domingo, 25 de agosto de 2013

A FALSA PANACEIA DAS "SOLUÇÕES POLÍTICAS"

Paul Johnson demonstrou magistralmente, em seu extraordinário livro "Tempos Modernos", já no primeiro capítulo, intitulado "Um mundo relativista", que o maior mal de nossos tempos — que começou a se desenvolver em fins do século XIX, ganhou força no século passado e persiste até os nossos dias, é a crença nas chamadas "soluções políticas". Johnson argumenta com boa fundamentação que essa praga tem como causa a "morte de Deus", decretada por "medida provisória" baixada por Nietzsche (que, paradoxalmente, foi um defensor do livre mercado) e que deixou o ocidente a descoberto, com um vazio de poder que acabou sendo preenchido pelo mito da "vontade política". Ainda naquele capítulo ele mostra que a relativização do mundo foi encorpada por intelectuais que se seguiram a Nietzsche: em 1915, quase ninguém entendeu o que Einstein — que nunca foi um relativista moral! — queria dizer com sua teoria da relatividade e, matreira e solertemente, levaram a coisa para o lado moral. Pronto! Passava a não existir mais o certo e o errado, porque, afinal, "tudo é relativo". Johnson cita a psicanálise de Freud e a economia de Keynes como resultados dessa relativização moral.

Não pretendo aqui discutir religião, mas tão somente ressaltar que foi a partir dessa gênese relativista que os valores morais até então inquestionáveis e aceitos voluntariamente durante séculos em nossas sociedades passaram a ser "relativizados": assim, valores fundamentais, como a propriedade privada e as liberdades individuais começaram não apenas a ser questionados sob o ponto de vista moral ou jurídico, mas atacados sob o pretexto de que caberia aos estados (isto é, a pessoas exatamente iguais às demais) tomarem as decisões mais importantes em todos os campos da existência humana, já que os iluminados do governo saberiam o que era melhor para todos, para o coletivo, para o formigueiro humano, para o "social". 

Você já parou para pensar no mal que isso representou e continua representando para a humanidade? Se ainda não o fez, convença-se de que as maiores barbaridades do século XX — a saber, o comunismo e o nazismo — foram consequências diretas desse vácuo de poder, de que se aproveitaram verdadeiros monstros como Hitler, Lenin e dezenas de outros. Já que não existiria mais uma verdade absoluta, tradicional e consagrada há séculos e que forjou toda a civilização ocidental, então tudo, praticamente tudo, poderia ser relativizado. Muitos milhões de assassinados pagaram o preço dessa maluquice, ou porque se opunham às ideias dos ditadores ou porque pertenciam a "classes" ou "raças" tidas por eles como lesivas ou prejudiciais aos interesses dos mandatários. Foi a fase — e, por incrível que pareça, ainda não saímos dela, basta olharmos para alguns dos atuais governos da América do Sul — do poder pelo poder.

Em outro soberbo livro, Os Intelectuais, Paul Johnson mostra como muitos deles, sem terem jamais se dado sequer ao trabalho de pegar em um martelo para pregar um quadro em uma parede, passaram a ditar, sentados em mesas de bares, o que era bom e o que era ruim, sempre de acordo com o seu ponto de vista, considerado obviamente como superior ao do homem comum, que é aquele que faz o mundo real funcionar. Goebbels e Antonio Gramsci (especialmente o segundo), Sartre e outros — todos festejados como "mentes brilhantes" — deram o toque final a esse processo de imbecilização coletiva fantasiada de boas intenções, e ai de quem se opunha ou — ainda! — se opõe a essa horda de barbarismo revestida de "modernidade". A última manifestação dessa endemia que se transformou em epidemia e depois em pandemia é a chamada "ditadura do politicamente correto".

Assim, se Fulano roubou alguém, a culpa não foi dele, mas da "sociedade"; se Beltrano estuprou uma mulher, a culpa foi do "sistema"; se alguém fuma um cigarro em um estádio de futebol é visto como um pária; se um zagueiro comete uma falta violenta contra um adversário e imediatamente levanta os braços para fazer ver ao árbitro que não fez nada demais, isso é visto como natural, pois todos fazem assim; se um deputado desviou recursos públicos para sua conta pessoal, o culpado é o "capitalismo" que endeusa o dinheiro; se magistrados colocam parentes em empregos públicos ganhando altíssimos salários, é claro que não deve haver qualquer culpa envolvida nisso, pois, afinal, é tudo natural; o que vale é o momento, é o prazer, o hedonismo, os ganhos fáceis, a vida da cigarra, já que as formigas são tremendamente "conservadoras e otárias" porque valorizam o trabalho árduo e a poupança. Sim, as formigas são as mais antigas neocons de que se tem notícia...

Quem ainda não ouviu algum comentário do tipo "ih, não se meta nisso, porque foi uma "decisão política" da direção da empresa"? Ou, na universidade, "não questione essa decisão, porque ela é apoiada pelo reitor", ou, ainda, "tal medida foi uma decisão política do ministro"? Já pararam para pensar nesses absurdos aceitos ou como verdades inquestionáveis ou como meras ordens a serem cumpridas? Já refletiram que isso vai — como foi e vem acontecendo — minando a capacidade de raciocinar das pessoas, ou seja, vai desumanizando o homem?

Eis a verdade, meus amigos, clara como a água mais cristalina, mas que a imensa maioria não consegue enxergar, porque foi habituada, ensinada, doutrinada, bombardeada para agir como bois ao som do berrante do boiadeiro: estamos vivendo em uma sociedade que a cada dia se torna mais desumanizada, em que a dignidade da pessoa humana de pouco ou nada vale. Essa crença cega nas pretensas "soluções políticas" foi sendo inoculada nas pessoas passo a passo, vagarosa e calculadamente e se alastrou pelos corpos das sociedades como um veneno mortal.

É urgente combater o relativismo moral e suas "soluções políticas", a começar pelo resgate da família e seus valores, da importância da formação moral das crianças por parte dos pais (e não dos professores de História inteiramente embriagados de marxismo) e da imprescindibilidade da liberdade responsável, que é aquela liberdade de escolher sabendo o que é certo e o que não é certo.

Já pensaram também por que nosso povo está indo às ruas para protestar? Estão pretendendo o quê com os protestos: mais "soluções políticas"? É o que parece.

Na economia, desde que Keynes, em outra "medida provisória", estabeleceu a máxima, tida por quase todos os economistas como inquestionável, a de que poupar faz mal à saúde da economia e gastar faz bem, uma tremenda e gigantesca guinada nos fundamentos morais da ciência econômica, as "soluções políticas" passaram a substituir as decisões individuais voluntárias, os mercados passaram a ser vistos como um perigo para os pobres e os ministros da Fazenda e presidentes dos bancos centrais como grandes iluminados salvadores de suas pátrias. O resultado dessa imoralidade representada pelo keynesianismo pode ser visto facilmente, como um relâmpago em uma noite escura: déficits orçamentários crescentes, endividamento público maior do que o "tamanho da economia", inflação, desemprego, crises em cima de crises e gerações de jovens que não encontram empregos, como vem sucedendo na Europa, antes badalada como um paraíso da social democracia.

James Buchanan e Gordon Tullock, os dois principais autores da Public Choice School, mostraram claramente que Keynes, um imoralista assumido, politizou a teoria econômica e seu trabalho foi justamente fazer o oposto: levaram os princípios básicos da teoria econômica para analisar o processo político, mostraram como isto pode ser feito e concluíram que os chamados "homens públicos", tal como os mortais comuns, agem de acordo com seus próprios interesses e não tendo em vista o chamado bem comum. Ou seja, os políticos agem — para usarmos o jargão econômico convencional — com o intuito de "maximizar a sua utilidade" e não a dos seus eleitores.

E, desde seus primórdios com os pós-escolásticos, passando por seu fundador Menger e por Mises, Hayek, Rothbard, Kirzner e praticamente todos os seus economistas, a Escola Austríaca de Economia sempre se posicionou contra a falsa panaceia das "soluções políticas", porque sempre entendeu com muito maior clareza — e com uma metodologia bastante superior à das escolas rivais —, que os mercados são processos de intercâmbio voluntário que jamais puderam, podem ou poderão ser substituídos por pretensas "soluções", que de soluções nada têm. Hayek, em especial, mostrou, especialmente em seu famoso artigo O uso do conhecimento na sociedade que o conhecimento, em termos de assuntos sociais, é sempre insuficiente e se apresenta de forma dispersa. E que os planejadores dos governos não são super-homens que se situem acima desse fato elementar.

Portanto, nada melhor do que os próprios envolvidos nas situações concretas para resolverem os seus problemas concretos. As "soluções políticas" já nascem fadadas ao fracasso. Na verdade, elas são, por si mesmas, sinônimos de fracassos. A Escola Austríaca de Economia é moralmente superior às demais porque respeita os princípios, valores e instituições de uma sociedade livre e virtuosa. O texto de Hayek, claramente, é uma defesa do conhecido Princípio da Subsidiariedade, que se baseia na ideia de que é moralmente errado retirar-se a autoridade e a responsabilidade inerentes à pessoa humana para entregá-la a um grupo, porque nada pode ser feito de melhor por uma organização maior e mais complexa do que pode ser conseguido pelas organizações ou indivíduos envolvidos diretamente com os problemas. A subsidiariedade decorre de três importantes aspectos da própria existência humana: a dignidade da pessoa humana, a limitação do conhecimento enfatizada por Hayek e a solidariedade.

Por tudo isso e como estou farto de dizer e escrever, temos uma tarefa gigantesca pela frente, que é a de fazer as pessoas voltarem ter noção de que há atos moralmente certos e atos moralmente errados, tanto no campo da economia, como no das relações pessoais, no da atividade política, na prática dos esportes, enfim, em todas as nossas ações. Obviamente, há ações que podem ser chamados de moralmente neutras, como, por exemplo, a de chupar um picolé, mas a maioria de nossas escolhas reflete os valores morais que recebemos desde muito cedo e que desenvolvemos com o passar dos anos. Muitos dos que estão indo às ruas protestar contra este ou aquele político corrupto, será que não agiriam de maneira parecida caso estivessem no lugar do mesmo?

