segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O QUE REALMENTE É A "SOCIEDADE"


O ser humano nasce em um ambiente socialmente organizado. Somente nesse sentido é que podemos aceitar quando se diz que a sociedade — lógica e historicamente — antecede o indivíduo. Com qualquer outro significado, este dito torna-se sem sentido ou absurdo. O indivíduo vive e age em sociedade. Mas a sociedade não é mais do que essa combinação de esforços individuais.

A sociedade em si não existe, a não ser por meio das ações dos indivíduos. É uma ilusão imaginá-la fora do âmbito das ações individuais. Falar de uma existência autônoma e independente da sociedade, de sua vida, sua alma e suas ações, é uma metáfora que pode facilmente conduzir a erros grosseiros.

É inútil perguntar se é a sociedade ou o indivíduo o que deve ser considerado como fim supremo, e se os interesses da sociedade devem ser subordinados aos do indivíduo ou vice-versa. Ação é sempre ação de indivíduos. O elemento social ou relativo à sociedade é a orientação específica das ações individuais. A categoriafim só tem sentido quando referida à ação.

A teologia e a metafísica da história podem discutir os fins da sociedade e os desígnios que Deus pretende realizar no que concerne à sociedade, da mesma maneira que discutem a razão de ser de todas as outras partes do universo. Para a ciência, que é inseparável da razão — instrumento evidentemente inadequado para tratar de problemas desse tipo —, seria inútil envolver-se em especulações desta natureza.

Sociedade é ação concertada, cooperação.

A sociedade é a consequência do comportamento propositado e consciente. Isso não significa que os indivíduos tenham firmado contratos por meio dos quais teria sido formada a sociedade. As ações que deram origem à cooperação social, e que diariamente se renovam, visavam apenas à cooperação e à ajuda mútua, a fim de atingir objetivos específicos e individuais. Esse complexo de relações mútuas criadas por tais ações concertadas é o que se denomina sociedade. Sociedade é divisão de trabalho e combinação de esforços. Por meio da colaboração e da divisão do trabalho, o homem substitui uma existência isolada — ainda que apenas imaginável — pela existência conjunta. Por ser um animal que age, o homem torna-se um animal social.

No quadro da cooperação social podem emergir, entre os membros da sociedade, sentimentos de simpatia e amizade e uma sensação de comunidade. Esses sentimentos são a fonte, para o homem, das mais agradáveis e sublimes experiências. Elevam a espécie animal homem às alturas de uma existência realmente humana; são o mais precioso adorno da vida. Entretanto, esses sentimentos são fruto da cooperação social e só vicejam no seu quadro; não precederam o estabelecimento de relações sociais e não são as sementes de onde estas germinam.

Os fatos fundamentais que fizeram existir a cooperação, a sociedade e a civilização, e que transformaram o animal homem em um ser humano, é o fato de que o trabalho efetuado valendo-se da divisão do trabalho é mais produtivo que o trabalho solitário, e o fato de que a razão humana é capaz de perceber esta verdade. Não fosse por isso, os homens permaneceriam sempre inimigos mortais uns dos outros, rivais irreconciliáveis nos seus esforços para assegurar uma parte dos escassos recursos que a natureza fornece como meio de subsistência. Cada homem seria forçado a ver todos os outros como seus inimigos; seu intenso desejo de satisfazer seus próprios apetites o conduziria a um conflito implacável com seus vizinhos. Nenhum sentimento de simpatia poderia florescer em tais condições.

Alguns sociólogos têm afirmado que o fato subjetivo original e elementar na sociedade é uma "consciência da espécie". Outros sustentam que não haveria sistemas sociais se não houvesse um "senso de comunidade ou de propriedade comum". Podemos concordar, desde que estes termos um pouco vagos e ambíguos sejam corretamente interpretados. Podemos chamar de consciência da espécie, senso de comunidade ou senso de propriedade comum, o reconhecimento do fato de que todos os outros seres humanos são virtuais colaboradores na luta pela sobrevivência, pois são capazes de reconhecer os benefícios mútuos da cooperação, ao passo que os animais não têm essa faculdade.

Entretanto, não devemos esquecer que são os dois fatos essenciais acima mencionados que fazem existir tal consciência ou tal senso de existência. Em um mundo hipotético, no qual a divisão do trabalho não aumentasse a produtividade, não haveria sociedade. Não haveria qualquer sentimento de benevolência e de boa vontade.

O princípio da divisão do trabalho é um dos grandes princípios básicos da transformação cósmica e da mudança evolucionária. Os biologistas tinham razão em tomar emprestado da filosofia social o conceito de divisão do trabalho e em adaptá-lo a seu campo de investigação.

Existe divisão do trabalho entre as várias partes de qualquer organismo vivo. Mais ainda: existem, no reino animal, colônias integradas por seres que colaboram entre si; tais entidades, formadas, por exemplo, por formigas ou abelhas, costumam ser chamadas, metaforicamente, de "sociedades animais". Mas não devemos jamais nos esquecer de que o traço característico da sociedade humana é a cooperação propositada; a sociedade é fruto da ação humana, isto é, apresenta um esforço consciente para a realização de fins.

Nenhum elemento desse gênero está presente, ao que se saiba, nos processos que resultaram no surgimento dos sistemas estruturais e funcionais de plantas e de corpos animais ou no funcionamento das sociedades de formigas, abelhas e vespas. A sociedade humana é um fenômeno intelectual e espiritual. É a consequência da utilização deliberada de uma lei universal que rege a evolução cósmica: a maior produtividade gerada pela divisão do trabalho.

Como em todos os casos de ação, o reconhecimento das leis da natureza é colocado a serviço dos esforços do homem desejoso de melhorar suas condições de vida.

A cooperação humana

A cooperação humana é diferente das atividades que ocorreram sob as condições pré-humanas no reino animal e daquelas que ocorriam entre pessoas ou grupos isolados durante as eras primitivas. A faculdade humana específica que distingue o homem do animal é a cooperação. Os homens cooperam. Isso significa que, em suas atividades, eles preveem que as atividades incorridas por outras pessoas irão produzir certas coisas que possibilitarão os resultados que eles objetivam com seu próprio trabalho.

O mercado é uma situação, ou um conjunto de situações, em que eu dou algo para você a fim de receber em troca algo de você. Um ditado em latim, há mais de 2.000 anos, já apresentava a melhor descrição do mercado: do ut des — dou algo para que assim você também dê. Eu contribuo com algo de modo que você contribua com algo mais. Com base nisso desenvolveu-se a sociedade humana, o mercado, a cooperação pacífica entre os indivíduos. E cooperação social significa divisão do trabalho.

Os vários membros, os vários indivíduos de uma sociedade não vivem suas próprias vidas sem qualquer ligação ou conexão com outros indivíduos. Graças à divisão do trabalho, estamos constantemente associados a terceiros: trabalhando para eles e recebendo e consumindo o que eles produziram para nós. Como resultado, temos uma economia baseada nas trocas e que consiste totalmente na cooperação entre vários indivíduos. Todo mundo produz, não apenas para si próprio, mas para outras pessoas também, na expectativa de que essas outras pessoas irão produzir para ele. Esse sistema requer atos de troca.

A cooperação pacífica, as conquistas pacíficas dos homens, são todas efetuadas e realizadas no mercado. Cooperação necessariamente significa que as pessoas estão trocando serviços e bens, sendo estes últimos os produtos dos serviços. São essas trocas que criam o mercado. O mercado representa precisamente a liberdade de as pessoas produzirem, consumirem e determinarem o que deve ser produzido, em qual quantidade, com qual qualidade e para quem esses produtos devem ir. Um sistema livre sem um mercado é impossível. O mercado é a representação prática desse sistema livre.

Tem-se aquela ideia de que as instituições criadas pelo homem são (1) o mercado, que é a livre troca entre indivíduos, e (2) o governo, uma instituição que, na mente de muitas pessoas, é algo superior ao mercado e poderia existir na ausência do mercado. A verdade é que o governo — que representa necessariamente o recurso à violência, pois não passa de um poder policial com seu correspondente aparato de compulsão e coerção — não pode produzir nada. Tudo que é produzido de bom é produzido somente pelas atividades desempenhadas por indivíduos, e é disponibilizado no mercado com o intuito de se receber algo benéfico em troca.

É importante lembrar que tudo o que é feito, tudo que o homem já fez, tudo que a sociedade já fez, é o resultado da cooperação e dos acordos voluntários. A cooperação social entre os homens — e isso significa o mercado — é o que cria a civilização. E foi essa cooperação que permitiu todas as melhorias ocorridas nas condições humanas, melhorias essas que podemos usufruir hoje.

Por: Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".

