terça-feira, 21 de janeiro de 2014

OS PÓS-ESCOLÁSTICOS E JUAN DE MARIANA, UM AUSTRÍACO POLITICAMENTE INCORRETO


Este artigo é uma continuação deste outro

4. O Cardeal Gaetano, Tommaso de Vio

A Escolástica tardia – o período dos pós-escolásticos - foi um produto do século XVI, o século que deu início à Reforma Protestante e à Contra Reforma Católica. Se o século XIII foi bem descrito como a idade de Ouro da filosofia escolástica, o século XVI foi a sua Era de Prata, a era de um renascimento brilhante do pensamento escolástico, antes de seu fim. Nos séculos XIV e XV surgiu o nominalismo e o enfraquecimento da ideia de uma lei racional, incluindo uma lei natural ética, descobertos pela razão do homem. Mas o século XVI assistiu a um tomismo renascente, liderado por um dos maiores homens da Igreja de sua época, Tommaso de Vio (1469 -1534), o Cardeal Gaetano (ou Caetano, em português).

Ele não foi apenas o filósofo tomista e teólogo eminente de sua época, pois também era um dominicano italiano que se tornou Geral da Ordem em 1508. Como cardeal da Igreja, foi o defensor favorito do Papa em debates com o fundador do protestantismo, Martinho Lutero. Em seu comentário sobre a Summa de São Tomás de Aquino, Caetano, é claro, endossou a visão escolástica de que o preço justo é o preço comum de mercado, refletindo a estimativa dos compradores e considerou que esse preço vai flutuar em decorrência de mudanças nas condições de oferta e demanda. Na tentativa de expurgar da economia escolástica qualquer vestígio da teoria da "estação da vida" de Langenstein, Caetano foi mais longe ao criticar Aquino por este ter denunciado a acumulação de riqueza além de certo nível como pecado de avareza. Pelo contrário, declarou Caetano, é legítimo que pessoas altamente capazes subam na escada social de uma forma que corresponda ao seu trabalho, sua inteligência, sua capacidade e suas realizações.

Em seu tratado abrangente sobre câmbio, "De Cambiis", de 1499, Caetano fez uma defesa completa, firme, contundente e incondicional do mercado de divisas. Uma vez que o papel do comerciante é legítimo, então assim também deve ser o do banqueiro de câmbio, que simplesmente é quem se engaja numa certa espécie de transação mercantil. Além disso, o comércio moderno não poderia funcionar sem o mercado de câmbio e as cidades não poderiam existir sem comércio. Por isso, inferiu, é necessário e justo que o mercado de câmbio exista. Como em outros mercados, o preço de mercado habitual é o preço justo.

No curso de sua defesa do mercado de câmbio, Caetano começou a avançar o estado da arte na teoria monetária: mostrou incisivamente que a moeda é uma mercadoria, particularmente quando os agentes se deslocam de uma cidade para outra, e, portanto, sujeita às leis de oferta e demanda que regem os preços das commodities. Neste ponto, Caetano fez um grande avanço na teoria monetária, em particular, e na própria teoria econômica em geral, ao ressaltar que o valor do dinheiro não depende apenas da demanda existente e das condições de oferta, mas também da expectativa atual do estado futuro do mercado. Expectativas de guerras e fome e de futuras mudanças na oferta de dinheiro – mostrou - afetam o seu valor atual. Assim, o Cardeal Caetano, um príncipe da Igreja do século XVI, pode ser considerado o fundador da teoria das expectativas na economia. Antecipou Menger e Robert Lucas (da Escola de Expectativas Racionais) em 450 e 550 anos, respectivamente.

Adicionalmente, Caetano distinguia dois tipos de "valor da moeda": o seu poder de compra em termos de bens, quando o ouro ou prata são "equiparados" com mercadorias compradas e vendidas, e o valor de uma moeda em termos de outra moeda no mercado de câmbio. Segundo ele, cada tipo de moeda tenderia a se deslocar para a região onde o seu valor é mais alto, e afastar-se da região onde o seu valor é mais baixo.

Quanto à polêmica questão da usura, embora Caetano não tenha sido tão radical como seu contemporâneo Summenhart em praticamente erradicar a proibição da usura, ele se juntou a ele na defesa da doutrina da intenção implícita, e foi ainda mais radical em uma área onde Summenhart tinha recuado: lucrum cessans (lucros cessantes). A "intenção implícita" significa que se alguém realmente acredita que seu contrato não é um empréstimo, então não é um usurário, embora possa ser um empréstimo na prática. Isto, obviamente, abriu o caminho para a eliminação prática da proibição da usura. Além disso, Caetano também se juntou a seus colegas liberais ao aprovar o contrato de investimento garantido. Mas seu grande avanço no campo da usura foi sua reivindicação de lucrum cessans. Empunhando a poderosa autoridade de ser o maior tomista desde o próprio "Boi Mudo" (que era como os colegas chamavam Tomás de Aquino, devido a ser corpulento e a manter-se quase sempre calado), Caetano ofereceu uma crítica minuciosa em que rejeita seu mestre. Ele, então, justifica, na verdade, não apenas os lucros cessantes, mas quaisquer empréstimos.

Dessa forma, um credor pode cobrar juros sobre qualquer empréstimo como forma de pagamento de lucros perdidos em outros investimentos, desde que o empréstimo seja para um homem de negócios. Essa divisão entre empréstimos para empresários e para consumidores foi feita pela primeira vez como um meio de justificar todos os empréstimos comerciais. A lógica era que o dinheiro retinha seu valor mais alto nas mãos dos homens de negócios em relação aos tomadores de empréstimos para consumo. Assim, pela primeira vez na era cristã, o Cardeal Caetano justificou o ato de emprestar dinheiro como um negócio, desde que os empréstimos fossem feitos a empresas. Antes dele, todos os escritores, mesmo os mais liberais, como Conrad Summenhart, justificavam a cobrança de juros apenas quando fundada em lucros cessantes e somente para empréstimos de caridade ad hoc. Agora, o grande Caetano estava justificando o negócio em si de emprestar dinheiro a juros.

