quarta-feira, 24 de abril de 2013

COMPLEXO DE VIRA-LATA

Nelson Rodrigues criou a expressão "complexo de vira-lata" após a derrota sofrida na final da Copa do Mundo de 1950, traduzindo um sentimento crônico de inferioridade nacional, inicialmente restrito ao campo do futebol e mais tarde abrangendo uma vasta gama de atividades (não mais o futebol!).

Muito embora o governo faça questão de afirmar a superação do "complexo de vira-lata", é visível o papel dessa síndrome na mais recente onda de desculpas sobre o desempenho lamentável no campo da inflação.

Tanto membros da equipe econômica como colunistas automaticamente alinhados com o governo têm destacado que as taxas de inflação observadas atualmente não diferem muito da média registrada desde o início do regime de metas para a inflação. Nesse período, a inflação média atingiu 6,3% ao ano, apenas ligeiramente abaixo dos níveis recentes.

Assim, segue o argumento, não haveria nada de errado com a inflação atual. De forma mais sutil (mas que parece impregnar o pensamento inclusive do Banco Central), esse tipo de colocação tenta ressuscitar a tese de que a inflação brasileira seria naturalmente elevada em razão de "problemas estruturais" que tornariam mais difícil sua redução sem enorme custo do ponto de vista de atividade.

Daí a noção de que a inflação só cairia com o uso de outros instrumentos (reformas, mudança no perfil da dívida pública etc.), terminando por concluir pela postergação constante do momento de atacar o problema de frente.

Nada mais falso. A começar pelo argumento da média que, parafraseando expressão algo sexista (desculpem!) atribuída, como tantas outras, a Roberto Campos, a média é como o biquíni: revela o interessante, mas oculta o essencial.

Em primeiro lugar, a média simples deixa de lado as mudanças da meta de inflação no período: começou com 8% em 1999 e é hoje de 4,5%, passando por até 8,5% (meta ajustada) em 2003. O correto, portanto, não é analisar o nível da inflação, mas seu desvio relativamente à meta: 1,5% ao ano no período.

Mais importante, porém, é a distribuição desse desvio, quase todo concentrado em dois anos: 2001 (ano do "apagão" e da crise argentina) e 2002 (a transição política). De fato, logo no primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva, a média do desvio da inflação foi 0,5% ao ano, aumentando levemente para 0,6% ao ano no segundo governo (ante crescimento médio do PIB, diga-se, de 3,5% e 4,5% ao ano, respectivamente).

Não foi o ideal, mas bem melhor do que temos observado até agora (desvio médio de 1,7% nos dois primeiros anos do atual governo e expectativas de 1,2% ao ano em 2013 e 2014).

Já no que se refere à comparação do desempenho com os demais países da América Latina que adotam metas para a inflação, o Brasil não fazia feio, registrando desvio pouco superior à média (e mediana) entre 2004 e 2010. Hoje, pelo contrário, o país lidera sozinho o campeonato inflacionário entre os países latino-americanos com regime monetário semelhante.

Esses números sugerem não haver nada de "estrutural" na incapacidade de entregar a inflação mais próxima da meta, além do recém-redescoberto "complexo de vira-lata".

Não apenas tínhamos desempenho alinhado ao de países sujeitos a choques similares mas, principalmente, nossa história mostra que um Banco Central mais decidido foi capaz de entregar a inflação bem mais próxima à meta do que parece ser possível hoje, sem prejuízo ao crescimento de médio e longo prazo.

A inflação alta não se deve a "choques externos" nem à incapacidade congênita do país; resulta, sim, da adoção de políticas incompatíveis com a convergência à meta, característica, aliás, que não vai se alterar com o arremedo de aperto monetário prometido pelo Copom.

A diferença essencial entre o Brasil de hoje e o de pouco tempo atrás se resume ao cabresto imposto ao BC e docilmente aceito pela instituição, também vítima do "complexo de vira-lata".
Por:Alexandre Schwartzman Folha de SP

UM "AUSTRÍACO HÍBRIDO" E POUCO CONHECIDO: WICKSTEED


Este artigo não pretende ser original. Minha principal motivação para escrevê-lo é tornar mais conhecido o nome de um economista que muito provavelmente só nos remete vagamente a uma ou outra nota de rodapé esquecida na implacabilidade do tempo e na imensidade de livros já lidos e que repousam em alguma estante. Não realizei pesquisa profunda para esse intento, apenas tomei como principal referência um artigo de Israel Kirzner que vou mencionar mais adiante, bem como informações que colhi durante poucos dias na Internet. Alguns confundem seu sobrenome com o de Knut Wicksell (1851-1926), considerado o pai da Escola Sueca de Economia e famoso por sua obra no campo da teoria monetária.

Mas de quem vamos tratar aqui é de Philip Henry Wicksteed (1844-1927), filho de um clérigo da igreja unitária, que foi ministro dessa mesma denominação (que, como sabemos, acredita em um Deus uno, rejeitando a Santíssima Trindade), classicista, medievalista (ficou famoso por seus trabalhos sobre a obra do poeta florentino Dante Alighieri), crítico literário e, a partir da meia idade, economista. Foi influenciado por Henry George e William Stanley Jevons e exerceu alguma influência sobre o pensamento de Joseph Schumpeter, Ludwig von Mises e, mais tarde, Henry Hazlitt e Murray Rothbard.

Seu interesse em Dante serviu para consagrá-lo como um dos maiores medievalistas de sua época e suas motivações teológicas, bem como sua preocupação com a ética da sociedade comercial moderna despertaram seu interesse pela economia. Talvez essas preocupações o tenham levado a ser membro da Sociedade Fabiana, uma organização britânica cujo objetivo era propagar os princípios socialistas de maneira gradual, mediante reformas e não por revoluções, algo como o que tentou fazer Antonio Gramsci posteriormente. Essa sociedade deu origem a uma reformulação política da qual acabou surgindo, em 1900, o Partido Trabalhista britânico.

Mas como? Um socialista da Escola Austríaca? Bem, não nos assustemos com isso, porque Joseph Schumpeter chegou a escrever que Wicksteed "estava um pouco fora da profissão de economista"...

No entanto, sua teoria econômica é anti-marxista por excelência. Como escreveu Alceu Garcia em 2002,

"Quando a doutrina econômica marxista emergiu de sua obscuridade inicial em fins do século XIX e reclamou um lugar de honra no panorama teórico da disciplina, já encontrou um novo e firme edifício científico erigido a partir das descobertas dos pioneiros do marginalismo, na década de 1870. Descartada a teoria clássica do valor-trabalho, o marxismo, que dela deduzia todo o seu sistema, também soçobrou. Autores treinados na nova técnica, como Eugene von Böhm-Bawerk, Philip Wicksteed e Vilfredo Pareto, analisaram e refutaram as teses marxistas com a maior facilidade. O marxismo foi portanto barrado na porta de entrada do templo da respeitabilidade científica no campo da economia, e ficou confinado a guetos ortodoxos estagnados que não eram levados a sério fora de seu círculo".

Portanto, ele poderia ser enquadrado atualmente como um social-democrata moderado e não como um socialista e muito menos como um comunista. Wicksteed manteve uma postura subjetivista no pensamento econômico, colocando a medida de valor na mente do consumidor e não apenas no próprio bem. Mesmo não tendo sido reconhecido em vida como um grande economista, influenciou, embora indiretamente e nem sempre claramente, a segunda geração de austríacos notáveis, ??entre eles Ludwig von Mises, em cuja obra alguns insights de Wicksteed são perceptíveis às mentes mais atentas.

Além disso, devemos notar que sua preocupação sempre manteve natureza teológica e que foram aquelas questões de forte apelo no que hoje os politicamente corretos chamam de "social" que contribuíram para despertar seu interesse pela ciência econômica.

Lecionou economia durante muitos anos em Londres e, em 1894, publicou seu célebre An Essay on the Co-ordination of the Laws of Distribution, em que tentou provar matematicamente que um sistema distributivo que recompensasse os proprietários das fábricas de acordo com a produtividade marginal esgotaria o produto total produzido. Mas foi em 1910, com The Common Sense of Political Economy, que surgiu mais claramente sua maneira peculiar de enxergar a teoria econômica.

Como observou o Prof. Israel Kirzner no capítulo 7 do excelente The Great Austrian Economists (Randall G. Holcombe, Mises Institute, 1999. iBooks), sob o título Philip Wicksteed: the British Austrian, Wicksteed ocupa na História do Pensamento Econômico uma posição situada entre a de Jevons e a dos austríacos.

A opinião de Kirzner é que, do ponto de vista doutrinário, Wicksteed tem alguma identificação com a tradição iniciada por Carl Menger, embora não possamos classificá-lo como um austríaco puro, no senso que essa expressão significa. Embora tenha sido contemporâneo de Menger, Wieser e Böhm-Bawerk, tudo leva a crer que ele não teve contacto direto e nem por cartas com nenhum deles e nem tampouco esteve em Viena. Mas, em The Common Sense, obra com quase novecentas páginas distribuídas em dois volumes, ele citou Menger duas vezes, Wieser três, Böhm-Bawerk duas e Mises uma vez, ainda que não tenha revelado qualquer influência forte dessa primeira geração de economistas austríacos. Quem teve maior influência sobre ele foi William Stanley Jevons, citado diversas vezes no livro mencionado e que de certa forma também possuía algo de "austríaco". Sua obra influenciou em alguns pontos a segunda geração dos seguidores da tradição de Menger, mas, embora Mises, no final de sua vida, tenha se referido ao The Common Sense como um "grande tratado" de Wicksteed, ninguém pode afirmar que tenha sido fortemente influenciado por ele. Em Ação Humana, Mises o cita apenas uma vez, em uma nota de rodapé.