O BRASIL NA ARMADILHA DA RENDA MÉDIA


Introdução

A armadilha da renda média ocorre quando um país emergente entra em um período de estagnação após ele ter completado a sua "decolagem" e ter superado a armadilha da pobreza e a armadilha malthusiana. Tendo chegado ao nível da renda média, a trajetória do crescimento econômico efetuada durante a decolagem deixa de ser sustentável. 

Durante a fase da decolagem, a mão-de-obra barata alimenta uma rápida expansão econômica em decorrência da migração que ocorre das áreas rurais para as cidades industriais. Nesta fase, a economia cresce pela migração, pela aglomeração e pela acumulação de capital. As taxas de crescimento econômico são altas porque a mão-de-obra é abundante e barata, e a acumulação de capital ainda gera altos retornos.

As taxas de crescimento começam cair quando a mão-de-obra se torna menos abundante e o retorno marginal do capital se torna marginalmente menor.

O Brasil representa um caso em que a entrada na armadilha da renda média resultou em políticas erradas que pioraram a situação.

O conceito da armadilha da renda média

Como dito, o termo "armadilha da renda média" denota a situação de uma economia emergente quando ela entra em um nível de renda média e não mais sai dele. Atualmente, o Banco Mundial define a faixa entre US$1.036 e US$4.085 per capita como "baixa renda média" e entre US$4.086 e US$12.615 como "alta renda média".

De acordo com o tipo do cálculo do Banco Mundial, o Brasil chega bem perto do limite da categoria dos países de alta renda, mas ainda está na faixa da renda média alta.


Classificação 

Renda nacional per capita em US$ 

Países representativos selecionados


Alta renda 

> 12.616 

Suíça (82.730)


Renda média alta 

4.086-12.615 

Brasil (11.630)


Renda média baixa 

1.036-4.085 

Paraguai (3.290)


Renda baixa 

< 1.035 

Congo (200)


Tabela 1: Faixas da renda segundo classificação do Banco Mundial — Fonte: Banco Mundial

Estar preso na faixa da renda média significa que o país é incapaz de prosseguir o seu caminho de crescimento, aquele que ele vinha mantendo durante a fase da decolagem. Em vez de manter um crescimento moderado, o país cai em uma fase de crescimento fraco, como mostra a figura abaixo.



Figura 1 - A linha verde mostra a trajetória de um crescimento sustentado; a linha vermelha sólida mostra a entrada na armadilha da renda média; e a linha vermelhada tracejada mostra uma trajetória de crescimento insustentável.

A armadilha da renda média significa que o país não consegue alterar sua estratégia de crescimento, saindo de um modelo acumulativo e imitativo e indo para um modelo de economia competitiva, empresarial e inovadora.

Imitar as economias pioneiras gera altos retornos somente quando a distância entre a economia emergente e os países avançados é grande. Quando a distância diminui, a imitação torna-se mais difícil e mais arriscada. O futuro é desconhecido e exige experimentação para se descobrir qual tecnologia irá funcionar. Esta trajetória envolve um constante processo de tentativa e erro, o qual requer habilidades muito mais sofisticadas do que a mera imitação de tecnologias maduras.

Quanto mais a economia emergente avança e se aproxima do grupo das economias pioneiras, mais este país em desenvolvimento deve se engajar em uma busca ativa pela próxima tecnologia. No entanto, dado que os governos dos países emergentes sempre tendem a manter suas intervenções sobre a economia, a transição para uma economia competitiva e moderna encontra uma inflexível resistência da parte do poderoso aparelho de funcionários das empresas estatais e da classe política. Muitas vezes, a decolagem de um país em desenvolvimento vem junto com uma ampliação da atividade estatal. O típico efeito colateral deste crescimento é um agigantamento do setor público, o qual acaba funcionando como uma barreira quando o país alcança a faixa da renda média, impedindo-o de entrar na faixa da alta renda.

Preso na armadilha

Os países emergentes caem na armadilha de renda média porque, em vez de abraçar o capitalismo inovador, acabam ficando presos a um sistema econômico estatista e arcaico. Não é raro que a velha elite passe a explorar o medo da população em relação à "tempestade perene da destruição criativa" (Schumpeter) do capitalismo dinâmico.

Porém, ao renunciar à destruição criativa, esta economia em desenvolvimento também acaba por rechaçar a prosperidade, e passa alimentar a ilusão de que é possível enriquecer dentro de um sistema estático. Na realidade, os países em desenvolvimento que permanecem com um capitalismo de estado não apenas não ganham prosperidade, como também perdem a estabilidade quando inevitavelmente descambam no círculo vicioso do declínio econômico, o que faz com que o sistema político comece a oscilar entre o autoritarismo e o populismo. Vide Argentina e Venezuela, por exemplo.

O desenvolvimento econômico é uma corrida de maratona com obstáculos. O primeiro obstáculo consiste em saber superar a barreira que surge quando a baixa renda passa a limitar a poupança e os investimentos, e consequentemente a acumulação de capital. O segundo grande obstáculo é a armadilha malthusiana, que ocorre quando a população aumenta, mas a renda per capita não sobe. Foi a Revolução Industrial quem quebrou este padrão da estagnação. Parte do mundo saiu da armadilha da pobreza. Com o avanço da Revolução Industrial a taxa de reprodução diminuiu ao passo que a produtividade econômica aumentou. A armadilha malthusiana desapareceu com a transição demográfica e pavimentou o caminho para um grande aumento dos níveis de renda.

Um pequeno grupo de países pioneiros liderou este permanente processo de inovação. Sucessivas revoluções industriais durante os últimos dois séculos levaram a ganhos cada vez maiores de produtividade.

No entanto, enquanto um grupo de economias prosperou, muitas outras ficaram para trás. Mesmo hoje, ainda há uma multidão de países presos na armadilha da pobreza e na armadilha malthusiana. Um outro grupo de países que conseguiu obter a decolagem e superar a armadilha malthusiana — como o Brasil — se encontra preso na armadilha de renda média. Apenas alguns países conseguiram realizar a façanha de alcançar os pioneiros e se tornar membros do clube dos países de alta renda.

O caso do Brasil

Quando o crescimento econômico baseado na acumulação de capital e na imitação tecnológica terminou, o Brasil ainda não havia adquirido a capacidade de competir com os países de alta renda em termos de tecnologia, produtividade e habilidades. Nesta fase, o Brasil não mudou a sua estratégia de crescimento. Em vez de promover uma economia empreendedorial de inovação, o Brasil implantou uma política de forte protecionismo. Como consequência, o país experimentou fases de crescimento artificial que se degeneraram em recessões e altas taxas de inflação. Na maioria das vezes, o Brasil pagou o preço de seu crescimento artificial com longos períodos de estagflação.

Após um crescimento moderado na década de 1990 — consequência inevitável de seus fortes e necessários ajustes econômicos —, e um crescimento mais robusto na década de 2000, o Brasil pós-2010 adentrou uma nova fase de debilidade econômica. Em vez de pular para frente, a economia brasileira recuou. Desde o começo dos anos 1990, a média da taxa de crescimento econômico do Brasil é de apenas 3%, o que significa que o país já se encontra novamente, e há um bom tempo, em uma armadilha da renda média. 

Para conseguir alcançar as economias avançadas, o Brasil precisaria apresentar uma taxa média de crescimento do PIB per capita de 4,2% durante os próximos 50 anos. Só assim será possível alcançar o nível médio dos países de alta renda da OCDE. Igualmente, seria necessária uma taxa de crescimento econômico per capita de 4,7% para se chegar no nível da renda dos Estados Unidos.

Entre as economias emergentes, apenas a China consegue apresentar uma taxa de crescimento per capita suficiente para alcançar os níveis dos países ricos. O Brasil, com uma taxa de 1% durante o período de 1980 até 2011, está bem fora desta expectativa. A China, no entanto, ainda está na fase de decolagem, e dificilmente conseguirá manter suas atuais altas taxas de crescimento econômico. Não se deve excluir a possibilidade de que a China também caia na armadilha da renda média, como já ocorreu com outros países emergentes na Ásia. Desta forma, no futuro, ao ter sua taxa de crescimento econômico reduzida, a China inevitavelmente irá reduzir sua contribuição para o crescimento econômico do Brasil.

Para sair da armadilha da renda média, o Brasil teria de fazer uma grande transformação em sua economia, deixando de ser uma economia acumulativa e imitadora e se tornando uma economia inovadora. Para sair da armadilha da renda média, o Brasil teria de fazer uma mudança fundamental em sua estratégia econômica. Em vez de uma transformação de cima para baixo, a economia precisa florescer de baixo para cima. Esta mudança requer a liberalização dos entraves regulatórios e burocráticos que hoje incidem sobre o setor empreendedor. Redução da carga tributária e eliminação do pesadelo burocrático são imprescindíveis. O setor estatal deve abandonar seu intervencionismo ad hoc, o qual cria incertezas, em prol de uma política que se limite a oferecer segurança jurídica e institucional, e que facilite o empreendedorismo.