Com Caetano, o caminho para o movimento dos escolásticos tardios estava aberto. Restava, agora, calçá-lo.

5. As ideias do grande Juan de Mariana: "austríaco", "politicamente incorreto" e "polêmico"

E quem mais contribuiu para essa tarefa, embora não fosse o único a fazê-lo, foi Juan de Mariana, nascido em 1536 na pequena cidade de Talavera, na diocese de Toledo. De acordo com John Laures, um padre jesuíta que publicou em 1928 o interessante livro The Political Economy of Juan de Mariana (Fordham University Press, New York), 

Tudo o que sabemos sobre suas origens é que ele nasceu no ano de 1536, como o filho de pais pobres e simples. Mesmo este fato é apenas relativamente certo. Na idade de dezessete anos Mariana era um estudante na famosa Universidade de Alcalá, e em 1º de Janeiro de 1554 ele foi recebido na Sociedade de Jesus, [recentemente fundada por São Francisco Xavier, um ex-soldado espanhol que fora ferido em uma das pernas em combate e que se convertera ao Cristianismo]. Ele completou o noviciado em Simancas, em parte sob a direção de Francisco Borgia, o Duque de Gandia aposentado, que um dia seria o Geral da Ordem dos Jesuítas.

Prossegue Laures relatando que no início de 1561 o jovem Juan foi chamado para o recém-construído Colégio Romano, para ensinar Filosofia e Teologia. Um de seus alunos foi Robert Belarmino, destinado a ser um grande polemista e, posteriormente, um cardeal. Depois de quatro anos de ensino, o jovem professor foi enviado à Sicília para ensinar Teologia e introduzir um novo plano de estudos na faculdade lá estabelecida por sua Ordem. Enquanto isso, ganhou reputação como teólogo e em 1569 foi chamado para lecionar na Sorbonne, em Paris, na época a mais famosa universidade do mundo. No entanto, sua precária saúde obrigou-o a deixar Paris quatro anos depois e voltar ao seu país natal, onde viveu durante o resto de sua longa vida, em Toledo.

Mesmo tendo se retirado do mundo, Mariana exerceu forte influência sobre a história contemporânea de Espanha e, até certo ponto, mundial. Sua reputação como teólogo e seu vasto conhecimento em quase todos os campos de aprendizagem deram-lhe um prestígio verdadeiramente extraordinário. Era frequentemente procurado por comerciantes e por autoridades temporais e eclesiásticas em busca de conselhos. Questões importantes esperavam por sua aprovação e eram realizadas sob a sua direção e seus conselhos. Seu lazer deu-lhe tempo para aprofundar e ampliar seus conhecimentos e desenvolver uma atividade literária bastante frutífera.

A segunda obra mais conhecida de Mariana, De Rege et Regis Institutione, surgiu em 1599 em Toledo, tendo sido elaborada por sugestão do tutor dos príncipes reais e publicada sob o patrocínio de Filipe II. É neste livro que Mariana discute a questão de saber se é lícito depor e até mesmo matar um monarca que se comporte como um tirano, uma pergunta à qual ele responde afirmativamente, como se verá mais pormenorizadamente adiante.

No ano de 1610 estourou uma tempestade de indignação contra o livro e contra a Companhia de Jesus em geral. Henrique IV foi assassinado por François Ravaillac (1577-1610) e os inimigos da Sociedade acusaram os jesuítas de serem os supostos autores do crime. Ravaillac foi questionado sobre se ele havia sido induzido a cometer o regicídio pelo livro de Mariana sobre a realeza, mas ele negou até mesmo qualquer familiaridade com ele. No entanto, muitos ainda sustentavam que a doutrina jesuíta teria sido responsável pelo atentado e De Rege foi queimado em público por um carrasco. Desde então, as ideias de Mariana sobre tiranicídio têm sido imputadas a toda a Companhia de Jesus, apesar de nenhum outro jesuíta, seja em seu tempo ou mais tarde, ter aderido a essa doutrina perigosa. O Geral da Ordem, Cláudio Aquaviva, enfaticamente protestou contra o livro, proibindo todos os seus subordinados, de todos os tempos, a ensinar aquela doutrina.

As autoridades francesas pressionaram o rei da Espanha para tirar o livro de circulação, mas não obtiveram êxito e a obra continuou muito popular. Hoje se pode dizer que, embora o autor de De Rege estivesse muito equivocado em alguns aspectos, mesmo para os hábitos culturais da época, sua obra, dentre todos os tratados sobre a realeza, é uma das publicações mais marcantes do século XVI.

Ainda segundo o Padre Laures, De Rege trata não só da Filosofia Política e da arte de governo, mas apresenta muitas ideias econômicas. Outro tratado econômico de Mariana foi De Ponderibus et Mensuris, publicado pela primeira vez em 1599 e que em edições posteriores apareceu juntamente com De Rege em um único volume. É uma discussão histórica de várias moedas: grega, romana, hebraica e espanhola. Um tratado estritamente econômico, De monetae Mutatione, apareceu em Colônia em 1609, como o quarto número do Tractatus VII. Ele foi escrito como uma crítica à adulteração da cunhagem de cobre espanhol por Felipe III. Naquele panfleto Mariana critica severamente o rei e os seus conselheiros, por roubarem as pessoas e perturbarem o equilíbrio do comércio. Ele também desenvolve com rigor naquela obra os princípios científicos da moeda e comprova suas afirmações acerca da história espanhola.

Assim que este pequeno livro apareceu, denunciaram Mariana ao rei pelo crime de lesa-majestade e também imputaram a ele erros em questões de fé. Imediatamente após o aparecimento do Tractatus VII, o rei ordenou aos seus oficiais e embaixadores que comprassem todos os exemplares do livro que pudessem e seu pedido foi prontamente atendido. Pouquíssimos exemplares escaparam de suas mãos, e em tudo o que puderam achar encontraram cortes nas páginas 189-221, ou seja, o tratado De Monetae Mutatione.