Em que sentido, então, o Prof. Kirzner, um austríaco de quatro costados, refere-se a Wicksteed como um "austríaco britânico"? A resposta é que existe uma afinidade não desprezível entre ele e os austríacos em relação ao âmbito, caráter e conteúdo da análise econômica. Sob o ponto de vista ideológico, no entanto, Wicksteed não foi um austríaco, pois era um tanto simpático ao socialismo, como observamos anteriormente, o que se explica pelo fato de que em sua época, as ideias socialistas tinham apelo mais forte em Londres do que em Viena. É importante, para que o entendamos melhor, atentarmos para o fato de que sua abordagem não seguiu a tendência marshalliana dominante naquele tempo, nem tampouco a de Leon Walras que, como sabemos, juntamente com Menger e Jevons, foram os "descobridores" da doutrina da utilidade marginal, em 1871, embora trabalhando independentemente. Foi por desconfiar ou rejeitar o pensamento clássico sobre o funcionamento dos mercados e por rejeitar as ideias de Marx que Wicksteed aproximou-se dos austríacos, especialmente de Mises.

Naqueles anos, a maior influência sobre a mainstream economics era a de Alfred Marshall, que a herdara dos clássicos. Marshall não procurou destruir essa tradição, mas limitou-se a preencher algumas lacunas que julgava haver encontrado nas obras dos economistas clássicos. Já Wicksteed, assim como Menger e Jevons, acreditavam que era preciso fazer uma reconstrução completa na teoria econômica. Marshall foi um revisionista, enquanto Wicksteed foi um revolucionário em termos de teoria econômica.

Kirzner, no artigo citado, escreve que podemos identificar fortes componentes austríacos nesse intento revolucionário de Wicksteed, que seriam decorrentes de sua postura subjetivista e destaca três deles, a saber, sua forte ênfase no componente subjetivista dos custos; sua rejeição à visão clássica da teoria econômica com seu modelo do homo oeconomicus; e sua preocupação com o processo de mercado, em contraposição à visão clássica de equilíbrio de mercado. A esses três componentes analisados pelo Prof. Kirzner, acrescento um quarto, que pode revelar alguma influência na obra de Hayek, especialmente a partir dos anos quarenta, o da imperfeição do conhecimento.

Nas palavras de Kirzner,

Podemos aventar a hipótese de que, em relação a estes três aspectos do 'austrianismo' de Wicksteed, o primeiro parece ter sido o que mais impressionou o Robbins, o segundo talvez seja o que mais tenha impressionado Mises, e o terceiro talvez seja o de maior interesse para os austríacos modernos, os discípulos de Mises e Hayek.

Vamos resumir em seguida cada um desses três componentes austríacos seguindo o excelente artigo de Kirzner.

1o. O subjetivismo

Wicksteed se rebelou contra a visão clássica da atividade econômica, especialmente a de produção, que a estuda a partir de relações estritamente técnicas, totalmente distintas das considerações de utilidade marginal que regem as decisões de consumo. Para ele, em nenhum caso o custo de produção pode ter influência direta sobre o preço de uma mercadoria, pois, em todos os casos em que os custos de produção ainda não foram incorridos, o fabricante faz uma estimativa das alternativas ainda em aberto para ele antes de determinar se, e em que quantidades, a mercadoria deve ser produzida, e o fluxo de produção assim determinado estabelece o valor marginal e o preço.

A única hipótese em que o custo de produção pode afetar o valor de um bem é no sentido de que ele próprio é o valor de outro bem. Assim, os custos de produção possuem uma natureza claramente subjetiva. Para Wicksteed, então, o custo desempenha um papel na explicação do preço de mercado apenas quando equivale ao valor previsto de uma alternativa em perspectiva, que é, no momento da decisão de produção, rejeitada em favor do que se decidiu produzir.

Como observou o Prof. James Buchanan, "o trabalho de Wicksteed exerceu uma influência muito importante na teoria dos custos que surgiu no final dos anos 1920 e início dos anos 1930 na London School of Economics".

2o. O objeto de estudo da teoria econômica

Em Common Sense, Wicksteed manifesta grande interesse sobre o que realmente significa o adjetivo economics(em português, o melhor significado para esta palavra é teoria econômica). E ele manifesta essa sua busca tentando desenvolver as implicações revolucionárias da obra de Jevons, tentando demonstrar a incoerência da visão clássica da teoria econômica, sustentando que é arbitrário o procedimento analítico de enxergar a busca de riqueza material como um campo exclusivamente distinto da pesquisa econômica. E vai mais além, argumentando que, além de arbitrário, esse expediente é inútil, do ponto de vista analítico, para sequer dizer o mínimo, para enxergar as conclusões da ciência econômica como dependentes do domínio dos motivos egoístas — empregados não com o sentido de individualistas -, que são característicos do homo oeconomicus.

Nesse aspecto, as semelhanças com os insights de Mises são bastante visíveis. Ambos insistiram no aspecto da aplicação universal das conclusões deduzidas de nossa compreensão dos propósitos e racionalidade dos agentes econômicos ao tomarem suas decisões. Então, um preço, no sentido mais restrito do "dinheiro usado para adquirir um bem material, um serviço ou um privilégio", é para ele apenas um caso especial de um conceito mais amplo, aquele das condições sob as quais diversas alternativas são oferecidas aos agentes.

Para Mises, a exclusão de motivos altruístas da teoria econômica é arbitrária, porque é baseada em uma compreensão equivocada dos fins da ação humana, já que o que movimenta o comportamento dos agentes nos mercados são simplesmente suas intenções. Wiksteed caminhou dentro dessa perspectiva, ao insistir que o "propósito de excluir de consideração os motivos benevolentes ou altruísticos no estudo da teoria econômica é algo completamente irrelevante e inadequado".

Então, vemos com clareza que aquilo que Wicksteed e os austríacos estavam fazendo era consistentemente e subjetivamente redirecionar o foco da análise econômica dos objetos puramente materiais do método clássico para as implicações das escolhas individuais. Aqui, encontramos um componente do individualismo metodológico comum a Wicksteed e aos austríacos.

3o. O mercado como um processo

Na concepção de Wicksteed, um mercado "é o mecanismo pelo qual os que possuem escalas de preferências elevadas para um determinado bem são colocados em comunicação com os que, relativamente ao mesmo bem, possuem escalas de preferências baixas, de modo que as trocas podem oferecer satisfação mútua até que o equilíbrio seja estabelecido. Mas esse processo sempre e necessariamente exige tempo". [negritos nossos]

Sem qualquer dúvida podemos achar aspectos dessa definição consistentes com os postulados da Escola Austríaca sobre o processo de mercado. Alguns poderão argumentar que a afirmativa de Wicksteed de que os mercados tendem para o equilíbrio seria "não austríaca", mas por outro lado — e aí é que reside sua importância — ele também reconhece explicitamente que o mercado é um processo em que há uma tendência demorada, ou seja, que demanda tempo, no sentido do equilíbrio, durante a qual os agentes estão em comunicação uns com os outros e não como uma instituição social em que se assume no instante seminal a hipótese de conhecimento perfeito mútuo, que é instantaneamente transplantado em uma matriz de preços e quantidades de equilíbrio.

Aqui, é bastante clara a semelhança de Wicksteed com Mises, Rothbard e o próprio Kirzner, bem como com Hayek, este último no que se refere à imperfeição e dispersão do conhecimento. Lionel Robbins, na longa introdução que escreveu para The Common Sense, já chamava a atenção para esse aspecto austríaco da obra de Wicksteed, muitos anos antes de Hazlitt, Rothbard e Kirzner sequer pensarem em estudar economia, como também bem antes de Hayek desenvolver sua teoria do conhecimento.

A abordagem de Wicksteed é diferente das de Jevons e Marshall e é bem diferente da de Pareto que, como sabemos, na linha de Leon Walras, se transformou no principal teórico do "equilíbrio geral". Sua análise do equilíbrio não o vê como um fim por si próprio, mas como uma ferramenta analítica para tentar explicar as tendências de uma determinada situação do mundo real. Sua preocupação com a evolução ao longo do tempo dos fenômenos econômicos era muito maior do que com os resultados finais momentâneos. Então, vemos que Wicksteed, dentro da tradição austríaca, vê as decisões dos agentes nos mercados não como implicações de condições de equilíbrio que de alguma forma foram aceitas como existentes, mas como as causas iniciais, bem como as fases características do processo de mercado em seu caminhar no sentido do equilíbrio.

4o. A questão do conhecimento

Ao rejeitar o equilíbrio dos mercados como paradigma da ciência econômica e ao analisar os mercados como processos dinâmicos, Wicksteed, implicitamente, estava querendo chamar a atenção para o fato de que o conhecimento dos agentes econômicos das circunstâncias de tempo e de espaço não é perfeito e ao definir os mercados como mecanismos em que os indivíduos com escalas de preferências elevadas para um determinado bem se comunicam com os que, relativamente ao mesmo bem, têm escalas de preferências baixas, de modo que as trocas podem oferecer satisfação mútua até que o equilíbrio seja estabelecido, ele estava antecipando os rudimentos da teoria do conhecimento que Hayek desenvolveria a partir dos anos quarenta.

Nesse sentido, Wicksteed também foi um austríaco. Não tenho informações sobre se Hayek conhecia com profundidade a obra de Wicksteed, mas a probabilidade de que a conhecesse é quase de 100%, o que me permite incluir este quarto elemento que não foi enfatizado por Kirzner em seu brilhante artigo. Portanto, creio que podemos admitir que Hayek, conhecedor profundo da obra de Mises, que, por sua vez, conhecia bem a de Wicksteed, também foi de certa forma influenciado por este último.

Kirzner conclui seu artigo escrevendo que

"Em conclusão, talvez o sentido em que Wicksteed pode ser visto como um austríaco possa ser encontrado nas observações de Mises acerca das características distintivas do economista".

E encerra citando Mises,

"O economista trata de assuntos presentes e operantes em cada homem. O que distingue [o economista] de outras pessoas não é nenhuma oportunidade esotérica para lidar com algum assunto não acessível aos outros, mas a maneira como ele olha para as coisas e descobre nelas os aspectos que as outras pessoas não conseguem perceber. Foi isso que Philip Wicksteed tinha em mente quando escolheu para seu grande tratado [The Common Sense] um lema do Fausto, de Goethe: A vida humana todos a vivem, mas apenas poucos a conhecem". [Em alemão: Eins jeder lebt's, nicht vielen ist's bekannt e em inglês; We are all doing it; very few of us understand what we are doing"]

Esta frase de Goethe também pode ser aplicada, claramente, à questão hayekiana da limitação do conhecimento: se quase todos vivem sua própria vida, porém sem conhecê-la, é porque o conhecimento de quase todos é limitado e contém imperfeições.