Porém, não apenas hoje, mas já por décadas, o Brasil pratica uma política macroeconômica errada para lidar com a armadilha da renda média. Em vez de liberar a economia, o estado cria cada vez mais controles e regulamentações. Em vez de promover uma economia empreendedorial, o Brasil se dedica a fortalecer ainda mais seu sistema de capitalismo de estado. Em vez de abandonar as políticas macroeconômicas de cunho dirigista, o país intensifica seu intervencionismo já extremado.

Adotar políticas fiscais e monetárias expansionistas na tentativa de sair da armadilha da renda média apenas agrava a situação. Falando em termos de teoria do crescimento econômico, ambas estas políticas levam a economia a um desequilíbrio entre poupança, investimentos, gastos e taxa de câmbio. Uma atividade econômica que exceda este ponto de "crescimento equilibrado" é insustentável. Sem o progresso tecnológico para compensar este hiato, a economia recua. Ainda pior será a situação se o governo apresentar déficits orçamentais, os quais geram uma redução da taxa nacional de poupança. Neste caso, em consequência de um crescimento artificial gerado pelos estímulos monetários e fiscais, a economia cairá abaixo de seu nível anterior de renda.

O grande erro desta política econômica está em confundir as consequências do crescimento econômico com suas causas. A política macroeconômica que o Brasil adotou para lidar com a armadilha da renda média sofre do mesmo erro que Mises já havia denunciado ao recorrer à alegoria do mestre de obras que tenta construir uma casa em um tamanho que excede a real quantidade de insumos ao seu dispor. Este erro de cálculo não apenas faz com que a construção da casa não seja concluída, como também faz com que a casa nem sequer possa ficar de um tamanho menor do que aquele originalmente projetado. 

Conclusão

Países de renda média, após superarem a armadilha da pobreza e a armadilha malthusiana, enfrentam o esgotamento da mão-de-obra barata. Um país emergente cai na armadilha da renda média quando, simultaneamente, perde sua capacidade de competir com os países de baixa renda em termos de preços e, ao mesmo tempo, ainda não possui a capacidade de competir com os países de alta renda em termos de tecnologia. A continuidade da ingerência do estado na economia faz com que estes países caiam no regresso.

Tentar sair da armadilha recorrendo a políticas de estímulo monetário e fiscal não apenas não funciona, como na realidade pavimenta o caminho para o endividamento público, e gera ainda mais debilidade econômica no longo prazo. O caso do Brasil e seus famosos "vôos de galinha" mostra como o país sofre de recorrentes ciclos de expansão econômica artificial seguida de contração.

Para continuar a crescer, o país tem de ter progresso tecnológico. No entanto, se o país recorre a déficits orçamentários e a inflações monetárias, a tragédia econômica está programada. Para obter maiores níveis de produtividade, o Brasil teria de abandonar o atual sistema de capitalismo de estado, o qual foi escolhido como o caminho para a decolagem. Para sair da armadilha da renda média, o Brasil tem de abrir sua economia para o capitalismo empreendedorial da destruição criativa. 

Por: Antony Mueller, doutor pela Universidade de Erlangen-Nuremberg, Alemanha (FAU) e, desde 2008, professor de economia na Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde ele atua também no Centro de Economia Aplicada. Antony Mueller é fundador do The Continental Economics Institute (CEI) e mantém em português os blogs Economia Nova e Sociologia econômica.

domingo, 5 de janeiro de 2014

A ECONOMIA BRASILEIRA EM 2013 - UM RESUMO DE FINAL DE ANO


Se 2012 foi o ano em que as intervenções do governo federal na economia adquiriram um ritmo frenético (ver detalhes completos aqui e aqui), 2013 foi o ano em que colhemos as inevitáveis consequências deste frenesi. 

Desde que assumiram a presidência, em janeiro de 2011, Dilma Rousseff e sua equipe econômica declararam abertamente — e para o total regozijo de seus defensores — que o Brasil iria adotar uma "Nova Matriz Econômica". O real mentor desta política foi o ex-secretário executivo da Fazenda, Nelson Barbosa, mas foram Guido Mantega e Márcio Holland seus mais entusiasmados defensores.

Esta "nova matriz" era, na realidade, incrivelmente velha e se baseava em cinco pilares tão sólidos quanto farofa: política fiscal expansionista, juros baixos, crédito subsidiado, câmbio desvalorizado e aumento das tarifas de importação para "estimular" a indústria nacional.

Segundo os proponentes desta "nova matriz", a combinação destes cinco elementos garantiria ao país taxas de investimento típicas do leste asiático, crescimento econômico chinês, aumento da renda de fazer inveja aos outros países em desenvolvimento e um setor industrial de robustez alemã. Tenha a bondade de conferir aentrevista concedida por Márcio Holland, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda.

E, de fato, não se pode acusar o governo de inépcia. Todas as políticas prometidas foram cumpridas.

Os déficits orçamentários foram crescentes (o governo conseguiu a façanha de apresentar déficits primários durante dois meses seguidos), as tarifas de importação atingiram seu maior nível pós-plano real, os subsídiosconcedidos pelo BNDES alcançaram recordes históricos, a taxa SELIC foi mantida durante seis meses em seu menor valor desde o Plano Real, a desvalorização da taxa de câmbio foi quase tão acentuada quanto a ocorrida durante a crise de 2008, e o endividamento da população chegou a níveis recordes.

O que tudo isso gerou? A consequência mais notável foi o fato de que a inflação de preços chegou a níveis não vivenciados desde 2003. E, não apenas o governo inicialmente nada fez contra isso, como ainda seguiu aferrado à ideia de que "mais inflação gera mais crescimento", o que fez com que ele passasse a ser corretamente acusado de leniência para com a inflação.

A verdadeira inflação de preços no Brasil

Se você também tem a sensação de que a inflação de preços no Brasil está aumentando a uma taxa muito maior do que a divulgada pelo IBGE, saiba que esta sua sensação é real. Os preços dos bens com os quais você lida diariamente de fato aumentaram sensivelmente este ano, e a uma taxa bem acima da inflação oficial divulgada pelo IBGE. 

Esta informação sobre o nível da inflação de preços pode parecer estranha, pois não é amplamente divulgada pela mídia. A realidade, no entanto, é que a mensuração dos preços no Brasil está amplamente disponível para quem quiser ver. Justiça seja feita, o IBGE de fato divulga este aumento. O problema é que a imprensa lamentavelmente se encarrega de divulgar apenas o valor final ponderado.

Explico melhor: a inflação acumulada em 12 meses para os bens não-comercializáveis — ou seja, todos os produtos e serviços que não sofrem concorrência de importados — está acima de 8,20%, e com picos de 9,70%.

Isso significa que os preços de todos os serviços — desde serviços médicos até serviços pessoais, como manicure, cabeleireiro e cursos, passando por coisas como estacionamento, lavagem de carro, serviços mecânicos, consertos e manutenção — e de bens como produtos in natura, alimentação fora de casa, aluguel, despesas com habitação, recreação, cultura, livros, matrícula e mensalidade escolar estão crescendo a uma taxa acima do teto da meta estipulada pelo Banco Central (6,50%), e muito acima do valor da inflação oficial divulgada pelo IBGE (5,77% em novembro).

Os dois gráficos a seguir mostram a evolução da taxa de inflação de preços dos bens não-comercializáveis. O primeiro gráfico mostra a taxa mensal e o segundo mostra a taxa acumulada em 12 meses.



Gráfico 1: taxa da inflação mensal de preços dos bens não-comercializáveis



Gráfico 2: taxa da inflação de preços acumulada em 12 meses dos bens não-comercializáveis

São esses os preços que você sente diariamente sempre que utiliza algum serviço ou quando adquire algum bem que não sofre a concorrência de importados. Observe que, em meados do ano, tais preços cresciam ao ritmo de 9,70% ao ano, o maior ritmo desde 2003 e o segundo maior desde 1998. Estavam corretas aquelas pessoas que afirmaram que uma das causas dos protestos de junho deste ano era a disparada da inflação de preços. 

No entanto, como o IBGE só divulga para a imprensa o valor ponderado de cada item, e dado que o peso atribuído aos preços dos serviços que são controlados pelo governo (taxa de água e esgoto, energia elétrica, gás de bujão, transporte público, combustíveis, plano de saúde, pedágio, licenciamento, IPTU, IPVA) é relativamente alto, o número final da inflação total acaba sendo arrefecido, fazendo com que o valor divulgado da inflação de preços total não seja tão grande quanto o que você realmente sente.