Essa tarefa enorme e hercúlea que temos pela frente, a meu ver, transcende rótulos de qualquer natureza. Não me agradam esses rótulos. Nunca me agradaram, porque são superficiais. Em termos de filosofia moral, sou um "conservador", mas em termos de teoria econômica, sou um "libertário". E aí, como é que fica? De forma semelhante, alguém pode ser um "progressista" em termos morais, mas um "conservador" em termos políticos. E aí? Rótulos rútilos só servem ou para xingar alguém ou para confundir incautos...

Acima dos rótulos, temos que lutar contra a panaceia das "soluções políticas", que nos ronda como urubus sobre a carniça. Se mostrarmos que estamos vivos, nos mexendo, lutando, poremos os urubus para correrem, ou melhor, para voarem para outras plagas. E se quisermos saber qual é o ninho os corvos, veremos que é o relativismo moral.

Port: Ubiratan Jorge Iorio  economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

sábado, 24 de agosto de 2013

DITADURA DA INDÚSTRIA ALIMENTÍCIA


Inimiga nº1 dos transgênicos, física indiana denuncia ditadura da indústria alimentícia

Considerada a inimiga número um da indústria de transgênicos, a física e ativista indiana Vandana Shiva afirma que há uma ditadura do alimento, onde poucas e grandes corporações controlam toda a cadeia produtiva. E dá nome aos bois: Nestlé, Cargil, Monsanto, Pepsico e Walmart.

"Essas empresas querem se apropriar da alimentação humana e da evolução das sementes, que são um patrimônio da humanidade e resultado de milhões de anos de evolução das espécies", diz.

Crítica feroz à biopirataria, Shiva ressalta que a única maneira de combater o controle sobre a alimentação é o ativismo individual na hora de consumir produtos mais saudáveis e de melhor qualidade.

Leia os principais trechos da exclusiva à Folha durante o 3º Encontro Internacional de Agroecologia, em Botucatu.

É possível alimentar o planeta sem usar transgênicos?

O único modo de alimentar o mundo é livrando-se das sementes transgênicas. Essas sementes não produzem alimentos, mas produtos industrializados. Como isso poderia ser a solução para fome? Só estão criando mais controle sobre as sementes. Desde 1995, quando as corporações obtiveram o direito de controlar as sementes, 284 mil fazendeiros cometeram suicídio na Índia. Nós perdemos 15 milhões de agricultores por causa de um design de produção agrária criado para acabar com a agricultura familiar.

Como mudar a alimentação do modelo agroindustrial para outro baseado na produção familiar e na distribuição local?

As pequenas fazendas produzem 80% dos alimentos comidos no mundo. As indústrias produzem commodities. Apenas 10% dos grãos de milho e soja são comidos por pessoas; o resto é 'comido' pelos carros, como biocombustíveis, e por animais. É possível elevar esses 80% para 100% protegendo a biodiversidade, a terra, os fazendeiros e a saúde pública. É apenas por meio da agroecologia que a produtividade agrícola pode aumentar.

Como as grandes corporações dominam a cadeia mundial de alimentos?

Se você olha para as quatro faces que determinam nossa comida, são todas controladas por grandes corporações. As sementes são controladas pela Monsanto por meio dos transgênicos; o comércio internacional é controlado por cinco empresas gigantes; o processamento é controlado por outras cinco, como a Nestlé e a PepsiCo; e o varejo está nas mãos de gigantes como o Walmart, que gosta de tirar o varejo dos pequenos comércios comunitários e com conexões muito diretas entre os produtores de comida e os consumidores. São correntes longas e invisíveis, onde 50% dos alimentos são perdidos.

Temos sim uma ditadura do alimento. A razão que eu viajei todo esse caminho até o Brasil é porque eu sou totalmente a favor da liberdade alimentícia, porque uma ditadura do alimento não é só uma ditadura. É o fim da vida.

Como as corporações chegaram a esse domínio?

Infelizmente, o chamado livre comércio trouxe a liberdade para as corporações, mas não para as pessoas. As corporações estão escrevendo as regras e se tornando os governantes.

Os direitos intelectuais acordados entre as organizações mundiais foram escritos pela Monsanto. Para eles, o problema era que os fazendeiros estavam guardando as sementes. E a solução que ofereceram foi dizer que guardar as sementes agora é um crime de propriedade intelectual. É isso o que dizem as regras da OMC. A Índia, o Brasil, a América Latina e a África deveriam dizer: 'Você não pode patentear a vida porque a vida não foi inventada. Pare com a biopirataria'.

Até agora, a revisão dessas regras não foi permitida, o que mostra que essas corporações ditam as regras. E não é apenas na OMC. A Monsanto escreveu o ato de proteção para o orçamento nos EUA. O vice-presidente da Cargill foi designado para escrever a lei de comércio e agricultura dos EUA.
Fabio Braga-29.mai.2012/Folhapress 
A ativista indiana Vandana Shiva, 59, que veio ao Brasil para fazer palestras sobre temas da Rio+20


É possível modificar esse cenário?

A única maneira de reverter essa situação é cada pessoa fazer seu papel de recuperar a liberdade e a democracia do alimento. Afinal, cada um de nós come duas ou três vezes ao dia. E o que nós comemos decide quem somos, se nosso cérebro está funcionando corretamente, ou nosso metabolismo está saudável ou, se por conta de micronutrientes, estamos nos tornando obesos. Isso afeta todo mundo: os mais pobres porque lhes foi negado o direito à comida; mas até os que podem comer porque não estão comendo comida. Chamo isso de anticomida, porque a comida deveria nos nutrir. A comida mortal que as corporações estão trazendo para nós destrói a capacidade da comida de nos nutrir e no lugar disso está nos causando doenças.

Cada um de nós deve se tornar um forte ativista da liberdade da comida e das sementes no nosso dia a dia. O que significa que temos que apoiar mais os fazendeiros e a agroecologia. Devemos ser comprometidos com a alimentação saudável.

Qual a importância do Brasil nesse jogo?

O Brasil tem um papel muito importante. De um lado, está uma agricultura altamente destrutiva e irresponsável, mantida pelas corporações, levando transgênicos, produtos químicos e piorando a fome. Do outro lado, está o modelo agroecológico, caracterizado pela diversidade, conhecimento popular, o melhor da ciência, e levando efetivamente comida às pessoas. Essa disputa está ocorrendo justamente aqui, no Brasil.

Provavelmente, o Brasil tem a maior proporção de diversidade de alimentos em sua agricultura. No entanto, a maior parte não é usada para a alimentação humana. Por exemplo, as plantações de cana-de-açúcar e soja vão para a alimentação de animais e para fabricação de combustíveis.

O Brasil é parte do que eles chamam de Brics. Eu não gosto de 'tijolos'. Eu prefiro plantas. Mas é um forte jogador na cena global, e os jogadores vão decidir como os outros jogam.

Qual o papel da sociedade urbana em relação à agricultura familiar?

É muito feliz. Não porque eu acredito que as áreas urbanas têm mais riqueza e mais poder, mas porque, por terem mais riqueza, têm mais responsabilidade. E porque eles controlam a tomada de decisões, tanto em termos de governamentais como a sua própria atitude em termos de consumo. Se eles mudassem sua postura de consumo para longe das corporações, comprando, sim, alimentos dos pequenos produtores, eles ajudariam não apenas o agricultor familiar, mas também ajudariam a Terra e seus próprios corpos.

Recentemente o presidente da Nestlé afirmou que é necessário privatizar o fornecimento da água. Quais as consequências desse processo?

Tudo que é essencial à vida desde o começo da história, em todas as culturas, tem sido reconhecido como pertencente à sociedade. E isso inclui a semente, porque a semente é a base da comida, inclui a água porque água é vida. E são esses recursos que essas corporações gigantes querem enclausurar. Essas são as novas inclusões comerciais. Assim como na Inglaterra, eles enclausuraram a terra, e a tiraram dos camponeses para terem a revolução industrial.

Hoje, as corporações gigantes estão assumindo os bens comuns que são as sementes, a biodiversidade, a água. Quando a Nestlé diz que é necessário privatizar a água, eles estão, obviamente, pensando na necessidade de aumentar os lucros deles. Eles não estão pensando na necessidade dos aquíferos de serem sustentados e recarregados, porque corporações somente podem construir uma economia extrativa. Se eles privatizam a água, eles vão somente tirar a água para eles, o que significa que as comunidades locais são deixadas sem água. Então é um assalto.

As Nações Unidas têm de reconhecer que o direito à água é um direito humano. A Coca-Cola agora quer entrar no meu vale, um vale lindo no Himalaia, chamado Dune Valey. Em maio nós iniciamos uma campanha porque a privatização da água por essas empresas de engarrafamento significa, primeiro, que o direito universal à água é destruído. O aquífero, que pertence a todos, está agora engarrafado numa garrafa de 10 rupis que pode é acessível só aos ricos. Os pobres bebem apenas água contaminada.

A segunda coisa é que ela destrói água, e eu não sei por quanto tempo essa mineração poderá aguentar. A terceira é que ela polui. Sobram poucas fontes de águas puras, e, se eles realmente se importassem, deveriam limpar o pouco que sobra, ao invés de roubar o que resta limpo. Isto é roubo de água e, portanto, um crime contra a humanidade.

Essa dependência da Coca-Cola é um dos vícios da vida moderna. Nós temos muito mais bebidas saudáveis.
Na Índia, começamos uma campanha para as avós ensinassem aos seus netos as bebidas geladas que elas costumavam fazer. Somos um país tropical, sabemos como transformar qualquer fruta em uma bebida saborosa: um suco de manga crua, que é ótimo para prevenir insolação, uma mistura maravilhosa de sete grãos, que é como uma refeição completa e, se tomada no café da manhã, você não precisa de mais nada. As bebidas venenosas que são vendidas pela Nestlé e pela Coca-Cola roubam o nosso dinheiro, a nossa água e a nossa cultura.

Qual é a forma alternativa à globalização?

Originalmente, o livre comércio deveria reconhecer a liberdade de todas as espécies e por isso não destruiria nenhuma espécie nem ecossistema. Originalmente, o livre comércio reconheceria os direitos dos camponeses e dos povos indígenas e, por isso, não iria cortar as raízes. Reconheceria também os direitos dos pequenos agricultores familiares e iria cuidar para que existam preços justos, ao invés de tentar debilitar o preço por meio de dumping e jogando fora os produtos.

Um verdadeiro livre comércio seria a liberdade para as pessoas e não a liberdade para as corporações. O que nós temos agora é uma corporatização global com uma negligência total, uma destruição negligente e desatenta. O que precisamos é uma consciência livre que esteja profundamente ciente de nossa interconexão com outras espécies, outras culturas e com toda a humanidade. Temos que ser conscientes do dano que fazemos aos outros. Dessa forma, não vamos incrementar o tamanho de nossa pisada ecológica, mas vamos a reduzi-la.