Philip Henry Wicksteed foi sem dúvida um homem multitalentoso, uma personalidade singular e um modelo de erudição: classicista, medievalista crítico literário e economista, sendo que quando se interessou pela ciência econômica já tinha mais de quarenta anos. Juntamente com John Aitken traduziu do italiano para o inglês aDivina Comédia, de Dante Alighieri. Em 1903 escreveu um livro, The Convivio of Dante Alighieri e também publicou Dante and Aquinas, The Early Lives of Dante e From Vita Nova to Paradiso, que o consagraram como profundo conhecedor do maior dos poetas italianos.

Construiu reputação como um dos maiores medievalistas de seu tempo. Escreveu estudos teológicos e sobre ética desde 1867, ano em que se formou, com medalha de ouro, em Classicismo no Manchester New College e continuou a escrever sobre Teologia mesmo depois que deixou o púlpito, em 1897. Além disso, suas críticas literárias eram reconhecidas pelo público como excelentes. Foi, sem dúvida, um humanista e universalista de mão cheia, o que também o aproxima dos economistas austríacos que como todos sabem não se restringem nem se limitam a estudar apenas a teoria econômica. Isso é particularmente importante na atualidade, em que a maioria dos economistas limita-se à técnica de maximizar funções, às regressões econométricas, aos modelos dinâmicos de equilíbrio geral e aos gráficos.

Em The Common Sense, um volume bastante extenso, encontramos pouquíssimos gráficos e uma ou outra equação algébrica que qualquer estudante mediano do ensino básico entende com facilidade. No entanto, a teoria econômica exposta na obra é densa e profunda, tal como nos livros dos economistas austríacos, a começar por Human Action.

Outro fato que chama a atenção e que impressiona, sobretudo no mundo de hoje, em que a especialização em campos restritos é a tônica, é que ele foi competente em todas essas múltiplas facetas de sua vida profissional. O segredo para tal sucesso só pode ser explicado por três determinantes: inteligência bem dotada, busca de conhecimentos e dedicação exemplar ao trabalho.

Finalizo explicando por que classifiquei Wicksteed, no título deste artigo, como um austríaco híbrido. Evidentemente, sua simpatia pelo socialismo e seu envolvimento com os fabianos o afastam da tradição de Menger. Mas não se pode negar que ele foi, sem dúvida, quase que um autêntico austríaco na ênfase ao subjetivismo, na discussão sobre o objeto de estudo da ciência econômica, na abordagem dinâmica dos mercados como processos que convergem para o equilíbrio (mas que, contudo, não chegam a atingi-lo) e na aceitação de que o conhecimento dos agentes econômicos está longe de ser perfeito.

Se pudéssemos retirar de sua biografia seu lado fabiano, seria — é claro! — muito bom, mas de qualquer forma acredito que ele tenha sido uma personalidade a ser exaltada e respeitada por todos os que se interessam pela tradição de Carl Menger.

Por: Ubiratan Jorge Iorio  economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

terça-feira, 23 de abril de 2013

UM MUNDO ESCURO

Está cada vez mais difícil, em nosso mundo de hoje. encontrar inocentes. No exalo momento em que estiver lendo estas linhas, o leitor poderá muito bem estar sendo culpado pela prática de algum delito sério, mesmo que não saiba disso - e provavelmente não sabe. Como poderia saber? As noções de certo ou errado, de bem ou mal ou de justo e injusto, cada vez mais, são definidas por dezenas de "causas", em relação às quais é indispensável estar do lado correto. E que lado é esse? É o lado dos donos ou dos militantes dessas causas - tarefa complicada, considerando-se que elas se multiplicam sem parar, não têm conexão nenhuma entre si e sua própria existência, muitas vezes. é completamente desconhecida do público em geral. Com o desmanche cada vez mais rápido de qualquer valor ou princípio na atividade política, e o falecimento da ideia geral de "direita" e "esquerda", o campo do "bem" vai sendo ocupado por movimentos que defendem ou condenam todo tipo de coisa. Importa cada vez menos, também, o divisor de águas formado pelo conjunto de valores morais como integridade, decência, gratidão, generosidade, honradez, cortesia e tantos outros que marcavam a correção do indivíduo, do ponto de vista pessoal, na vida de todos os dias. O cidadão, hoje, pode ser tudo isso ao mesmo tempo, mas ainda assim não será inocente basta não concordar com as bandeiras em voga, ou ser indiferente a elas, ou não saber que existem.

Todas essas cruzadas se declaram proprietárias exclusivas do bem e têm, cada vez mais, a certeza de que a lógica, os argumentos baseados em fatos e o livre debate devem ceder lugar à fé - a fé dos dirigentes e militantes das "causas", que se julgam moralmente superiores e portanto, autorizados a exigir que todos abram mão do seu direito a raciocinar e simplesmente concordem com eles. O lado escuro disso tudo é que a defesa de tais bandeiras está se tornando cada vez mais fanática - e o resultado é a criação, pouco a pouco, de um novo totalitarismo. Nega-se as pessoas o direito de discordar de qualquer delas e, principalmente, de criticar seja lá o que proponham; não é permitida nem a simples neutralidade, pois quem é neutro é considerado cúmplice do mal.

Os efeitos práticos são muito parecidos com os que se produzem nas ditaduras - e sua primeira vítima é a liberdade de pensar e de exprimir o que se pensa.

Muito de todo esse ruído é simplesmente cômico; além disso, ao contrário do que acontece nas tiranias, os líderes das novas causas não têm a seu dispor a força armada para obrigar o público a obedecer a suas decisões. Mas. em ambos os casos, sua atividade está gerando cada vez mais consequências na vida real. Ainda há pouco, um anúncio da agência AlmapBBDO mostrava um gato preto subindo no capô de um Volkswagen, numa brincadeira 100% inocente a respeito de sorte e azar. Ideia proibida, hoje em dia. Grupos que defendem a causa dos gatos, de qualquer cor, decidiram que o comercial estimulava a "perseguição" e o "desrespeito" ao gato preto, e exigiram da empresa que o comercial fosse retirado do ar. Ganharam: a Volkswagen, uma das maiores companhias do mundo, com mais de noventa fábricas. 550.000 empregados e faturamento superior a 200 bilhões de dólares em 2012, ficou com medo do pró-gato e topou, sim, cancelar o anúncio. Há uma coisa muito parecida com isso - ela se chama censura. A AlmapBBDO, uma das agências de publicidade mais respeitadas do Brasil, queria levar o comercial ao público, como a imprensa queria publicar notícias durante a ditadura militar. Mas a cruzada dos gatos, como acontecia na época em que o governo cortava as notícias que lhe desagradavam, não quis. Nas duas situações uma pela força bruta, a outra pela pressão bruta - o resultado prático é o mesmo: aquilo que deveria ter sido publicado não o foi. Qual é a diferença?

Episódios como esse vão se tornando comuns e, para piorar as coisas, deixam atrás de si uma nuvem radioativa que contamina o ambiente do pensamento e faz com que as pessoas fujam das áreas de perigo. É muito pouco provável que a AlmapBBDO volte a criar comerciais com algum gato no enredo, ou qualquer outro animal. Para quê? Outras agências vão tomar, ou já tomaram, a decisão de cortar o reino animal do seu universo criativo e também, por via das dúvidas, o reino vegetal e o reino mineral, pois é possível que provoquem objeções dos movimentos que atribuem direitos civis às árvores, ou às pedras, ou sabe-se lá ao que mais. Os jornalistas e os órgãos de imprensa, com frequência, vão pegando uma alergia cada vez maior a tratar de certos assuntos. "Isso vai dar confusão", ouve-se todos os dias nas redações. "Melhor a gente ficar fora dessa." O mesmo se aplica a políticos, por seu natural pavor de perder votos, a artistas que não querem ficar mal "na classe" e a mais um caminhão de gente capaz de ter posições claras, mas incapaz de arrumar coragem para falar delas em público.

É apenas natural que a situação tenha ficado assim. Não vale a pena, para a maioria, dizer o que pensa e ser imediatamente amaldiçoado como racista, cruel com os animais, homofóbico, nazista, destruidor da natureza, inimigo da fauna e da flora, poluidor de rios, lagos e mares, vendido aos interesses das "grandes empresas", carrasco das "minorias", assassino de bagres e por aí afora. Ser um mero defensor da luz elétrica, e achar natural, para isso, que sejam construídas usinas geradoras de energia passou a ser, no código da "causa ambiental", um delito grave. Pior ainda é ser chamado de "agricultor" ou "pecuarista" - as duas palavras passaram a ser utilizadas pelos militantes como um puro e simples insulto. Eis aí. por trás de todo o seu verniz de atitude moderna, democrática e defensora da virtude, a essência do totalitarismo que vai sendo imposto pelas "causas" do bem. O alicerce central de sua postura é raso e estreito: "Ou você pensa como eu. ou você é um idiota; ou você pensa como eu. ou você está errado". Ou você é coisa ainda muito pior, dependendo do grau de ira que sua opinião despertou neste ou naquele movimento.

Se discordar, por exemplo, de uma mudança na lei trabalhista, vão acusá-lo de ser a favor da volta da escravatura. Se criticar a doação de latifúndios a tribos de índios, pode ser chamado de genocida. Se achar errado o Bolsa Família, vai ser condenado como defensor da miséria. Se sustentar que o sistema de cotas para negros nas universidades tem problemas sérios, vira um racista na hora. Se julgar que os governos do PT são um exemplo mundial de incompetência, ignorância e vigarice, será incluído na lista negra dos que são contra o povo, contra a pátria e contra as eleições. Falar mal do ex-presidente Lula, então, é um caso perdido. Como ele diz em seus discursos que o seu segundo objetivo na vida é governar para os pobres (o primeiro, segundo uma confissão que fez há pouco, é "viver o céu aqui mesmo na terra"), quem não gosta do ex-presidente só pode ser contra os pobres. A alternativa é ouvir que você, até hoje, não se conforma com o fato de que "um operário tenha chegado à Presidência" etc. etc., como o próprio Lula nos diz todo santo dia. há mais de dez anos.

