosse essa aparência para eles, mais eles iriam perceber o quão grande era sua própria ignorância, e com mais afinco eles iriam trabalhar para superá-la e evidenciar os erros em que acreditaram. É isso que distingue um economista de um Lord Keynes.

George Reisman é Ph.D e autor de Capitalism: A Treatise on Economics. (Uma réplica em PDF do livro completo pode ser baixada para o disco rígido do leitor se ele simplesmente clicar no título do livro e salvar o arquivo). Ele é professor emérito da economia da Pepperdine University. Seu website: www.capitalism.net. Seu blog georgereismansblog.blogspot.com

Tradução de Leandro Roque

UMA EQUAÇÃO INFALÍVEL

No Brasil dos anos 1970, a autossuficiência na produção de alimentos ainda estava muito distante da realidade. Éramos um grande importador, e o brasileiro gastava, em média, 48% de sua renda com alimentação.


Vivíamos constantes crises de abastecimento, importávamos grãos, carnes e leite. O café era o grande pilar da balança comercial brasileira. Manteve-se assim até a crise do petróleo, que, em 1973, derrubou seu consumo em todo o mundo, provocando um deficit de mais de US$ 1 bilhão em nossa magra balança comercial.

Gastando muito com petróleo e com a importação de alimentos, não havia como imaginar o Brasil exportador de hoje. Perseguíamos tão somente a autossuficiência.

Nesse contexto de crise e sob a inspiração de brasileiros visionários, surgiu a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Eliseu Alves concebeu a Embrapa, que foi fortalecida e ampliada nos anos seguintes pelo então ministro da Agricultura, Alysson Paulinelli.

Aliou-se vontade política à inovação. Uma equação infalível, que fez reduzir o gasto médio do brasileiro com as refeições de cada dia a menos de 20% de sua renda.

Até o surgimento da Embrapa, o Brasil praticava nos trópicos uma agricultura importada das regiões temperadas, dependente de tecnologias que não foram concebidas para as nossas condições naturais. Toda a agricultura relevante do mundo situava-se fora da região dos trópicos, na América do Norte, na Europa e na Argentina.

Não havia, ainda, exemplo de agricultura tropical, nem se acreditava muito que isso fosse realmente possível. As próprias políticas governamentais, orientadas exclusivamente para a industrialização e a substituição de importações industriais, traziam implícito o conformismo com a inferioridade de nossa agricultura.

Em pouco tempo, fizemos nossa revolução verde, conquistando o cerrado, e o Brasil tornou-se o terceiro produtor agrícola do mundo e o segundo em exportações.

E não é simplificar as coisas dizer que essa nova história começou com a Embrapa. Foi essa instituição pública genuinamente brasileira que liderou a invenção de uma agricultura com identidade própria: a primeira agricultura tropical do mundo, moderna, eficiente e ambientalmente sustentável.

Toda essa aventura no caminho do conhecimento voltado para o uso na produção foi obra de brasileiros que fecharam os ouvidos para os gritos da política e para o ceticismo dos que sempre subestimaram nossa capacidade de resolver problemas. A Embrapa provou algumas coisas, e a primeira delas é que a excelência na educação sempre dá frutos.

Ela buscou profissionais em universidades rurais, já na época um modelo diferenciado de ensino e pesquisa, no padrão das universidades americanas. E investiu na profissionalização desses brasileiros, mostrando que nenhum país pode se desenvolver sem pesquisa e inovação próprias, patrocinadas pelo Estado.

Por último, provou que o Brasil, quando acredita e quer, é capaz de grandes feitos. Quando vejo a Embrapa e tudo o que ela fez, é como se estivesse vendo, refletida num espelho, a imagem do Brasil que podemos ser.

Mas o tempo passa e o mundo não para. Os saltos da ciência e as novas possibilidades tecnológicas, criadas pelos avanços no conhecimento científico, chamam a Embrapa a um novo começo.