E, na alimentação, a única forma em que você pode reduzir sua pisada é de mudar de agroindústria para agroecologia, mudar da distribuição global para distribuição local, mudar de um sistema violento, que depende do governo corporativo, para um sistema pacífico, que depende da comunidade e da solidariedade. No momento em que mudamos para isso, a pisada se reduz. Podemos ir do industrial e global para ecológico e local.

Como acelerar o processo de alinhamento entre os vários movimentos para um estilo de vida mais sustentável?

Agroecologistas, camponeses e agricultores familiares são, na minha opinião, os maiores, protetores do planeta. É o momento de os movimentos ecológicos perceberem que os verdadeiros ambientalistas são os agricultores, que realmente reconstroem o solo, que fazem o cultivo de uma forma que os besouros não sejam mortos, que protegem a água.

E o movimento pela saúde tem que perceber que os agricultores são os médicos, que fazer crescer comida saudável é a melhor contribuição que podemos fazer. No momento em que fazemos essas conexões, existe uma nova vida, porque a vida cresce por meio de inter-relações.

TATIANE RIBEIRO ENVIADA ESPECIAL A BOTUCATU
TONI SCIARRETTA DE SÃO PAULO

Publicado na Folha de SP

O QUE REALMENTE É O FASCISMO



Todo mundo sabe que o termo fascista é hoje pejorativo; um adjetivo frequentemente utilizado para se descrever qualquer posição política da qual o orador não goste. Não há ninguém no mundo atual propenso a bater no peito e dizer "Sou um fascista; considero o fascismo um grande sistema econômico e social."

Porém, afirmo que, caso fossem honestos, a vasta maioria dos políticos, intelectuais e ativistas do mundo atual teria de dizer exatamente isto a respeito de si mesmos.

O fascismo é o sistema de governo que carteliza o setor privado, planeja centralizadamente a economia subsidiando grandes empresários com boas conexões políticas, exalta o poder estatal como sendo a fonte de toda a ordem, nega direitos e liberdades fundamentais aos indivíduos e torna o poder executivo o senhor irrestrito da sociedade.

Tente imaginar algum país cujo governo não siga nenhuma destas características acima. Tal arranjo se tornou tão corriqueiro, tão trivial, que praticamente deixou de ser notado pelas pessoas. Praticamente ninguém conhece este sistema pelo seu verdadeiro nome.

É verdade que o fascismo não possui um aparato teórico abrangente. Ele não possui um teórico famoso e influente como Marx. Mas isso não faz com que ele seja um sistema político, econômico e social menos nítido e real. O fascismo também prospera como sendo um estilo diferenciado de controle social e econômico. E ele é hoje uma ameaça ainda maior para a civilização do que o socialismo completo. Suas características estão tão arraigadas em nossas vidas — e já é assim há um bom tempo — que se tornaram praticamente invisíveis para nós.

E se o fascismo é invisível para nós, então ele é um assassino verdadeiramente silencioso. Assim como um parasita suga seu hospedeiro, o fascismo impõe um estado tão enorme, pesado e violento sobre o livre mercado, que o capital e a produtividade da economia são completamente exauridos. O estado fascista é como um vampiro que suga a vida econômica de toda uma nação, causando a morte lenta e dolorosa de uma economia que outrora foi vibrante e dinâmica.

As origens do fascismo

A última vez em que as pessoas realmente se preocuparam com o fascismo foi durante a Segunda Guerra Mundial. Naquela época, dizia-se ser imperativo que todos lutassem contra este mal. Os governos fascistas foram derrotados pelos aliados, mas a filosofia de governo que o fascismo representa não foi derrotada. Imediatamente após aquela guerra mundial, uma outra guerra começou, esta agora chamada de Guerra Fria, a qual opôs o capitalismo ao comunismo. O socialismo, já nesta época, passou a ser considerado uma forma mais branda e suave de comunismo, tolerável e até mesmo louvável, mas desde que recorresse à democracia, que é justamente o sistema que legaliza e legitima a contínua pilhagem da população.

Enquanto isso, praticamente todo o mundo havia esquecido que existem várias outras cores de socialismo, e que nem todas elas são explicitamente de esquerda. O fascismo é uma dessas cores.

Não há dúvidas quanto às origens do fascismo. Ele está ligado à história da política italiana pós-Primeira Guerra Mundial. Em 1922, Benito Mussolini venceu uma eleição democrática e estabeleceu o fascismo como sua filosofia. Mussolini havia sido membro do Partido Socialista Italiano.

Todos os maiores e mais importantes nomes do movimento fascista vieram dos socialistas. O fascismo representava uma ameaça aos socialistas simplesmente porque era uma forma mais atraente e cativante de se aplicar no mundo real as principais teorias socialistas. Exatamente por isso, os socialistas abandonaram seu partido, atravessaram o parlamento e se juntaram em massa aos fascistas.

Foi também por isso que o próprio Mussolini usufruiu uma ampla e extremamente favorável cobertura na imprensa durante mais de dez anos após o início de seu governo. Ele era recorrentemente celebrado pelo The New York Times, que publicou inúmeros artigos louvando seu estilo de governo. Ele foi louvado em coletâneas eruditas como sendo o exemplo de líder de que o mundo necessitava na era da sociedade planejada. Matérias pomposas sobre o fanfarrão eram extremamente comuns na imprensa americana desde o final da década de 1920 até meados da década de 1930.

Qual o principal elo entre o fascismo e o socialismo? Ambos são etapas de um continuum que visa ao controle econômico total, um continuum que começa com a intervenção no livre mercado, avança até a arregimentação dos sindicatos e dos empresários, cria leis e regulamentações cada vez mais rígidas, marcha rumo ao socialismo à medida que as intervenções econômicas vão se revelando desastrosas e, no final, termina em ditadura.

O que distingue a variedade fascista de intervencionismo é a sua recorrência à ideia de estabilidade para justificar a ampliação do poder do estado. Sob o fascismo, grandes empresários e poderosos sindicatos se aliam entusiasticamente ao estado para obter estabilidade contra as flutuações econômicas, isto é, as expansões e contrações de determinados setores do mercado em decorrência das constantes alterações de demanda por parte dos consumidores. A crença é a de que o poder estatal pode suplantar a soberania do consumidor e substituí-la pela soberania dos produtores e sindicalistas, mantendo ao mesmo tempo a maior produtividade gerada pela divisão do trabalho.

Os adeptos do fascismo encontraram a perfeita justificativa teórica para suas políticas na obra de John Maynard Keynes. Keynes alegava que a instabilidade do capitalismo advinha da liberdade que o sistema garantia ao "espírito animal" dos investidores. Ora guiados por rompantes de otimismo excessivo e ora derrubados por arroubos de pessimismo irreversível, os investidores estariam continuamente alternando entre gastos estimuladores e entesouramentos depressivos, fazendo com que a economia avançasse de maneira intermitente, apresentando uma sequência de expansões e contrações.

Keynes propôs eliminar esta instabilidade por meio de um controle estatal mais rígido sobre a economia, com o estado controlando os dois lados do mercado de capitais. De um lado, um banco central com o poder de inflacionar a oferta monetária por meio da expansão do crédito iria determinar a oferta de capital para financiamento, e, do outro, uma ativa política fiscal e regulatória iria socializar os investimentos deste capital.

Em uma carta aberta ao presidente Franklin Delano Roosevelt, publicado no The New York Times em 31 de dezembro de 1933, Keynes aconselhava seu plano:

Na área da política doméstica, coloco em primeiro plano um grande volume de gastos sob os auspícios do governo. Em segundo lugar, coloco a necessidade de se manter um crédito abundante e barato. ... Com estas sugestões . . . posso apenas esperar com grande confiança por um resultado exitoso. Imagine o quanto isto significaria não apenas para a prosperidade material dos Estados Unidos e de todo o mundo, mas também em termos de conforto para a mente dos homens em decorrência de uma restauração de sua fé na sensatez e no poder do governo. (John Maynard Keynes, "An Open Letter to President Roosevelt," New York Times, December 31, 1933 in ed. Herman Krooss, Documentary History of Banking and Currency in the United States, Vol. 4 (New York: McGraw Hill, 1969), p. 2788.)

Keynes se mostrou ainda mais entusiasmado com a difusão de suas ideias na Alemanha. No prefácio da edição alemã da Teoria Geral, publicada em 1936, Keynes escreveu:

A teoria da produção agregada, que é o que este livro tenciona oferecer, pode ser adaptada às condições de um estado totalitário com muito mais facilidade do que a teoria da produção e da distribuição sob um regime de livre concorrência e laissez-faire. (John Maynard Keynes, "Prefácio" da edição alemã de 1936 da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, traduzido e reproduzido in James J. Martin, Revisionist Viewpoints (Colorado Springs: Ralph Myles, 1971), pp. 203?05.)

Controle estatal do dinheiro, do crédito, do sistema bancário e dos investimentos é a base exata de uma política fascista. Historicamente, a expansão do controle estatal sob o fascismo seguiu um padrão previsível. O endividamento e a inflação monetária pagaram pelos gastos estatais. A resultante expansão do crédito levou a um ciclo de expansão e recessão econômica. O colapso financeiro gerado pela recessão resultou na socialização dos investimentos e em regulamentações mais estritas sobre o sistema bancário, ambos os quais permitiram mais inflação monetária, mais expansão do crédito, mais endividamento e mais gastos. O subsequente declínio no poder de compra do dinheiro justificou um controle de preços e salários, o qual se tornou o ponto central do controle estatal generalizado. Em alguns casos, tudo isso aconteceu rapidamente; em outros, o processo se deu de maneira mais lenta. Porém, em todos os casos, o fascismo sempre seguiu este caminho e sempre descambou no total planejamento centralizado.

Na Itália, local de nascimento do fascismo, a esquerda percebeu que sua agenda anticapitalista poderia ser alcançada com muito mais sucesso dentro do arcabouço de um estado autoritário e planejador. Keynes teve um papel-chave ao fornecer uma argumentação pseudo-científica contra o laissez-faire do velho mundo e em prol de uma nova apreciação da sociedade planejada. Keynes não era um socialista da velha guarda. Como ele próprio admitiu na introdução da edição nazista da Teoria Geral, o nacional-socialismo era muito mais favorável às suas ideias do que uma economia de mercado.