Com certeza há pessoas boníssimas, e sinceramente interessadas no bem comum, na maioria das "causas" em cartaz hoje em dia não lhes passaria pela cabeça, também, imaginar que estão construindo um mundo totalitário. Mas sua recusa em raciocinar um pouco mais, e em agredir a lógica um pouco menos, acaba levando-as, mesmo que não percebam, a uma postura de autoritarismo aberto diante da vida. A modelo Gisele Bündchen, por exemplo, propõe nada menos que uma "lei internacional" obrigando todas as mulheres a amamentar seus filhos. Gisele pode ser mesmo uma devota dessa postura, mas, ao querer que sua opinião pessoal seja transformada em "lei", ela mostra uma outra devoção: o desejo de mandar no comportamento dos outros. E as mulheres que não querem amamentar - como ficam os seus direitos? Qualquer pessoa que quer nos impor uma escolha forçada, diz o psicanalista Contardo Calligaris, de São Paulo. provavelmente está interessada, acima de tudo, em "afirmar e consolidar seu poder sobre nós".

Um outro tóxico que alimenta essa marcha da insensatez é a ignorância. Somada à decisão de atirar primeiro nos fatos, e perguntar depois quais eram mesmo esses fatos, leva a episódios de circo como o movimento "Gota d'Água" - no qual um grupo de atores e atrizes tentou demonstrar, no fim de 2011, que a usina de Belo Monte seria uma catástrofe sem precedentes para o Rio Xingu e para a ecologia brasileira cm geral. No vídeo que gravaram com o propósito de provar suas razões, confundiram o Pará com Mato Grosso, colocaram a usina a mais de 1 000 quilômetros do lugar onde está sendo construída e denunciaram a inundação de terras ocupadas por índios quando não há um único índio na área a ser alagada. Foi um desempenho digno de entrar na lista das piores respostas do Enem. Mas os artistas continuam achando que estão certíssimos: sua "causa" é justa, dizem eles, e meros tatos como esses não têm a menor importância. pois o que interessa é o triunfo do bem.

"Não há expediente ao qual o homem deixará de recorrer para evitar o real trabalho de pensar", disse, no fim dos anos 1700. o grande mestre da arte inglesa do retrato, sir Joshua Reynolds. Hoje, mais de 200 anos depois, sua tirada é um resumo praticamente perfeito da turbina-mãe que faz girar a máquina das "causas" justas. Nada as incomoda tanto quanto o ato de pensar. Preferem receber insultos, porque podem responder com insultos - o que não toleram é a tarefa de raciocinar em cima de fatos, reconhecer realidades e convencer pelo uso da inteligência. Algum tempo atrás esta revista publicou, com a assinatura do autor do presente artigo, um conjunto de considerações sobre o que julgava serem exageros, equívocos ou distorções do chamado "movimento gay". Tudo o que foi escrito ali recebeu uma fenomenal descarga de ódio. histeria e ofensas, nas quais foram incluídas diversas maldições desejando uma morte rápida para o autor. Mas o que realmente deixou a liderança gay fora de si, acima de qualquer outra coisa, foi a afirmação de que casamento de homem com homem, ou de mulher com mulher, não gera filhos. É apenas um fato da natureza mas é exatamente isso, o fato, o pior inimigo das "causas". Não pode ser anulado por abaixo-assinados. redes sociais ou passeatas. A única saída é mantê-lo oculto pelo silêncio.

Por essa trilha, caminhamos para um mundo de escuridão. Por: J. R. Guzzo Revista Veja

A IRRESISTÍVEL FORÇA DA CONCORRÊNCIA DE MERCADO

O caráter sistemático do processo de mercado é derivado, na visão austríaca, da interação entre pessoas empreendedoras. Empreendedores agem com imaginação e criatividade, procurando identificar e agarrar oportunidades de lucro no mercado (oportunidades essas geradas por limitações da visão de empreendedores anteriores). Como resultado da interação desses atos de visão empreendedorial, os preços e a quantidade de produtos ofertada para venda tendem a ser levados sistematicamente na direção de uma configuração em que preços e quantidades ofertadas se equilibram.


No presente ensaio, concentraremos a atenção no caráter essencialmente concorrencial desse processo de empreendimento, e deduziremos algumas implicações críticas para a avaliação das políticas antitruste dos governos. Devemos começar apontando algumas ambiguidades cruciais que há muito tempo afligem o uso do adjetivo "concorrencial" pelos economistas. O problema foi identificado há mais de meio século por F. A. Hayek; apesar dos valorosos esforços de Hayek e de outros, o problema continua a confundir tanto economistas quanto o público.

O significado de concorrência

Para a teoria econômica convencional, a noção de concorrência veio a ser associada com a ausência de poder de mercado (o poder de efetuar alterações no preço ou na qualidade do produto). Há uma certa sensatez nesse uso do termo. A concorrência é vista como a antítese do monopólio. O monopólio é identificado com o poder de determinar um preço sem ter de se preocupar com se isso vai encorajar os potenciais consumidores a procurar um negócio mais favorável.

A concorrência é, portanto, sensatamente entendida como uma situação nos mercados na qual tal poder de monopólio está ausente. A concorrência "perfeita", por sua vez, veio a significar uma situação de mercado na qual nenhum participante possui qualquer poder de influenciar o preço ou a qualidade do produto. As condições necessárias para definir tal situação perfeita são, como seria de se esperar, completamente irreais, incluindo informações perfeitas e universais sobre todos os atuais, bem como os potenciais, eventos do mercado.

Mas isso não é necessariamente uma deficiência fatal; a noção de que é possível haver uma situação de concorrência perfeita é, afinal, vista na economia convencional não como uma descrição da realidade, mas como modelo capaz de servir (a) como arcabouço teórico útil para entender os mercados reais, e (b) uma métrica de perfeição contra a qual avaliar a extensão em que as situações reais (de concorrência "menos que perfeita") está distante — em termos do padrão resultante de alocação de recursos — do ideal de eficiência perfeitamente concorrencial.

É esse modelo de concorrência perfeita que é, na economia convencional, visto como o núcleo da lei de oferta e demanda, e que levou, na história moderna das políticas antitruste, a esforços governamentais para "manter a concorrência" — isto é, assegurar uma estrutura empreendedorial (especialmente em termos industriais) razoavelmente próxima ao ideal perfeitamente concorrencial.

Para os austríacos, porém, o termo concorrência tem um significado completamente diferente, tanto para entender como funcionam os mercados como para formular políticas públicas com relação à estrutura da indústria. Os austríacos consideram o entendimento convencional de "concorrência" não apenas inútil, mas também enormemente enganador em termos de compreensão econômica. Para os austríacos, está claro que procurar emular um estado "ideal" em que nenhum empreendedor pode ter impacto no preço de mercado ou na qualidade dos produtos é na prática tentar paralisar o processo de mercado concorrencial.

Seguindo uma longa tradição em economia que data pelo menos desde Adam Smith, os austríacos definem o mercado concorrencial não como uma situação em que nenhum participante ou potencial participante tem o poder de fazer qualquer diferença, mas como um mercado em que nenhum participante em potencial se depara com barreiras à entrada externas ao mercado. (O termo "externas ao mercado" se refere, primordialmente, a barreiras à entrada impostas pelo governo; tal termo é utilizado para diferenciar tais barreiras de, por exemplo, altos custos de produção que possam desencorajar a entrada. Estes últimos não constituem elementos anticoncorrenciais em um mercado; poder entrar em um mercado significa poder entrar se essa entrada for julgada economicamente promissora — não significa poder entrar sem ter que arcar com os custos de produção relevantes.) Ou seja, uma situação é concorrencial se nenhum participante usufrui privilégios que o protegem contra a possível entrada de novos concorrentes.

As façanhas que um livre mercado consegue alcançar obter dependem, na visão austríaca, da liberdade de entrada, isto é, da ausência de privilégios. É justamente porque a lei da oferta e demanda (na interpretação austríaca) é crucialmente dependente da liberdade de entrada, que essa acepção do termo "concorrência" é tão importante.

Como veremos, é por causa dessa importância que boa parte da política antitruste implantada no século XX pode ser vista como verdadeiramente maléfica, como algo que obstruiu seriamente o processo de mercado concorrencial-empreendedorial.

Semântica e substância

Certamente a discussão sobre o significado de "concorrência" é uma discussão semântica. Porém, em simultâneo a essa picuinha semântica (a qual, é verdade, não deve nos preocupar enquanto economistas; afinal, novos termos, que não estejam sujeitos a mal-entendidos, podem ser cunhados), há uma profunda e substantiva discordância a respeito de como funcionam os mercados. 

A economia convencional vê a concorrência como sendo um estado de coisas; para essa corrente de pensamento, a noção de concorrência não tem nada a ver com o processo por meio do qual o mercado chega a seus resultados. Para os austríacos, por outro lado, é o processo de mercado que é importante. E esse processo de mercado não pode sequer ser imaginado sem necessariamente se distanciar desse estado de total impotência que a economia convencional vê como sendo perfeitamente concorrencial. Para os austríacos, o adjetivo "concorrencial" captura um atributo essencial do processo de mercado.

Em outras palavras, as ações empreendedoriais que são, no sentido austríaco do termo[1], vistas como essencialmente e enfaticamente concorrenciais, como etapas cruciais no processo de mercado, são, na visão convencional, vistas como anticoncorrenciais e monopolísticas, aberrações a serem eliminadas em prol do ideal de mercado eficiente. Por causa desse pensamento confuso incorrido pelos economistas do século XX, os governos ostensivamente decididos a manter a concorrência nos mercados se viram na obrigação de tornar ilícitas — e até mesmo de abolir por completo — as ações por meio das quais estratégias concorrenciais normais são levadas a cabo.