Após a morte de Mariana o Tractatus VII foi, aliás, expurgado pela Inquisição espanhola. Muitas frases foram excluídas e colunas inteiras e páginas cobertas com tinta. Todas as cópias não expurgadas foram colocadas noIndex Librorum Prohibitorum et Expurgandorum espanhol, e a maioria dos exemplares sobreviventes foram expurgados por decretos de 1632 e 1640. Como resultado, poucos exemplares completos do Tractatus VIIsobreviveram.

Mariana, como historiador, afirmou que a sociedade primitiva foi formada por consentimento mútuo. Alguns o criticaram, afirmando que todos os grandes impérios resultaram de conquistas e violência. Ele não nega o fato de que alguns estados passaram a existir desta forma, porém afirma que a maioria surgiu por mútuo consentimento e que estenderam suas fronteiras por guerras que considerava justas. Acreditava firmemente que os impérios baseados em violência e injustiça nunca podem tornar-se legítimos, mesmo através de legislações posteriores. Esta é a síntese da teoria da origem e do fim do estado de Mariana, que se mostra, por assim dizer, contraditória.

Tal como seu colega jesuíta Francisco Suarez, ele justifica a necessidade de existência do estado pela impossibilidade do indivíduo e da família de suprir todas as necessidades da vida. Seus argumentos são: (1) a sociedade política é necessária porque nenhuma família é autossuficiente; (2) se existiam divisões entre as várias famílias, não poderia haver paz e, portanto, elas deveriam ser unidas em uma sociedade. E desde que o homem precisa de uma sociedade política, ele também precisa de um poder político, pois uma sociedade sem tal poder não poderia realizar o seu fim.

Para Mariana, a sabedoria divina permite que o homem, apesar de fraco por natureza e exposto aos seus próprios recursos, possa tornar-se forte se estiver unido com os demais em uma sociedade. A partir disso é que Mariana considera a sociedade política necessária para a natureza humana. Tão logo o homem formou um corpo político, Deus concedeu-lhe o que era necessário para a vida em sociedade, ou seja, o poder político. Este poder, então, não é uma criação do homem ou algo que existia desde o princípio, mas algo acrescentado por Deus à natureza humana imperfeita e, logo, era necessário, a partir do momento em que os homens fizeram as suas mentes funcionarem para formar uma sociedade política.

Mariana foi um ardoroso oponente da crescente onda de absolutismo na Europa e da doutrina do rei James I da Inglaterra, em que os reis governam de maneira absoluta por direito divino. Ele converteu a doutrina escolástica da tirania de um conceito abstrato em uma arma para ferir monarcas reais do passado, denunciando como tiranos antigos governantes tais como Ciro, o Grande, Alexandre o Grande e Júlio César, que adquiriram seu poder pela injustiça e roubo. Os escolásticos anteriores, incluindo Suarez, acreditavam que as pessoas pudessem ratificar tal usurpação injusta por seu consentimento após o fato, e, assim, tornar o seu próprio domínio legítimo. Mas Mariana não aceitava esse consentimento das pessoas. Era um defensor das liberdades individuais. Em contraste com outros escolásticos, que colocaram a "propriedade" do poder no rei, ele ressaltou que as pessoas têm o direito de recuperar seu poder político sempre que o rei abusar dele.

Na verdade, Mariana acreditava que, na transferência de seu poder político do estado de natureza original para um rei, o povo necessariamente deveria reservar direitos importantes para si: além do direito de reclamar a soberania, também poderes vitais como a tributação, o direito de veto a leis, bem como o direito de determinar a sucessão se o rei não tiver herdeiro. Portanto, Mariana, ao invés de Suarez, é que deve ser considerado um antecessor da teoria do consentimento popular e da superioridade do povo frente ao governo de John Locke. E também antecipou Locke, ao considerar que os homens deixam o estado de natureza para formar governos, a fim de preservar os seus direitos de propriedade privada. Mariana também foi muito além de Suarez ao postular um estado de natureza — a sociedade —, anterior à instituição do governo, tese abraçada por muitos liberais do século XX.

Mas a característica mais interessante do "extremismo" da teoria política de Mariana era a sua inovação criativa na teoria escolástica do tiranicídio. Que um tirano podia ser justamente morto pelas pessoas havia sido doutrina padrão, mas Mariana a ampliou muito, em duas maneiras significativas. Primeiro, ele expandiu a definição de tirania: um tirano era qualquer governante que violasse as leis da religião, que impusesse impostos sem o consentimento do povo, ou que impedisse uma reunião de um parlamento democrático. Todos os outros escolásticos, em contrapartida, tinham considerado apenas a imposição injusta de impostos como regra de tirania. Adicionalmente, para Mariana qualquer cidadão podia justamente assassinar um tirano e podia fazê-lo por quaisquer meios necessários. Para ele, esse assassinato não exigiria nenhum tipo de decisão coletiva da parte de todo o povo. Porém, para ter certeza de sua decisão de assassinar algum tirano, os indivíduos não deveriam se envolver em tal propósito de ânimo leve, sem um prévio exame de consciência: primeiro, deveriam tentar reunir as pessoas para tomar essa decisão crucial, mas, se isso fosse impossível, ele deveria pelo menos consultar alguns "homens eruditos e graves", a menos que o clamor do povo contra o tirano fosse tão cruamente manifesto que a consulta se tornasse desnecessária.

Ele foi mais longe — antecipando Locke e a Declaração da Independência — na justificação do direito de rebelião, afirmando que não nos precisamos preocupar com a perturbação da ordem pública causada pelo tiranicídio, pois esta é uma ação sempre perigosa e, portanto, muito poucos estão prontos para arriscar suas vidas dessa maneira. Pelo contrário — prosseguiu —, a maioria dos tiranos não morreu mortes violentas e os tiranicídios foram quase sempre saudados pelas populações como atos de heroísmo.