Os dois gráficos a seguir mostram a evolução da taxa de inflação de preços dos bens monitorados pelo governo. O primeiro gráfico mostra a taxa mensal e o segundo mostra a taxa acumulada em 12 meses.



Gráfico 3: taxa da inflação mensal de preços dos serviços monitorados pelo governo



Gráfico 4: taxa da inflação de preços acumulada em 12 meses dos serviços monitorados pelo governo

Observe como eles estão sendo artificialmente mantidos no nível mais baixo desde os primórdios do real.

Uma das consequências desta política de "inflação reprimida" pode ser vista atualmente na situação da Petrobras. De um lado, a desvalorização do real perante o dólar encareceu sobremaneira o preço do petróleo importado; de outro, a estatal foi proibida pelo governo de aumentar o preço da gasolina que ela revende às distribuidores, pois isso afetaria substantivamente o índice geral de preços.

Resultado: queda acentuada nos lucros, endividamento recorde da empresa, rebaixamento de seus títulos de longo prazo e, segundo a administradora de investimentos americana Macroaxis, 32,4% de probabilidade de falência.

O outro lado da encrenca está no setor elétrico. Após obrigar as concessionárias a reduzir as tarifas, o governo teve de arcar com os rombos nos balancetes destas empresas. A dívida pública aumentou R$31 bilhões apenas para bancar este populismo.

Uma palavra sobre o BNDES e as manobras contábeis do Tesouro

Antes de darmos prosseguimento à análise das outras variáveis da economia, é importante o seguinte parêntese: um dos principais causadores do descalabro inflacionário apresentado acima atende pelo nome de BNDES. 

O BNDES, quando despido de toda a propaganda ideológica, não passa de uma perniciosa máquina de redistribuição de renda às avessas. Uma vez que você entende como realmente funciona este suposto banco de desenvolvimento, torna-se claro seu mecanismo espoliativo.

Originalmente, os recursos do BNDES eram oriundos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador — fundo destinado a custear o seguro-desemprego e o abono salarial). Só que, dado que os recursos do FAT advêm das arrecadações do PIS e do PASEP, na prática os recursos do BNDES eram originados dos encargos sociais que incidem sobre a folha de pagamento das empresas. Esse dinheiro era então direcionado para as grandes empresas a juros subsidiados.

Este arranjo, por si só, já denota um grande privilégio. Por que, afinal, as pequenas empresas devem financiar os juros subsidiados das grandes empresas?

O problema é que essa matriz, já ruim, foi alterada para pior a partir de 2009. Se antes o BNDES se financiava exclusivamente via impostos, agora ele passou a se financiar também via inflação monetária.

Funciona assim: como o BNDES não tinha todo o dinheiro que o governo queria destinar a seus empresários favoritos — como o multifacetado Senhor X —, o Tesouro começou a emitir títulos da dívida com o intuito de arrecadar esse dinheiro para complementar os empréstimos. 

E quem compra esses títulos? O sistema bancário. Como ele compra? Criando dinheiro do nada, pois opera com reservas fracionárias. 

O gráfico a seguir mostra a evolução dos empréstimos do BNDES, atualmente com um saldo de R$500 bilhões. Observe a guinada ocorrida em meados de 2009.



Gráfico 5: evolução dos empréstimos concedidos pelo BNDES. A linha vermelha representa a soma da linha azul (empresas) com a linha verde (pessoas físicas). O valor final para o ano de 2013 ainda não foi divulgado.

Portanto, além de aumentar o endividamento do governo, este mecanismo utilizado pelo Tesouro para financiar o BNDES também aumenta a quantidade de dinheiro na economia. Logo, ele espolia duplamente os mais pobres: destrói o poder de compra da moeda e ainda utiliza os impostos dos pequenos para financiar empresários ricos.

Essas consequências duplamente perniciosas já foram detalhadamente explicadas por Fernando Ulrich neste seu excepcional artigo, de modo que não irei repeti-lo aqui. Basta apenas dizer que essa operação elevou substancialmente a dívida bruta do governo (já em quase R$3 trilhões), o que acendeu a luz das agências de classificação de risco que já estão ameaçando rebaixar a classificação dos títulos da dívida brasileira. 

E a primeira consequência desta ameaça já está sendo sentida: como alertou a consultoria Tendências, os títulos do Tesouro brasileiro já estão pagando um "seguro contra calote" mais alto do que os títulos de Itália, Espanha e Irlanda. Este seguro é conhecido pela sigla CDS (Credit Default Swap), e fica mais caro à medida que cresce o risco de um título.





O que colhemos

E quais as consequências de tudo isso que vivenciamos em 2013?

Além da perda de credibilidade da atual equipe que comanda o Banco Central e da chacota internacional em que se transformou o Ministério da Fazenda, a leniência do governo para com a inflação e seu intervencionismo exacerbado fizeram com que o tão prometido crescimento econômico impulsionado pelo acentuado aumento dos investimentos não ocorresse; com que a taxa de crescimento do consumo — medido pelas vendas do varejo —caísse à metade; e com que a massa salarial registrasse a menor alta desde 2009, ano em que o país estava em recessão.

No momento em que o governo transmite a ideia de que a inflação de preços não será devidamente combatida, cria-se uma grande insegurança, o que faz com que o investimento seja sensivelmente afetado. Isso é algo lógico: para que um empreendedor decida fazer um investimento de longo prazo, é imprescindível que ele tenha um mínimo de certeza a respeito do valor futuro da moeda. Mas se você tem um governo que seguidamente dá demonstrações de que a manutenção do poder de compra da moeda está longe de ser uma grande preocupação, e que está disposto a tolerar taxas continuamente altas de inflação de preços, então fazer investimentos produtivos se torna uma opção extremamente arriscada. O cálculo dos custos em relação à receita futura estimada se torna um perigoso jogo de adivinhação. É preferível comprar um título do governo e viver de juros. É muito mais seguro.

Essa postura de cautela em relação aos investimentos afeta o crescimento da renda e, consequentemente, o consumo das pessoas. Para completar o cenário de pasmaceira, temos o fato de que o endividamento da população chegou a níveis recordes, o que vem afetando a taxa de crescimento do crédito.

Crédito x emprego

No nosso atual sistema monetário e bancário, quando uma pessoa ou empresa pega empréstimo, os bancos criam dinheiro do nada (na verdade, meros dígitos eletrônicos), emprestam este dinheiro e cobram juros sobre eles. Ou seja, todo esse processo de expansão de crédito nada mais é do que um mecanismo que aumenta a quantidade de dinheiro na economia. 

E é esse processo de aumento da quantidade de dinheiro o que de fato governa os principais números da economia, como PIB, emprego, renda e inflação de preços. Um aumento da quantidade de dinheiro na economia, gerado pela criação de crédito bancário, aumenta a demanda por consumo, por mão-de-obra e estimula investimentos. Ele faz com que, no primeiro momento, haja uma grande sensação de prosperidade. A renda nominal aumenta, os investimentos aumentam, o consumo aumenta e o desemprego cai.

Consequentemente, a expansão do crédito faz aumentar a demanda por mão-de-obra em todos os setores da economia, desde indústria e construção civil até os setores de serviço, varejista e comércio em geral. Todos passam a requerer mais mão-de-obra e mais recursos por causa do aumento generalizado da demanda gerada pela expansão do crédito. 

Essa disputa por mão-de-obra e por recursos leva ao encarecimento de ambos. E isso estimula os números do PIB, do emprego, da renda e da inflação de preços.

Mas, para se manter esta taxa de "crescimento econômico", é necessário que a expansão do crédito ocorra a uma taxa crescente. Somente um aumento contínuo do crédito, ou seja, somente uma aceleração do crédito permite que os empreendedores de todos os setores mantenham ou aumentem sua força de trabalho e mantenham ou aumentem seus estoques e suas aquisições de bens de capital a serem utilizados em novos investimentos. 

Somente uma expansão crescente do crédito permite aos empreendedores continuarem adquirindo mão-de-obra, bens de capital e acumulando estoques, uma vez que esta mesma mão-de-obra e estes mesmos bens de capital estão sendo demandados por todos os setores da economia, justamente em decorrência do aquecimento gerado pela expansão do crédito.

Isso gera uma queda no desemprego e um aumento nos preços e nos salários, o que leva à necessidade de expandir ainda mais rapidamente o crédito para que seja possível manter este ciclo. Com o tempo, obviamente, toda esta expansão do crédito irá levar tanto a um aumento do endividamento quanto a um acentuado aumento nos preços, o que fará com que o Banco Central suba os juros para "esfriar" essa atividade econômica. Caso a expansão do crédito seja reduzida — e vale dizer que não é necessário que haja contração do crédito; basta apenas que ele passe a crescer a taxas menores —, todo este arranjo "virtuoso" (na realidade, totalmente artificial) se arrefece.