Algumas ferramentas antitruste

Obstruir fusões 

As políticas antitruste tradicionalmente reprovam (e com frequência proíbem) fusões entre duas empresas que até então eram concorrentes. Na perspectiva convencional, o raciocínio por trás disso é óbvio e plausível: substituir duas empresas que concorrem entre si por uma maior não pode representar outra coisa que não uma redução no grau de concorrência do mercado (na definição convencional do termo). Duas empresas menos poderosas foram substituídas por uma mais poderosa.

Mas a visão austríaca ensina que tal fusão, contanto que a potencial entrada de outros no mercado não tenha sido e não venha a ser bloqueada artificialmente, é um ato concorrencial; impedi-lo significa obstruir a maneira pela qual a concorrência de mercado descobre o tamanho ótimo das empresas e com isso um menor custo de produção. (Mesmo que haja uma única empresa atendendo todo um setor da economia, enquanto essa empresa estiver restringida pela potencial ameaça de novas entradas no seu setor ou pela concorrência — ou ameaça de concorrência — de empresas que produzam mercadorias alternativas, tal setor ainda estará operando concorrencialmente).

Tornar ilegal a formação de cartel de preços 

Um grupo de empresas poderosas pode conspirar para manter os preços altos; seus motivos podem ser cartelizar a indústria, eliminar a concorrência entre empresas, e forçar o consumidor a pagar mais. Por essa razão, as políticas antitruste foram, é claro, sempre dirigidas a impedir tais conluios.

Mas a perspectiva austríaca vê a questão de forma completamente diferente. Mesmo quando o motivo é de fato acabar com a concorrência entre empresas, tal conluio é uma medida concorrencial em si mesma — já que, não havendo nenhum bloqueio artificial à entrada, tal conluio estará sendo feito como forma de se proteger da ameaça de concorrência de novos entrantes (que podem de fato lucrar ao oferecer o produto a preços menores).

Ninguém sabe quando um preço está "alto demais"; somente a existência de um processo concorrencial de livre entrada pode revelar o preço mais baixo possível de ser sustentado. Se a entrada no mercado for livre, as empresas em conluio podem, ao procurar manter seus altos preços, estar involuntariamente atraindo novos concorrentes, os quais revelarão a verdade: que preços mais baixos são sustentáveis. Da mesma maneira, caso não ocorra a entrada de nenhum concorrente, tais empresas em conluio podem estar demonstrando que a estrutura de custos realmente justifica os atuais preços altos como sendo os mais baixos possíveis em um mundo concorrencial.

Impedir a "precificação predatória" 

Eis uma situação que, do ponto de vista da economia convencional, parece ser uma clara estratégia de eliminação da concorrência: uma grande empresa temporariamente reduz seus preços e os mantém muito baixos com o intuito de forçar os concorrentes menores a sair do mercado. Ato contínuo, ela volta a elevar os preços, mas agora de maneira drástica e impune.

Cuidadosas análises teóricas e históricas lançaram sérias dúvidas sobre até mesmo a possibilidade de que tal estratégia pudesse ser bem-sucedida, bem como sobre a validade das clássicas alegações de que tal estratégia era de fato empregada na virada do século XX na indústria americana. Mas a objeção austríaca às tentativas governamentais de limitar esta chamada "precificação predatória" não depende desta análise. A objeção austríaca é que, desde que a entrada da concorrência não seja artificialmente bloqueada pelo governo, mesmo naqueles setores em que as posições de "monopólio" foram realmente adquiridas por meio de precificação predatória, essas posições foram adquiridas como parte do processo concorrencial, e só poderão ser mantidas caso ignorem a potencial entrada de novos concorrentes.

Ninguém pode saber ao certo se um corte de preços que leva à eliminação de um concorrente visava a estabelecer um "monopólio"; mais objetivamente, mesmo uma tentativa de estabelecer um "monopólio", feita em um ambiente em que há liberdade de entrada, é em si uma medida concorrencial. Ninguém nega que o poderio econômico pode ser utilizado para impor aos consumidores preços mais altos. Mas se a concorrência pode de fato servir os consumidores mais eficientemente, então esses preços altos são eles próprios uma forma — concorrencial — de fazer com que seja mais lucrativo para os novos entrantes descobrir uma maneira melhor de servir os consumidores deste mercado.

[Para uma explicação alternativa sobre a impossibilidade de uma empresa praticar precificação predatória, veja este artigo].

A inexorável concorrência de mercado

Este inevitavelmente breve vislumbre das atitudes antitruste é o bastante para confirmar a tese austríaca central: se o objetivo é realmente estimular o poderoso processo empreendedorial-concorrencial do qual depende o livre mercado, tudo o que é necessário é garantir que haja liberdade de entrada — isto é, que o governo não imponha nenhum obstáculo burocrático e tributário — para qualquer empreendedor que tenha uma ideia de como lucrar servindo os consumidores de maneira mais eficaz do que as empresas que estão atualmente fazendo esse serviço.

É importante lembrar que não se está afirmando que a liberdade de entrada irá automaticamente impedir que os concorrentes se incorram em tentativas de monopolizar os mercados. Eles podem tentar, e certamente seus esforços podem vir a deixar o consumidor em uma situação pior (do que aquela que ocuparia em um sistema que refletisse conhecimento perfeito). A afirmação austríaca é que, como não pode existir tal conhecimento perfeito, temos de confiar no processo concorrencial-empreendedorial para revelar como o consumidor pode melhor ser servido. Obstruir esse processo em nome da concorrência (!) significa solapar a única maneira pela qual a tendência rumo a uma maior eficiência social é possível.

Ao obstruir ou impedir medidas empreendedoriais que não se encaixam naquele modelo "perfeitamente concorrencial" de total e universal impotência — mesmo que tal obstrução ou impedimento seja feito com a melhor das intenções em prol dos consumidores —, o governo está necessariamente tentando, em menor ou maior grau, paralisar aquele que é o verdadeiro processo concorrencial.

Artigo originalmente publicado no site do Ordem Livre. Esta é uma versão revisada e mais clara.

Esta também é a acepção universalmente adotada por empreendedores, e a qual os economistas antigamente universalmente seguiam.

Israel M. Kirzner é professor emérito de economia da New York University, um líder da geração de austríacos após Mises e Hayek, e um scholar adjunto do Mises Institute. Ele escreveu sua tese de doutoramento sob a orientação de Mises, mais tarde publicada como o livro The Economic Point of View (1960). Depois, abriu novos caminhos teóricos com seu livroCompetição e Atividade Empresarial (1973). Kirzner também é o autor de mais sete livros e dúzias artigos, incluindo vários na Austrian Economics Newsletter e também na The Review of Austrian Economics. Ele atualmente é um dos mais notáveis acadêmicos a se dedicar ao contínuo desenvolvimento da teoria econômica da Escola Austríaca.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

A TRAGÉDIA SOCIAL GERADA PELA DEMOCRACIA


A democracia pode até ter começado com o grande ideal para conceder poder às pessoas; porém, depois de 150 anos de prática, os resultados estão aí e eles não são positivos. Está mais do que claro que a democracia está mais para um arranjo tirânico do que para uma força libertadora. As democracias ocidentais estão seguindo o mesmo caminho já percorrido pelos países socialistas e, como era inevitável, se tornaram estagnadas, corruptas, opressoras e burocratizadas. Isto não aconteceu porque o ideal democrático foi subvertido, mas sim, e ao contrário, porque esta é exatamente a natureza inerente ao ideal democrático. Trata-se de uma natureza coletivista.

Se você quer saber como a democracia realmente funciona, considere este exemplo. George Papandreou, o político grego socialista, ganhou as eleições em seu país em 2009, com um slogan simples: "Há dinheiro!" Seus oponentes conservadores haviam reduzido os salários dos funcionários públicos e outras despesas públicas. Papandreou disse que isso não era necessário. "Lefta yparchoun" era seu grito de guerra — há dinheiro. Ele ganhou as eleições sem problemas. Na realidade, não havia dinheiro nenhum, é claro — ou melhor, o dinheiro teve de ser fornecido pelos pagadores de impostos de outros países da União Europeia. Mas, na democracia, a maioria está sempre certa e, quando tal maioria descobre que pode, por meio do voto, confiscar a riqueza alheia para si própria, ela inevitavelmente fará isso. Esperar que não o faça seria ingenuidade.

O que o exemplo grego mostra também é que as pessoas em uma democracia naturalmente se voltam para o estado para que este cuide delas. Governo democrático significa ser governado pelo estado. Como resultado, as pessoas irão sempre fazer exigências ao estado. Elas irão se tornar cada vez mais dependentes do governo, para resolver seus problemas e orientar suas vidas. Qualquer problema que elas encontrem, elas esperarão que o governo os corrija. Obesidade, abuso de drogas, desemprego, falta de professores ou enfermeiros, uma queda no número de visitas a museus, o que seja — o estado está lá para fazer algo que resolva isso.

Aconteça o que acontecer — um incêndio em um teatro, um acidente de avião, uma briga de bar —, elas esperam que o governo vá atrás dos culpados e garanta que nada semelhante aconteça novamente. Se as pessoas estão desempregadas, elas esperam que o governo 'crie empregos'. Se os preços da gasolina sobem, elas querem que o governo faça algo sobre isso. No Youtube, há um vídeo de uma entrevista com uma mulher que acabou de ouvir um discurso do presidente Obama. Quase chorando de alegria e emoção, ela exclama: "Eu não mais terei de me preocupar com o pagamento da gasolina para o meu carro ou da minha hipoteca". Esse é o tipo de mentalidade que a democracia cria.

