terça-feira, 16 de abril de 2013

CONQUISTADOS SOCIAIS


"Antigamente havia muito mais trabalho", disse Emily Mbongwa, a mulher de 52 anos fotografada em 2010 para o NY Times. A Sra. Emily mora em Newcastle, África do Sul. Para tomar conta de cinco crianças, das 6h às 18h, de segunda a sexta, ela ganha 70 dólares por mês.

A Sra. Emily ganhava mais com seu emprego antigo, na manufatura têxtil. Mas esse emprego não existe mais. Em 2010, várias fábricas foram fechadas na África do Sul porque pagavam salários em torno de 154 dólares. O salário mínimo era de 244 dólares. Aquelas mulheres estavam fora da lei.

A imposição do salário mínimo não foi bem recebida. Quando a polícia chegou para fechar uma fábrica em Newcastle, relata o NY Times, as mulheres trabalhando na fábrica — as supostas beneficiárias da repressão — subiram em cima das mesas de corte e das tábuas de engomar para clamar contra. "Por quê? Por quê?", gritava Nokuthula Masango, de 25 anos, depois que as autoridades levaram embora carrinhos de tecido colorido.

O problema do desemprego na África do Sul não começou em 2010. Durante o apartheid, negros eram impedidos de casar com brancos, frequentar as mesmas escolas que os brancos e, é claro, impedidos de ter os mesmos empregos que os brancos. Essa última imposição foi conquistada com medidas de salário mínimo. "O salário mínimo dmiminui o custo da discriminação", explica o economista Walter Williams:

Durante a era de aparhteid da África do Sul, seus sindicatos racistas estavam entre os principais apoiadores do salário mínimo para os negros. O Conselho de Salários da África do sul dizia, "o método seria estabelecer uma taxa mínima para uma ocupação ou ofício tão alta que nenhum Nativo seria provavelmente empregado."

Durante o apartheid, a Sra. Emily não aprendeu a ler, escrever nem recebeu treinamento profissional qualificado. Dizia que pelo menos na fábrica ela era "tratada com respeito". Era melhor que ter que suportar os xingamentos racistas dos filhos da família onde, antes da fábrica, ela trabalhava como doméstica das 6h às 21h.

"Transferência de aprendizagem" é o nome dado a um dos desafios da pedagogia moderna. Ao aprendermos determinado conceito ou raciocínio no contexto X, não fazemos automaticamente a aplicação do mesmo conceito ou raciocínio quando nos apresentam o contexto Y. Há um século, a psicologia vem mostrando exemplos dessa dificuldade humana. Aprender Latim não melhora o desempenho acadêmico em outras áreas, resolver um quebra-cabeças não melhora muito a capacidade de resolver outros quebra-cabeças visualmente diferentes mas logicamente semelhantes. É como se nossa mente aprendesse a calcular a área de uma mesa retangular, mas continuasse sem saber calcular a área de um campo de futebol. Ou, como dizia Millôr Fernandes, o xadrez funciona como "um jogo chinês que aumenta a capacidade de jogar xadrez."

A economia é cheia de problemas de transferência de aprendizagem, inclusive nas suas proposições mais fundamentais. Por exemplo, quando o preço da energia sobe, as pessoas usam mais ou menos o ar condicionado? Ou quando se aumenta o pedágio, as pessoas vão dirigir mais ou menos na estrada?

E quando o governo aumenta o preço da contratação de trabalhadores? Vão ser contratados mais ou menos trabalhadores? Não precisa cursar economia para ver que a questão é apenas mais uma aplicação da lei de oferta e demanda. Então por que meus amigos socialistas chamam o aumento do preço da energia ou do pedágio de "exploração", mas chamam a PEC das Domésticas de "conquista social".

A pior consequência da PEC das domésticas não é mandar os homens para a cozinha, como sugeriu a capa "classe média revoltada" da Veja. É mandar as domésticas embora. O que aconteceu na África do Sul está acontecendo no Brasil:

Meu patrão teve que me mandar embora por causa das horas extras, já que eu trabalhava doze horas por dia. Ele disse que não teria condições de pagar — disse Maria, que cuidava da esposa do patrão, portadora de Alzheimer.

Maria Aparecida dos Santos é uma mulher de 65 anos que viu sua renda desaparecer três dias depois da aprovação da Emenda. O patrão preferiu contratar uma empresa: "O serviço terceirizado sai pela metade do preço, não tem aviso prévio nem FGTS." De fato, há muitas mulheres que se beneficiarão da lei, mas apenas à custa das mais vulneráveis. O Sindicato das Empregadas domésticas do Rio diz que está atendendo agora 50 pessoas por dia, quando antes atendia 30. Ao aumentar o custo de contratação de empregadas domésticas, a Proposta de Emenda Constitucional 66/2012 está, à margem, efetivando a exclusão trabalhista de empregadas domésticas.

Medidas que prometem poder aos pobres podem acabar por deixá-los ainda mais frágeis. Pensem na relação da Dona Maria Aparecida com seu patrão. Digam-me, quando ele esteve com mais poder sobre ela, antes ou depois da PEC? Exclusão trabalhista aumenta as chances dos trabalhadores terem que aceitar piores condições e rejeitar a formalidade para poderem pagar as contas.

A mesma exclusão trabalhista decorre do resto das nossas conquistas sociais. O Brasil lidera o ranking de 25 países, da consultoria UHY, que mede o peso dos impostos sobre a contratação de funcionários. Para um salário anual de 30 mil dólares, o empregado brasileiro custa 17.267 dólares a mais para seu empregador. Ou seja, 57,56% do seu salário são apenas impostos. Nossos amigos de sigla impõem custos menores. Na China, os impostos tomam 30,88% do salário; na Rússia, 21,06% e na Índia, 3,67%. Alguém ainda tem dúvidas de por que empresas preferem abrir e contratar trabalhadores no leste asiático?

Mas, mais uma vez, a transferência de aprendizagem parece desafiar muitos brasileiros. Achamos que aumentar o preço do trabalho do pobre por meio de encargos e impostos equivale a aumentar o valor do trabalho do pobre por meio de capital e produtividade.

O Brasil não precisou passar por uma ditadura racial para fazer com os pobres o que o apartheid fazia com os negros.

Diogo Costa é presidente do Instituto Ordem Livre e professor do curso de Relações Internacionais do Ibmec-MG. Trabalhou com pesquisa em políticas públicas para o Cato Institute e para a Atlas Economic Research Foundation em Washington DC. Seus artigos já apareceram em publicações diversas, como O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Diogo é Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis e Mestre em Ciência Política pela Columbia University de Nova York. Seu blog: http://www.capitalismoparaospobres.com

segunda-feira, 15 de abril de 2013

SAPO FERVIDO

Querido leitor, hoje vamos falar sobre a metáfora do sapo fervido. 

De acordo com ela, se você retirar um sapo de uma lagoa com uma panela, trazendo junto um pouco da água na qual ele vive e colocar em cima de um fogão em chamas, ele será fervido e morrerá sem perceber que a água esquentou. 

No início, parecia o mesmo habitat. Depois, a água começou a ficar quentinha, provocando um clima de conforto e relaxamento. 

Voltemos à mesma situação, só que agora jogue o sapo dentro da panela quando a água estiver bem quente. Aqui, o sapo vai reagir e saltará instantaneamente para fora da panela. 

O que a metáfora do sapo fervido pode trazer de ensinamento para cada um de nós? Muitas vezes nas empresas isso também poderá acontecer. Executivos podem ser fervidos junto com o clima da organização e não estão se apercebendo disso. Diretores de grandes organizações e, principalmente, proprietários de micro, pequenas e médias empresas às vezes estão cozinhando junto com seus empreendimentos, tendo certeza de que estão fazendo a coisa certa. 

Isso pode acontecer quando, igual ao sapo, nos conformamos numa situação mínima de conforto, ou melhor, numa situação mínima de sobrevivência. E a desculpa para não crescerem geralmente é atribuída aos outros. Como concorrentes e mercado.

Não há uma regra ou dica para perceber que está sendo fervido vivo. Talvez uma boa forma para enxergar a situação da empresa é olhá-la pelo melhor ângulo, ou seja, estando fora dela. Talvez outra forma seja saber como está o clima interno, pesquisa de clima, pesquisa de satisfação de clientes. Participar de seminários, feiras, congressos, voltar ao banco da escola, renovar seu diploma com uma especialização, são todos meios de enxergar a empresa de modo diferente. 

Agora, para enxergá-la pelo lado de fora é preciso realmente sair, distanciar-se da operação e pensá-la estrategicamente, definindo a estrada e não cuidando apenas da qualidade de sua pavimentação. Para muitas pessoas, pensar dá trabalho e eles preferem a zona de conforto, porém, as consequências podem ser até quebrar a empresa. Pesquisas mostram que recomeçar outra ou sentir-se desnorteado é muito, muito mais trabalhoso.

É assim como o mundo me parece hoje. Por: Beto Colombo

COMO O GOVERNO GERA MÃO-DE-OBRA PARA O TRÁFICO DE DROGAS


Sempre que você encarece artificialmente o custo de um bem, a tendência é que a demanda legal por esse bem diminua acentuadamente. Como consequência, esse bem será empregado em outras atividades até então pouco atrativas.

Em termos práticos, se o governo encarece artificialmente o custo da mão-de-obra menos produtiva — por meio de encargos sociais e trabalhistas elevados, salário mínimo oneroso e tributação pesada sobre as receitas e os lucros das empresas —, a tendência é que esta mão-de-obra pouco produtiva seja menos demandada por empreendimentos legais e, consequentemente, seja canalizada para mercados mais desregulados — e quase sempre ilegais.