Algo que vem chamando muita atenção é a resiliência do emprego. Mesmo com o PIB estagnado, a taxa de desemprego se mantém estável em níveis historicamente baixos. Mas há explicações. 

A primeira é que, como foi explicado em detalhes neste artigo, os reais valores do desemprego estão bastante subestimados, e por uma mera questão de metodologia utilizada pelo IBGE. No entanto, pelo bem do debate e para evitar quaisquer acusações de manipulação, vamos aqui nos ater exatamente aos números coletados pelo IBGE.

O gráfico a seguir mostra a evolução do crédito total concedido ao setor privado (linha vermelha, eixo da esquerda) e o número de empregados no setor privado (linha azul, eixo da direita), segundo o IBGE. O crédito total abrange todo o crédito concedido ao setor industrial, ao setor comercial, ao setor de serviços, ao setor rural, à compra de imóveis, e às pessoas físicas.



Gráfico 6: Evolução do crédito total concedido ao setor privado (linha vermelha, eixo da esquerda) e o número de empregados no setor privado (linha azul, eixo da direita), segundo o IBGE.

Analisando os números absolutos, este gráfico não diz muita coisa. Por isso, o melhor procedimento é fazer um gráfico que mostra a taxa de crescimento anual do crédito total ao setor privado e a taxa de crescimento anual do total de empregados no setor privado (o que deixa de fora os empregos no setor público).



Gráfico 7: taxa de crescimento anual do crédito ao setor privado (linha vermelha; eixo da esquerda) vs. taxa de crescimento do emprego no setor privado (linha azul; eixo da direita)

O mecanismo da expansão do crédito descrito acima pode ser observado no gráfico. Quando o crédito (linha vermelha) está acelerado, o emprego no setor privado (linha azul) cresce. Quando ele estagna, o crescimento do emprego arrefece. E quando o crédito se desacelera subitamente, o emprego se contrai (vide 2009). 

O crescimento do crédito no Brasil se estagnou no primeiro semestre de 2011 e começou a desacelerar no segundo semestre. O crescimento do emprego foi junto. Se em 2010, ano da forte acelerada no crédito (a taxa de crescimento anual passou de 12% em novembro de 2009 para 21% em novembro de 2010, aceleração de 75% em um ano), o emprego chegou a crescer a taxas maiores que 6%, atualmente, com o crescimento do crédito tendo arrefecido para 14% ao ano, o emprego está crescendo à módica taxa de 1% ao ano. A taxa da expansão do crédito ainda está definitivamente alta para os padrões americanos e europeus, mas é a mais baixa desde fevereiro de 2010.

(Aquela recuperação pontual do emprego observada no segundo semestre de 2012 se deve provavelmente à prorrogação das isenções fiscais concedidas pelo governo à indústria e ao comércio).

Podemos apenas especular o que está causando a desaceleração do crédito. A hipótese mais robusta é aquela que aponta para uma combinação entre endividamento excessivo da população, perda de confiança — tanto por parte dos bancos quanto por parte da população — quanto ao futuro da economia, e a inadimplência em níveis recordes (o que, além de afetar os balancetes dos bancos, torna-os mais cautelosos).

O gráfico abaixo mostra o nível de endividamento das famílias em relação à sua renda acumulada nos últimos doze meses (linha azul) e os gastos das famílias com o serviço de suas dívidas — ou seja, juros e amortização — em relação à sua renda mensal (linha vermelha). De acordo com as últimas estatísticas, o endividamento das famílias é de mais de 45% da sua renda acumulada em doze meses, e os gastos das famílias para cumprirem o serviço de suas dívidas é de quase 22% de sua renda mensal.



Gráfico 8: nível de endividamento das famílias em relação à sua renda acumulada nos últimos doze meses (linha azul); gastos das famílias com o serviço de suas dívidas — juros e amortização — em relação à sua renda mensal (linha vermelha).

Tal nível de endividamento levou a uma inadimplência total de R$85 bilhões, um recorde.



Gráfico 9: inadimplência dos brasileiros junto ao sistema financeiro

Conclusão

A economia brasileira está simplesmente colhendo o que plantou nos últimos três anos, quando a atual equipe econômica decidiu "inovar" e apostar na velha "nova matriz econômica".

Com as contas do governo em descontrole, com a dívida pública se aproximando dos 60% do PIB (isso na metodologia adotada a partir de 2008; na metodologia utilizada até 2007, o valor está em 65% do PIB), com os títulos da dívida já sendo punidos no mercado estrangeiro, com o real dizimado perante o dólar e o euro, com os juros em alta (no maior patamar em 18 meses), com a inflação muito acima do centro da meta, com o custo de vida em ascensão, e com quase 70% dos lares com algum tipo de dívida, é difícil visualizar uma súbita recuperação sem antes passarmos por alguma correção mais robusta. Enquanto estas variáveis não forem equacionadas, não há grandes perspectivas para o crescimento econômico.

Eis uma notícia interessante, que mostra bem as consequências de um modelo de crescimento baseado apenas na expansão do crédito:



Os brasileiros [pessoas físicas] chegam ao fim de 2013 devendo — somente aos bancos — um total de pouco mais de R$ 1,2 trilhão, o maior saldo da história, segundo dados do Banco Central (BC)

A situação das finanças domésticas se complica porque, com base nos números do BC sobre as operações de crédito, os consumidores têm mergulhado nas dívidas mais caras do mercado.

O saldo devedor do cheque especial, por exemplo, é o maior já registrado, com alta acumulada de 20,9% no ano. Os débitos com o cartão de crédito na modalidade rotativa — quando se quita apenas o valor mínimo da fatura — cresceram 6,2% nos 10 primeiros meses, mais do que os pagamentos à vista com cartão, nos quais não incidem juros, com alta de 5,1%.

A soma do que os brasileiros devem às instituições financeiras representa, hoje, mais de um quarto (25,8%) do Produto Interno Bruto (PIB). 

Até o momento, o grande trunfo do governo tem sido o de enfatizar a baixa taxa de desemprego. No entanto, há aí outro problema: se o desemprego está de fato baixo, então a economia deveria estar crescendo robustamente; afinal, essa seria a consequência lógica do fato de você ter mais mão-de-obra produzindo e consumindo. No entanto, isso não está ocorrendo. 

Logo, há duas conclusões possíveis: ou a taxa de desemprego é bem maior do que a oficial, ou então a mão-de-obra brasileira nunca foi tão pouco produtiva e tão pouco qualificada. 

Com uma mão-de-obra mal instruída e pouco produtiva, a única solução de curto prazo seria a redução das tarifas de importação para bens de capital, os quais poderiam aumentar nossa produtividade no curto prazo. Mas o que a atual matriz econômica do governo está fazendo é justamente dificultar as importações, tudo em nome da "defesa da indústria nacional".

Ao final de um artigo semelhante escrito há exatamente um ano (dezembro de 2012), disse o seguinte:



No Brasil, além de a qualidade dos serviços no geral ser ruim, a quantidade e a variedade de bens de consumo é muito baixa, pois além de o governo dificultar ao máximo as importações, nossa desvalorizada moeda não tem poder de compra em relação às principais moedas do mundo. E não bastasse a pouca oferta e a pequena variedade de bens e serviços, o acesso a eles é caro, justamente porque o governo destrói continuamente o poder de compra da moeda.

Portanto, eis a realidade atual do Brasil: qualidade da mão-de-obra em queda livre, quantidade e variedade de bens e serviços bastante insatisfatória, e acesso a eles cada vez mais caro. Em vez de facilitar a aquisição de bens de capital, o que poderia remediar a questão da baixa produtividade e da qualidade dos bens e serviços, o governo dificulta o acesso, tanto por meio de tarifas quanto por desvalorizações cambiais. E, para piorar, não há absolutamente nenhuma tendência de melhora na qualidade da mão-de-obra. Esse é o nosso padrão de vida.

Mais ainda: a julgar pelas políticas adotadas pelo atual governo no que tange a protecionismo, câmbio e inflação, não há nenhuma indicação de que isso irá mudar no futuro próximo. 

Plus ça change, plus c'est la même chose.

Por: Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

sábado, 4 de janeiro de 2014

MSL - O MOVIMENTO DOS SEM-LEI

Na semana passada, comentei aqui uma declaração do ministro Luís Roberto Barroso, do STF. Ele entende que uma de suas funções é "empurrar a história", como Lênin. Não existe democracia sem um Poder Judiciário independente, mas essa independência tem balizas. A decisão que desrespeita ou ignora a letra da lei agride o regime democrático, ainda que sob o pretexto de aperfeiçoá-lo. Juízes também são produto da ordem legal que eventualmente transgridem. Pergunta-se a Barroso: aquele que manda às favas uma decisão judicial porque está "empurrando a história" merece aplauso ou punição? Sempre se pode argumentar que há o jeito certo e o errado de dar esse empurrãozinho, mas isso é guerrilha ideológica, não Estado de Direito. Vamos ver.