Um tirano — escreveu ele — necessariamente teme que aqueles a que aterroriza e mantém como escravos venham tentar derrubá-lo e, por isso, ele proíbe os cidadãos de se reunirem em assembleias e discutirem, tirando deles, por métodos de polícia secreta, a oportunidade de falar e de se queixar livremente.

Este "homem erudito e grave", Juan de Mariana, não deixou nenhuma dúvida a respeito de sua opinião sobre o mais recente e famoso tiranicídio: o do rei francês Henrique III. Em 1588, Henrique III tinha sido preparado para nomear como seu sucessor Henrique de Navarra (que assumiria o trono como Henrique IV), um calvinista que estaria governando uma nação fortemente católica. Diante de uma rebelião de nobres católicos, liderados pelo duque de Guise, apoiado pelos cidadãos católicos devotos de Paris, Henrique III chamou o duque e seu irmão, o cardeal, para um pacto de paz em seu acampamento e assassinou os dois. No ano seguinte, a ponto de conquistar a cidade de Paris, Henrique III foi assassinado, por sua vez, por um jovem frade dominicano e membro da Liga Católica, Jacques Clement. Para Mariana, desta forma "o sangue foi expiado com sangue e o duque de Guise foi vingado com sangue real". E o regicídio foi saudado pelo Papa Sisto V e pelos padres de Paris.

As autoridades francesas estavam compreensivelmente nervosas com as teorias de Mariana e seu livro De Rege. Finalmente, em 1610, Henrique IV (ex-Henrique de Navarra, que havia se convertido do calvinismo à fé católica, a fim de tornar-se rei da França), foi assassinado pelo católico François Ravaillac, que desprezava o egocentrismo religioso e o absolutismo estatal imposto pelo rei. Nesse ponto, a França entrou em erupção, em uma onda de indignação contra Mariana e o Parlamento de Paris — como escrevemos linhas atrás — fez um carrasco queimar De Rege publicamente.

Antes de ser executado, Ravaillac foi questionado quanto a se a leitura de Mariana o levara a assassinar o rei, mas ele negou, afirmando que jamais havia ouvido falar dele. A respeito do assassinato de Henrique IV e daexecução de Ravaillac, assim se expressa a Wikipedia:

Em 14 de maio de 1610, Ravaillac rouba uma faca de um albergue. Esconde-se na Rua de la Ferronnerie, em Paris (no atual Quartier des Halles ; as armas de Henrique IV, esculpidas no chão, indicam hoje o local exato do regicídio). Aí espera pela passagem da carruagem real, já que o rei havia decidido dirigir-se ao Arsenal para visitar seu ministro Sully que estava enfermo.

Às quatro horas da tarde, o rei chega. De repente, o cortejo fica bloqueado devido a um congestionamento: Ravaillac aproveita a chance e atira-se sobre o rei. Dá-lhe dois golpes de faca : o primeiro desliza entre duas costelas, o outro atinge a carótida direita.

Ravaillac refugia-se em seguida em um porão na Rua des Lombards, bem próxima do local do atentado, mas é rapidamente encontrado e subjugado. É levado ao Hôtel de Retz para evitar um linchamento e conduzido à Conciergerie.

Tortura e execução: Antes do interrogatório, Ravaillac é preso à roda. A roda é girada e Ravaillac agredido. Suas pernas são esmagadas para fazê-lo falar e são feitos cortes em seu torso, braços e costas. Uma mistura de chumbo derretido, óleo, vinagre e sal foi derramada sobre seu corpo para fechar as feridas. Colocaram-lhe a seguir um culote úmido e o aproximaram do fogo. O culote encolhe, para fazer com que os ossos das pernas, já quebrados, movam-se; toda sua pele é retirada e ele é queimado vivo. Na verdade, Ravaillac ainda permaneceu vivo e nunca confessou seu crime. Foi, a seguir, esquartejado por quatro cavalos.

Seus parentes foram condenados ao exílio e um édito foi promulgado proibindo a qualquer pessoa do reino de se chamar Ravaillac.

Este assassinato desencadeou uma enorme polêmica. Por um lado, levantou-se a suspeita de que os jesuítas teriam incitado Ravaillac ao regicídio. Por outro lado, este ato teria sido inspirado por uma conspiração de que teriam participado Maria de Médicis (esposa do rei), Henriqueta d'Entrages (Marquesa de Verneuil) e o Duque d'Epernon; teriam agido em nome da Espanha.

Enquanto o rei da Espanha se recusou a atender aos apelos franceses para suprimir o trabalho "subversivo" de Mariana, o Geral da Ordem dos Jesuítas emitiu um decreto proibindo os membros da Cia. de Jesus de ensinar que é lícito matar tiranos. Este estratagema, no entanto, não impediu a eclosão na França de uma campanha bem sucedida contra a Ordem Jesuíta, bem como a sua perda de influência política e teológica.

Juan de Mariana foi um pensador fascinante sob todos os aspectos – sua Teologia, Filosofia Política e Economia Política têm bastante claras as marcas registradas de seu temperamento, um jesuíta ascético e que amava a sua Espanha, um homem absolutamente sem medo e que não mostrava qualquer constrangimento em nadar contra a corrente. Se vivesse nos nossos dias, certamente seria taxado de "politicamente incorreto" e de "polêmico". Mas foi, antes de qualquer outro adjetivo, um homem corajoso. Vale a pena conhecermos um pouco mais a seu respeito e de seu pensamento.