O mesmo ocorre quando o estado dificulta o empreendedorismo dos mais pobres, que não têm como arcar com a burocracia, com as licenças, com as regulamentações e com as inúmeras outras exigências impostas pelo estado que obstaculizam qualquer ato empreendedorial. Tais pessoas são atraídas para aqueles mercados em que as imposições estatais são menores — para não dizer nulas — e a possibilidade de lucros, mais altas.

Dado que o governo bloqueou todos os métodos legais para o indivíduo sair da pobreza, recorrer a uma atividade ilícita torna-se uma opção viável para aqueles que não sofrem de restrições morais.

Um setor que atrai a imensa fatia desta mão-de-obra pouco produtiva e destas pessoas de espírito empreendedorial, mas que não têm dinheiro, é o mercado das drogas. Se você mora nos subúrbios e não há opções legais para ascender socialmente — porque o governo criou várias imposições —, uma das maneiras mais fáceis e rápidas de enriquecer é se tornando um traficante.

Por quê?

Porque as regulamentações, as burocracias e os impostos do governo não se aplicam ao mercado das drogas. Não há leis de salário mínimo, não há exigências burocráticas, não há taxas de licenciamento, não há um Ministério do Trabalho dando batidas e impondo requerimentos. Principalmente, não há imposto de renda. 

Por se tratar de um mercado criminalizado pelo governo, as margens de lucro são enormes, pois elas embutem todo o risco empreendedorial — o risco de ter sua carga confiscada pelo governo e ter sua mão-de-obra encarcerada. Essas altas margens de lucro, que possibilitam altos salários, são um atrativo irresistível para aquelas pessoas desiludidas que não conseguiram trabalhar nem empreender legalmente por causa das restrições estatais. Nos subúrbios, é difícil resistir a essa tentação do enriquecimento fácil. Jovens sem perspectivas e que não conseguem empregos legais são facilmente contratados pelos barões do tráfico, pois a burocracia exigida para se contratar esse tipo de mão-de-obra é nula. Adicionalmente, o fato de o salário neste mercado ser integral, sem deduções previdenciárias e sem imposto retido na fonte, garante uma oferta contínua e crescente de mão-de-obra para o setor.

Da mesma maneira, pessoas de espírito empreendedorial também se aventurarão no mercado das drogas porque poderão reter para si todos os lucros auferidos, que não estão sujeitos a imposto de renda. Além disso, um chefão do tráfico não tem de se preocupar com greves e outras exigências trabalhistas. Também não há o risco de ele ser levado à Justiça do Trabalho por ter pedido hora extra.

Este é o tipo de empreendedorismo que floresce naqueles subúrbios em que não há perspectivas econômicas e não há possibilidades de ascender na vida por meios legais, pois o governo bloqueou todas as avenidas legítimas que retiram as pessoas da pobreza. O empreendimento criminal voltado para o mercado de drogas é atraente porque opera como se estivesse em um paraíso fiscal.

Sim, trata-se de um mercado violento. Como não há leis e os tribunais estatais não reconhecem os contratos verbais feitos no submundo, os indivíduos deste mercado sempre recorrem à justiça com as próprias mãos. Não há outra maneira de impor o cumprimento de contratos. Os gastos com segurança pessoal também são altos. Os custos marginais de se eliminar fisicamente um concorrente são baixos e os benefícios, extremamente altos. Você assume o mercado do seu concorrente eliminado e, como consequência, seus lucros se tornam ainda mais elevados.

Mas tudo isso também é consequência direta da proibição das drogas. O governo, ao tornar ilegal tal mercado, faz com que seus integrantes não possam recorrer aos meios legais para fazer cumprir seus contratos. E como empresas de arbitramento também estão proibidas de fazer tal serviço, a única opção que resta é recorrer à violência. Todas essas proibições servem apenas para elevar os lucros de quem opera neste mercado e, consequentemente, a atratividade deste mercado para a mão-de-obra mais despreparada e menos produtiva.

Se não houvesse uma guerra às drogas, se as drogas não fossem criminalizadas, se elas fossem legais, não haveria todas essas oportunidades irresistíveis. E sem essas oportunidades artificialmente criadas pela proibição estatal, e, principalmente, sem os impedimentos burocráticos, trabalhistas e tributários criados pelo governo no mercado legal, estes empreendedores dos subúrbios canalizariam sua criatividade, seu trabalho duro, sua iniciativa e seu empreendedorismo para outras atividades mais benéficas para a sociedade; vidas e recursos não seriam direcionados para esta atividade contraproducente que é o mercado de drogas.

Foi o governo quem criou este mercado paralelo, foi o governo quem dificultou ao máximo que as pessoas dos subúrbios ascendessem por meios legais, e é o governo a fonte desta criminalidade específica do mercado das drogas; e mais governo não será a solução. Mais intervenção governamental poderá apenas perpetuar a pobreza e a fonte de mão-de-obra para o tráfico de drogas.

Por fim, para agravar a situação, o governo atua em outra ponta que faz com que a mão-de-obra para o mercado das drogas se torne crescentemente especializada: o sistema penitenciário. 

Como consequência de toda esta criminalidade criada pelo governo, vários integrantes do tráfico de drogas — mais especificamente, os "peixes pequenos" — são capturados e enviados para penitenciárias. Deixando de lado toda a questão dos custos de se gerir estas enormes excrescências burocráticas que são as penitenciárias federais e estaduais, vamos nos concentrar nos resultados. O que são as prisões atuais se não genuínas universidades do crime? 

Um garoto pobre que vendia drogas e que foi capturado pela polícia e enviado a uma penitenciária, o que acontecerá a ele? Entrará em contato com todos os tipos de criminosos, todos eles mais experientes. Esse convívio prolongado fará com que o garoto adquira malícia, aperfeiçoe suas habilidades criminais e ganha mais intimidade com o mundo do crime. 

Ao sair da cadeia, após anos de imersão com os especialistas, ele será um pós-graduado em criminalidade. Ele agora estará a par de todos os truques das ruas; conhecerá todas as "manhas" da criminalidade.

Traficantes jovens que cumprem pena não são reabilitados. Também não são necessariamente punidos. Ao saírem da cadeia, eles são vistos como heróis por seus pares; eles se tornam um modelo para seus amigos. Eles cumpriram pena, saíram ilesos e, por isso, adquirem mais respeito. Estarão prontos e ainda mais preparados para ascender na carreira criminosa. Graças ao governo e a todas as suas proibições.

Peter Schiff é o presidente da Euro Pacific Capital e autor dos livros The Little Book of Bull Moves in Bear Markets, Crash Proof: How to Profit from the Coming Economic Collapse e How an Economy Grows and Why It Crashes. Ficou famoso por ter previsto com grande acurácia o atual cataclisma econômico. Veja o vídeo. Veja também sua palestra definitiva sobre a crise americana -- com legendas em português 

Tradução de Leandro Roque

domingo, 14 de abril de 2013

JUSTIÇA, CORRUPÇÃO E IMPUNIDADE

Não há quem não fique indignado com as constantes denúncias de corrupção em todas as esferas do Executivo e do Legislativo. A cada mês ficamos horrorizados com o descaso e o desperdício de milhões de reais. Como não é possível ao cidadão acompanhar o desenrolar de um processo (e são tantos!), logo tudo cai no esquecimento e não ficamos sabendo da decisão final (isto quando o processo não é anulado e retorna à estaca zero). O denunciado sempre consegue encontrar alguma brecha legal e acaba sendo inocentado. E isto se repete a cada ano. Não há indignação que resista a tanta impunidade.

E aí é que mora o problema central do Brasil. Não é possível dizer que as instituições democrática estão consolidadas com tantos casos de corrupção e o péssimo funcionamento dos três poderes. Agir como Poliana é jogar água no moinho daqueles que desprezam a democracia. E sabemos que temos uma tradição autoritária.

Apesar dos pesares, o Executivo e o Legislativo são transparentes, recebem uma cobertura jornalística que devassa os escândalos. Os acusados se transformam, em um período limitado, em inimigos públicos. Viram motivo de chacotas. Nada de efetivo acontece, é verdade. Porém, o momento de catarse coletiva ocorre. E o Judiciário? Age para cumprir a sua função precípua? Recebe cobertura paulatina da imprensa? Ou insinua usar o seu poder para que não sejam lançadas luzes — com o perdão da redundância — sobre o seu poder?

É no Judiciário que está o cerne da questão. Caso cumprisse o disposto na Constituição e na legislação ordinária, certamente não assistiríamos a este triste espetáculo da impunidade. Pela sua omissão virou o poder da injustiça. É, dos três poderes, o mais importante. E tem a tarefa mais difícil, a de resolver todo santo dia a aplicação da justiça.

O Supremo Tribunal Federal, por ser a instância máxima da Justiça, deveria dar o exemplo. Mas não é o que ocorre. A estranha relação entre os escritórios de advocacia e os ministros do STF deixa no ar uma certa suspeição. E no caso da Corte Suprema não pode existir qualquer tipo de questionamento ético. Os ministros devem pautar sua vida profissional pelo absoluto distanciamento com outros interesses que não sejam o do exercício do cargo. Não é admissível que um ministro (por que não ser denominado juiz?) tenha empreendimentos educacionais, ou mantenha um escritório de advocacia, ou, ainda, tenha parentes (esposa, filhos, cunhados, genros, noras) que participem diretamente ou indiretamente de ações junto àquela Corte.

O padrão de excelência jurídica foi decaindo ao longo dos anos. É muito difícil encontrar no STF algum Pedro Lessa, Adauto Lúcio Cardoso ou Hermes Lima. Os ministros que lá estão são pálidos, juridicamente falando, com uma ou outra exceção. Cometem erros históricos primários. Seria melhor que as sessões televisivas daquela Corte fossem proibidas para o bem dos próprios ministros.