Características

Examinando a história da ascensão do fascismo, John T. Flynn, em seu magistral livro As We Go Marching, de 1944, escreveu:

Um dos mais desconcertantes fenômenos do fascismo é a quase inacreditável colaboração entre homens da extrema-direita e da extrema-esquerda para a sua criação. Mas a explicação para este fenômeno aparentemente contraditório jaz na seguinte questão: tanto a direita quanto a esquerda juntaram forças em sua ânsia por mais regulamentação. As motivações, os argumentos, e as formas de expressão eram diferentes, mas todos possuíam um mesmo objetivo, a saber: o sistema econômico tinha de ser controlado em suas funções essenciais, e este controle teria de ser exercido pelos grupos produtores.

Flynn escreveu que a direita e a esquerda discordavam apenas quanto a quem seria este 'grupo de produtores'. A esquerda celebrava os trabalhadores como sendo os produtores. Já a direita afirmava que os produtores eram os grandes grupos empresariais. A solução política de meio-termo — a qual prossegue até hoje, e cada vez mais forte — foi cartelizar ambos.

Sob o fascismo, o governo se torna o instrumento de cartelização tanto dos trabalhadores (desde que sindicalizados) quanto dos grandes proprietários de capital. A concorrência entre trabalhadores e entre grandes empresas é tida como algo destrutivo e sem sentido; as elites políticas determinam que os membros destes grupos têm de atuar em conjunto e agir cooperativamente, sempre sob a supervisão do governo, de modo a construírem uma poderosa nação.

Os fascistas sempre foram obcecados com a ideia de grandeza nacional. Para eles, grandeza nacional não consiste em uma nação cujas pessoas estão se tornando mais prósperas, com um padrão de vida mais alto e de maior qualidade. Não. Grandeza nacional ocorre quando o estado incorre em empreendimentos grandiosos, faz obras faraônicas, sedia grandes eventos esportivos e planeja novos e dispendiosos sistemas de transporte.

Em outras palavras, grandeza nacional não é a mesma coisa que a sua grandeza ou a grandeza da sua família ou a grandeza da sua profissão ou do seu empreendimento. Muito pelo contrário. Você tem de ser tributado, o valor do seu dinheiro tem de ser depreciado, sua privacidade tem de ser invadida e seu bem-estar tem de ser diminuído para que este objetivo seja alcançado. De acordo com esta visão, é o governo quem tem de nostornar grandes.

Tragicamente, tal programa possui uma chance de sucesso político muito maior do que a do antigo socialismo. O fascismo não estatiza a propriedade privada como faz o socialismo. Isto significa que a economia não entra em colapso quase que imediatamente. Tampouco o fascismo impõe a igualdade de renda. Não se fala abertamente sobre a abolição do casamento e da família ou sobre a estatização das crianças. A religião não é proibida.

Sob o fascismo, a sociedade como a conhecemos é deixada intacta, embora tudo seja supervisionado por um poderoso aparato estatal. Ao passo que o socialismo tradicional defendia uma perspectiva globalista, o fascismo é explicitamente nacionalista ou regionalista. Ele abraça e exalta a ideia de estado-nação.

Quanto à burguesia, o fascismo não busca a sua expropriação. Em vez disso, a classe média é agradada com previdência social, educação gratuita, benefícios médicos e, é claro, com doses maciças de propaganda estatal estimulando o orgulho nacional.

O fascismo utiliza o apoio conseguido democraticamente para fazer uma arregimentação nacional e, com isso, controlar mais rigidamente a economia, impor a censura, cartelizar empresas e vários setores da economia, repreender dissidentes e controlar a liberdade dos cidadãos. Tudo isso exige um contínuo agigantamento do estado policial.

Sob o fascismo, a divisão entre esquerda e direita se torna amorfa. Um partido de esquerda que defende programas socialistas não tem dificuldade alguma em se adaptar e adotar políticas fascistas. Sua agenda política sofre alterações ínfimas, a principal delas sendo a sua maneira de fazer marketing.

O próprio Mussolini explicou seu princípio da seguinte maneira: "Tudo dentro do Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado". Ele também disse: "O princípio básico da doutrina Fascista é sua concepção do Estado, de sua essência, de suas funções e de seus objetivos. Para o Fascismo, o Estado é absoluto; indivíduos e grupos, relativos."

O futuro

Não consigo imaginar qual seria hoje uma prioridade maior do que uma séria e efetiva aliança anti-fascista. De certa maneira, ainda que muito desconcertada, uma resistência já está sendo formada. Não se trata de uma aliança formal. Seus integrantes sequer sabem que fazem parte dela. Tal aliança é formada por todos aqueles que não toleram políticos e politicagens, que se recusam a obedecer leis fascistas convencionais, que querem mais descentralização, que querem menos impostos, que querem poder importar bens sem ter de pagar tarifas escorchantes, que protestam contra a inflação e seu criador, o Banco Central, que querem ter a liberdade de se associar com quem quiserem e de comprar e vender de acordo com termos que eles próprios decidirem, por aqueles que insistem em educar seus filhos por conta própria, por aqueles investidores, poupadores e empreendedores que realmente tornam possível qualquer crescimento econômico e por aqueles que resistem ao máximo a divulgar dados pessoais para o governo e para o estado policial.

Tal aliança é também formada por milhões de pequenos e independentes empreendedores que estão descobrindo que a ameaça número um à sua capacidade de servir aos outros por meio do mercado é exatamente aquela instituição que alega ser nossa maior benfeitora: o governo.

Quantas pessoas podem ser classificadas nesta categoria? Mais do que imaginamos. O movimento é intelectual. É cultural. É tecnológico. Ele vem de todas as classes, raças, países e profissões. Não se trata de um movimento meramente nacional; ele é genuinamente global. Não mais podemos prever se os membros se consideram de esquerda, de direita, independentes, libertários, anarquistas ou qualquer outra denominação. O movimento inclui pessoas tão diversas como pais adeptos do ensino domiciliar em pequenas cidades e pais em áreas urbanas cujos filhos estão encarcerados por tempo indeterminado e sem nenhuma boa razão.

E o que este movimento quer? Nada mais e nada menos do que a doce liberdade. Ele não está pedindo que a liberdade seja concedida ou dada. Ele apenas pede a liberdade que foi prometida pela própria vida, e que existiria na ausência do estado leviatã que nos extorque, escraviza, intimida, ameaça, encarcera e mata. Este movimento não é efêmero. Somos diariamente rodeados de evidências que demonstram que ele está absolutamente correto em suas exigências. A cada dia, torna-se cada vez mais óbvio que o estado não contribui em absolutamente nada para o nosso bem-estar. Ao contrário, ele maciçamente subtrai nosso padrão de vida.

Nos anos 1930, os defensores do estado transbordavam de ideias grandiosas. Eles possuíam teorias e programas de governo que gozavam o apoio de vários intelectuais sérios. Eles estavam emocionados e excitados com o mundo que iriam criar. Eles iriam abolir os ciclos econômicos, criar desenvolvimento social, construir a classe média, curar todas as doenças, implantar a seguridade universal, acabar com a escassez e fazer vários outros milagres. O fascismo acreditava em si próprio.

Hoje o cenário é totalmente distinto. O fascismo não possui nenhuma ideia nova, nenhum projeto grandioso — nem mesmo seus partidários realmente acreditam que podem alcançar os objetivos almejados. O mundo criado pelo setor privado é tão mais útil e benevolente do que qualquer coisa que o estado já tenha feito, que os próprios fascistas se tornaram desmoralizados e cientes de que sua agenda não possui nenhuma base intelectual real.

É algo cada vez mais amplamente reconhecido que o estatismo não funciona e nem tem como funcionar. O estatismo é e continua sendo a maior mentira do milênio. O estatismo nos dá o exato oposto daquilo que promete. Ele nos promete segurança, prosperidade e paz. E o que ele nos dá é medo, pobreza, conflitos, guerra e morte. Se queremos um futuro, teremos nós mesmos de construí-lo. O estado fascista não pode nos dar nada. Ao contrário, ele pode apenas atrapalhar.

Por outro lado, também parece óbvio que o antigo romance dos liberais clássicos com a ideia de um estado limitado já se esvaneceu. É muito mais provável que os jovens de hoje abracem uma ideia que 50 anos atrás era tida como inimaginável: a ideia de que a sociedade está em melhor situação sem a existência de qualquer tipo de estado.

Eu diria que a ascensão da teoria anarcocapitalista foi a mais dramática mudança intelectual ocorrida em minha vida adulta. Extinta está a ideia de que o estado pode se manter limitado exclusivamente à função de vigilante noturno, mantendo-se como uma entidade pequena que irá se limitar a apenas garantir direitos essenciais, adjudicar conflitos, e proteger a liberdade. Esta visão é calamitosamente ingênua. O vigia noturno é o sujeito que detém as armas, que possui o direito legal de utilizar de violência, que controla todas as movimentações das pessoas, que possui um posto de comando no alto da torre e que pode ver absolutamente tudo. E quem vigia este vigia? Quem limita seu poder? Ninguém, e é exatamente por isso que ele é a fonte dos maiores males da sociedade. Nenhuma lei, nenhuma constituição bem fundamentada, nenhuma eleição, nenhum contrato social irá limitar seu poder.

Com efeito, o vigia noturno adquiriu poderes totais. É ele quem, como descreveu Flynn, "possui o poder de promulgar qualquer lei ou tomar qualquer medida que lhe seja mais apropriada". Enquanto o governo, continua Flynn, "estiver investido do poder de fazer qualquer coisa sem nenhuma limitação prática às suas ações, ele será um governo totalitário. Ele possui o poder total".

Este é um ponto que não mais pode ser ignorado. O vigia noturno tem de ser removido e seus poderes têm de ser distribuídos entre toda a população, e esta tem de ser governada pelas mesmas forças que nos trazem todas as bênçãos possibilitadas pelo mundo material.

No final, esta é a escolha que temos de fazer: o estado total ou a liberdade total. O meio termo é insustentável no longo prazo. Qual iremos escolher? Se escolhermos o estado, continuaremos afundando cada vez mais, e no final iremos perder tudo aquilo que apreciamos enquanto civilização. Se escolhermos a liberdade, poderemos aproveitar todo o notório poder da cooperação humana, o que irá nos permitir continuar criando um mundo melhor.