Embora enfatizasse a importância da agricultura, ele estava ciente de que ela não é o único fator importante para o bem-estar nacional. O comércio e as trocas voluntárias também são absolutamente necessários para a prosperidade de um país. É verdade que é um pouco crítico quando o comércio é voltado excessivamente para a mera questão do lucro, o que mostra que ele é um teólogo e moralista. O objetivo do comércio, para Mariana, é efetuar um equilíbrio entre as necessidades e os produtos excedentes dos países, de modo que cada um terá o que necessitar. A função importante do comércio, então, é fornecer abundância para todos os países.

Deve, portanto, ser incentivado em todos os sentidos e nada deve interferir nele. Isto é tanto mais verdadeiro porque o comércio é um processo mais delicado e é o mais afetado pela menor perturbação. É - como observou - como o leite, que é estragado pela menor brisa.

Altas tarifas são, acima de tudo, prejudiciais ao comércio exterior, pois seu fardo é deslocado para o comprador, com um consequente aumento nos preços. Logo, as tarifas sobre as necessidades da vida devem ser moderadas, de modo a incentivar e facilitar as importações do exterior. Mariana se opõe, assim, às altas receitas de tarifas, pelo menos na medida em que estão em causa necessidades importantes. Os comerciantes devem aproveitar a proteção especial da lei, porque é necessária para o bem-estar do estado.

A adulteração da moeda é outro grande inconveniente, tanto para o comércio interno quanto para o externo. Estrangeiros serão desencorajados a trazer seus produtos para a Espanha, se não receberem nada em troca, a não ser moeda fraca. Rebaixar o teor de metal na cunhagem resultará em preços mais elevados. Se o rei tentar fixar um preço menor ninguém irá vender e surgirá uma perturbação geral do comércio.

Assim, Mariana, embora não sendo um defensor ardoroso do livre comércio, foi um precursor, que percebeu que altas tarifas são uma forma nefanda de enriquecer um país em detrimento dos estrangeiros. Se nosso autor defendeu um imposto alto sobre bens de luxo isto foi principalmente pela razão de que eles destroem a boa e velha simplicidade que deve reger a vida (lembremos que Mariana era um asceta).

Encontramos ainda outra ideia moderna e também cabível na discussão de nosso autor sobre comércio. A descoberta da América e do caminho marítimo para as Índias Orientais tinha trazido um enorme aumento no comércio internacional. Mercadorias passaram a ser trocadas entre os países mais distantes e parecia que as distâncias tinham desaparecido. Esta relação comercial crescente aparece para Mariana como um símbolo de crescente caridade e um meio de unir as diversas nações do mundo.

É como um moralista que ele concorda com os outros escolásticos que um "preço justo" deve servir de base nas transações comerciais. Este preço foi fixado em tempos medievais pelo governo e foi considerado por ele errado exigir mais do que o montante legalmente fixado. Mariana vê, no entanto, que, na prática, nem sempre é possível determinar os preços de forma satisfatória e que se não estão de acordo com a estimativa popular comum (ou seja, com o mercado), eles não podem ser impostos. Para ser justo um preço não deve ser fixado uma vez e para sempre, deve levar em conta várias condições que mudam com a demanda e a oferta dos artigos em questão. Os preços devem, portanto, serem revistos de tempos em tempos.

Mariana comprova sua afirmação a partir da história da Espanha. Toda vez que os reis espanhóis adulteraram a cunhagem, seguiu-se um aumento geral dos preços, e toda interferência do governo para solucionar o problema provou ser inútil. Mariana também afirma que é praticamente impossível fixar preços para tudo. Aqui, então, vemos que o nosso autor aplica o princípio econômico muito importante de que os preços regulam-se de acordo com a demanda e oferta de bens e da quantidade de dinheiro em circulação. Se a moeda é genuína (metal de bom teor) e escassa, os preços vão diminuir e se ela for adulterada e abundante os preços vão necessariamente subir. Esta é uma aplicação da Teoria Quantitativa da Moeda, que é o princípio fundamental de Irving Fisher para estabilizar a unidade monetária, bem como, naturalmente, uma premonição do que os austríacos nos ensinaram sobre a inflação e a deflação.

Como ressalta Rothbard, Juan de Mariana possuía uma das personalidades mais fascinantes da história do pensamento político e econômico. Honesto, valente e destemido, Mariana esteve em polêmicas durante quase toda a sua longa vida, até mesmo por seus escritos econômicos.

Voltando sua atenção para a teoria e prática monetária, Mariana, em seu breve tratado De Monetae Mutatione(Sobre a Alteração da Moeda, de 1609) denunciou seu soberano, Felipe III, por roubar as pessoas e prejudicar o comércio através da degradação da cunhagem de cobre. Ele ressaltou que esta degradação também causou inflação crônica na Espanha, aumentando a quantidade de dinheiro no país. Felipe tinha dizimado sua dívida pública por rebaixar suas moedas de cobre em dois terços, triplicando assim a oferta de moeda de cobre. Mariana notou que o aviltamento do metal e a interferência do governo no mercado só poderiam causar graves problemas econômicos.

Só um tolo, segundo ele, tentaria separar esses valores de tal forma que o preço legal devesse ser diferente do natural. O mau governante – ponderou - ordena que uma coisa cujo valor é cinco deve ser vendida por dez. Os homens são guiados nesta matéria pela estimativa comum fundada em considerações sobre a qualidade das coisas e de sua abundância ou escassez. Seria vão para um príncipe procurar minar esses princípios de comércio. É melhor deixá-los intactos, sustentava, ao invés de agredi-los pela força em detrimento do bem comum.