Mas o problema do Judiciário é muito maior do que o STF. Nos estados, a situação é mais calamitosa. Famílias poderosas exercem influência nefasta. O filhotismo crassa sem nenhum pudor. E o que não se vê é a aplicação da justiça. Não pode ser usada como justificativa a falta de recursos. Desde a Constituição de 1988, o Judiciário tem um orçamento fabuloso. O problema é que o dinheiro é mal gasto.

O Judiciário preocupa-se com o cerimonial, o rito burocrático e todas as formalidades, mas esquece do principal: aplicar a justiça. O poder é lento e caro. E pior: é incompreensível ao cidadão comum. Ninguém entende como um acusado de desvio de milhões de reais continua solto, o processo se arrasta por anos e anos e, quando é condenado, ele não cumpre a pena. Ninguém entende por que existem tantas formas de recorrer de uma sentença condenatória. Ninguém entende o conceito do que é considerado prova pela Justiça brasileira.

É inadmissível juízes e promotores realizarem congressos patrocinados por empresas que demandam o Judiciário. É inadmissível um ministro do STF comparecer a uma festa de casamento no exterior com despesas pagas (no todo ou parte, isto pouco imaquela Corte. E ainda gazeteou sessões importantes (foram descontadas as faltas?). Se o Brasil fosse um país com instituições em pleno funcionamento, certamente haveria algum tipo de sanção. Sem idealizar a Suprema Corte americana, mas caberia perguntar: como seria recebida por lá uma notícia como essa?

Indo para o outro lado do balcão, cabe indagar o papel dos escritórios de advocacia especializados na defesa de corruptos. E são tantos. É evidente o direito sagrado de defesa. Não é isto que está sendo questionado. Mas causa profunda estranheza que um número restrito de advogados sempre esteja do lado errado, do lado dos corruptos. E cobram honorários fabulosos. Realizam seu trabalho somente para a garantia legal do direito de defesa? Será? É possível assinar um manifesto pela ética na política e logo em seguida comparecer ao tribunal para defender um político sabidamente corrupto? Este advogado não tem nenhuma crise de consciência?

Há uma crise estrutural no Judiciário. Reformá-lo urgentemente é indispensável para o futuro da democracia. De nada adianta buscar explicações pífias de algum intérprete do Brasil, uma frase que funcione como um bálsamo. Ninguém aguenta mais as velhas (e ineficazes) explicações de que a culpa é da tradição ibérica, da cordialidade brasileira ou do passado escravista. Não temos nenhuma maldição do passado, algo insuperável. Não. O problema é o presente. .

MARCO ANTONIO VILLA é historiador e professor da Universidade Federal de São Carlos (SP).

sábado, 13 de abril de 2013

ENTENDENDO A RECESSÃO MUNDIAL DO INÍCIO DO SÉCULO XXI

Artigo originalmente escrito em julho de 2002


O traço singular das crises econômicas desde o início do século XIX é a dificuldade de entrever com precisão a causa ou causas que as deflagram. No passado, as depressões podiam ser imputadas claramente a guerras, revoluções ou catástrofes naturais. A economia capitalista moderna é diferente. Quando tudo parece estar indo bem, inexplicavelmente emergem estranhas convulsões de seu bojo, que não podem ser explicadas por esse ou aquele evento específico. Como não poderia deixar de ser, os estudiosos do assunto aventaram ao longo do tempo inúmeras hipóteses para a compreensão das flutuações econômicas.

Todos conhecem ao menos vagamente a teoria marxista que atribui ao capitalismo contradições imanentes e inexoráveis cada vez mais graves e que, ao fim e ao cabo, levariam à sua superação pelo comunismo. A hipótese de Marx pertence ao gênero das teorias da superprodução, segundo as quais o capitalismo seria tão produtivo que haveria um encalhe de mercadorias em vista da incapacidade das massas para adquiri-las. A outra teoria mais conhecida é a de Keynes, que integra o grupo do subconsumo. Para o inglês, que divisava contradições internas no capitalismo muito parecidas com as de Marx, as crises são o reflexo da insuficiência de poder de compra por parte da população. Os seguidores de Marx e os discípulos de Keynes divergem entre si em detalhes, mas concordam no principal: a economia de mercado é intrinsecamente instável e perversa. É imperativo para a felicidade geral da humanidade que ela seja abolida tout court, conforme os marxistas, ou reformada e estritamente controlada pelo estado, segundo os keynesianos.

Marx e Keynes diziam que sob certas condições a escassez — a impossibilidade de ter tudo ao mesmo tempo — poderia ser suprimida e os povos ingressariam então no nirvana terrestre da abundância. Bastava superar a propriedade privada dos meios de produção, no caso do alemão, ou reduzir a zero a taxa de juros, conforme o britânico, para que esse feliz estado de coisas substituísse o desnecessário vale de lágrimas de dura labuta que aflige os homens desde a expulsão do paraíso.

Em outras palavras, os dois mais famosos e influentes economistas dos últimos cento e tantos anos acreditavam em Papai Noel e no coelhinho da páscoa. Que sejam justamente esses embusteiros os dois mais famosos e influentes economistas sintetiza muito bem a confusão moral e o descalabro intelectual vigente.

Marx e Keynes não foram homens de ciência, e sim expoentes do grupo mais nefasto de todos os tempos, o dos intelectuais socialistas militantes, que superaram com folga os estragos pretéritos de conquistadores sanguinários como Átila, Tamerlão ou Cortez. Suas teorias acerca dos ciclos são tão desonestas e erradas que já nasceram refutadas. Num debate célebre na época, início do século XIX, o economista francês Jean-Baptiste Say conseguira demonstrar os erros cabais de seu colega inglês Malthus, que formulara uma teoria das crises econômicas que depois viria a ser requentada e enfeitada por Marx e Keynes, cada um a seu modo.

De sorte que, para quem quer compreender o que está ocorrendo com a economia global no presente, deve em primeiro lugar descartar in limine as explicações dos economistas marxistas e keynesianos. No Brasil, terra em que 99% dos economistas têm Marx no coração e Keynes na cabeça, isso significa desprezar quase in totum as análises dos pseudo-especialistas. Tampouco há como levar a sério os palpiteiros baratos e propagandistas vulgares como Veríssimo, Sader e similares. Para entender o que está se passando é preciso recorrer às análises e pesquisas de estudiosos sérios.

Como os chamados monetaristas da Escola de Chicago. Para eles, em resumo, a estabilidade econômica depende da relação entre a quantidade total de dinheiro em circulação e a quantidade total de bens e serviços produzida. Enquanto houver equivalência entre ambas essas magnitudes, de modo que uma terceira magnitude, o nível geral de preços, permaneça estável, tudo irá bem. Os problemas decorrem da queda ou do aumento excessivo da oferta de moeda, gerando deflação ou inflação. Para os monetaristas, a razão principal da grande depressão dos anos 1930 teria sido o mau gerenciamento monetário do Banco Central americano, que permitiu uma queda abrupta da quantidade de dinheiro — deflação — e assistiu a uma quebradeira geral de bancos (cujos depósitos à vista — dinheiro — deixaram de existir) sem nada fazer.

A crítica que se faz aos monetaristas é que eles raciocinam em termos de agregados, ou seja, adotam uma teoria macroeconômica dos ciclos que acaba não diferindo muito da macroeconomia keynesiana, e padece de limitações semelhantes. Ademais, tanto na crise americana atual quanto na corrente estagnação japonesa, velha de dez anos, a teoria monetarista falhou na previsão das crises, pois o nível geral de preços em ambos os casos estava mais ou menos estável, e também na correção delas, pois não houve quebras bancárias e deflação e mesmo assim o problema continuou.

Em defesa dos economistas de Chicago, contudo, deve ser dito que eles ajudaram a humanidade derrotando os keynesianos numa grande batalha teórica nos anos 1960 e 1970 centrada nas origens e causas da galopante inflação de preços da época, bem como que eles em geral criticam ferozmente o intervencionismo econômico do protecionismo, monopólios, subsídios, déficits e controle de preços.

Mas a economia não trata de agregados imaginários, meros entes de razão, e sim de seres humanos, suas ações e escolhas num mundo de escassez, imperfeições e incerteza. Nesse plano mais concreto, chamado de microeconomia, alguns teóricos, como Joseph Schumpeter, foram pesquisar a dinâmica das crises econômicas. Esse grande economista partiu do modelo conhecido como equilíbrio geral walrasiano para concluir que a única variável capaz de perturbar esse equilíbrio e deflagrar as crises seria a inovação tecnológica. A teoria da destruição criativa, como ficou conhecida, é muito interessante, mas peca por assumir os postulados irrealistas e insatisfatórios do equilíbrio geral e por concentrar a inovação em determinados períodos, seguidos de calmarias técnicas, quando se sabe que no mundo real ela está ocorrendo o tempo inteiro.

A teoria articulada por Ludwig von Mises sobre antigos insights da escola monetária inglesa do século XIX e sobre as investigações acerca do capital e do juro feitar por Bohm-Bawerk e Wicksell, e depois desenvolvida por Friedrich Hayek e outros, evita as armadilhas da macroeconomia e da microeconomia walrasiana. Mais ainda: fornece a mais completa ilustração das flutuações econômicas. Passemos a testá-la.