Na luta contra o fascismo, não há motivos para se desesperar. Temos de continuar lutando sempre com a total confiança de que o futuro será nosso, e não deles.

O mundo deles está se desmoronando. O nosso está apenas começando a ser construído. O mundo deles é baseado em ideologias falidas. O nosso é arraigado na verdade, na liberdade e na realidade. O mundo deles pode apenas olhar para o passado e ter nostalgias daqueles dias gloriosos. O nosso olha para frente e contempla todo o futuro que estamos construindo para nós mesmos. O mundo deles se baseia no cadáver do estado-nação. O nosso se baseia na energia e na criatividade de todas as pessoas do mundo, unidas em torno do grande e nobre projeto da criação de uma civilização próspera por meio da cooperação humana pacífica.

É verdade que eles possuem armas grandes e poderosas. Mas armas grandes e poderosas nunca foram garantia de vitória em guerras. Já nós possuímos a única arma que é genuinamente imortal: a ideia certa. E é isso que nos levará à vitória.

Como disse Mises,
No longo prazo, até mesmo o mais tirânico dos governos, com toda a sua brutalidade e crueldade, não é páreo para um combate contra ideias. No final, a ideologia que obtiver o apoio da maioria irá prevalecer e retirar o sustento de sob os pés do tirano. E então os vários oprimidos irão se elevar em uma rebelião e destronar seus senhores.

Por: Lew Rockwell  presidente do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State
Tradução de Leandro Roque


sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O ESFACELAMENTO DO REAL E AS PERSPECTIVAS DA ECONOMIA BRASILEIRA

"A estabilidade pode não ser tudo; porém, sem estabilidade, tudo vira um nada." 



Foi com estas palavras que o social-democrata Karl Schiller, ministro das finanças da Alemanha Ocidental de 1966 a 1972, definiu o quão importante era para a Alemanha ter uma moeda forte.



Durante a segunda metade do século XX, nenhum povo levou tão a sério a importância de se ter uma moeda forte e estável quanto os alemães. Tendo sofrido duas hiperinflações em um espaço de apenas 24 anos (uma em 1922-1923 e a outra logo após o fim da Segunda Guerra Mundial), o que aniquilou toda a sua poupança, a população alemã entendeu, e de uma maneira extremamente dolorosa, que a moeda de um país não pode ser aviltada. Foi o primeiro-ministro alemão Konrad Adenauer quem disse que "defender a moeda é a condição precípua para se manter uma economia de mercado e, em última instância, uma sociedade livre." Já o ministro das finanças de Adenauer, Ludwig Erhard — o "pai" do milagre econômico alemão —, foi ainda mais longe e proclamou que a estabilidade monetária era um direito humano básico.

O compromisso com uma moeda forte e estável se tornou tão inegociável, que foi criada uma lei em 1957 — a Lei Bundesbank — que incorporava essa visão alemã sobre a moeda: a lei declarava especificamente que o Banco Central alemão seria completamente independente de pressões políticas e de instruções do governo federal. Sua única função seria a de "proteger a moeda", controlando a quantidade de dinheiro em circulação na economia com o objetivo de manter a robustez da moeda. Esta lei deu ao Bundesbank uma autonomia de poder que nunca foi vista em nenhum outro país desde então, e contava com o apoio de social-democratas e conservadores.

A aprovação e implementação desta lei, em conjunto com a genuína determinação mostrada por seus vários presidentes, fez do Bundesbank o Banco Central mais respeitado e confiado do mundo. De 1957 até imediatamente antes da introdução do euro, em 2002, a Alemanha apresentou a menor inflação de preços do mundo, menor até mesmo que a da Suíça. 

O gráfico abaixo mostra a evolução do índice de preços da Alemanha (linha preta), da Suíça (linha vermelha) e dos EUA (linha azul, apenas a título de comparação). Observe que, embora Alemanha e Suíça comecem com aproximadamente o mesmo índice, já na década de 1970 a inflação de preços acumulada na Alemanha se torna visivelmente menor que a da Suíça, permanecendo assim por toda a década de 1980 e 1990. Foi só em 2004, já sob o euro, que a situação se inverteu e a Suíça passou a apresentar uma menor inflação de preços acumulada. 



Esse gráfico explicita por que os alemães não são muito simpáticos ao euro, e mostra por que foi tão difícilconvencê-los a abrir mão do marco alemão em prol de uma moeda única europeia. (E ajuda também a entender por que as desigualdades de renda nos EUA são muito maiores que as da Suíça, não obstante toda a generosidade das políticas assistencialistas americanas).

Com efeito, a admiração dos alemães pelo marco alemão era tamanha, que uma pesquisa feita em 1995 relatou que 80% dos alemães identificavam sua "germanicidade" com a estabilidade, a força e o prestígio internacional do marco. Eles haviam vivenciado os "milagres" que uma moeda forte é capaz de fazer. Uma economia que estava destruída em decorrência de uma guerra mundial, e cuja população havia perdido toda a sua poupança em decorrência de duas hiperinflações, conseguiu se reerguer, enriquecer e se tornar a mais poderosa da Europa no espaço de apenas uma geração, tudo isso possibilitado por uma moeda forte e estável, que dava a seus cidadãos um poder de compra sem par. Os alemães perceberam na prática que uma moeda forte é uma condição indispensável — embora não seja suficiente — para a prosperidade econômica, e que uma moeda fraca e instável cria baderna e inquietações sociais.

Os alemães creditavam à robustez do marco o fato de estarem entre os trabalhadores mais bem pagos do mundo e de poderem fazer várias viagens internacionais a preços extremamente baixos.

Por que este longo prólogo dedicado à Alemanha? Porque a Alemanha — em conjunto com a Suíça e com o Japão — é um perfeito exemplo prático de como uma moeda forte só traz vantagens para uma população. Aqui no Brasil, economistas pós-keynesianos e progressistas diariamente afirmam que uma moeda desvalorizada é uma condição indispensável para a robustez e competitividade da indústria nacional, e que uma moeda forte levaria à extinção de nosso parque industrial e geraria fortes desequilíbrios no balanço de pagamentos, pois os brasileiros iriam "importar e viajar muito". Aparentemente, eles ignoram o fato de que Alemanha, Suíça e Japão possuem moedas fortes há décadas e, não obstante, um setor industrial e exportador extremamente robusto e competitivo, além de uma população bastante viajada. Não foi necessário desvalorizar suas moedas para que suas indústrias se tornassem competitivas, e até hoje nunca houve qualquer indicativo de "crise no balanço de pagamentos".

Abaixo, a evolução das taxas de câmbio da Alemanha (linha preta), da Suíça (linha vermelha) e do Japão (linha amarela, eixo da direita) em relação ao dólar. A série termina em dezembro de 1998 porque em janeiro de 1999 a Alemanha teve de alterar seu regime cambial para se preparar para a introdução do euro.



A súbita, porém passageira, depreciação observada na primeira metade da década de 1980 não se deve a nenhuma política inflacionista destes Bancos Centrais, mas sim à acentuada valorização do dólar neste período, que foi quando o Fed estava sob o comando de Paul Volcker, que havia elevado a taxa básica de juros americana para 20%.

A situação no Brasil

Para entender o atual momento da economia brasileira e de sua moeda, um rápido exercício de imaginação será de grande valia. Imagine o leitor estes dois cenários completamente opostos:

1) No primeiro cenário, os bancos passam a aumentar a oferta de crédito, o que faz com que a quantidade de dinheiro na economia aumente continuamente. Isso, por conseguinte, faz com que os salários nominais da população também cresçam continuamente. No entanto, não obstante toda essa inflação monetária, o poder de compra da moeda mensurado em dólares, em vez de cair, também aumenta continuamente.

2) Já no segundo cenário, com a população mais endividada e com os indicadores de inadimplência em alta, os bancos se tornam mais comedidos e passam a restringir o crédito. Consequentemente, a quantidade de dinheiro na economia passa a crescer moderadamente, e isso faz com que o crescimento dos salários nominais da população arrefeça. No entanto, não obstante esta contenção da inflação monetária, o poder de compra da moeda mensurado em dólares, em vez de subir, passa a cair continuamente.

O primeiro cenário vigorou no Brasil de 2003 até meados de 2011. A oferta monetária se expandiu vigorosamente e, não obstante tal inflação, o valor do real mensurado em dólares também aumentou continuamente. No primeiro semestre de 2003, por exemplo, o dólar chegou a custar R$3,60. A partir dali, o real começou a se valorizar perante o dólar, chegando ao ápice em julho de 2008, quando o dólar valia apenas R$1,56. Houve um ligeiro soluço no final de 2008 e início de 2009 por conta da crise financeira mundial, mas nada que abalasse o fortalecimento do real, que rapidamente voltou a se valorizar continuamente até chegar novamente ao valor de R$1,54 em julho de 2011.

Este fenômeno — e isso deve ser muito enfatizado — foi totalmente inédito na história do Brasil. Nunca antes havíamos vivenciado um período que conjugasse forte expansão monetária, aumento nominal dos salários e contínua apreciação da moeda nacional. Nem mesmo na primeira fase do Plano Real, de 1994 a 1998, isso ocorreu. 

Para se ter uma ideia do que isso representou, uma pessoa que ganhava um salário mínimo no início de 2003 — R$200 — tinha um poder de compra de aproximadamente US$60. Já uma pessoa que ganhava salário mínimo em meados de 2008 — R$415 — passou a ter um poder de compra de aproximadamente US$259. E em meados de 2011, com o salário mínimo a R$545, tal pessoa passou a ter um poder de compra de aproximadamente US$340. Ou seja, em dólares, o poder de compra de um trabalhador que recebe salário mínimo cresceu 332% em 5 anos e 466% em 8 anos.

Isso, e apenas isso, já ilustra a importância de se ter uma moeda forte. E você ainda se surpreende que Lula tenha tido recordes de aprovação, principalmente entre os mais pobres? Fernando Henrique Cardoso também usufruiu altos índices de popularidade entre os mais pobres durante seu primeiro mandato, quando o real estavaatrelado ao dólar. E foram os mais pobres que o reelegeram em 1998. Novamente, apenas uma consequência natural de se ter uma moeda forte.

Esta valorização do real perante o dólar entre 2003-2011, a qual ocorreu durante um longo processo de expansão do crédito, foi crucial em fazer com que a inflação de preços no Brasil não aumentasse tanto quanto poderia ter aumentado em decorrência de toda a inflação monetária ocorrida. Tal fenômeno — que representou um grande aumento na renda real das pessoas — não pode ser descartado quando se quer entender o motivo da alta popularidade de Lula. As pessoas tinham cada vez mais dinheiro no bolso, e esse dinheiro valia cada vez mais em termos de dólares.