E os políticos estão sempre dispostos a fornecer o que as pessoas exigem deles. Eles são como o homem daquele provérbio: para quem tem apenas um martelo, tudo se parece com um prego. Para cada problema da sociedade, eles se veem como os únicos capazes de solucionar esses problemas. Afinal, é para isso que foram eleitos. Eles prometem que irão 'criar empregos', reduzir as taxas de juros, aumentar o poder de compra das pessoas, fazer com que a aquisição de casas seja acessível até para os mais pobres, melhorar a educação, construir parques infantis e campos desportivos para os nossos filhos, se certificar de que todos os produtos e locais de trabalho são seguros, fornecer serviços de saúde de qualidade e acessíveis para todos, acabar com os engarrafamentos, varrer a criminalidade das ruas, livrar os bairros de vandalismo, defender os interesses 'nacionais' perante o resto do mundo, promover a emancipação e lutar contra a discriminação em todos os lugares, verificar se os alimentos são seguros e se a água é limpa, 'salvar o clima', tornar o país o mais limpo, o mais verde e o mais inovador do mundo e banir a fome da face da terra.

Eles irão realizar todos os nossos sonhos e exigências, cuidar de nós desde o berço até o túmulo, e se certificar de que estamos felizes e contentes desde o início da manhã até o final da noite — e, claro, farão tudo isso sem elevar os gastos e ainda reduzindo impostos.

Tais são os sonhos que constituem a democracia.

Os pecados da democracia

Obviamente, a verdade é que isto simplesmente não tem como funcionar. O governo não pode alcançar tudo isso. No final, os políticos sempre irão fazer as únicas coisas que eles realmente sabem fazer:

1. Desperdiçar enormes quantias de dinheiro em problemas que são ou insolúveis ou transitórios;

2. Criar novas leis e regulações;

3. Criar comissões para supervisionar a implantação das suas leis.

Não há realmente nada mais que eles possam fazer, como políticos. Eles não podem sequer pagar as contas de suas atividades, cuja fatura é enviada para os pagadores de impostos.

É possível ver as consequências desse sistema ao seu redor, diariamente:

Burocracia

A democracia gerou, em todo o mundo, um enorme inchaço burocrático. A burocracia nos cerca e reina sobre nossas vidas com um poder cada vez mais arbitrário. Dado que tal aparato burocrático é ele próprio o governo, ele é capaz de assegurar que seus integrantes estejam bem protegidos contra as duras realidades econômicas que o resto de nós enfrenta.

Nenhuma burocracia jamais vai à falência; os próprios burocratas não podem ser demitidos e eles raramente entram em conflito com a lei, uma vez que eles são a lei. Ao mesmo tempo em que gozam de impunidade, eles jogam um enorme fardo sobre o resto de nós, com as suas regras e regulamentos. A abertura de novas empresas é impedida e desestimulada por uma imensidão de leis e de custos burocráticos que lhes são impostas. Empresas já existentes também sofrem sob o peso da burocracia. Os custos burocráticos para se empreender — por menor que seja o empreendimento — são aviltantes. 

Os pobres e os que têm menos educação são os que mais sofrem com esse sistema. Em primeiro lugar porque o custo adicional gerado pela burocracia encarece sobremaneira o valor final de qualquer empreendimento, fazendo com que o uso de uma mão-de-obra pouco produtiva seja muito custoso. O resultado é um achatamento salarial. Em segundo, porque os pobres também têm de arcar com o financiamento do aparato burocrático, e isso se dá por meio de encargos sociais e trabalhistas que encarecem o valor final do seu salário. O resultado é um novo achatamento salarial. E terceiro, porque é muito difícil para eles estabelecerem o seu próprio negócio, uma vez que eles não têm como enfrentar a selva burocrática; pobre não pode se dar ao luxo de gastar dinheiro com propina.

Parasitismo

Além dos burocratas, funcionários públicos e políticos, há um outro grupo de pessoas que se safa muito bem no sistema democrático: aquelas pessoas que comandam empresas e instituições que devem sua existência à generosidade do governo ou a privilégios especiais. Pense nos gestores de grandes empresas nacionais que são protegidas pelo governo contra a concorrência, tanto por meio de tarifas de importação quanto por agências reguladoras que cartelizam o mercado e impedem a entrada de empresas concorrentes. Pense naqueles setores industriais e agrícolas recebedores de fartos subsídios. Pense nos grandes bancos e nas grandes instituições financeiras que são protegidas pelo Banco Central.

E há também as organizações sociais — sindicatos, movimentos raciais e sexuais, instituições culturais, a televisão pública, as agências assistenciais, os grupos ambientais e assim por diante — que recebem dinheiro diretamente do governo. Muitas das pessoas que comandam tais organizações não apenas têm empregos lucrativos e estáveis, como também possuem ligações íntimas com a burocracia estatal e com políticos, algo que garante vários privilégios e muito poder a estas organizações. Esta é uma forma de parasitismo institucionalizado, com a cumplicidade de nosso sistema democrático.

Megalomania

Frustrado por sua incapacidade de realmente mudar a sociedade, o governo lança regularmente megaprojetos para ajudar a recuperar um setor industrial decadente ou para servir a um outro propósito nobre. Invariavelmente, essas ações só aumentam os problemas e elas sempre custam muito mais do que o planejado.

Pense nas reformas educacionais, na reforma da saúde, nos projetos de infraestruturas e seus vários elefantes brancos da energia (o programa de etanol nos EUA e os projetos de energia eólica costeira na Europa são bons exemplos que mostram que a incompetência estatal independe da riqueza da nação). As guerras também podem ser vistas como 'projetos públicos', realizados pelo governo para desviar a atenção de problemas internos, angariar apoio público, criar empregos para as classes desprivilegiadas e enormes lucros diretos para empresas favorecidas, as quais, por sua vez, patrocinam as campanhas eleitorais dos políticos e lhes oferecem empregos quando eles saem da vida pública. (Nem é preciso dizer que os políticos nunca lutam nas guerras que eles iniciam.)

Assistencialismo

Os políticos, que são eleitos para combater a pobreza e a desigualdade, naturalmente sentem que é seu dever sagrado continuar a introduzir novos programas sociais (e novos impostos para pagá-los). Isso serve não só aos seus próprios interesses, mas também aos interesses dos burocratas responsáveis pela execução dos programas. O estado assistencialista ocupa hoje uma parte substancial dos gastos do governo, na maioria dos países democráticos. 

Na Grã-Bretanha, o governo gasta um terço de seu orçamento com o estado assistencialista. Na Itália e na França, esse número se aproxima de 40%. Muitas organizações sociais (sindicatos, fundos de pensão de estatais, agências governamentais de emprego) têm interesse em preservar e expandir o estado assistencialista. Típico da maneira como o governo democrático funciona, o estado não oferece nenhuma opção e não celebra contratos com os seus cidadãos. Todo mundo é obrigado a arcar com os enormes gastos do seguro-desemprego e pagar elevadas taxas para a Previdência Social, mas ninguém sabe os benefícios que terá no futuro. O dinheiro que tiveram de entregar ao governo já foi gasto. O inevitável colapso da Previdência Social que se aproxima é o exemplo mais notório desse tipo de libertinagem. 

E sempre tenha em mente que o assistencialismo não serve apenas os 'desprivilegiados'. Uma enorme fatia de 'assistência' vai para os ricos — por exemplo, para os bancos que foram socorridos com montantes na ordem de US$700 bilhões (depois de os executivos terem se auto-premiado com bônus consideráveis), para as grandes empresas que vivenciam dificuldades e que o governo decretou serem "grandes demais para falir" e, é claro, para toda a sorte de funcionários públicos, que se aposentam com valores magnânimos.

Comportamento antissocial e crime

O estado assistencialista democrático estimula a irresponsabilidade e o comportamento antissocial. Em uma sociedade livre, as pessoas que se comportam mal, que não conseguem manter as suas promessas ou que agem sem preocupação com os outros, perdem a ajuda de amigos, da vizinhança e da família. No entanto, no atual arranjo, nosso estado assistencialista lhes diz: se ninguém mais quer ajudá-lo mais, nós ajudamos!

Assim, pessoas imprudentes e imediatistas são recompensadas por comportamentos antissociais. Como elas estão acostumadas que o governo lhes forneça tudo de que elas necessitam, elas desenvolvem a mentalidade dos aproveitadores, daqueles que não querem trabalhar para o seu próprio sustento. Para piorar a situação, legislações trabalhistas rígidas (assim como leis anti-discriminação) tornam difícil para os empregadores se livrarem de funcionários incompetentes. Da mesma forma, os regulamentos governamentais tornam quase impossível expulsar alunos ou despedir professores que se comportam mal ou têm mau desempenho.

Em programas públicos de habitação, é muito difícil despejar alguém que seja um incômodo para os vizinhos. Os grupos que se comportam mal em centros de acolhimento noturnos não podem ter a entrada recusada por causa de leis anti-discriminação. Para agravar ainda mais, o governo muitas vezes cria programas assistenciais para grupos antissociais, como vândalos. Na Inglaterra, por exemplo, há programas de assistência para hooligans. Desta forma, a delinquência é recompensada e encorajada.

Mediocridade e padrões mais baixos

Em qualquer sociedade, a maioria tende a ser constituída pelos mais pobres e não pelos membros mais bem sucedidos e competentes. Sendo assim, em uma democracia, há inevitavelmente uma pressão sobre os políticos para redistribuírem riqueza — para tirar dos ricos e dar aos pobres. Desta forma, o sucesso empreendedorial e a excelência são punidos por impostos progressivos. Logo, na democracia, é de se esperar que haja um emburrecimento da população e uma diminuição de normas gerais de cultura e etiqueta. Onde a maioria reina, a mediocridade torna-se a norma.

Cultura do descontentamento

Em uma democracia, as divergências privadas estão continuamente se transformando em conflitos sociais. Isso ocorre porque o estado interfere em todas as relações pessoais e sociais. Tudo o que acontece de errado em algum lugar, desde uma escola pública mal gerenciada a um tumulto local, logo se transforma em um problema nacional (ou mesmo internacional) para o qual os políticos têm de encontrar uma solução. Todo mundo se sente impelido e encorajado a impor sua visão do mundo sobre os outros. Grupos que se sentem injustiçados organizam bloqueios, protestos ou fazem greve. Isso cria um sentimento geral de frustração e descontentamento.