A ênfase é na moeda, como é o caso dos monetaristas, porém a abordagem é primariamente microeconômica, concentrando-se nos efeitos que o advento de moeda-crédito nova provoca nos agentes econômicos. Os economistas austríacos notaram que as crises revelam subitamente que a maior parte dos empresários e investidores erraram em suas estimativas do estado futuro do mercado, de modo que suas expectativas de lucratividade foram frustradas. O erro empresarial é normal (afinal, errar é humano) e acontece o tempo todo, pois o futuro é, por definição, incerto. Mas a singularidade das crises está na enorme quantidade de erros de avaliação simultâneos por parte de empresários experientes e especuladores astutos. Entender a causa desse conjunto de erros é a chave para decifrar o mistério das crises.

Em um mundo em que tudo é heterogêneo, só o dinheiro é homogêneo. A moeda tem a função vital de expressar as razões de troca entre as mais variadas coisas — os preços — numa única unidade de conta apta a permitir o cálculo econômico racional. Os preços monetários transmitem informações aos agentes econômicos sobre a escassez relativa dos fatores de produção e dos bens de consumo; e com base nessas informações, os agentes traçam seus planos e tomam suas decisões. Caso esse delicado mecanismo de transmissão de informações via preços seja danificado, os agentes estarão mais propensos a planejar de acordo com dados fictícios e ilusórios de realidade e, portanto, a tomar decisões erradas.

Para haver investimento, é preciso antes ter havido poupança, a diferença positiva entre o que as pessoas produzem e o que consomem. A poupança agregada reflete uma inclinação geral das pessoas de adiar o consumo no presente em troca de mais consumo no futuro. Se, ao contrário, ocorrer uma preferência generalizada pelo consumo no presente, a poupança agregada é reduzida ou até mesmo substituída pelo consumo do capital existente, o que resultará em consumo futuro declinante e queda do padrão de vida.

Em uma economia de mercado desenvolvida, a poupança chega às mãos dos investidores mediante complexos sistemas de intermediação, e o preço que equilibra a procura e a oferta de poupança existente é o juro. Esse preço é absolutamente fundamental para o cálculo econômico dos empresários, que não investirão em linhas de produção cuja rentabilidade seja menor do que os juros que terão que pagar sobre os recursos tomados. O juro sinaliza a escassez de poupança e informa que não dá para produzir tudo no momento, mas apenas os bens de consumo mais urgentemente desejados pelos consumidores.

Outra informação vital fornecida pela taxa de juros é sobre o tempo a ser consumido no projeto de investimento até que os bens de consumo estejam prontos para serem oferecidos no mercado. Um projeto que consome tempo demais para sua maturação corre o risco de morrer na praia por falta de recursos para mantê-lo, pois até que se comece a vender e lucrar há que pagar os salários dos empregados, os fornecedores de insumos etc.

Se, porém, os bancos decidem emprestar além das suas reservas, eles falsificam dinheiro (pois depósitos sujeitos a cheque criados ex nihilo são dinheiro em circulação), criam uma pseudopoupança e consequentemente a taxa de juros, reduzida artificialmente, deixa de ser um sinal confiável. Os empresários e investidores são induzidos a acreditar que há mais poupança real do que efetivamente existe. Todas as crises são precedidas de períodos de prosperidade febril caracterizada por amplos investimentos em bens de capital e de maturação lenta. Por outro lado, o dinheiro falso bombeado pelos bancos na economia termina por alimentar grandes movimentos especulativos nas bolsas de valores e em outros mercados (como o de imóveis). O estimulante dessa febre ilusória de otimismo eufórico é o crédito artificialmente barato provido pelo sistema financeiro sob o comando dos governos.

A distorção na cadeia produtiva que se segue decorre do fato de que a criação de dinheiro falso não implica que os fatores de produção e bens de consumo também possam se materializar magicamente. Eles continuam limitados e escassos como antes. E como há mais dinheiro comprando as mesmas coisas, os empresários passam a disputar ferozmente entre eles os fatores de produção, cujos preços sobem.

De outro ângulo, a remuneração desses fatores, como os salários dos empregados, começa a ser despendida em bens de consumo, cujos preços tendem a subir. A inflação monetária pode ser contrabalançada por um aumento da produtividade (queda dos preços de alguns bens de consumo pelo aumento da oferta), de modo que o nível geral de preços permaneça relativamente estável, como ocorreu nos anos 1920 e nos anos 1990 nos Estados Unidos. Entretanto, a expansão do crédito fatalmente distorce, além da poupança real, também a alocação de recursos. O aumento da demanda por bens de consumo força os empresários dos setores mais próximos do consumo final a competir com os setores mais distantes pelos fatores de produção. A farra do crédito barato, contudo, gera inflação e estende demais o endividamento dos agentes econômicos, de modo que, mais cedo ou mais tarde, o governo e os bancos são forçados a elevar os juros e restringir a oferta de crédito.

Chega de emprestar; a hora agora é de cobrar as dívidas. O aumento dos juros e dos preços dos fatores subitamente deixa nus com a mão no bolso os empresários do setor de bens de capital. Eles se dão conta de que suas previsões estavam erradas, que não conseguirão recuperar o que investiram. E aí começa o salve-se quem puder do corte de custos e demissões. As crises sempre começam nos setores da estrutura de capital mais afastados do consumo final, como nas indústrias pesadas, e só mais tarde vão derrubando o resto.

A recessão, na ótica da teoria austríaca, é o acerto de contas inevitável com o complexo de decisões erradas tomadas no passado com base no falso sinal dos juros baixos. Os empresários têm que ajustar seus planos ao nível de poupança efetivamente existente. Muitos quebram e são excluídos do rol dos empreendedores. Os assalariados empregados nas indústrias insustentáveis perdem seus empregos e têm que procurar outros em setores mais sólidos. O desemprego sobe dramaticamente. Os investimentos em bens de capital e terra não conversíveis são sacrificados. Não há outro jeito.

Quanto menor for a intervenção externa nesse necessário processo de regeneração do organismo econômico, mais rápida será a sua recuperação. A tremenda crise mundial de 1921 foi superada em apenas um ano. Já a crise similar de 1929 se prolongou por mais de dez anos e a convulsão japonesa de 1992 se arrasta até hoje. Isso porque os governos resolveram intervir e só agravaram os problemas. Medidas protecionistas para "preservar empregos", gastos deficitários estatais para "gerar empregos", barateamento do dinheiro com juros zero ou até negativos ("reflação"), controle de preços, subsídios às indústrias periclitantes, seguro-desemprego para sustentar a "demanda efetiva" e medidas do gênero impedem a recuperação e prolongam a recessão, transmutada desnecessariamente em depressão.

A economia de mercado é construída por milhões de contratos entre sujeitos livres, ou seja, pela cooperação voluntária e mutuamente vantajosa para as partes segundo suas valorações pessoais e intransferíveis. A base desse sistema incrivelmente complexo é uma atmosfera geral de confiança (daí "crédito") em que os contratantes cumprirão as obrigações pactuadas. Ao contrário do que pregam os enfadonhos intelectuários socialistas, o capitalismo pressupõe uma moralidade social saudável. O elo que possibilita e liga economicamente todas essas relações privadas é o dinheiro. Ora, se o dinheiro é sujeito à manipulação fraudulenta pelos governos e bancos, violando a regra moral básica de não roubar, a imoralidade é infundida no próprio coração do sistema, corrompendo-o gravemente. A inflação é uma espécie de leucemia econômica, em que o sangue do corpo econômico é deliberadamente envenenado. É claro que mais cedo ou mais tarde os órgãos aparentemente saudáveis começarão a falhar e o paciente descobrirá de repente que está seriamente doente.

A propósito, é abordando o problema do ponto de vista ético que se constata mais facilmente o absurdo das propostas keynesianas para evitar ou curar as depressões. Para Keynes e seus sucessores, o estado se subtrai às regras morais válidas para as criaturas comuns, pois ele não só pode como deve gastar mais do que arrecada (onerando assim o patrimônio de terceiros contra a vontade deles) e falsificar dinheiro em bases permanentes. Essas falcatruas oficiais são conhecidas pelos eufemismos de "política monetária" e "política fiscal". Ora, o estado é uma abstração. O que ontologicamente existe são indivíduos investidos dos poderes de governo. Não pode ser fecundo um sistema social em que vige uma moral para uns e outra inteiramente contrária para outros. A tendência é a imoralidade dos que estão por cima contaminar todo o corpo social, o que de fato tem acontecido sistematicamente.

A inflação é como as drogas. O primeiro passo para curar um viciado em drogas é parar de tomar a substância. Depois virão os sintomas da crise de abstinência que o indivíduo terá que suportar até limpar seu organismo para poder então levar uma vida sã. A medicina keynesiana, todavia, recomenda atulhar o paciente com a mesma droga em que ele se viciou além de outras igualmente nocivas! Não admira que tantos "pacientes" sujeitos a essa terapia charlatanesca tenham chegado perto de bater as botas. O Brasil é um desses pacientes e os charlatães keynesianos fervilham em torno dos candidatos à presidência, os já famosos quatro cavaleiros do apocalipse.

A crise americana do início da década de 2000

Encerrado esse breve esboço teórico das crises econômicas, passemos agora a examinar a atual recessão à luz dessa teoria. Os anos 1990 foram tempos de grande prosperidade nos Estados Unidos, a mais forte economia do mundo. No comando estava o "senhor dos mercados", Alan Greenspan, chefe do Banco Central americano. É curioso que analistas sérios possam ter acreditado que a saúde econômica mundial dependesse da batuta de maestro de um único homem. Dá para crer que a inacreditavelmente intrincada complexidade da economia global pudesse ser conduzida intuitivamente por um super-homem, que quando sentia uma dorzinha ominosa nas articulações baixava os juros e quando ouvia uma misteriosa voz interior os aumentava? Pois é nisso que a mídia dominante quis que se acreditasse. A verdade é bem outra.