Liminar concedida dia desses por uma juíza do Mato Grosso do Sul impedia que proprietários rurais realizassem um leilão de gado, grãos e equinos. O objetivo do evento era arrecadar recursos para mobilizar produtores contra a onda de invasões de terra promovida por índios, ONGs e padres. Na liminar, depois cassada, a juíza alegava que sitiantes e fazendeiros pretendiam contratar segurança privada -essa era precisamente a acusação feita pelos invasores-, o que implicaria "substituir o Estado na solução do conflito existente entre a classe ruralista e os povos indígenas".

Quando os militantes invadem as propriedades, eles não estão tentando "substituir o Estado"? Então o coitado que tem esbulhado o seu direito deve ser proibido até de se defender? De resto, quem quer dinheiro para contratar milícias não realiza leilões à luz do dia.

Em outubro, um juiz negou liminar de reintegração de posse à reitoria da USP, invadida por delinquentes de extrema esquerda. O juiz que se negou a devolver o prédio a seus legítimos usuários escreveu, espancando o bom senso e a língua: "Outrossim, frise-se que nenhuma luta social que não cause qualquer transtorno, alteração da normalidade, não tem força de pressão e, portanto, sequer poderia se caracterizar como tal". Quando os criminosos deixaram o prédio, o saldo de destruição impressionava. "Transtorno"?

O meritíssimo pertence a uma Associação de Juízes que se denomina "Para a Democracia", algo notável porque nos faz supor que possa existir outra -no caso, "para a ditadura". Tal associação já produziu uma pérola, também na defesa de invasores. Escreveu: "Não é verdade que ninguém está acima da lei (...): estão, sim, acima da lei, todas as pessoas que vivem no cimo preponderante das normas e princípios constitucionais e que, por isso, rompendo com o estereótipo da alienação, e alimentados de esperança, insistem em colocar o seu ousio e a sua juventude a serviço da alteridade, da democracia e do império dos direitos fundamentais".

O estilo brega mal esconde a concepção totalitária de direito. Ora, se há pessoas acima da lei, cesse o que o antigo Estado de Direito canta. Tudo lhes é permitido, muito especialmente o crime.

O ano começa com o STF prestes a jogar o sistema político na clandestinidade. Quatro ministros já acolheram a Ação Direta de Inconstitucionalidade que quer proibir a doação de empresas a campanhas eleitorais. Se acontecer, as contribuições hoje ilegais assim continuarão. E boa parte das legais migrará para o crime. Esse mesmo tribunal, e não entro no mérito de cada decisão, "constitucionalizou", por exemplo, o casamento gay, o aborto de anencéfalos e a marcha da maconha. Legislou na contramão da vontade explícita do Congresso. No caso das cotas raciais, condescendeu com a agressão à Constituição promovida pelos dois outros Poderes. E sempre contra a escrita.

Se as leis não limitam as ações dos homens, quem disciplina os homens sem limites?

Por: Reinaldo Azevedo Folha de SP

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

DÍVIDA PÚBLICA BRASILEIRA

Dívida pública brasileira: graças ao PT, uma bomba prestes a explodir


Gastos irresponsáveis do governo fazem dívida crescer duas vezes e meia mais rápido que o PIB


Não é de hoje que o PT vem se mostrando extremamente hábil na manipulação de números que coloquem a opinião pública a seu favor. Se, por exemplo, criam um índice BAIXÍSSIMO para definir o que seria “pobreza extrema”, convenientemente “esquecem” de reajustá-lo de acordo com inflação, o que faz com que naturalmente milhões ultrapassem seu limite ano a ano. Foi o que apontou matéria da BBC ainda em março:

Adotado em junho de 2011 pelo governo, quando foi lançado o plano Brasil Sem Miséria (guarda-chuva das políticas federais voltadas aos mais pobres), o valor jamais foi reajustado. Se tivesse acompanhado a inflação, hoje valeria R$ 76,58.

Em onze das 18 capitais monitoradas pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), R$ 70 não garantem sequer a compra da parte de uma cesta básica destinada a uma pessoa. Em São Paulo, seriam necessários R$ 95,41 para a aquisição.(grifos nossos)

A falácia da quitação da dívida externa

Uma outra falácia repetida inúmeras vezes sem questionamentos por parte da mídia tida como golpista pelo governo diz respeito à quitação da dívida externa brasileira. Sim, foi quitada. Mas ao custo do estouro da dívida interna, com juros muito maiores e prazos menores para negociação. Era o que alertava artigo de Lígia Ferreira para a Folha Política em maio passado:

Quando Lula assumiu o seu primeiro mandato em 2002, a dívida externa era de R$ 212 bilhões, enquanto a dívida interna era de R$ 640 bilhões. Ou seja, o total, dívida externa mais interna, chegou aos inacreditáveis R$ 852 bilhões. Em 2008, quando o Lula assumiu ter pago a dívida, a dívida externa caiu para zero, já a interna chegou a – pasme – R$ 1,4 trilhão. Total da dívida: R$ 1,4 trilhão – 65% do PIB do Brasil.

Contra fatos não há argumentos: Lula “pagou”, sim, a dívida externa. No entanto, nota-se que a dívida interna aumentou exorbitantemente. Na realidade, o Governo se endividou internamente para se quitar externamente. Diversos economistas alegam, ainda, que os novos acordos de endividamento interno seriam muito mais desvantajosos, tendo em vista o menor prazo e a maior incidência de juros.

Para o Brasil, pouca ou nenhuma diferença faz para quem deve, o fato é que a dívida não só continua como aumentou. É necessário ressaltar que apenas de juros para a dívida interna foram pagos, no mês, R$ 13 bilhões. A efeito de comparação, a verba destinada, naquele ano, para a educação foi de R$ 12,7 bilhões (média de 1,05 bilhão por mês).(grifos nossos)

Colocando num gráfico simples, eis o que está acontecendo com a dívida pública brasileira durante estes 10 anos de governo petista:


Dívida pública também cresce proporcionalmente

Quem traz o alerta é o CenárioMT, em artigo de José Boas. A dívida pública vem crescendo mais que o dobro do PIB. Ao ponto de que, em mais uma década, superará este:

Para termos uma ideia do tamanho do problema, entre 2004 e 2013 o PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil cresceu em média 3,64% ao ano (hoje é de R$ 4,5 trilhões) e nossa dívida pública avançou no mesmo período, em média, 8,98% ao ano(atualmente em R$ 2,24 trilhões). Traduzindo em miúdos, a dívida pública brasileira já é do tamanho da metade daquilo que o país ganha todos os anos, e ela cresce 2,5 vezes mais rápido do que o nosso PIB. Isso quer dizer que, mantidos estes padrões, até 2027 (mais 13 anos) teremos uma dívida que superará a nossa receita anual.

O artigo traz um gráfico que “desenha” o caminho para o qual o Brasil segue rumando:



Irresponsabilidade na administração pública

O governo Dilma segue fechando os olhos para a situação. Num cenário de crise como este, seria natural um melhor controle dos gastos. Uma matéria da Folha, no entanto, revela que “enquanto lucros e investimentos patinam, estatais ganham 40 mil novos funcionários no governo Dilma“:

Investimentos e lucros caíram em algumas das principais estatais federais, mas a ampliação do quadro de pessoal das empresas mantém, no governo Dilma Rousseff, o ritmo dos anos Lula. (…) No total, o contingente de empregados nas empresas federais com receita própria se aproxima dos 500 mil, contra 339 mil em 2002, último ano do governo FHC.

(grifos nossos)

E mais um gráfico entrega bem que o governo segue ignorando a situação na qual vem se metendo:
Dilma gasta em 6 meses quase 10 BILHÕES sem licitação

O Jornal da Mídia aponta outro fator que pode estar agravando o aumento da dívida pública. Só no primeiro semestre deste ano, nada menos que 37% das aquisições de bens e serviços do governo Dilma ocorreram sem licitação. Com licitação, explica a matéria, a economia chegaria à casa dos BILHÕES de reais:


As compras da União somaram R$ 25,5 bilhões no primeiro semestre deste ano, de acordo com dados extraídos do Portal de Compras do Governo Federal (Comprasnet), administrado pelo Ministério do Planejamento. Foram gastos R$ 16 bilhões (63%) com compras licitadas e R$ 9,5 bilhões (37%) em aquisições de bens e serviços sem licitação.