Mas nosso personagem meteu-se em real enrascada, em dois sentidos: porque a questão era grave e porque a referida questão era contra o próprio rei! Mariana começa De Monetae com a sinceridade que lhe era característica escrevendo ter ciência de que sua crítica ao rei lhe traria grande impopularidade, mas completa afirmando que o povo está "gemendo" sob as agruras resultantes da degradação monetária e que ainda ninguém teve a coragem de criticar a ação do rei publicamente. Assim, a justiça requer que pelo menos um homem deve expressar a queixa comum do público. Quando uma combinação de medo e suborno conspira para silenciar os críticos, deve haver pelo menos um homem no país que sabe a verdade e tem a coragem de mostrá-la a todos. Mariana então começa a demonstrar que a degradação monetária é um imposto oculto muito pesado, uma senhoriagem, sobre a propriedade privada de seus súditos, e que nenhum rei tem o direito de cobrar impostos sem o consentimento do povo. Uma vez que o poder político se originou do povo, o rei não tem direitos sobre a propriedade privada de seus súditos, nem pode apropriar-se de sua riqueza por puro capricho e vontade. Mariana defende a bula papal Coena Domini, que havia decretado a excomunhão de qualquer governante que impusesse novos impostos.

Para ele, a qualquer rei que pratica aviltamento monetário deve se aplicar a mesma punição, como no caso de qualquer monopólio legal imposto pelo estado sem o consentimento do povo. Sob tais monopólios, o próprio estado, ou seu beneficiário, pode vender um produto para o público a um preço superior ao seu valor de mercado e isso é certamente uma taxação! Ele relata historicamente a degradação da moeda e seus efeitos infelizes e ressalta que os governos devem manter todos os padrões de peso e medida, não só de dinheiro, e que seu ato de adulterar esses padrões é vergonhoso. Castela, por exemplo, tinha mudado suas medidas de azeite e vinho, a fim de cobrar um imposto oculto, e isso levou a uma grande confusão e agitação popular. O livro de Mariana, ao atacar a degradação do rei, levou o monarca a mandar o já idoso padre, então com 73 anos, para a prisão, pelo grave crime de lesa-majestade. Os juízes condenaram Mariana por crime contra o rei, mas o Papa recusou-se a puni-lo e Mariana foi finalmente solto depois de quatro meses, com a condição de que iria cortar as passagens ofensivas de seu livro e de que seria mais cuidadoso no futuro.

Mas o rei, bem conhecendo o padre e, portanto, sabendo que este ficaria apenas com as promessas, ordenou a seus funcionários que comprassem todas as cópias publicadas de De Monetae Mutatione e as destruíssem. Não só isso, depois da morte de Mariana, a Inquisição espanhola, como relatamos anteriormente, expurgou as cópias restantes, excluindo muitas frases e manchando páginas inteiras de tinta. Todas as cópias não expurgadas foram colocadas no Índice da Inquisição espanhola, e estas, por sua vez, foram destruídas durante o século XVII. Como resultado desta campanha selvagem de censura, a existência do texto latino deste importante livro permaneceu desconhecida durante 250 anos, e ele só foi redescoberto porque o texto em espanhol foi incorporado a uma coleção de ensaios clássicos espanhóis do século XIX. Por isso, poucas cópias completas do livreto sobreviveram, das quais a única disponível nos Estados Unidos, segundo Rothbard, está na Biblioteca Pública de Boston.

Mas Mariana aparentemente não estava com problemas suficientes para acalmar seu temperamento: depois que ele foi preso pelo rei, as autoridades, ao apreenderem suas notas e papéis, acharam um manuscrito atacando os poderes que regem a Companhia de Jesus. Um individualista sem medo de pensar por si mesmo, Mariana claramente não concordava com o fato de ser a Cia. de Jesus quase que um corpo militar, tal a disciplina imposta a seus membros. Neste livro, Discurso de las Enfermedades de fa Compania, criticou a Ordem Jesuíta, sua administração e sua formação de noviços e julgou que seus superiores na Ordem eram todos impróprios para a governarem. Acima de tudo, Mariana criticou a hierarquia de estilo militar, apontando que o Geral gozava de muito poder, enquanto os provinciais e outros jesuítas detinham quase nenhuma autonomia. Os jesuítas, afirmou, deveriam ter pelo menos uma voz na seleção de seus superiores imediatos.

Quando o Geral da Ordem Jesuíta, Cláudio Aquaviva, descobriu que cópias do trabalho de Mariana estavam circulando clandestinamente, tanto dentro como fora da ordem, ordenou a Mariana que pedisse desculpas pelo escândalo. O mal-humorado — porém repleto de sólidos princípios morais — Mariana, no entanto, recusou-se a fazê-lo e Aquaviva, talvez movido por prudência ou mesmo por receio de um escândalo mais grave, preferiu não agravar o problema. Mas assim que Mariana morreu, a legião de inimigos da Ordem dos Jesuítas publicou oDiscurso simultaneamente em francês, latim e italiano. Como no caso de todas as organizações burocráticas, os jesuítas, desde então, ficaram mais preocupados com o escândalo e com não lavar roupa suja em público do que em promover a liberdade de investigação, a autocrítica, ou corrigir quaisquer defeitos reais que Mariana pudesse ter descoberto. Mas a Ordem nunca expulsou o seu membro eminente e este nunca a deixou. Ainda assim, ele foi durante toda a sua vida considerado como um criador de problemas, mal-humorado e sempre rebelde em não querer se curvar a ordens ou pressões de seus pares.

O Padre Antonio Astrain, na sua história da Ordem dos Jesuítas, observa que "acima de tudo, devemos ter em mente que o personagem dele [Mariana] foi muito áspero e não mortificado". Pessoalmente, de forma semelhante aos santos italianos franciscanos São Bernardino de Sena e Santo Antonino de Florença, do século XV, Mariana foi uma figura ascética e austera. Nunca frequentou o teatro e afirmou que padres e monges nunca deveriam prejudicar seu caráter sagrado, ouvindo e vendo atores. Ele também denunciou o esporte popular espanhol das touradas, o que diminuiu bastante sua popularidade. Melancolicamente, Mariana costumava enfatizar que a vida era curta, precária e cheia de aflição. No entanto, apesar de sua austeridade, possuía uma sagacidade impressionante. Assim, é famosa uma frase sua sobre o casamento: "Alguém habilmente disse que o primeiro e o último dia do casamento são desejáveis, mas que o resto é terrível". Outra opinião sua parecia antecipar o que Mises, no século XX, declarou a respeito dos economistas: "não há nada tão absurdo que não seja defendido por alguns teólogos".