Visão de curto prazo

Em uma democracia, o incentivo principal dos políticos é o desejo de serem reeleitos. Portanto, seu horizonte temporal dificilmente vai além das próximas eleições. Além disso, políticos eleitos democraticamente trabalham com recursos que não são deles e que estão apenas temporariamente à sua disposição. Eles estão apenas gastando o dinheiro dos outros. Isso significa que eles não têm que ter cuidado com o que fazem e nem têm de pensar no futuro. Por estas razões, políticas de curto prazo e imediatistas prevalecem em uma democracia.

Um ex-ministro holandês dos Assuntos Sociais disse certa vez que "os líderes políticos deveriam governar como se não houvesse mais eleições. Dessa forma, eles seriam capazes de tomar a visão de longo prazo das coisas". Mas isso é exatamente o que eles não podem fazer, é claro. Como o autor americano Fareed Zakaria disse em uma entrevista: "Eu acho que estamos diante de uma crise real no mundo ocidental. O que você vê é a incapacidade fundamental em toda a sociedade ocidental de fazer uma coisa, que é a de impor algum tipo de sofrimento de curto prazo para ganhos em longo prazo. Sempre que um governo tenta propor algum tipo de sofrimento de curto prazo, há uma revolta. E a revolta é quase sempre bem sucedida".

Como as pessoas são encorajadas a se comportar como aproveitadores em uma democracia, e como os políticos se comportam mais como inquilinos do que os proprietários de imóveis, pois eles estão apenas temporariamente no cargo, este resultado não deve surpreender ninguém. Alguém que aluga ou arrenda alguma coisa possui muito menos incentivos para ter cuidado e pensar no longo prazo do que um genuíno proprietário.

Por que tudo continua piorando

Teoricamente, as pessoas poderiam votar por um sistema diferente, menos burocrático e menos desperdiçador. Na prática, isso não é provável que aconteça, já que existem muitas pessoas que têm um grande interesse em preservar o sistema. E como o governo lentamente cresce, esse grupo cresce com ele.

Como o grande economista austríaco Ludwig von Mises apontou, a burocracia, em particular, resiste com unhas e dentes a qualquer tipo de mudança. "O burocrata não é apenas um empregado do governo", escreveu Mises, 

Ele é, sob uma constituição democrática, ao mesmo tempo, um eleitor e, como tal, uma parte do soberano, seu empregador. Ele está em uma posição peculiar: ele é o empregador e o empregado. E seu interesse pecuniário, como funcionário, está acima de seu interesse como empregador, já que ele recebe muito mais dos recursos públicos do que contribui para eles. Esta dupla relação se torna mais importante à medida que o número de pessoas na folha de pagamento do governo aumenta. O burocrata, como eleitor, está mais ansioso em obter um aumento do que em manter o orçamento equilibrado. Sua principal preocupação é fazer inchar a folha de pagamento.

O economista Milton Friedman descreveu quatro maneiras de se gastar dinheiro. A primeira é quando você gasta o seu dinheiro com você mesmo. Nesse caso, você tem um incentivo para buscar qualidade e gastar o dinheiro de forma eficiente. Este é o modo como, geralmente, o dinheiro é gasto no setor privado. A segunda maneira é gastar o seu dinheiro com outra pessoa — por exemplo, quando você compra jantar para alguém. Nesse caso, você certamente se preocupa com a quantidade de dinheiro que você gasta, mas está menos interessado na qualidade. A terceira maneira é quando você gasta o dinheiro de outra pessoa consigo mesmo, como quando você almoça à custa de sua empresa. Nesse caso, você terá pouco incentivo para ser frugal, mas você vai se esforçar para escolher o melhor almoço. A quarta maneira é quando você gasta o dinheiro de alguém com outra pessoa. Nesse caso, você não tem motivos para se preocupar com a qualidade e nem com o custo. Esta é a maneira como, geralmente, o governo gasta o dinheiro dos impostos.

Os políticos raramente são responsabilizados pelas medidas que implementam e que acabam sendo prejudiciais no longo prazo. Eles recebem elogios por suas boas intenções e pelos resultados iniciais positivos de seus programas. As consequências negativas, que surgem no longo prazo (por exemplo, dívidas que precisam ser reembolsadas), serão da responsabilidade de seus sucessores. Por outro lado, os políticos têm pouco incentivo para executarem programas que gerem resultados somente depois que eles já deixaram o cargo, pois tais resultados serão creditados aos futuros líderes.


Assim, os governos democráticos, invariavelmente, gastam mais dinheiro do que recebem. Eles resolvem esse problema aumentando impostos ou, ainda melhor — uma vez que as pessoas que têm de lhes pagar não ficarão nada satisfeitas —, tomando empréstimos ou simplesmente imprimindo o dinheiro. (Note que eles tendem a contrair empréstimos junto a seus bancos favoritos, os quais posteriormente serão resgatados pelo governo, caso tenham problemas). Eles raramente cortam seu próprio orçamento. Quando eles falam em 'cortar', isso normalmente significa um crescimento mais lento dos gastos.

Imprimir dinheiro, é claro, leva à inflação, o que implica uma redução constante no valor da poupança das pessoas e no seu poder de compra. Pedir dinheiro emprestado faz com que a dívida nacional aumente e, consequentemente, deixe para a geração futura o pagamento dos juros. Atualmente, as dívidas públicas de quase todas as democracias do mundo se tornaram tão altas, que é improvável que venham a ser quitadas algum dia. O que é pior é que algumas instituições, como fundos de pensão, compraram maciçamente essa dívida pública, sob a suposição de que este seria um bom investimento de longo prazo. Isso é uma piada cruel. Muitas pessoas nunca irão receber a pensão com que contavam porque o dinheiro que colocaram em seus fundos de pensão já foi desperdiçado.

No entanto, apesar de todos esses problemas que a democracia nos traz, continuamos a esperar e a acreditar que, após as próximas eleições, tudo vai mudar. Isso nos deixa presos em um círculo vicioso: o sistema não entrega o que promete, as pessoas se tornam frustradas, os políticos fazem cada vez mais promessas, as expectativas ficam ainda maiores, assim como os inevitáveis desapontamentos. E tudo se reinicia. Em uma democracia, os cidadãos são como alcoólatras que precisam beber cada vez mais para ficarem embriagados, resultando em uma ressaca ainda maior. Em vez de concluírem que devem ficar longe do álcool, eles querem ainda mais. Eles esqueceram completamente de como cuidar de si mesmos e abrindo mão da responsabilidade própria e do comando de suas próprias vidas.

O artigo acima foi extraído do livro Além da Democracia, à venda no IMB.

Frank Karsten & Karel Beckman escreveram uma nova e fulminante análise libertária sobre a democracia. No livro Além da Democracia, eles mostram, em termos simples e por meio de 13 mitos, o que há de errado com o sistema democrático e por que a democracia é fundamentalmente oposta à liberdade. O livro mostra também uma alternativa: uma sociedade baseada totalmente na liberdade individual e em relações sociais voluntárias.

Frank Karsten é fundador do Mises Instituut Nederland. Ele aparece regularmente em público para falar sobre a crescente interferência do estado na vida dos cidadãos. www.mises.nl.Karel Beckman é escritor e jornalista. Ele é o editor chefe do website European Energy Review. Antes de assumir este cargo, ele trabalhou como jornalista no jornal financeiro holandês Financieele Dagblad. O seu website pessoal éwww.charlieville.nl.

A TEORIA MARXISTA DA EXPLORAÇÃO E A REALIDADE


Dentre todas as vituperações e calúnias proferidas contra o capitalismo, a 'teoria da exploração' permanece sendo a mais popular — tanto nos círculos acadêmicos quanto entre os desinformados em geral. O mais famoso defensor da teoria da exploração foi Karl Marx.

De acordo com a teoria da exploração, os lucros — na verdade, quaisquer outras receitas que não sejam convertidas em salário — representam uma dedução injusta daquilo que deveria ser, naturalmente e por direito, o salário do trabalhador.

Segundo Marx, o que possibilita a um capitalista obter uma renda superior ao salário que ele paga ao seu empregado é exatamente o mesmo fenômeno que torna possível a um dono de escravo auferir ganhos em decorrência do trabalho do seu escravo. Mais especificamente, um trabalhador é capaz de produzir, em menos de um dia inteiro de trabalho, os bens de que ele necessita para ter a força e a energia necessárias para labutar um dia inteiro de trabalho.

Para utilizar um dos exemplos fornecidos pelo próprio Marx, um trabalhador é capaz de produzir em 6 horas todos os alimentos e todas as necessidades de que ele precisa para ser capaz de trabalhar 12 horas. Estas 6 horas — ou qualquer que seja o número de horas necessárias para o trabalhador produzir essas suas necessidades — são rotuladas por Marx de "tempo de trabalho necessário". Já as horas que o trabalhador trabalha além do tempo de trabalho necessário são rotuladas por Marx de "tempo de trabalho excedente."

Assim como o 'tempo de trabalho excedente' representa a fonte de ganho do dono de um escravo, ele também representa, de acordo com Marx, a fonte de lucro do capitalista.

Quando o trabalhador trabalha 12 horas para um capitalista, seu trabalho, de acordo com Marx, acrescenta aos materiais e aos outros meios de produção consumidos na manufatura do produto final um valor intrínseco correspondente a 12 horas de trabalho. E, por sua vez, se estes materiais e outros meios de produção demandaram 48 horas de trabalho para serem produzidos, então o produto final conterá estas 48 horas de trabalho mais as 12 horas adicionais de trabalho desempenhado pelo trabalhador. O produto final, portanto, terá um valor total correspondente a 60 horas de trabalho.

Sendo assim, o processo de produção, de acordo com Marx, resultou em um acréscimo de valor igual às 12 horas de trabalho do trabalhador. Este valor adicionado pelo trabalho do trabalhador será dividido entre o trabalhador e o capitalista na forma de um salário para o primeiro e de um lucro para o último. O valor que o capitalista deve pagar como salário, diz Marx, é determinado pela aplicação de um princípio supostamente universal de valoração da mercadoria — a saber, a teoria do valor-trabalho. 

O capitalista irá pagar ao trabalhador um salário correspondente às horas de trabalho necessárias para produzir suas necessidades — em nosso exemplo, 6 horas — e irá embolsar o valor acrescentado pelas 12 horas de trabalho do trabalhador. Seu lucro será aquilo que sobrar após deduzir o salário do trabalhador, e irá corresponder exatamente ao 'tempo de trabalho excedente' do trabalhador.