Além de maior controle dos gastos, o processo licitatório possibilita significativa economia para os cofres públicos. De acordo com Loreni Foresti, 90% das compras licitadas foram feitas por meio de pregão eletrônico, no valor de R$ 14,4 bilhões. Isso reduziu os gastos em 18%, equivalentes a R$ 3,1 bilhões, disse a secretária.(grifos nossos)

O outro lado: governo tucano de São Paulo atinge menor índice de endividamento

Não se trata simplesmente de um momento ruim da economia, mas de erros gritantes na administração dos gastos públicos. O governo do PSDB paulistano, tradicional opositor do governo petista, ganhou manchetes nesta terça-feira graças a uma economia de 19 BILHÕESde reais em suas dívidas:

O Estado de São Paulo vai aumentar o superávit primário e reduzir a sua dívida líquida em 19 bilhões de reais, segundo o governador Geraldo Alckmin (PSDB). Somente este ano, conforme ele, serão 6 bilhões de reais em redução. “É um superávit primário extremamente importante”, disse em conversa com jornalistas, após participar de reunião com o ministro da Fazenda, Guido Mantega, nesta quinta-feira.

Ele informou que o Estado alcançou o menor índice de endividamento frente a sua receita líquida, de 1,3 vez. No ano passado, conforme Alckmin, estava em 1,6 vez. “O indicador também está bem abaixo do estabelecido pela lei de responsabilidade fiscal, de duas vezes“, declarou o governador.(grifos nossos)

A oposição precisa ter coragem para explicar estes números à população mais leiga. O governo petista está prejudicando o país com todo o seu pacote de falácias. Quando a bolha estourar, e este dia está cada vez mais próximo, prejudicará principalmente os mais fracos, justo aqueles que o governo finge defender. Do site http://www.implicante.org/

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

A FOME NA UCRÂNIA - UM DOS MAIORES CRIMES DO ESTADO FOI ESQUECIDO


Como ocorre em todos os regimes totalitários, a Rússia bolchevista temia toda e qualquer manifestação de sentimento nacionalista entre aqueles povos que eram reféns do regime. A propaganda bolchevique relativa aos direitos das várias nacionalidades dentro da esfera de influência da Rússia mascarava o temor do regime em relação ao poder do nacionalismo.

No início de 1918, o líder russo Vladimir Ilitch Lênin tentou impor um governo soviético sobre o povo da Ucrânia, o qual, apenas um mês antes, em janeiro, havia declarado sua independência. De início, o objetivo de Lênin havia sido aparentemente alcançado. Esse governo soviético imposto à Ucrânia tentou de imediato suprimir as instituições educacionais e sociais ucranianas; há até relatos sobre a Cheka, uma precursora da KGB, matando pessoas pelo crime de falar ucraniano nas ruas.

Embora o povo ucraniano tenha, ao final de 1918, conseguido restabelecer sua república, essa vitória foi efêmera. Lênin, sem dúvida, iria querer incorporar a Ucrânia ao sistema soviético de qualquer jeito, porém seu real desejo de assegurar o controle da Ucrânia era por causa de seus grandes recursos naturais. Em particular, a Ucrânia ostentava o solo mais fértil da Europa — daí o seu apelido de "o manancial da Europa".

Já no início de 1919, um governo soviético havia novamente sido estabelecido na Ucrânia. Porém, esse novo governo soviético acabou se tornando mais um fracasso. Todos esses eventos estavam ocorrendo durante aGuerra Civil Russa, e a ajuda de facções rivais contribui para um segundo triunfo da independência ucraniana.

Com esses dois fracassos, o regime de Lênin aprendeu uma valiosa lição. De acordo com Robert Conquest, autor do livro The Harvest of Sorrow (A colheita do sofrimento), "Concluiu-se que a nacionalidade e a língua ucraniana eram de fato um elemento de grande peso, e que o regime que ignorasse isso de maneira ostentosa estaria fadado a ser considerado pela população como uma mera imposição usurpadora." 

Quando os soviéticos adquiriram o controle da Ucrânia pela terceira e última vez em 1920, eles constataram que iriam enfrentar uma contínua resistência e incessantes insurreições a menos que fizessem grandes concessões à autonomia cultural ucraniana. E assim, pela década seguinte, os ucranianos basicamente não foram incomodados em seu idioma e em sua cultura. 

Porém, uma facção dos comunistas russos se mostrou incomodada com isso, e seguidamente alertava que o nacionalismo ucraniano era uma fonte de intolerável divisão dentro do quadro militar soviético, e que, mais cedo ou mais tarde, a situação teria de ser confrontada de alguma maneira.

Avancemos agora oito anos no tempo. Em 1928, com Josef Stalin firmemente no poder, a União Soviética decidiu implantar uma política de requisição compulsória de cereais — uma maneira polida de dizer que o governo iria tomar à força todo o cereal cultivado pelos camponeses, pagando em troca um preço fixado arbitrariamente pelo governo, muito abaixo dos custos de produção. A liderança soviética, em decorrência tanto de informações equivocadas quanto de sua típica ignorância dos princípios de mercado, havia se convencido de que o país estava no limiar de uma crise de escassez de cereais. A requisição compulsória funcionou, mas apenas no limitado sentido de que forneceu ao regime todo o volume de cereais que ele julgava ser necessário. Porém, tal política solapou fatalmente a confiança futura dos camponeses no sistema. Durante a Guerra Civil Russa, em 1919, para tentar combater a fome da população urbana, Lênin havia confiscado em escala maciça os cereais de vários camponeses, que foram chamados de especuladores e sabotadores. Agora em 1928, a possibilidade de novos confiscos, algo que os camponeses imaginavam ser apenas uma aberração bárbara da época da Guerra Civil, passaria a ser uma constante ameaça no horizonte.

Os camponeses, naturalmente, passaram a ter menos incentivos para produzir, pois sabiam perfeitamente bem que, dali em diante, os frutos de seu trabalho árduo poderiam ser facilmente confiscados por um regime sem lei — o mesmo regime que havia prometido aos camponeses, quando da promulgação da NEP em 1921, que eles poderiam produzir e vender livremente.

Foi apenas uma questão de tempo para que o regime decidisse embarcar em um amplo programa de coletivização forçada das propriedades agrícolas, uma vez que a abolição da propriedade privada da terra era um importante aspecto do programa marxista. Os camponeses despejados foram enviados bovinamente para enormes fazendas estatais. Essas fazendas iriam não apenas satisfazer as demandas da ideologia marxista, como também iriam resolver o grande problema prático do regime: garantir que uma quantidade adequada de cereais fosse ofertada às cidades, onde o proletariado soviético trabalhava duramente para expandir a indústria pesada. Fazendas coletivas estatais significavam cereais estatizados.

Alguns especialistas tentaram alertar Stalin de que seus objetivos, tanto industriais quanto agrícolas, eram excessivamente ambiciosos e estavam em total desacordo com a realidade. Mas Stalin nem queria ouvir. Um de seus economistas, diga-se de passagem, chegou a afirmar que "Nossa tarefa não é estudar a ciência econômica, mas sim mudá-la. Não estamos restringidos por nenhuma lei. Não reconhecemos leis. Não há uma só fortaleza que os bolcheviques não possam atacar e destruir."

Paralelamente à política de coletivização forçada implantada por Stalin, ocorreu também uma brutal campanha contra os grandes proprietários de terras, fazendeiros ricos conhecidos como "kulaks", os quais o governo temia liderarem movimentos de resistência contra a coletivização. Mas era uma fantasia de Stalin imaginar que apenas os kulaks se opunham à coletivização; toda a zona rural estava unida contra o governo. (Até mesmo o Pravdanoticiou um incidente no qual uma mulher ucraniana tentou bloquear a passagem de tratores que estavam chegando para começar a trabalhar nas fazendas coletivizadas; a mulher gritara "O governo soviético está recriando a escravidão!").

Stalin falava abertamente de sua política de "liquidar toda a classe dos kulaks"; eles eram a classe inimiga da zona rural. Com o passar do tempo, como era de se esperar, a definição padrão de o que constituía um kulak foi se tornando bastante ampla, até finalmente chegar ao ponto em que o termo — e as terríveis penalidades que eram aplicadas a todos aqueles infelizes a quem o termo era aplicado — podia ser aplicado a praticamente qualquer camponês.

Uma historiografia sobre o Partido Comunista, autorizada pelo próprio, relatou que "os camponeses caçaram impiedosamente os kulaks por toda a terra, tomaram todos os seus animais e todo o seu maquinário, e então pediram ao regime soviético para aprisionar e deportar os kulaks." Como descrição do reino de terror imposto aos kulaks, esse relato não pode nem sequer ser classificado como uma piada sem graça. O regime, e não os camponeses, é quem perseguiu os kulaks. No final, de acordo com uma testemunha ocular, para que um homem fosse condenado a um destino cruel, bastava que "ele tivesse pagado algumas pessoas para trabalhar para ele como empregados, ou que ele tivesse sido o proprietário de três vacas."