O gráfico a seguir ilustra como foi esse movimento. A linha vermelha representa a evolução do câmbio (coluna da esquerda). A linha azul representa a evolução da oferta monetária (coluna da direita). O período analisado é de janeiro de 2002 a julho de 2011.



Vale observar que, após a forte alta do dólar no final de 2002 — temores com a eleição de Lula —, o real volta a se fortalecer em 2003, e firmando sua tendência de valorização a partir de 2004.

Embora este mesmo fenômeno tenha ocorrido com praticamente todas as outras moedas ao redor do mundo — pois este foi um período de grande desvalorização do dólar —, a apreciação do real foi particularmente mais intensa. E isso pode ser creditado à percepção positiva que os investidores estrangeiros, os especuladores e todos os traders que atuam no mercado financeiro tinham em relação à equipe econômica. A boa equipe montada por Antônio Palocci no primeiro mandato de Lula, com Joaquim Levy, Marcos Lisboa e Murilo Portugal na Fazenda, além de Henrique Meirelles, Ilan Goldfajn e Alexandre Schwartsman no Banco Central, foi essencial para gerar esta confiança. E ela foi mantida inabalada mesmo durante períodos conturbados, como por exemplo durante o escândalo do mensalão em 2005, em que não houve fuga de dólares e o câmbio não foi afetado.

E, mesmo com mudanças significativas feitas na equipe econômica a partir de 2006, com a saída de Palocci e a nomeação de Guido Mantega para Ministro da Fazenda, a confiança se manteve. Após um forte soluço ocorrido no final de 2008, a economia se recuperou rapidamente durante o ano de 2009, pois o governo não saiu baixando pacotes, não tentou desvalorizar o câmbio, não recorreu a políticas protecionistas e, principalmente, permitiu que preços e salários se ajustassem para baixo. Esta célere recuperação, em conjunto com as fartas matériaselogiosas publicadas pela imprensa internacional sobre a economia do país, manteve o ânimo dos investidores estrangeiros, dos especuladores e de todos os traders que atuam no mercado financeiro, e o real voltou a se valorizar perante o dólar. 

Todos os bons resultados financeiros apresentados pelas filiais de empresas estrangeiras instaladas no Brasil podem ser creditados à valorização do real, que fez com que os lucros remetidos em dólares e euros para suas matrizes fossem substanciais. O mesmo pode ser dito sobre o espetacular momento vivenciado pelas companhias aéreas neste período, uma vez que dólar baixo significa mais pessoas viajando e querosene mais barato.

Mas tudo começou a degringolar em 2012, que foi o ano em que o governo mais exacerbou suas intervenções na economia, o que deu origem ao segundo cenário descrito no início desta seção. 

Toda a expansão creditícia iniciada em 2004 gerou dois inevitáveis resultados: endividamento recorde da população e inadimplência em alta. O gráfico abaixo ilustra a evolução destes dois indicadores. A linha azul mostra endividamento das famílias em relação à sua renda acumulada nos últimos doze meses (coluna da direita) e a linha vermelha mostra a evolução da inadimplência (coluna da esquerda).



Esta situação fez com que os bancos adotassem uma postura mais comedida e aumentassem suas exigências antes de conceder novos empréstimos. Tal postura mais restritiva dos bancos gerou um arrefecimento na até então frenética expansão do crédito, algo que, por conseguinte, reduziu a taxa de crescimento da oferta monetária.

Essa redução da taxa de crescimento da oferta monetária afetou os números do PIB, bem como a demanda por bens industriais (veja aqui o gráfico da produção industrial). O governo então se desesperou e, confundindo causa com consequência, passou a adotar uma profusão de medidas intervencionistas para "proteger a indústria". 

Primeiro ele fechou os portos aumentando as alíquotas de importação de praticamente todos os produtos estrangeiros (está tudo aqui e aqui). Depois, obrigou todas as grandes empresas do país a produzir utilizando uma determinada porcentagem de insumos fabricados no Brasil. Ato contínuo, os privilegiados fabricantes destes insumos obviamente se aproveitaram deste monopólio para aumentar seus preços. Para ajudar as grandes empresas a adquirir estes agora mais caros insumos, e simultaneamente para ajudá-las em seus projetos de investimento, o BNDES foi liberado para lhes emprestar dinheiro público a rodo, tudo a juros subsidiados. Como o BNDES não tem todo esse dinheiro, o Tesouro começou a emitir títulos apenas para arrecadar este dinheiro, o que fez com que a dívida bruta do país chegasse a R$ 2,823 trilhões. Em simultâneo, naquelas poucas áreas com potencial para receber fartos investimentos estrangeiros — o setor de infraestrutura rodoviária, portuária, aeroportuária e ferroviária —, o governo estipulou taxas de retorno, de estilo bolivariano. No final, para não assustar de vez os investidores estrangeiros e os organismos internacionais, o governo passou a maquiar suas contas públicas, transformando 'recebíveis a longo prazo' em 'receita imediata', e déficit em superávit.

Paralelamente a tudo isso, a presidente e seus dois ministros favoritos (Mantega e Pimentel) se esmeraram em açoitar com gosto o "tsunami" de dólares que entrava no Brasil e apreciava o câmbio, sem se dar conta de que eram justamente esses dólares os principais responsáveis pela satisfação da população.

Resultado de tudo isso: estagnação, insegurança, alto grau de incerteza do empresariado, desconfiança dos investidores estrangeiros, saída de dólares, e acentuada desvalorização cambial. O dólar, que em julho de 2011 chegou a valer R$1,56, disparou para R$2,44.



Neste mesmo período, o euro foi de R$2,26 para R$3,26. Isso significa que o dólar se valorizou 56% perante o real, e o euro, 44%. 

Ou seja, quem hoje recebe salário mínimo — de R$678 — está recebendo US$278, um valor 18% menor que os US$340 de julho de 2011. E ainda há quem acredite que os progressistas que defendem câmbio desvalorizado são a favor do aumento da renda dos mais pobres...

São três os fatores que determinam as oscilações da taxa de câmbio de uma moeda:

1) O primeiro é a inflação monetária e sua inevitável consequência, que é a inflação de preços. A taxa de câmbio é, no longo prazo, definida pelo poder de compra da moeda. Como o poder de compra do real foi dizimado pela inflação monetária ocorrida do período 2008-2011, é natural que esteja agora havendo esse ajuste na taxa de câmbio.

2) Além da inflação monetária, a taxa de câmbio de curto prazo também é afetada pelo crescimento da economia. Quanto maior o crescimento da economia, maior a demanda por moeda nacional — logo, mais apreciada tende a ser a moeda. Isso explica a valorização cambial que inevitavelmente ocorre quando o PIB está crescendo. 

3) Mas é o terceiro fator que está se sobressaindo atualmente. Quando uma economia ainda em desenvolvimento — como a brasileira — adota uma taxa de câmbio flutuante, sua moeda estará diariamente sujeita aos humores dos especuladores, dos investidores internacionais e de todos os traders que atuam no mercado financeiro. Se eles perderem a confiança no governo, a taxa de câmbio poderá se desvalorizar acentuadamente, e permanecer assim por um bom tempo. É isso que está acontecendo no Brasil atual: a inflação monetária não está mais crescendo em níveis acentuados, mas a taxa de câmbio segue se desvalorizando por causa da atuação de especuladores, dos investidores internacionais e de todos os traders que já perceberam que as autoridades monetárias e econômicas do Brasil não são muito sérias.[1]

Essa abrupta desvalorização do real perante o dólar alarmou toda a equipe econômica. Desde maio último, o Banco Central já gastou quase US$ 40 bilhões em leilões de swap cambial, mas o preço do dólar continua em ascensão. Para piorar, a percepção de que a situação está degringolando cresceu na mesma proporção. Veja um trecho desta notícia retirada do blog do jornalista Vicente Nunes:


Nenhum dos diretores do Banco Central fala claramente, mas há um desconforto generalizado entre eles com o que consideram traição por parte do restante do governo. Acreditam que a autoridade monetária seguiu à risca tudo o que foi combinado com o Planalto nos últimos três anos, sobretudo a missão de levar a taxa básica de juros (Selic) para o menor patamar da história, de 7,25% ao ano, em outubro de 2012.

A expectativa era de que todo o governo se engajasse nesse processo, especialmente o Ministério da Fazenda, ao fazer um ajuste fiscal consistente, com transparência, sem truques, para mostrar uma saúde que as contas públicas não têm. O que o BC viu foi exatamente o contrário. 

De início, porém, os integrantes da diretoria comandada por Alexandre Tombini preferiram o silêncio ante o descompromisso com o ajuste fiscal. Mas, diante da disparada da inflação e do derretimento do que ainda restava de credibilidade em relação à instituição, houve uma rebelião no BC e passou-se a explicitar a contrariedade com a gastança e a maquiagem das contas públicas tanto nas atas do Comitê de Política Monetária (Copom) quanto no Relatório Trimestral de Inflação.

Os diretores também cobraram uma postura mais clara de Tombini em público, pois o risco de as expectativas dos agentes econômicos degringolar era enorme. O presidente do BC passou, então, a ressaltar a importância de um ajuste fiscal consistente para ajudar o Copom a reconstruir a confiança que o país tanto precisa para retomar o crescimento consistente. 

Os diretores do BC sabem que não será uma tarefa fácil, especialmente porque o maior símbolo da desconfiança, o maquiador da Esplanada, o secretário do Tesouro Nacional, Arno Augustin, permanece firme e forte no cargo, simplesmente porque é amigo da presidente Dilma Rousseff.

Tombini sentiu na pele o quanto a sua credibilidade e a de toda a diretoria do BC está no chão. Na semana passada, ele se reuniu, a portas fechadas, em São Paulo, com mais de uma centena de empresários e tomou uma sova. Começou com um discurso positivo, de que tudo está bem, que a inflação está sob controle (mesmo tendo ficado acima de 6% ao longo deste ano, no acumulado de 12 meses), mas acabou sendo atropelado por uma onda de críticas em relação ao governo. Muitos presentes no encontro foram claros ao afirmar que não vão retomar os investimentos produtivos até o fim das eleições de 2014. Tombini deixou o local quase mudo.