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Visite seu website.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

MORTOS SEM PEDIGREE

Se ninguém dá bola quando bandidos matam pais de família, por que haveria indignação quando presos resolvem decapitar seus pares no Maranhão, onde José Sarney é a fé, a lei e o rei? Que se virem! As trevas maranhenses são apenas um sintoma de um desastre humanitário silencioso.

Em novembro, veio a público o Anuário Brasileiro de Segurança Pública com os dados referentes a 2012. Os "crimes violentos letais intencionais" (CVLI) somaram 50.108, contra 46.177 em 2011. A taxa saltou de 24 para 25,8 mortos por 100 mil habitantes. Na Alemanha, é de 0,8. No Chile, 3,2. Os "CVLI" incluem homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte. Nota: esses são números oficiais. A verdade deve ser mais sangrenta.

Segundo a ONU, na América Latina e Caribe, com população estimada em 600 milhões, são assassinadas 100 mil pessoas por ano. Com pouco menos de um terço dos habitantes, o Brasil responde por mais da metade dos cadáveres. O governo federal, o PT, o PMDB, o PSDB e o PSB silenciaram. Esse é um país real demais para produtivistas, administrativistas e nefelibatas. A campanha eleitoral já está aí. Situação e oposição engrolarão irrelevâncias sobre o tema. Prometerão mais escolas e mais esmolas. Presídios não!

Algumas dezenas de black blocs mobilizaram o ministro da Justiça, os respectivos secretários de Segurança de São Paulo e Rio e representantes da OAB, do CNJ e do Ministério Público. Rodrigo Janot, procurador-geral da República, quer até um fórum de conciliação para juntar policiais e manifestantes. Sobre a carnificina de todos os dias, nada! Quem liga para cadáveres "pobres de tão pretos e pretos de tão pobres", como cantavam aqueles? No país em que os aristocratas são, assim, "meio de esquerda", segurança pública é assunto da "direita que rosna", certo? Os 400 e poucos mortos da ditadura mobilizam a máquina do Estado e a imprensa. É justo. Os 50 mil a cada ano só produzem silêncio. Dentro e fora dos presídios, são cadáveres sem pedigree.

E por que esse silêncio? É que os fatos sepultaram as teses "progressistas" sobre a violência. A falácia de que a pobreza induz o crime é preconceito de classe fantasiado de generosidade humanista. A "intelligentsia" acha que pobre é incapaz de fazer escolhas morais sem o concurso de sua mística redentora. Diminuiu a desigualdade nos últimos anos, e a criminalidade explodiu. O crescimento econômico do Nordeste foi superior ao do Brasil, e a violência assumiu dimensões estupefacientes.

Os Estados da região estão entre os que mais matam por 100 mil habitantes: Alagoas: 61,8; Ceará: 42,5; Bahia: 40,7, para citar alguns. Comparem: a taxa de "CVLI" de São Paulo, a segunda menor do país, é de 12,4 (descarta-se a primeira porque inconfiável). Se a nacional correspondesse à paulista, salvar-se-iam por ano 26.027 vidas.

Com 22% da população, São Paulo concentra 36% (195.695) dos presos do país (549.786), ou 633,1 por 100 mil. A taxa de "CVLI" do Rio é quase o dobro (24,5) da paulista, mas a de presos é inferior à metade (281,5). A Bahia tem a maior desproporção entre mortos por 100 mil e (40,7) e encarcerados: 134. Estudo quantitativo do Ipea (bit.ly/1gll0rL) evidencia que "prender mais bandidos e colocar mais policiais na rua são políticas públicas que funcionam na redução da taxa de homicídios".

Isso afronta a estupidez politicamente correta e cruel. Em 2013, o governo federal investiu em presídios 34,2% menos do que no ano anterior -caiu de R$ 361,9 milhões para R$ 238 milhões. Para mais mortos, menos investimento. Os progressistas meio de esquerda são eles. Este colunista é só um reacionário da aritmética. Eles fazem Pedrinhas. Alguém tem de dar as pedradas. Por: Reinaldo Azevedo Folha de SP

A IMPORTÂNCIA DOS PÓS-ESCOLÁSTICOS PARA A ESCOLA AUSTRÍACA

1. Introdução

O primeiro capítulo do excelente livro editado por Randall G. Holcombe, "The Great Austrian Economists" (Ludwig von Mises Institute, 1999, iBooks), escrito por Jesús Huerta de Soto, começa com a seguinte frase: 


A pré-história da escola austríaca de economia pode ser encontrada nas obras dos escolásticos espanhóis, mais especificamente em seus escritos no período conhecido como o "Século de Ouro espanhol", que decorreu de meados do século XVI até o século XVII.

E prossegue:
Quem eram estes precursores intelectuais espanhóis da Escola Austríaca de Economia? A maioria deles era formada por escolásticos que ensinavam moral e teologia na Universidade de Salamanca, cidade espanhola medieval localizada a 150 km a noroeste de Madri, perto da fronteira da Espanha com Portugal. Esses escolásticos, principalmente dominicanos e jesuítas, articularam a tradição subjetivista, dinâmica e libertária a que, duzentos e cinquenta anos depois, Carl Menger e seus seguidores iriam dedicar tanta importância. Talvez o mais libertário de todos os escolásticos, especialmente em seus últimos trabalhos, tenha sido o padre jesuíta Juan de Mariana. [pp. 41-73]

Soto tem razão: de fato, Juan de Mariana, para os padrões de seu tempo e levando em conta que era um padre, um jesuíta, foi um autêntico revolucionário. Neste artigo, farei um pequeno resumo das contribuições dos chamados pós-escolásticos para a teoria econômica e enfatizarei as ideias de Mariana. Não tenho nem longinquamente a pretensão de ser original ao escrevê-lo. Trata-se, na verdade, de um survey de alguns dos melhores e mais conhecidos trabalhos sobre o tema da Escolástica Tardia, acrescido de algum material que encontrei na Internet e que julguei confiável e de algumas reflexões pessoais oriundas do interesse pela tradição e os desenvolvimentos mais recentes da Escola Austríaca, que tem direcionado meus trabalhos, pesquisas, aulas e palestras ao longo das últimas duas décadas.