Estamos chegando à fronteira da tecnologia existente e precisamos ocupar um novo espaço, o da biotecnologia moderna, com as técnicas da transgenia e da nanotecnologia.

Com tudo o que aprendeu com o seu passado, a Embrapa certamente vai saber andar no futuro. Essa é minha homenagem pelos 40 anos dessa instituição.

Obrigada por tudo, Embrapa. Conte sempre comigo, Embrapa. Por: Kátia Abreu Folha de SP

quarta-feira, 3 de abril de 2013

O DRAMA DA ECONOMIA

Difícil imaginar o PT administrando a inevitável recessão, a explosão dos preços e a maxidesvalorização cambial. Mas é isso que terá que acontecer, sem choro e nem vela.

O noticiário está pródigo em informar os problemas econômicos do governo Dilma Rousseff. Pouco a pouco a maré montante da elevação dos preços está cobrando a conta. O populismo explícito do PT não permite que os problemas fundamentais da inflação, quais sejam, a frouxa política monetária e o excesso de gastos públicos, sejam combatidos. O governo optou por combater as consequências, ou seja, os índices de preços. A cada momento novas medidas tópicas são anunciadas: redução de impostos, congelamento de preços básicos, como combustíveis e, mesmo, redução do preço da energia elétrica. Ainda houve o pedido aos prefeitos eleitos para não elevarem tarifas de transportes coletivos, no primeiro semestre.

Nada disso tem resolvido e a inflação claramente mudou de patamar. Alguns índices já superam, no acumulado, a taxa anual de 8%. O caminho dos dois dígitos está sendo trilhado rapidamente. A aceleração inflacionária é um fato.

A escolha pela administração tópica da inflação está provocando seríssimo desalinhamento dos preços relativos. A Petrobras está sangrando à morte e, com ela, está levando todo o setor sucro-alcooleiro, que é fundamental para a matriz energética e também para a geração de renda no campo. O mesmo parece acontecer com a precificação da energia elétrica, em face da divulgação dos gigantescos prejuízos da Eletrobrás. É claro que uma situação assim exige correção, que precisa vir o quanto antes. Evidente que o ajuste irá provocar súbita elevação da inflação, que exigirá, por sua vez, um ajuste cambial.

O dilema de Dilma Rousseff é saber quando enfrentar o problema. O calendário eleitoral está distante e os desequilíbrios não poderão esperar fechar as urnas. Resta saber como o eleitorado reagirá diante do ajuste nos preços relativos e no câmbio. E também diante da provável divulgação de taxas de inflação superiores a dois dígitos.

Esse cenário faz prever o acirramento das campanhas salariais. É bom lembrar que estão puxando a inflação os preços “livres”, especialmente os dos alimentos, que incidem diretamente sobre a população mais pobre, a grande massa eleitoral. Todas as medidas em prol da distribuição de renda estão sendo anuladas com a simples elevação da inflação e esse fato econômico terá óbvias e fortes consequências políticas.

A causa do drama é o erro de diagnóstico dos formuladores do PT. Essa gente chegou ao poder convencida de que tinha um caminho alternativo para administrar a economia, driblando a lei da escassez. Seus autores de referência são Marx e Keynes. Colocaram como prioridade o crescimento econômico, como se fosse possível, em um ambiente desequilibrado, manter o desenvolvimento. O PT escolheu conscientemente estimular o consumo, mediante elevação dos gastos públicos e do afrouxamento da política monetária. A maquiagem dos preços tornou imprescindível a valorização cambial, que está destruindo o que restou da indústria nacional. Os desequilíbrios ficaram grandes e insustentáveis.

O corolário é que a situação imporá ajustes, a um preço político incalculável. Difícil imaginar o PT administrando a inevitável recessão, a explosão dos preços e a maxidesvalorização cambial. Mas é isso que terá que acontecer, sem choro e nem vela. É o imperativo da lei da escassez se impondo, a despeito da vontade dos governantes. Preços, salários e câmbio terão que passar por ajustes inevitáveis. Quem viver verá. Por: Nivaldo Cordeiro