O Banco Central, como esperado, soltou uma nota negando a veracidade destas informações, o que significa que elas de fato são verdadeiras.

O que fazer

Durante toda a expansão do crédito anterior, os indivíduos intensificaram seu endividamento para poder consumir, na crença de que a expansão do crédito continuaria farta e que sua renda futura continuaria aumentando, o que facilitaria a quitação destas dívidas. Já as empresas embarcaram em investimentos de longo prazo estimuladas tanto pela expansão monetária coordenada pelo Banco Central (o que fez com que os investimentos se tornassem mais financeiramente viáveis) quanto pela expectativa de que o aumento futuro da renda possibilitaria o consumo dos produtos criados pelos seus investimentos. 

Este arranjo, no entanto, já foi revertido. A renda nominal se estagnou, mas os preços continuam em ascensão, em grande parte por causa da desvalorização do câmbio. É esta combinação entre renda nominal estagnada e preços em ascensão que vem gerando esta sensação real de aperto financeiro nos brasileiros. 

Toda a mecânica deste ciclo econômico da economia brasileira já foi explicada inúmeras vezes neste site, de modo que ela não é o escopo deste artigo (veja aqui, aqui e aqui). Basta apenas dizer que, quando uma economia entra em uma fase de rearranjo pós-expansão do crédito, é essencial que seus preços possam cair para fazer com que a oferta entre em sintonia com a demanda. Uma acentuada desvalorização do câmbio vai totalmente contra este propósito. E, considerando-se que a inflação de preços acumulada em 12 meses está acima de 6%, e que a economia está estagnada, a situação é compreensivelmente ruim.

E é exatamente por isso que é de suma importância ter uma equipe econômica — tanto na Fazenda quanto no Banco Central — que inspire confiança nos investidores estrangeiros, nos traders e nos especuladores. Havia esta equipe no Banco Central em 2008. Como consequência, a desvalorização do real perante o dólar foi efêmera. 

Sendo assim, caso a atual equipe do Banco Central não reconquiste a confiança dos investidores, especuladores e traders, o câmbio continuará se desvalorizando e impedindo que a inflação de preços diminua como deveria. Esta contínua desvalorização cambial, geradora de grandes incertezas, continuará fazendo com que a economia permaneça nesta quase-estagflação que estamos vivenciando, com uma crescente redução na renda real das pessoas. 

Para resolver este imbróglio, uma medida já testada em vários países emergentes e de resultados imediatos e extremamente eficazes seria a transformação do Banco Central em um Currency Board (veja o que tal sistemarealizou na Bulgária). Dado que o BACEN possui hoje mais de US$370 bilhões em reservas internacionais, adquiridas ao longo de 20 anos, tal valor é mais do que suficiente para a imediata criação de um Currency Board. Não apenas o câmbio se estabilizaria, como também a confiança dos investidores na economia seria restabelecida. Adicionalmente, as taxas de juros cairiam, o que traria um extremamente necessário alívio nos gastos do governo com o serviço da dívida. 

Porém, e infelizmente, o apoio a tal medida seria nulo. Um Currency Board, justamente por retirar do governo o controle sobre a oferta monetária, obriga-o a adotar um orçamento austero, não deixando espaço para gastos com 41 ministérios e secretarias, aumentos para o funcionalismo, e subsídios para artistas, grupos de interesse e movimentos sociais. Não haveria apoio nenhum.

Sendo assim, uma segunda opção seria copiar descaradamente o estatuto do Bundesbank, adotando todos os seus métodos operacionais (cancelando as operações de mercado aberto e utilizando apenas a janela de redesconto, justamente o inverso de como opera hoje o BACEN). Seria necessária a aprovação de uma lei que de fato impingisse a obediência desse estatuto. Funcionou com a Lei de Responsabilidade Fiscal — pelo menos até agora —, então também pode funcionar para o BACEN. 

Adicionalmente, a plena conversibilidade do real deve ser promulgada. Isso significa que reais poderão ser trocados por moeda estrangeira sem restrições. Uma moeda plenamente conversível é aquela que pode ser usada para adquirir quaisquer tipos de bens ou serviços estrangeiros, incluindo imóveis, títulos, ações e contas bancárias em outros países. A promulgação da conversibilidade seria um passo adicional na conquista da confiança dos investidores estrangeiros, podendo inclusive levar a um desdobramento natural: fazer com que moedas estrangeiras passem a ser aceitas como moeda corrente para as transações domésticas (hoje, o governo proíbe).

O problema é que não há hoje nenhum político com a testosterona necessária para criar esses dois projetos de lei.

O fato é que o Banco Central tem de reconquistar a confiança do mercado para que a taxa de câmbio possa cair, o que irá ajudar a conter a inflação de preços e, por conseguinte, ajudar na recuperação dos investimentos e da economia. A recuperação só virá se os preços caírem, e isso não ocorrerá com o câmbio se desvalorizando em decorrência da falta de confiança.

Nomes como Gustavo Franco para a presidência do BACEN e Pérsio Arida para a Fazenda seriam um bom começo, mas serão inócuos se não vierem acompanhados destas reformas.

Conclusão

Uma moeda sólida, forte e estável é necessária — embora apenas isso não seja suficiente — para a prosperidade econômica. Os alemães entenderam isso ainda em 1957. A consequência foi uma estrondosa elevação em seu padrão de vida. Os brasileiros vivenciaram algo vagamente semelhante a uma moeda forte nos períodos 1994-1998 e 2007-2011. Embora a alegria tenha durado pouco, este curto período já foi suficiente para melhorar as condições de vida de milhões de brasileiros, especialmente dos mais pobres.

Os grandes economistas sempre enfatizaram a importância de se ter uma moeda forte. Em 1876, Carl Menger, o fundador da Escola Austríaca, tornou-se o tutor econômico do príncipe-herdeiro da Áustria, Rodolfo de Habsburgo. Algumas das anotações econômicas de Rodolfo foram publicadas na década de 1990. Dentre as lições que o príncipe absorveu de Menger, vale observar o seguinte trecho:

Em grande parte, as transações comerciais e todo o comércio internacional, que são os pilares que dão sustentação ao desenvolvimento econômico, dependem de um sistema monetário ordeiro e bem-estabelecido. Por conseguinte, flutuações na taxa de câmbio e a incerteza que tais flutuações geram em todos os cálculos econômicos irão abalar a prosperidade da economia em suas bases mais fundamentais. Em toda e qualquer atividade doméstica ou internacional, cidadãos e empreendedores irão encontrar desconfianças e obstáculos por todos os lugares... Sendo assim, é sensato afirmar que uma moeda fraca e instável representa uma deficiência vital para uma nação, pois ela se faz sentir profundamente em todos os aspectos da vida econômica e de seu progresso.

Sim, uma moeda forte é uma bênção para qualquer população. Ela gera um aumento do poder de compra do trabalhador e, consequente, um aumento em seu padrão de vida. Uma moeda em constante fortalecimento equivale a um aumento salarial contínuo. Ela permite acesso barato a uma farta quantia de bens e serviços estrangeiros, aumentando enormemente o padrão de vida de seus usuários. Trata-se de uma instituição que não deve jamais ser colocada em risco, muito menos em épocas de recessão. E quem discorda disso que vá ensinar aos suíços e alemães o que eles realmente devem fazer.

 É por isso que há grandes economistas que defendem Currency Boards para economias em desenvolvimento. Segundo eles, deixar a moeda de um país ainda em desenvolvimento flutuar de acordo com a percepção que os agentes externos têm em relação à solidez do governo nacional é loucura. 
Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

A TRAGÉDIA DO ISOLAMENTO


No século XX, dentre todas as explicações inventadas pelos intelectuais ocidentais para explicar as disparidades econômicas, educacionais e empreendedoriais dos indivíduos, duas se sobressaíram: nas primeiras décadas do século, dizia-se que a explicação estava no fato de haver diferenças raciais e inatas de destreza, talento e aptidão; já nas últimas décadas, dizia-se que a explicação estava na discriminação racial.

A maioria de nós consideraria ambas estas duas explicações ridículas. No entanto, genes e discriminação eram as explicações predominantes para as diferenças entre brancos e negros oferecidas pelos intelectuais no século XX.

Em nenhuma dessas duas épocas a intelligentsia aceitava qualquer outra explicação. Tais explicações não foram oferecidas como sendo apenas uma possibilidade dentre várias outras. Não. Elas foram fornecidas como sendo a verdade predominante, quando não exclusiva. Em cada uma dessas épocas, os intelectuais estavam plenamente convencidos de que tinham a resposta correta, e rejeitavam e menosprezavam qualquer um que tentasse oferecer outras respostas. Qualquer indivíduo que dissesse algo em contrário se arriscava a ser visto como um "sentimentalista", no início do século, ou como um "racista", no final do século. 

Desta dogmática insistência em uma teoria generalista surgiram aberrações como as quotas raciais e toda essa infinidade de processos judiciais por racismo que superlotam os tribunais atualmente. Tudo se baseia na presunção de que diferenças nos êxitos pessoais entre pessoas de cores distintas é uma prova de que alguém prejudicou outra pessoa.

No início do século, a teoria de que o determinismo genético explicaria as diferenças nos êxitos pessoais e seria uma prova de que algumas raças são inferiores às outras levou à defesa de coisas como a segregação racial, a eugenia e, mais tarde, culminaria no Holocausto. A teoria atualmente predominante — a de que algum tipo de maldade explica as diferenças nos níveis de realizações entre os vários grupos étnicos e raciais — nos trouxe a era dos privilégios e do vitimismo.

Em ambas as eras, as teorias predominantes amaciaram e lisonjearam os egos dos intelectuais — no primeiro caso, eles foram vistos como salvadores da raça humana; no segundo caso, como libertadores das vítimas do racismo.

Dentre as ignoradas explicações alternativas para os diferentes níveis de êxito pessoal e grupal estavam a geografia, a demografia e a cultura.

Por exemplo, pessoas com a desvantagem geográfica de viverem isoladas em vales montanhosos raramente — para não dizer nunca — produziram façanhas de nível internacional. Elas raramente geraram algum avanço para a ciência, para a tecnologia ou até mesmo para a filosofia. Muito pelo contrário: as pessoas de tais localidades invariavelmente ficaram para trás em termos de progresso em relação ao resto mundo — inclusive em relação às pessoas da mesma raça que viviam nas planícies logo abaixo. Montanheses sempre foram conhecidos por sua pobreza e atraso em todos os países ao redor do mundo, especialmente no milênio anterior à criação dos modernos meios de transporte e de comunicação, os quais aliviaram seu isolamento.