Greenspan pisou no acelerador da expansão monetária em meados dos anos 1990, aumentando a quantidade de dinheiro em 10% ao ano e depois em 15% ao ano. Por que fazer isso? Porque politicamente é interessante; os políticos têm horizonte de curto prazo e fazem qualquer negócio para que a economia cresça, mesmo que esse crescimento seja insustentável. Seus sucessores que se virem com a crise.



Gráfico 1: crescimento nominal da quantidade de dinheiro na economia americana (1995-2000)

Essa orgia de dinheiro barato desencadeou os investimentos de longo prazo insustentáveis previstos na teoria austríaca dos ciclos, bem como jogou gasolina nas brasas da especulação desenfreada. As ações da Nasdaq foram à estratosfera, muito embora fosse público e notório que as novas empresas "pontocom" levariam anos, e até décadas, antes que começassem a operar no azul. Greenspan começou a falar em "exuberância irracional" na época, mas era ele quem estava abrindo as comportas da irracionalidade.

Como reza essa teoria, a expansão monetária não pode durar para sempre, sob pena de a inflação destruir a economia. Greenspan então falava em "pouso suave" do nível de atividade econômica, excessivamente aquecido, e aumentou a taxa de juros em 1999, reduzindo o crescimento monetário para menos de 8% anuais. A contração nos setores de bens de capital prevista pelos austríacos já tinha se iniciado quando o pouso suave virou uma aterrissagem forçada assustadora. A bolha da Nasdaq estourou, reduzindo a pó as economias de milhões de investidores. Quase seiscentas empresas "pontocom" faliram. A recessão chegou para valer no ano de 2001 e continua bastante séria até o momento. É claro que a crise nos Estados Unidos afeta o mundo inteiro.



Gráfico 2: taxa anual de crescimento de quantidade de dinheiro na economia americana (1996-2000)

Outro ponto de comprovação da teoria austríaca é a corrente epidemia de fraudes contábeis em grandes empresas e bancos americanos. É óbvio que jamais aconteceu uma assembléia geral de grandes empresários para combinar uma maquiagem contábil generalizada. Essas coisas são feitas no maior segredo. Cada empresa tomou sozinha a decisão de mentir ao público. O fato de que tanta delas tenham feito a mesma coisa ao mesmo tempo reflete o desespero comum de cada um desses conglomerados diante do complexo de estimativas erradas induzidas pela política monetária traiçoeira de Greenspan.

Não se trata aqui de relativizar e desculpar os crimes cometidos por esse pessoal. Um erro não justifica o outro e a desonestidade deles tem de ser punida. Mas não se pode esperar que um sistema imoral gere moralidade. De maneira que a recente declaração de Greenspan contra a "ganância infecciosa" é farisaica e tem por meta tirar o dele da reta. E a grande imprensa mundial engoliu essa isca com a maior sofreguidão, pois, eterna cortesã do estado que é, não poderia admitir que o "senhor dos mercados" não passa de um super-trambiqueiro e fraudador emérito.

Por outro lado, a revelação das fraudes demonstra a superioridade da ordem de mercado, pois não se pode enganá-la por muito tempo. A triagem dos lucros e perdas é implacável, cedo ou tarde os prejuízos produzem seus efeitos. Já as maquiagens contábeis estatais são muito mais difíceis de detectar, muito mais vultosas e onerosas e no fim não dão em punição para os políticos e burocratas. Punição mesmo só para os contribuintes que pagam a conta.

O fato é que a crise está posta e seus desdobramentos para o bem ou para o mal dependerão das ações futuras do governo dos Estados Unidos. Seguir o caminho trilhado por Hoover e Roosevelt nos anos 1930 é receita segura para uma depressão de grandes proporções. Naquele tempo, o governo americano fez tudo o que se poderia imaginar de pior para abortar a recuperação. Instituiu altíssimas tarifas alfandegárias, arruinando o comércio internacional, duplicou os impostos, descarregou subsídios sobre setores ineficientes, desvalorizou o dólar, contraiu déficits fiscais enormes, inflacionou a moeda e interveio no mercado de trabalho. A recessão inicial então se eternizou como uma brutal depressão. Infelizmente, as autoridades americanas não aprenderam a lição do passado, pois estão seguindo trilha semelhante no presente.

Greenspan "reflacionou", voltando a bombear crédito em doses cavalares na economia americana com juros de quase zero. Não adiantou nada, é claro. Bush e o Congresso estão unidos na política de subsídios e no protecionismo, o que vai naturalmente gerar retaliações dos outros países e blocos comerciais. Uma guerra comercial agora seria um desastre, como foi nos anos 1930. Adotando as indefectíveis recomendações dos keynesianos, que nessas horas sempre retiram o velho pangaré da "política fiscal" de suas nauseabundas estrebarias, Bush elevou dramaticamente os gastos públicos americanos, o que gera déficit, que tem que ser financiado via inflação ou endividamento, e a dívida pública americana não é baixa. Estimulados pelo abundante crédito ao consumo e pela ideologia keynesiana da gastança como meio de encorajar a "demanda agregada", os americanos se endividaram muito e estão poupando pouquíssimo. Os investimentos estão muito dependentes de poupança externa, que está melindrada pela crise de credibilidade do mercado americano e ameaça fugir para pousos mais seguros. O déficit comercial está alto e aumentando. De resto, o belicismo do governo Bush pouco contribui para a estabilidade mundial. O cenário é lastimável e alimenta o pessimismo.

Para piorar, os políticos estão fazendo a costumeira demagogia lançando empresários fraudadores aos leões para encobrir sua própria culpa no cartório pela situação atual. Fala-se em regulamentações mais severas e draconianas, o que só pode entravar ainda mais um mercado que, ao contrário do que se pensa, já é excessivamente cerceado por copiosas leis e regulamentos. Tudo isso é fumaça. Fraudar a contabilidade sempre foi crime e já existem rígidos mecanismos de prevenção que falharam porque o estado costuma falhar. É da natureza da burocracia ser ineficiente. Nem se fosse possível designar um policial para seguir como uma sombra todos os contadores do país daria jeito no problema, pois quem garante que os policiais não seriam por sua vez incompetentes ou sujeitos à corrupção? Teria que haver um fiscal do policial do contador, e depois um fiscal do fiscal do policial do contador e assim por diante.

Para não ficar somente na sinistrose, vale lembrar que aparentemente não há no horizonte próximo a ameaça de ideologias insensatas como o nazismo e o comunismo, que nos anos 1930 ainda tinham o frescor da novidade e não tinham sido testados e reprovados pela experiência histórica. A realidade ensinou duras lições aos políticos que se encantaram pelo marxismo e pelo keynesianismo, de modo que prevalece ainda um certo consenso de que a economia de mercado deve prevalecer, mesmo que pesadamente obstruída pelas "políticas públicas".

O que se pode assegurar é que os ciclos econômicos continuarão a se repetir enquanto existir a manipulação política da moeda, e não há sinal de que isso possa mudar no futuro previsível. A arquitetura monetária do capitalismo moderno é um castelo de cartas sujeito a desmoronar parcial ou totalmente a qualquer momento.

Alceu Garcia é o pseudônimo de um cidadão que, cercado de esquerdistas por todos os lados, e já conhecendo o tratamento que eles dão a quem ouse contrariá-los no local de trabalho, tem bons motivos para desejar permanecer incógnito.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

O SOCIALISMO COMO UM IMPERATIVO MORAL

Este artigo foi extraído do capítulo 30 do livro Socialism — an economic and sociological analysis


Engels classificou o Movimento Trabalhista alemão como o herdeiro da filosofia alemã clássica. Seria mais correto dizer que o socialismo alemão (não somente o marxista) representa a decadência da escola de filosofia idealista. O socialismo deve a soberania que conseguiu adquirir sobre a mentalidade alemã à ideia de sociedade concebida pelos grandes pensadores alemães. Partindo-se do misticismo kantiano sobre o trabalho e da deificação hegeliana do estado, é fácil remontar a evolução do pensamento socialista.

Em décadas recentes, o ressurgimento da análise kantiana — esta tão aclamada façanha da filosofia alemã — serviu para beneficiar o socialismo. Os neokantianos, especialmente Friedrich Albert Lange e Hermann Cohen, se declararam socialistas. Simultaneamente, os marxistas tentaram conciliar o marxismo com a Neocrítica. Desde que as fundações filosóficas do marxismo começaram a mostrar sinais de rachadura, multiplicaram-se as tentativas de encontrar na filosofia crítica um suporte para as ideias socialistas.

A parte mais fraca do sistema de Kant é a sua ética. Embora seus conceitos individuais sejam fortificados pelo seu poderoso intelecto, a grandeza deles não consegue esconder o fato de que seu ponto de partida foi escolhido desastrosamente e sua concepção fundamental é totalmente errônea. A desesperada tentativa kantiana de erradicar o eudemonismo fracassou. No campo da ética, Bentham, Mill e Feuerbach triunfaram sobre Kant. A filosofia social de seus contemporâneos, Ferguson e Adam Smith, não o afetou. A ciência econômica permaneceu totalmente estranha a ele. Todas as suas percepções sobre problemas sociais sofrem destas deficiências.

Neste aspecto, os neokantianos não fizeram progressos em relação ao seu mestre. Eles, também, não possuem grandes discernimentos sobre a fundamental lei social da divisão do trabalho. Eles apenas creem que a distribuição de renda não condiz com o seu ideal apregoado, e que as maiores rendas não vão para aqueles que eles consideram ser os mais dignos e os mais merecedores, mas sim para uma classe que eles desprezam. Eles veem pessoas pobres e necessitadas, mas não tentam descobrir se isto é uma consequência da instituição da propriedade privada ou de tentativas de se restringi-la. Eles condenam de pronto a existência da instituição da propriedade privada, pela qual eles — que sempre viveram totalmente distantes dos problemas empreendedoriais — jamais tiveram qualquer simpatia. Seus pensamentos são dominados por imagens de pessoas mais prósperas do que eles próprios. Eles fazem comparações entre, de um lado, seus próprios valores e a falta de valores destas pessoas, e, de outro, sua própria pobreza e a riqueza destas outras pessoas. No final, raiva e inveja, em vez de razão, motivam seus escritos.