As quase 20 milhões de propriedades agrícolas familiares que existiam na Rússia em 1929 estariam, cinco anos depois, concentradas em apenas 240.000 fazendas coletivas. Ao longo de grande parte de toda a história soviética, não era incomum algumas pessoas obterem a permissão para ser donas, em locais distintos, de alguns poucos acres de terra para uso privado. Quando Mikhail Gorbachev assumiu o poder em 1985, os 2% de terra agrícola que eram propriedade privada produziam nada menos que 30% de todos os cereais do país — uma resposta humilhante para todos aqueles que ignorantemente afirmavam que a agricultura socializada seria mais eficiente que a agricultura capitalista, ou que eles poderiam alterar a natureza humana ou reescrever as leis da economia.

Na mesma época em que Stalin começou a coletivização forçada, em 1929, ele também recriou a campanha contra a cultura nacional ucraniana, campanha essa que estava dormente desde o início da década de 1920. Foi na Ucrânia que a política de coletivização stalinista deparou-se com a mais ardorosa e violenta resistência — o que não impediu, entretanto, que o processo já estivesse praticamente completo por volta de 1932. Stalin ainda considerava a contínua e inabalável presença do sentimento nacionalista ucraniano uma permanente ameaça ao regime, e decidiu lidar de uma vez por todas com aquilo que ele via como o problema da 'lealdade dividida' na Ucrânia.

A primeira etapa de sua política foi direcionada aos intelectuais e personalidades culturais da Ucrânia, milhares dos quais foram presos e submetidos a julgamentos ridículos e escarnecedores. Após isso, tendo retirado de circulação aquelas pessoas que poderiam se transformar em líderes naturais de qualquer movimento de resistência, Stalin passou então a atacar o próprio campesinato, que era onde estava o real núcleo das tradições ucranianas.

Mesmo com o processo de coletivização já praticamente completo na Ucrânia, Stalin anunciou que a batalha contra os perversos kulaks ainda não estava ganha — os kulaks haviam sido "derrotados, mas ainda não exterminados." Stalin começaria agora uma guerra — supostamente contra os kulaks — direcionada aos poucos fazenderios que ainda restavam e dentro das próprias fazendas coletivas. Dado que, a essa altura, qualquer pessoa que por qualquer definição cabível pudesse ser classificada como um kulak já havia sido expulsa, morta ou enviada para campos de trabalho forçado, essa nova etapa da campanha soviética na Ucrânia teria o objetivo de aterrorizar os camponeses comuns. Estes deveriam ser física e espiritualmente quebrados, e sua identidade de seres humanos seria drenada deles à força.

Stalin começou estipulando metas de produção e entrega de cereais, as quais os ucranianos só conseguiriam cumprir caso parassem de se alimentar, o que os faria morrer de fome. O não cumprimento das exigências era considerado um ato de deliberada sabotagem. Após algum tempo, e com a produção e entrega inevitavelmente abaixo da meta, Stalin determinou que seus ativistas confiscassem dos camponeses todo o volume de cereais necessário para o governo ficar dentro da meta estipulada. Como a produção era baixa, os camponeses frequentemente ficavam sem nada. O desespero se instalou. Um historiador conta que uma mulher, por simplesmente ter tentado cortar para si um pouco do seu próprio centeio, foi levada presa junto a um de seus filhos. Após conseguir fugir da prisão, ela coletou, com a ajuda do seu filho, alguns poucos itens comestíveis e foram viver na floresta. Morreram após um mês e meio. As pessoas eram sentenciadas a dez anos de prisão e a trabalhos forçados pelo simples fato de colherem batatas, ou até mesmo por colher espigas de milho nos pedaços de terra privada que elas podiam gerir. Tudo tinha de ser do governo.

Os ativistas comunistas afirmavam que os sabotadores estavam por todos os lados, sistematicamente retendo e escondendo comida, impedindo o abastecimento das cidades, e desafiando as ordens de Stalin. Esses ativistas invadiam de surpresa as casas dos camponeses e faziam uma varredura no local em busca de alguma comida escondida. Aqueles ativistas mais bondosos ainda deixavam algum resquício de comida para as famílias, porém os mais cruéis saíam levando absolutamente tudo o que encontravam.

O resultado foi totalmente previsível: as pessoas começaram a passar fome, em números cada vez maiores. Um camponês que não tivesse a aparência de alguém que estava esfomeado era imediatamente considerado suspeito pelas autoridades soviéticas de estar estocando comida. Como relata um historiador, "Um ativista comunista, após fazer uma busca minuciosa pela casa de um camponês que não aparentava a mesma fome dos demais, finalmente encontrou um pequeno saco de farinha misturada com casca de árvore e folhas. O material foi confiscado e despejado em um lago do vilarejo."

Robert Conquest cita o testemunho de outro ativista:

Eu ouvi as crianças... engasgando sufocadas, tossindo e gritando de dor e de fome. Era doloroso ver e ouvir tudo aquilo. E ainda pior era participar de tudo aquilo.... Mas eu consegui me persuadir, me convencer e explicar a mim mesmo que aquilo era necessário. Eu não poderia ceder; não poderia me entregar a uma compaixão debilitante .... Estávamos efetuando nosso dever revolucionário. Estávamos obtendo cereais para a nossa pátria socialista....

Nosso objetivo maior era o triunfo universal do comunismo, e, em prol desse objetivo, tudo era permissível — mentir, enganar, roubar, destruir centenas de milhares e até mesmo milhões de pessoas...

Era assim que eu e meus companheiros raciocinávamos, mesmo quando... eu vi o real significado da "coletivização total" — como eles aniquilaram os kulaks, como eles impiedosamente arrancaram as roupas dos camponeses no inverno de 1932-33. Eu mesmo participei disso, percorrendo a zona rural, procurando por cereais escondidos.... Junto com meus companheiros, esvaziei as caixas e os baús onde as pessoas guardavam seus alimentos, tampando meus ouvidos para não ouvir o choro das crianças e a lamúria suplicante das mulheres. Eu estava convencido de que estava realizando a grande e necessária transformação da zona rural; e que nos dias vindouros as pessoas que viveriam ali estariam em melhor situação por minha causa.

Na terrível primavera de 1933, vi pessoas literalmente morrendo de fome. Vi mulheres ecrianças com barrigas inchadas, ficando azuis, ainda respirando mas com um olhar vago esem vida.... Eu não perdi a minha fé. Assim como antes, eu acreditava porque eu queria acreditar.

Em 1933, Stalin estipulou uma nova meta de produção e coleta, a qual deveria ser executada por uma Ucrânia que estava agora à beira da mortandade em massa por causa da fome, que havia começado em março daquele ano. Vou poupar o leitor das descrições mais gráficas do que aconteceu a partir daqui. Mas os cadáveres estavam portodos os lados, e o forte odor da morte pairava pesadamente sobre o ar. Casos de insanidade, e até mesmo de canibalismo, estão bem documentados. As diferentes famílias camponesas reagiam de maneiras distintas à medida que lentamente iam morrendo de fome:

Em uma choupana, era comum haver algum tipo de guerra entre a família. Todos vigiavam estritamente todos os outros. As pessoas brigavam por migalhas, tomando restos de comida umas das outras. A esposa se voltava contra o marido e o marido, contra ela. A mãe odiava os filhos. Já em outra choupana, o amor permaneceria inviolável até o último suspiro da família. Eu conheci uma mulher que tinha quatro filhos. Ela costumava lhes contar lendas e contos de fadas com a intenção de fazê-los esquecer a fome. Sua própria língua mal podia se mover, mas mesmo assim ela se esforçava para colocá-los em seus braços, ainda que ela mal tivesse forças para levantar seus braços quando eles estavam vazios. O amor vivia dentro dela. E as pessoas notaram que, onde havia ódio, as pessoas morriam mais rapidamente. Entretanto, o amor não salvou ninguém. Todo o vilarejo sucumbiu; todos juntos, sem exceção. Não restou uma só vida.

Normalmente é dito que o número de ucranianos mortos na fome de 1932-33 foi de cinco milhões. De acordo com Robert Conquest, se acrescentarmos outras catástrofes ocorridas com camponeses entre 1930 e 1937, incluindo-se aí um enorme número de deportações de supostos "kulaks", o grande total é elevado para entorpecentes 14,5 milhões de mortes. E, mesmo assim, se apenas 1% dos alunos do ensino médio já tiver ouvido falar sobre esses eventos, isso já seria um pequeno milagre.

Durante o artigo, referi-me várias vezes a Robert Conquest, um excelente historiador da União Soviética. Conclamo, insisto e exorto qualquer pessoa com interesse nesses eventos a ler seu extraordinário livro The Harvest of Sorrow. A leitura flui como se fosse um romance — mas a história relatada é excessivamente real.

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