Essas comunidades montanhesas não apenas eram isoladas do resto do mundo, como também eram isoladas umas das outras. Mesmo quando, em uma linha reta, a distância entre elas não era significativa, elas eram separadas por terrenos extremamente acidentados e escarpados.

Como bem observou o ilustre historiador francês Fernand Braudel, "a vida na montanha era persistentemente mais atrasada em relação à vida da planície". Um padrão de pobreza e atraso podia ser percebido das Montanhas Apalaches nos EUA às Montanhas Rife no Marrocos; dos Montes Pindo na Grécia às montanhas e planaltos do Sri-Lanka, de Taiwan, da Albânia e da Escócia.

Da mesma maneira, pessoas geograficamente isoladas em ilhas distantes ou pessoas isoladas por desertos ou por outras características geográficas raramente apresentaram — ou ao menos conseguiram imitar — os progressos da população continental. Novamente, isso era especialmente notável antes de os modernos sistemas de transporte e comunicação terem-nas colocado em contato com o resto do mundo.

O atraso em relação às pessoas com um universo cultural mais amplo ocorria independentemente da raça das pessoas que viviam em localidades isoladas. Por exemplo, quando os espanhóis descobriram as Ilhas Canárias no século XV, encontraram pessoas de raça caucasiana vivendo um nível de vida da idade da pedra.

Inversamente, pessoas urbanizadas quase sempre se mostraram na vanguarda do progresso, contribuindo muito mais para os avanços históricos da raça humana do que um número similar de pessoas dispersas pelas terras do interior — mesmo quando ambos os grupos eram da mesma raça.

Tão importante quanto o isolamento cultural, especificidades geográficas e geológicas são um fator igualmente importante, uma vez que nem todas as áreas geográficas são igualmente aptas à construção de grandes cidades. Por exemplo, a esmagadora maioria das cidades foi construída sobre cursos d'água navegáveis — e não são todas as regiões do globo que possuem cursos d'água navegáveis. Até mesmo a ausência de transporte animal fazia diferença. Esta era a situação do hemisfério ocidental quando os europeus chegaram e trouxeram cavalos, animais desconhecidos pelos nativos da região.

Assim como é criado pela natureza, o isolamento também pode ser criado artificialmente pelo homem. No século XV, quando a China era a nação mais avançada do mundo, seus líderes decidiram isolar o país em relação aos outros povos, todos eles considerados meros bárbaros. Após alguns séculos de isolamento, a China se surpreendeu negativamente ao ver sua liderança ser sobrepujada por outros povos, chegando em alguns casos a ficar à mercê deles. O Japão cometeu o mesmo erro no século XVII.

Em alguns casos, o isolamento se deve a uma cultura que resiste obstinadamente a absorver traços de outras culturas. O Oriente Médio, por exemplo, já foi mais avançado que a Europa. Porém, ao passo que os europeus aprenderam bastante com o Oriente Médio, os árabes não tiveram o mesmo interesse em aprender com os europeus. A quantidade de livros que a Espanha traduzia do arábico em apenas um ano era maior do que a quantidade de livros que os árabes verteram para o arábico em mil anos.

A demografia também é outra característica crucial. Dentre os vários motivos para os diferentes níveis de avanços e conquistas está algo tão simples quanto a idade. A média de idade na Alemanha e no Japão é de mais de 40 anos, ao passo que a média de idade no Afeganistão e no Iêmen é de menos de 20 anos. Mesmo que as pessoas destes quatro países tivessem absolutamente o mesmo potencial intelectual, o mesmo histórico, a mesma cultura — e os países apresentassem rigorosamente as mesmas características geográficas —, o fato de que as pessoas de determinados países possuem 20 anos a mais de experiência do que as pessoas de outros países ainda seria o suficiente para fazer com que resultados econômicos e pessoais idênticos sejam virtualmente impossíveis.

Ao se analisar os êxitos econômicos dos diferentes povos e das diferentes raças, é possível constatar várias diferenças que não têm nada a ver com genes ou com discriminação, mas sim com questões culturais, geográficas e demográficas. No entanto, é muito mais trabalhoso examinar estes fatores e suas complexas interações do que simplesmente ser um oportunista e se agarrar à teoria predominante da época, e então se auto-congratular por ser um protetor dos oprimidos.
Por: Thomas Sowell , um dos mais influentes economistas americanos, é membro sênior da Hoover Institution da Universidade de Stanford. Seu website: www.tsowell.com.

Tradução de Leandro Roque


quinta-feira, 22 de agosto de 2013

FORMIGAS NA RAPADURA

No cada vez mais fugidio setor de grandes realizações, a complexa coreografia governamental se tem exibido em torno do trem-bala

Acho que todo mundo lembra o que disse num discurso o presidente Kennedy: “Não pergunte o que seu país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer por seu país.” Eu estava lendo os jornais e aí me ocorreu, como já deve ter ocorrido a muitos de vocês, que nossa prática política se orienta por uma atitude oposta a essa exortação. Ou seja, queremos saber o que o Brasil pode fazer por nós, mas não alimentamos muita curiosidade sobre o que podemos fazer pelo Brasil. Isso se expressa no comportamento de nossos governantes, que não disputam nada pensando no país, mas em abocanhar ou manter o poder, aqui tão hipertrofiado, abarrotado de privilégios e odiosamente infenso ao controle dos governados.

Para que mais, a não ser desfrutar desses privilégios, não se sabe, porque não existe projeto, além da cantilena sobre justiça social, saúde para todos, educação de qualidade e outras generalidades com as quais todos concordam. Que modelo de estrutura socioeconômica queremos, que Estado queremos, que país queremos, como chegaremos lá? Que propostas concretas são oferecidas? Ninguém diz — e os programas partidários, como os próprios partidos, causam constrangimento, pela ausência de ideias e compromissos sérios. O negócio é se eleger e se abancar, depois se vê o que se pode fazer, conforme a necessidade e a serventia para a permanência no poder. Na pátria, como se falava antigamente, ninguém se mostra muito interessado.

Tudo o que se faz hoje é visando às eleições, ou seja, a continuação no poder ou ascensão a ele. Descobriram agora essa lambança das concorrências em São Paulo, que não é propriamente inédita na história nacional, e grande parte da reação parece do tipo “viu, viu? nós rouba, mas cês também rouba!” Todo mundo na vida pública rouba, o que pode não ser uma afirmação justa, mas já virou axioma na descrição de nossa realidade e um dado importante em qualquer equação política. Invoca-se o princípio da falcatrua consuetudinária. Ou seja, se é ilegal, mas costumeiro, prevalece o costume e é considerado sacanagem e falta de coleguismo fazer denúncias ou querer punições. Que outras novidades têm para nos segredar? Quem não aposta que nada vai dar em nada?

O Estado às vezes parece ter as pernas bambas. Recomeçou o dramalhão do julgamento do mensalão e muita gente não entende mais nada, a começar por esse singular minueto processual, através do qual o Supremo Tribunal Federal vira penúltima instância, dia sim, dia não. Todo mundo quer saber se as sentenças emanadas do Supremo eram à vera ou não eram, devia ser simples de responder. Essa novela vai por aí, se arrastando já há não se sabe quanto tempo, todo dia aparece uma notícia inesperada e creio que nenhum de nós se surpreenderá se, esta semana, for noticiado que a decisão final do Supremo estará condicionada à resposta a uma consulta feita pela Câmara de Deputados, ou coisa assim, o que, com a gripe que atacou um ministro, o impedimento de outro, e o atraso de outro, leva o caso, para que tenhamos certeza de uma decisão justa, para depois do recesso do Judiciário, no próximo ano.

Vimos também a cena envaidecedora em que nosso ministro das Relações Exteriores se manifestou, conforme ouvi num noticiário, “com dureza”, sobre a espionagem cibernética americana, numa fala dirigida em pessoa ao secretário de Estado John Kerry. Disse umas verdades na cara do gringo, que o escutou com atenção, cortesia e respeito, para logo após retrucar que nos devotava desmesurado amor e descomedida amizade, mas continuaria a espionar e, acreditássemos, era para o nosso próprio bem. Se não gostarmos, claro, temos todo o direito de nos queixar ao bispo, ele compreende.

Esse mesmo ministério, aliás, deve estar às voltas com o perdão de dívidas milionárias que alguns países africanos têm com o Brasil. Comenta-se que isso é por causa do esquerdismo do atual governo, notadamente em sua política externa. Comenta-se também que o perdão dessas dívidas possibilita que os governos beneficiados fechem novos contratos com empreiteiras brasileiras. É o que dá o envolvimento com setores notoriamente de esquerda, como nossas empreiteiras, essa linha avançada do socialismo. Há apenas um ligeiro embaraço na coisa, pois se sabe que as empreiteiras, com toda a certeza, vão receber o dela, mas os financiadores, ou seja, nós, vamos contribuir mais uma vez para os crimes e as contas bancárias de déspotas, genocidas e saqueadores de riquezas nacionais

No cada vez mais fugidio setor de grandes realizações, a complexa coreografia governamental se tem exibido em torno do trem-bala, que o pessoal lá do boteco deu para chamar “trem-bala perdida”. O trem-bala é um exemplo notável de aumento de custos recordista, talvez sem precedentes em todo o mundo, porque já perdemos a conta de quantas vezes esses custos foram revisados para cima. E agora li não sei onde, maravilhado com os nossos mecanismos de distribuição de renda, que, mesmo que se venha a desistir do trem-bala, o custo dele já terá sido mais ou menos um bilhão de reais. Não entendi direito, mas não se pode deixar de manifestar admiração.

Diante dessa sarabanda agitada e da luta para não largar o osso, lembro-me de quando eu era menino em Itaparica, punha um pedaço de rapadura no chão e ficava esperando formigas brotarem do nada, várias espécies que só tinham em comum gostar de açúcar. Umas ruças, grandalhonas, eram minhas favoritas, porque ficavam frenéticas e não paravam um segundo, para lá e para cá, em cima da rapadura, apesar de que, volta e meia, uma parecia se saciar e caía imóvel — dura para trás, dir-se-ia. Eu não sabia, mas estava vendo o Brasil, só que as formigas não se saciam e quem cai para trás somos nós.
Por: João Ubaldo Ribeiro  escritor  O Globo