Isso por si só explica por que pensadores lúcidos como os neokantianos ainda não pensaram claramente sobre os problemas mais prementes da filosofia social. Nem mesmo os rudimentos de uma filosofia social mais abrangente são encontrados em suas obras. Eles fazem inúmeras críticas infundadas a certas condições sociais, mas se omitem de discutir os mais importantes sistemas sociológicos. Eles fazem julgamentos sem antes terem se familiarizado com os resultados da ciência econômica.

O ponto de partida de seu socialismo geralmente é a frase: "Aja de tal maneira que você utilize o seu ser, de maneira idêntica ao ser de qualquer outro, sempre como uma finalidade, jamais como meramente um meio". Nestas palavras, diz Hermann Cohen, "o mais profundo e poderoso significado dos imperativos categóricos é expresso: eles contêm o planejamento moral da era moderna e de toda a história do mundo futuro." E daí até o socialismo, infere ele, não há uma grande distância. "A ideia de que a humanidade possui um propósito final se transmuta diretamente na ideia do socialismo quando cada indivíduo é definido como sendo o propósito supremo, um fim em si próprio."

É evidente que este argumento ético em defesa do socialismo ou se mantém de pé ou é demolido pela declaração de que, na ordem econômica baseada na propriedade privada dos meios de produção, todos os homens, ou alguns homens, são meios e não fins. Os neokantianos consideram isso como algo já completamente comprovado. Eles acreditam que, em tal ordem social, existem duas classes de homens, os proprietários e os não-proprietários, dos quais somente os primeiros levam uma existência digna de um ser humano, ao passo que os últimos meramente sobrevivem. É fácil ver de onde vem esta ideia. Ela se baseia nas sempre populares ideias sobre as relações entre ricos e pobres, e é amparada na filosofia social marxista, pela qual os neokantianos professam grande simpatia sem, no entanto, explicitar suas considerações a respeito dela.

Os neokantianos ignoram completamente a teoria social liberal. Eles admitem como fato consumado que se trata de algo insustentável e indefensável, e creem que seria uma perda de tempo criticá-la. No entanto, é somente refutando as ideias liberais a respeito da natureza da sociedade e da função da propriedade privada que eles conseguiriam justificar a afirmativa de que, em uma sociedade baseada na propriedade privada dos meios de produção, os homens servem apenas como meios, e não como fins. Pois a teoria social liberal prova que cada indivíduo isolado vê todos os outros, acima de tudo, somente como meios para a realização de seus objetivos, ao passo que ele próprio é visto por todos os outros como um meio para a realização dos objetivos deles; e que, finalmente, por meio de suas ações recíprocas, na qual cada indivíduo é simultaneamente um meio e um fim, alcança-se o mais elevado objetivo da vida social — a concretização de uma melhor existência para todos. 

Se a sociedade só é possível se todos os indivíduos, ao mesmo tempo em que vivem suas próprias vidas, ajudam os outros a viver, se cada indivíduo é simultaneamente meio e fim, se o bem-estar de cada indivíduo é simultaneamente a condição necessária para o bem-estar de outros, então se torna evidente que o contraste entre mim e você, meio e fim, é automaticamente superado. 

O peculiar argumento destes neokantianos em defesa da abolição da propriedade privada revela a ignorância que ainda viceja em suas mentes no que diz respeito a este fundamental problema da vida social. Objetos, dizem eles, têm valor. Pessoas, por outro lado, não têm valor. Elas têm dignidade. O preço de mercado do valor da mão-de-obra é incompatível com a dignidade do indivíduo. Isto nos leva ao abismo da fraseologia marxista e à doutrina do "caráter de mercadoria" da mão-de-obra, bem como todas as objeções que tal expressão desperta. Esta expressão acabou fazendo parte dos tratados de Versalhes e Saint Germain, exigindo a aceitação do princípio básico de que "a mão-de-obra não deve ser considerada meramente como um artigo de comércio".

Após tudo isto, não devemos nos surpreender ao encontrar repetidamente nas obras neokantianas todas aquelas palavras-chaves que por milhares de anos foram empregadas contra a instituição da propriedade privada. Os neokantianos rejeitam a propriedade privada porque o proprietário, ao assumir o controle sobre uma ação isolada, se torna o proprietário de fato do indivíduo. Eles rejeitam a propriedade privada porque ela retira do trabalhador os produtos do seu trabalho.

Evidentemente, o argumento em prol do socialismo apresentado pela escola kantiana sempre nos remete de volta aos conceitos econômicos dos vários escritores socialistas que a precederam; acima de tudo a Marx e aos socialistas "acadêmicos" que seguiram seus passos. Seus argumentos são exclusivamente econômicos e sociológicos, e todos eles se comprovam insustentáveis.

A função do trabalho como um alicerce do socialismo

"Quem não quiser trabalhar, não tem o direito de comer", diz a Segunda Epístola dos Tessalonicenses (2 Tessalonicenses 3:10), a qual é atribuída ao Apóstolo Paulo. Esta advertência e exortação ao trabalho é dirigida àqueles que querem viver sua cristandade à custa dos membros trabalhadores da congregação; tais pessoas devem se prover a si próprias sem representarem um fardo para seus semelhantes. Retirada deste contexto, tal passagem há muito vem sendo interpretada como uma crítica à "renda imerecida", ou seja, à renda que não advém do trabalho puro, mas sim de outras atividades, como ganhos de capital. Ela contém um preceito moral expresso de maneira bastante sucinta, o qual vem continuamente sendo advogado com enorme vigor.

A sequência de ideias que levou as pessoas a este princípio pode ter sua origem rastreada a uma frase de Kant: "O homem pode ser extremamente engenhoso e criativo, mas, ainda assim, ele não pode forçar a Natureza a aceitar outras leis. Ou ele próprio deve trabalhar, ou deve fazer com que os outros trabalhem por ele; e seu trabalho irá roubar dos outros a exata quantidade de felicidade que ele precisa adquirir para elevar a sua própria felicidade para acima da média."

É importante observar que a indireta rejeição da propriedade privada contida nestas palavras kantianas está baseada estritamente em uma visão utilitarista ou eudemonística. O conceito do qual parte Kant é o de que, por meio da propriedade privada, uma maior quantidade de trabalho é imposta sobre alguns, enquanto outros podem se dar ao luxo de permanecer ociosos. Porém, esta crítica não prova que a propriedade privada e as diferenças na quantidade de propriedade representam um confisco ou uma espoliação de alguma pessoa. Tampouco ela desmente o fato de que, em uma ordem social em que a propriedade privada fosse abolida, a produção de bens e serviços seria acentuadamente reduzida e a quota per capita do produto da mão-de-obra seria menor do que aquela que um trabalhador que não é proprietário de nenhum meio de produção recebe como renda em uma ordem social baseada na propriedade privada. Tal crítica kantiana entra em colapso tão logo é desmentida a afirmação de que o lazer e o ócio dos proprietários são comprados com os esforços extras daqueles que não possuem propriedades.

Tais julgamentos éticos contra a propriedade privada também demonstram claramente que toda e qualquer avaliação moral sobre determinadas atribuições econômicas baseia-se, em última instância, na percepção de quais efetivamente foram suas realizações econômicas — nisso e em nada mais. Rejeitar somente em "bases morais" uma instituição que não é considerada repreensível do ponto de vista utilitarista não é, se analisarmos mais detidamente, o objetivo de uma consideração ética. Na realidade, em todos estes casos, a única diferença de opinião é uma diferença de opinião a respeito da função econômica de tais instituições.

Este fato tem sido negligenciado pelos defensores da propriedade privada porque, ao tentarem refutar as críticas éticas à propriedade privada, eles recorrem a argumentos errados. Em vez de demonstrar a importância social da propriedade privada, eles normalmente se contentam em demonstrar que existe um direito de propriedade, ou se contentam em provar que o proprietário não é alguém inativo, uma vez que ele trabalhou para adquirir sua propriedade e trabalha para mantê-la. E vários outros argumentos desta natureza. 

A fraqueza de todas estas argumentações é óbvia. É paradoxal se referir a uma lei existente quando o problema todo está em definir qual deve ser a lei; é paradoxal se referir ao trabalho em que o proprietário incorre ou incorreu quando o problema não é se um determinado tipo de trabalho deve ou não ser remunerado, mas sim se a propriedade privada dos meios de produção sequer deve existir; e, se ela existe, se a desigualdade gerada por ela pode ser tolerada.

Portanto, do ponto de vista ético, não se deve perguntar se um determinado preço é justificável ou não. Um julgamento ético tem de escolher entre uma ordem social baseada na propriedade privada dos meios de produção e uma baseada na propriedade comunitária. Assim que se tiver chegado a uma decisão — a qual, para a ética eudemonística, deve ser baseada somente em uma opinião sobre qual seria o resultado de cada uma das duas formas imaginadas de sociedade —, não se pode rotular de imoral as consequências isoladas da ordem escolhida. Se a ética escolheu uma determinada ordem social, suas consequências serão necessariamente morais, e todas as outras alternativas serão imorais.

A igualdade de renda como um postulado ético

Sobre a afirmação de que todos os homens devem ter rendimentos iguais, pouco pode ser dito cientificamente tanto a favor quanto contra. Eis um postulado ético que só pode ser avaliado subjetivamente. Tudo o que ciência pode fazer é mostrar o quanto tal objetivo iria custar para a humanidade, e de quais outros objetivos deveríamos abrir mão em nosso esforço para tentar alcançar este. 