Este exemplo pode ser facilmente expressado em termos monetários ao simplesmente assumirmos que cada hora de trabalho efetuado na produção de um produto corresponde a $1 acrescentado ao valor do produto. Assim, os materiais e os outros meios de produção utilizados valiam $48, e o produto resultante da aplicação de 12 horas de trabalho do trabalhador vale $60. As 12 horas de trabalho do trabalhador acrescentaram $12 ao valor do produto.

O lucro do capitalista supostamente advém do fato de que, para as 12 horas de trabalho efetuadas pelo trabalhador, com seu correspondente acréscimo de $12 ao valor do produto, o capitalista paga um salário de apenas $6. Este valor corresponde ao tempo de trabalho necessário para produzir as necessidades de que o trabalhador precisa para desempenhar suas 12 horas de trabalho. O lucro do capitalista, portanto, representa a "mais-valia", que corresponde ao "tempo de trabalho excedente".

A razão entre a mais-valia e o salário, ou entre o 'tempo de trabalho excedente' e o 'tempo de trabalho necessário', é rotulada por Marx de "taxa de exploração". Nesta nossa ilustração ela é de 100% — ou seja, $6/$6 ou 6 hrs./6 hrs.

Ainda segundo Marx, uma combinação entre a ganância dos capitalistas e as forças que tendem a reduzir o lucro em relação ao capital investido faz com que os capitalistas aumentem a taxa de exploração. Se os trabalhadores são capazes de trabalhar 18 horas por dia utilizando as necessidades produzidas em apenas 6 horas por dia, então a jornada de trabalho será elevada para 18 horas por dia. Se os salários que os capitalistas pagam para seus empregados homens for o suficiente para permitir que estes sustentem uma esposa e duas crianças, então os capitalistas irão reduzir os salários para forçar mulheres e crianças a irem trabalhar nas fábricas, dando assim aos capitalistas o benefício de auferir mais 'tempo de trabalho excedente' e mais mais-valia. 

Os capitalistas também supostamente irão se esforçar para baratear a dieta do trabalhador, substituindo trigo por, digamos, arroz ou batatas, desta forma reduzindo o 'tempo de trabalho necessário' e aumentando a fatia do dia de trabalho que passa a ser 'tempo de trabalho excedente'. As condições de trabalho, desnecessário dizer, serão sempre horríveis, uma vez que seu aprimoramento geralmente viria à custa de uma redução na mais-valia.

Esta suposta situação de salários de subsistência — aliás, de salários abaixo da subsistência —, jornada de trabalho desumana e condições precárias, além de crianças trabalhando em carvoarias, seria o resultado do funcionamento do capitalismo e da busca pelo lucro, diz Marx, tendo por base sua teoria da exploração.

À luz da teoria da exploração, os capitalistas devem ser considerados inimigos mortais da esmagadora maioria de humanidade, merecendo ser colocados contra paredões e fuzilados — exatamente o que aconteceu sempre que os marxistas tomaram o poder em algum país.

Os capitalistas, e não os trabalhadores, são os produtores principais

Ao contrário do que diz a teoria da exploração, e ao contrário do que a maioria das pessoas imagina, os assalariados que os supostos exploradores capitalistas empregam não são os produtores principais dos produtos manufaturados por uma empresa. Assim como Cristóvão Colombo foi o descobridor da América, e não os marujos que tripulavam os navios e que foram seus auxiliares na realização de seus (de Colombo) planos e projetos, os capitalistas é que são os produtores principais dos produtos produzidos por suas empresas. 

Os empregados do capitalista podem ser mais corretamente descritos como "os auxiliares" na produção dos produtos do capitalista. Os lucros do capitalista não representam uma dedução daquele valor que, segundo Marx, pertence por direito aos trabalhadores na forma de salários. Os lucros representam aquilo que o capitalista ganhou em decorrência principalmente de seu trabalho intelectual, de seu planejamento e de suas decisões. O capitalista produz um produto próprio, embora utilize a ajuda de terceiros cuja mão-de-obra ele emprega com o propósito de implementar seus planos e consequentemente produzir seus produtos.

Sendo assim, por exemplo, Henry Ford era o produtor principal na Ford Motor Company; John D. Rockefeller, na Standard Oil; Bill Gates, na Microsoft; Jeff Bezos, na Amazon; e Warren Buffet, na Berkshire Hathaway.

Marx teve sim uma grande ideia, a qual era em si totalmente correta, e que pode jogar mais luz sobre esta discussão. Esta sua ideia foi fazer uma distinção entre aquilo que ele chamou de "circulação capitalista" e aquilo que ele chamou de "circulação simples". Mas Marx, infelizmente, ignorou por completo e contradisse totalmente as reais implicações desta sua ideia. 

Aquilo que todos os "capitalistas exploradores" praticam é a circulação capitalista. A circulação capitalista, como Marx a descreveu, é o gasto de dinheiro, D, para a compra de materiais, M, que serão utilizados na produção de produtos que serão vendidos por uma quantia maior de dinheiro, D'. A circulação capitalista, em suma, é D-M-D'. Se os capitalistas exploradores deixassem de existir, e a circulação capitalista desaparecesse do mundo, os sobreviventes entre aqueles que hoje trabalham como assalariados estariam vivendo em um mundo de circulação simples, isto é, M-D-M. Ou seja, sem ter com o que gastar inicialmente seu dinheiro, eles tentariam imediatamente produzir materiais, M, os quais eles venderiam em troca de dinheiro, D, o qual, por sua vez, eles usariam para comprar outros materiais, M.

Os capitalistas não são os responsáveis pelo fenômeno do lucro, mas sim pelo surgimento dos salários e dos custos

Tanto Marx quanto Adam Smith, que veio antes de Marx, presumiram erroneamente que, em um mundo de circulação simples — o qual Smith chamou de "o estado rude e primitivo da sociedade" —, todas as rendas obtidas eram salários. Para eles, não havia lucro neste modelo. O lucro, segundo eles, só passou a existir quando surgiu a circulação capitalista. Mais ainda: o lucro seria uma dedução daquilo que originalmente era salário.

Mas a verdade é que, em um mundo de circulação simples, o que está ausente não é o lucro, mas sim os gastos monetários — o D inicial — com o pagamento de salários e com a aquisição de bens de capital, e que são computados como custos de produção.

Um mundo de circulação simples seria um mundo em que não há custos de produção mensurados em termos monetários. Seria um mundo em que os gastos com materiais — utilizando-se dinheiro obtido com a venda de outros materiais — constituiriam receitas para os vendedores destes materiais. E estes vendedores, dado que eles não tiveram nenhum gasto anterior para obter os materiais que estão vendendo, não teriam de computar nenhum custo de produção em termos monetários. Eles teriam apenas receitas de venda. Seria, portanto, um mundo em que o trabalho é a única fonte de renda. Mas um mundo no qual toda a receita auferida pelos indivíduos é um lucro, e não um salário. Seria um mundo de trabalhadores produzindo produtos primitivos e escassos, pelos quais eles receberiam receitas de venda das quais eles não teriam custos para deduzir. Sendo assim, estas receitas representariam o lucro total.

O surgimento da circulação capitalista, portanto, não é responsável nem pela dedução dos salários e nem pelo surgimento do lucro. Ao contrário: ela é responsável pela criação dos salários, pelo surgimento dos gastos com bens de capital e pelo surgimento dos custos de produção mensurados em termos monetários. Estes custos serão deduzidos das receitas, produzindo então o lucro. As receitas de venda, no cenário anterior, representavam o lucro total. Não havia custos a serem deduzidos das receitas. Agora, com o surgimento da circulação capitalista, surgiu o salário dos trabalhadores, os quais são deduzidos dos lucros dos capitalistas. Portanto, primeiro surgiu o lucro; só depois é que surgiu o salário. É o salário que é deduzido do lucro dos capitalistas, e não o lucro que é deduzido do salário dos trabalhadores.

Quanto mais economicamente capitalista for o sistema econômico, no sentido de um maior grau de circulação capitalista — isto é, uma maior proporção de D em relação a D' —, maiores serão os salários e os outros custos em relação às receitas, e menores serão os lucros em relação às receitas. Ao mesmo tempo, se o sistema econômico permitir que os capitalistas se concentrem mais na compra e, consequentemente, na produção e na oferta de bens de capital, este aumento na oferta de bens de capital levará a um aumento na produtividade da mão-de-obra e a um aumento generalizado na capacidade de produção. A oferta de produtos crescerá em relação à oferta de mão-de-obra e, com isso, os preços cairão em relação aos salários. O resultado é que os salários reaisaumentarão e continuarão aumentando enquanto a produtividade da mão-de-obra continuar crescendo.

Portanto, no que concerne à relação entre capitalistas e assalariados, a verdade é exatamente o inverso daquilo que é alegado pela teoria da exploração. Os capitalistas não deduzem seus lucros dos salários dos trabalhadores; os capitalistas são os responsáveis pelo surgimento dos salários. Sendo um custo de produção, os salários são deduzidos das receitas, as quais, na ausência de capitalistas, representariam o lucro total. Logo, pode-se dizer que os capitalistas são os responsáveis pelo aumento dos salários em relação aos lucros e pela redução dos lucros em relação aos salários. Ao mesmo tempo, por meio do aumento na produção e na oferta de produtos, o que leva à redução de seus preços, os capitalistas aumentam o poder de compra dos salários que eles pagam.

Isto não é nenhuma exploração dos trabalhadores assalariados. É, isto sim, a maciça e progressiva melhoria de seu bem-estar econômico.

George Reisman é Ph.D e autor de Capitalism: A Treatise on Economics. (Uma réplica em PDF do livro completo pode ser baixada para o disco rígido do leitor se ele simplesmente clicar no título do livro e salvar o arquivo). Ele é professor emérito da economia da Pepperdine University. Seu website: www.capitalism.net. Seu blog georgereismansblog.blogspot.com

Tradução de Leandro Roque