A maioria das pessoas que exige a maior igualdade possível de rendas não percebe que o objetivo que elas desejam só pode ser alcançado pelo sacrifício de outros objetivos. Elas imaginam que a soma de todas as rendas permanecerá inalterada e que tudo o que elas precisam fazer é apenas distribuir a renda de maneira mais uniforme do que a distribuição feita pela ordem social baseada na propriedade privada. Os ricos abdicarão de toda a quantia auferida que estiver acima da renda média da sociedade, e os pobres receberão tanto quanto necessário para compensar a diferença e elevar sua renda até a média. Mas a renda média, imaginam eles, permanecerá inalterada. É preciso entender claramente que tal ideia baseia-se em um grave erro. Como demonstrado em capítulos anteriores, não importa qual seja a maneira que se conjeture a equalização da renda — tal medida levará, sempre e necessariamente, a uma redução extremamente considerável da renda nacional total e, consequentemente, da renda média. Quando se compreende isto, a questão assume uma complexidade bem distinta: agora temos de decidir se somos a favor de uma distribuição equânime de renda a uma renda média mais baixa, ou se somos a favor da desigualdade de renda a uma renda média mais alta.

A decisão irá depender essencialmente, é claro, de quão alta será a redução estimada na renda média causada pela alteração na distribuição social da renda. Se concluirmos que a renda média será mais baixa do que aquela que é hoje recebida pelos mais pobres, nossa atitude provavelmente será bem distinta da atitude da maioria dos socialistas sentimentais. Se aceitarmos o que já foi demonstrado sobre o quão baixa tende a ser a produtividade sob o socialismo, e especialmente a alegação de que o cálculo econômico sob o socialismo é impossível, então este argumento do socialismo ético também desmorona.

É incorreto dizer que alguns são pobres simplesmente porque outros são ricos. Se uma sociedade capitalista fosse substituída por uma sociedade baseada na igualdade de renda, todos os cidadãos se tornariam mais pobres. Por mais paradoxal que isso possa soar, os pobres só recebem o que recebem porque os ricos existem. Não fossem os ricos, os pobres estariam em situação muito pior.

O homem moderno sempre teve perante si a possibilidade de enriquecer por meio do trabalho e do empreendedorismo. Nas sociedades econômicas mais rígidas do passado, isto era mais difícil. As pessoas eram ricas ou pobres desde o nascimento, e assim permaneciam por toda a sua vida, a menos que tivessem a chance de mudar de posição em decorrência de algum fato inesperado, o qual não poderia ser causado ou evitado pelo seu próprio trabalho ou iniciativa. Consequentemente, tínhamos os ricos caminhando nas alturas e os pobres, nas profundezas. Mas não é assim em uma sociedade capitalista. Os ricos podem mais facilmente se tornar pobres e os pobres podem mais facilmente enriquecer. E dado que cada indivíduo não mais nasce, por assim dizer, com seu destino ou com o destino de sua família já selado, ele tenta ascender ao mais alto que for capaz. Ele jamais poderá ser suficientemente rico, pois em uma sociedade capitalista nenhuma riqueza é eterna. No passado, o senhor feudal era intocável. Quando suas terras se tornavam menos férteis, ele tinha de reduzir seu consumo; porém, desde que ele não se endividasse, ele mantinha sua propriedade. O capitalista que empresta seu capital e o empreendedor que produz têm de ser aprovados no teste do mercado. Aquele que investir insensatamente, ou produzir a custos altos, estará arruinado. Isolar-se do mercado não mais é uma possibilidade. Mesmo as fortunas fundiárias não podem escapar da influência do mercado; a agricultura, também, tem de produzir capitalisticamente. Hoje, um homem deve obter seu dinheiro em troca do trabalho. Caso contrário, ele empobrece.

Aqueles que desejam eliminar esta necessidade de trabalhar e de empreender precisam entender bem claramente que o que eles estão propondo é o solapamento dos pilares do nosso bem-estar. Que hoje a terra seja capaz de alimentar muito mais seres humanos do que jamais conseguiu em toda a sua história, e que eles hoje vivam em condições muito melhores que as de seus ancestrais, é um fato que se deve inteiramente ao instinto aquisitivo do ser humano. Se o empenho da indústria moderna fosse substituído pelo estilo de vida contemplativo do passado, incontáveis milhões de pessoas estariam condenadas à morte por inanição.

Na sociedade socialista, a arrogância e a preguiça dos funcionários do governo assumirão o lugar da ávida e perspicaz atividade das indústrias modernas. O funcionário público irá substituir o empreendedor vigoroso e dinâmico. Se a civilização vai ganhar com isso é algo que deixaremos para os autonomeados juízes do mundo e de suas instituições julgarem quando estiverem famintos. Seria o burocrata realmente o tipo humano ideal, e deveríamos nós almejar a preencher o mundo com este tipo de gente a qualquer custo? 

Muitos socialistas descrevem com grande entusiasmo as vantagens de uma sociedade formada por funcionários públicos em detrimento de uma sociedade formada por indivíduos em busca do lucro. Para eles, em uma sociedade deste último tipo (a Sociedade Aquisitiva), cada indivíduo busca apenas a sua própria vantagem, ao passo que na sociedade daqueles dedicados à sua profissão (a Sociedade Funcional), cada indivíduo realiza suas tarefas visando ao bem de todos. Esta avaliação mais elevada da burocracia é apenas mais uma nova forma de desdém pelo trabalho diligente e meticuloso do empreendedor e do assalariado.

Se rejeitarmos o argumento em prol do trabalho funcional e o argumento em prol da igualdade de riqueza e renda, o qual se baseia na afirmação de que alguns desfrutam sua fortuna e lazer à custa da crescente exploração do trabalho e da pobreza alheios, então os únicos fundamentos que restam para estes postulados éticos é o ressentimento e a inveja. Ninguém deve poder ficar ocioso se eu tiver de trabalhar; ninguém dever ser rico enquanto eu for pobre. E assim se constata, reiteradas vezes, que o ressentimento e a inveja estão por trás de todas as ideias socialistas.


 Engels, Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen deutschen Philosophie, 5th ed. (Stuttgart, 1910), p. 58.
 Cohen, Ethik des reinen Willens, Berlin, 1904, pp. 303 ff.
 Ibid., p. 304.
 Art. 427 do Tratado de Versalhes e Art. 372 do Tratado de Saint Germain.
 Todt, Rudolf (Der radikale deutsche Sozialismus und die christliche Gesellschaft, 2nd ed. Wittenberg, 2878), pp. 306—19, é um bom exemplo de como, por meio desta e de outras passagens similares, as pessoas do movimento anti-liberal recorrem ao Novo Testamento para tentar justificar suas palavras-chaves modernas.
 Kant, "Fragmente aus dem Nachlass," Collected works, ed. Hartenstein, Vol. VIII (Leipzig, 1868), p. 622.
Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".

quarta-feira, 10 de abril de 2013

PODRES PODERES

Quando Hugo Chávez morreu, minha timeline foi tomada, como de costume, por manifestações contraditórias: uns em luto, outros em festa. Devo admitir que minha reação estava mais para o time da celebração. Totalmente alheio que sou à vida pessoal do homem — como cristão, contudo, espero que encontre a paz —, para mim já passou da hora da América católica se libertar de seus ridículos tiranos. Um líder autoritário a menos é sempre uma boa notícia. Claro que em seu lugar virão outros. As ideias que garantiram seu poder estão firmes e fortes.

Sendo sinceros, no entanto, temos que reconhecer que, embora Hugo Chávez tenha sido um líder autoritário, não foi um monstro tirânico. Perpetuou-se no poder indefinidamente, travou uma campanha de coação pesada contra todos os seus opositores, especialmente na mídia (campanha que culminou com as declarações de Nicolás Maduro, às vésperas da morte do presidente, acusando a mídia de espalhar mentiras sobre sua saúde). Fechou redes privadas de televisão, impôs quotas enormes de produção local a todas as estações, bem como financiou essa produção local — entre elas o hilário talk show comandado pelo próprio Chávez. Seu governo desceu ainda a pormenores ridículos como a restrição de horário aos Simpsons e a proibição total de Family Guy.

Ao mesmo tempo em que mobilizava força policial para fiscalizar lan houses e se certificar de que ninguém estava jogando jogos violentos, a violência real no país, medida em número de homicídios, mais do que triplicou desde que ele assumiu o poder. Não se trata de mortes comandadas pelo poder central, mas de um clima de absoluta anomia, ou seja, falta de lei, que permite que bandidos e mesmo a polícia ajam como bem entenderem, como é próprio de governos autoritários em que o poder do estado é magnificado.

Como eu ia dizendo, Chávez foi um presidente (e por que negar-lhe o título? Por acaso a maioria não o elegeu?) autoritário, mas não foi um monstro. Não foi, por exemplo, um ditador brutal como Pinochet, do Chile, cujo governo matou cerca de 3.000 dissidentes políticos e torturou dezenas de milhares de pessoas. Até agora, apesar da violência endêmica da polícia venezuelana (sem conteúdo ideológico pró ou anti-governo), não se tem notícias desse tipo de repressão direta por parte das autoridades. A coação aos grupos de mídia e aos partidos de oposição é real, mas não chegou ao nível da proibição direta da opinião contrária e da execução ou prisão sumárias de quem discorda.

A crítica a Chávez: bons e maus motivos

Chávez foi membro de uma nova esquerda que apresenta problemas à crítica mainstream. A maior parte das críticas se refere à "falta de democracia", à falta de liberdade de imprensa, à violação de direitos humanos. São todas preocupações reais, mas estão longe de ser o pior lado do regime Chávez. Essas críticas erram, em minha opinião, exatamente no ponto em que o livro O Caminho da Servidão, de Hayek, errou. Ele criticava os governos da social-democracia intervencionista (e a esquerda latinoamericana é uma versão um pouco mais contundente da variante europeia que Hayek tinha em mente) porque, supostamente, eles levariam à supressão das liberdades civis e da democracia e conduziriam à tirania. Passaram as décadas e sua previsão pessimista não se concretizou.

Na prática, é possível um regime francamente de esquerda que não viole os direitos civis, a democracia, a liberdade de imprensa. Chávez tem notas ruins em tudo isso; exceto, em certo sentido, na democracia: suas decisões sempre estavam amparadas pela vontade expressa da maioria — nesse sentido, ele foi até democrático em demasia. Enfim, apesar das notas ruins, não foi dos piores violadores que o mundo já conheceu. Regimes mais capitalistas em vários aspectos foram piores nesses quesitos; é o caso novamente do Chile de Pinochet (voltarei à comparação à frente). Para um libertário, essa constatação não traz problema algum: as medidas da esquerda social-democrata e socialista não são ruins devido a supostas violações de direitos civis que elas podem trazer no longo prazo. São ruins devido à violação da liberdade individual e da consequente distorção econômica que eles provocam no presente. E falar de economia não é falar de números abstratos e índices arcanos do mercado financeiro, mas da qualidade de vida de toda a população.

Economicamente, Chávez foi um desastre. Um desastre que só não levou ao colapso completo da nação porque foi salvo por uma dádiva dos céus: o petróleo e o aumento de seu preço desde que o regime começou. Ainda assim, a inépcia do estado venezuelano neutralizou boa parte dessa benesse da natureza. O mínimo que uma empresa estatal pode fazer (e que se espera que faça) é alocar cargos de acordo com a qualidade técnica dos funcionários, e não com a orientação ideológica deles, que foi o que Chávez fez. A inépcia foi tamanha que a produção de petróleo medida em barris caiu desde que Chávez assumiu, apesar da renda com a venda deles ter aumentado.

Os defensores de Chávez exaltam suas conquistas sociais: a diminuição da pobreza e o aumento do alfabetismo (de 90% para 95% da população). É verdade: se se tira o dinheiro de alguns mais produtivos — e mais, se se usa os retornos generosos do petróleo — e se dá aos muito pobres, isso significará um aumento em sua qualidade de vida. Todo mundo há de convir que pessoas passando um pouco menos de necessidade é, em si mesmo, algo bom. Mas e se, para realizar essa leve melhora na qualidade de vida da população mais pobre, o governo minar significativamente as bases que permitiriam a melhora substancial na qualidade de vida de todos no longo prazo? Foi isso que Chávez fez.

O uso político dos recursos permite que o estado atinja — com muita ineficiência e desperdício, claro — algumas metas bem definidas: diminuir a miséria atual; melhorar alguns índices da educação (ainda que os alunos tenham que ler "bibliografia revolucionária"). A ineficiência do programa educacional de Chávez confirma essa hipótese. A UNESCO sugere que custos entre US$ 50 e US$ 100 por pessoa são razoáveis para um programa de alfabetização; o programa de alfabetização do governo Chávez, além de fazer uma autopromoção notoriamente falsa, custou mais de US$ 500 por pessoa. Isso é mérito? Jogando muito dinheiro, custe o que custar, alguma coisa dá pra fazer; o resto do sistema é que rui.

Chávez fez ruir a já precária economia venezuelana, cada vez mais dependente de um petróleo extraído com ineficiência crescente. Destinou os retornos dessa extração para aliviar a pobreza extrema de grande parte da população (e conquistar seu apoio nas urnas), é verdade; mas ao mesmo tempo garantiu que a pobreza continuará sendo um problema crônico da Venezuela por muitas décadas. Um país com enormes reservas de petróleo convive com apagões rotineiros; com o quarto maior rio do mundo, e enfrentando racionamento crônico de água. Impõe-se o controle de preços (com ameaça de prisão de infratores e nacionalização de seus negócios) para mascarar uma inflação que oscila entre 20% e 30% ao ano (isso porque os preços controlados entram no cálculo do índice).

Em consequência, faltam itens básicos nas lojas, como leite, açúcar, farinha, óleo, frango, carne; filas se formam nas portas dos mercados. As leis são ineficientes, e o mercado informal contrata 50% dos trabalhadores. A participação do governo na economia não para de crescer: não só com medidas assistencialistas, mas também com grandes obras rodoviárias, construções de estádios e subsídios para empresas estatais. A sociedade é cada vez mais estatizada (mais de mil empresas já passaram para as mãos do estado), e a ineficiência do estado como gestor apenas agrava as lacunas crônicas da infraestrutura. Empregos secam no setor privado, sendo absorvidos pelo estado, que está, além de tudo, cada vez mais endividado.

Enfim, Chávez reverteu os ganhos de sua incompetente indústria estatal petrolífera em benefícios sociais para os muito pobres. Minou, contudo, as bases da economia venezuelana, que é o que poderia dar aos muito pobres chances de aumentarem sua produtividade e dar fim à pobreza. Os venezuelanos pobres que louvam Chávez não sabem que, graças a ele, permanecerão pobres por muito mais tempo. Novamente, o contraste com o Chile de Pinochet é marcante. É um fato desconfortável, mas real: o regime ditatorial e homicida de Pinochet provavelmente foi, no longo prazo, mais benéfico à sua população que o regime bem menos violento e mais democrático de Chávez.

Do ponto de vista econômico, as medidas de Pinochet eram sensatas: controle da inflação, equilíbrio fiscal, abertura ao comércio exterior, simplicidade e contenção de impostos, facilidade para empreender. A herança disso se vê hoje em dia: abrir empresas no Chile demora poucos dias, e quase toda a parte burocrática pode ser feita pela internet. Mérito do governo? Calma lá! Se não fosse pelo governo, abrir uma nova empresa seria um ato instantâneo e gratuito. Podemos dizer, isso sim, que o estado chileno atrapalha menos a vida do empreendedor do que o estado venezuelano (ou do que o brasileiro...). Por esses motivos, a Venezuela continuará a integrar o rol das nações pobres por um bom tempo ainda, enquanto o Chile já desponta como a nação mais rica da América do Sul. O Peru, outro país que adotou medidas liberalizantes, e que em 2002 tinha uma taxa de pobreza superior à da Venezuela, hoje tem taxa menor, e é o país que mais cresce no continente.

Conclusão: pouco se salva na política

É muito fácil se deixar levar por partidarismos, e eleger Chávez como um enorme vilão enquanto poupamos outros chefes de estado com condutas até piores, como Pinochet, por terem tido algum mérito no que diz respeito ao ordenamento econômico (o "mérito", novamente, de terem atrapalhado menos); também é fácil cair no conto de que a oposição atual a Chávez apresenta uma solução de verdade. A posição libertária não se deixa iludir por nenhum dos lados. Ela tem que estar acima de quaisquer partidarismos, sem exaltar e nem demonizar nenhum governante, mostrando todas as falhas e eventuais méritos que uma administração tenha tido. O valor de suas propostas não se confunde com o desempenho de algum político ou partido. Chávez foi um governante muito ruim, bem pior do que a média; o que não significa que a média seja boa. Se comparado ao que fazem na Europa e nos EUA, levou mais a sério as premissas que eles próprios advogam e põem em prática de forma mais tímida. Não se presta serviço algum à causa da liberdade se, ao criticar Chávez, louvemos Lula (como fez a The Economist em um infeliz editorial), Obama ou Merkel.

Penso que o único bom político é aquele que propõe menos estado; e ele é bom apenas na medida em que o faz. Mesmo os melhores, como Reagan ou Thatcher, ainda estão muito longe de ter promovido uma sociedade libertária. Se ajudaram a regredir ou ao menos conter um pouco o avanço do estado, é um mérito que deve ser reconhecido (mas será que ajudaram mesmo?); precisamos, contudo, de muito mais. As mudanças que propomos estão tão distantes do panorama político atual — na verdade, de todo o panorama político de toda a história da humanidade —, que muito pouco dele se salva. São propostas que a política jamais conheceu, embora, ao mesmo tempo, elas se baseiem na experiência acumulada mais sólida de cada um de nós: relações voluntárias promovem o progresso de ambas as partes.

Não vejo governantes e estado como bandidos, a não ser quando realmente violam a dignidade mais básica de seus cidadãos. Acho que o estado, bem ou mal, é um meio para se tentar garantir um mínimo de justiça e legalidade. Não sei se uma sociedade plenamente livre do estado é possível, embora esteja convicto de que ela deva ser tentada. Assim, Chávez não foi um monstro, um tirano, como um Hitler ou um Stalin. Não foi nem mesmo tão violento quanto um Pinochet ou quanto nossos ditadores militares. Foi um presidente terrível, como tantos outros.

Claro que sempre dá pra piorar. Imagine um chefe de estado que unisse brutalidade maior que a de Pinochet a medidas econômicas ainda mais desastrosas que as de Chávez. Fidel ainda vive. E mesmo ele não precisa ser demonizado. Combatamos, com ideias e ideais, todos os inimigos da ordem pacífica e harmoniosa que o mercado — ou seja, o processo de relações voluntárias entre indivíduos — gera e garante; mas saibamos também que nossos grandes rivais não são essas pessoas específicas, e sim as ideias falsas e a estúpida retórica que mantêm e justificam esses podres poderes.

Joel Pinheiro da Fonseca é mestrando em filosofia, editor da revista Dicta&Contradicta