2. Aspectos históricos

Infelizmente, é um lugar comum, sempre que alguém se refere à Idade Média, se ouvir falar em trevas e barbárie, quase sempre com uma expressão de escárnio e desprezo. Mas, ao contrário do mau odor que exala este preconceito herdado dos iluministas, tanto a Filosofia quanto a ciência moderna devem muito — muito mais do que se pode imaginar! — à Idade Média e à sua monumental Escolástica.

Ao final do século V, o que restava do outrora poderoso Império Romano era uma multidão dispersa de povos bárbaros e alguns fragmentos da cultura clássica, que só não desapareceram devido aos esforços dos monges copistas e de alguns grandes pensadores. Os primeiros e conturbados séculos da Idade Média europeia foram dominados pelo pensamento de Santo Agostinho de Hipona, responsável por solidificar a fé cristã, calcado em elementos platônicos. O Bispo de Hipona influenciou pensadores como Boécio, Dionísio, o Areopagita e Escoto Erigena.

Na verdade, Dionísio usava este pseudônimo em alusão à vicissitude narrada por São Lucas no capítulo 17 dos Atos dos Apóstolos, onde escreveu que Paulo pregou em Atenas, no Areópago, para uma elite do grande mundo intelectual grego, mas no final a maior parte dos ouvintes mostrou-se desinteressada e afastou-se, ridicularizando-o; todavia alguns, poucos, diz-nos São Lucas, aproximaram-se de Paulo, abrindo-se à fé e entre estes poucos Lucas oferece-nos dois nomes: Dionísio, membro do Areópago e uma mulher, Damaris.

No século V, Pseudo-Dionísio — como também ficou conhecido — escreveu o Corpus Areopagiticum, com o intuito de colocar a sabedoria grega ao serviço do Evangelho e ajudar no encontro entre a cultura e a inteligência gregas e o anúncio de Cristo, fazendo com que o pensamento grego se encontrasse com o anúncio da Boa Nova de São Paulo. Já Escoto Erígena, nasceu na Irlanda em 810 e foi um expoente do "renascimento carolíngio", bem como da tradição das artes liberais que fundamentaram o ensino medieval e também concentrou seus estudos nas relações entre a filosofia grega e os princípios do Cristianismo.

A palavra "escolástica" tem duplo significado. O primeiro, um tanto limitado, quando se refere apenas às disciplinas ministradas nas escolas medievais, a saber, o trívio, formado por gramática, retórica e dialética e oquadrívio, composto por aritmética, geometria, astronomia e música. E o segundo tem conotação mais ampla, reportando-se à linha filosófica adotada pela Igreja na Idade Média. Esta modalidade de pensamento era essencialmente cristã e procurava respostas que justificassem a fé na doutrina ensinada pelo clero, o depositário das verdades espirituais e o orientador das ações humanas virtuosas.

O dicionário Aurélio on line apresenta três acepções:

1. Fil. Doutrina e filosofia cristã da Idade Média, que procurou combinar a razão platônica e aristotélica com a fé e a revelação dos Evangelhos, alcançando seu auge com Santo Tomás de Aquino; ESCOLASTICISMO.: "Cria... uma Universidade de ciências maiores, pedindo ao Pe. Francisco de Borja que lhe mande bons mestres para as cadeiras de teologia, escolástica, positiva, moral..." (Antero de Figueiredo, D. Sebastião)

2. P.ext. Teol. Qualquer doutrina ou filosofia fundamentadas a partir de uma crença religiosa

3. P.ext. Pej. Qualquer doutrina que pregue o tradicionalismo ou o pensamento ortodoxo.

[F.: Do lat. scholastica.]

É difícil delimitar a origem da Escolástica porque ela nunca se estabeleceu como uma doutrina filosófica restrita. Havia no ambiente católico uma divergência muito viva em questões teológicas e foi esse espírito de debate que acabou dando origem à corrente de atividades intelectuais, artísticas e filosóficas a que se convencionou chamar de Escolástica.

No século XII, essa valorização do saber refletiu-se na criação das universidades e na ascensão de uma classe letrada e o monge agostiniano Santo Anselmo é apontado como tendo sido o primeiro escolástico, seguido por Pedro Abelardo, Pedro Lombardo e Hugo de São Vítor.

Na segunda metade do século XII chegaram às universidades as traduções hispânicas de versões árabes das obras de Aristóteles, um grande choque cultural que mudou o rumo do Ocidente e que conduziu a Escolástica para a sua "Era de Ouro", no século XIII, quando Santo Agostinho deixou de ser o eixo do pensamento cristão e a Filosofia Natural aristotélica cresceu diante da Teologia.

Os professores universitários passaram a ter fama e importância, os livros — sempre escritos em latim — se multiplicaram e com isso o modelo de ciência antiga começou a ser questionado e a desabar. Robert Grosseteste e seu discípulo Roger Bacon lançaram as primeiras sementes da pesquisa científica, idealizando experimentos. As universidades de Paris, Oxford e Colônia testemunharam os grandes debates e o surgimento de obras gigantescas. É o século do grande São Tomás de Aquino, de Alberto Magno, de São Boaventura e de Duns Scotus.

A grande contribuição da Escolástica à Filosofia foi sua preocupação com o rigor metodológico e dialético. Os estudantes das principais universidades precisavam passar por exames que envolviam disputas orais de argumentos, sempre regidas pela aplicação da lógica formal e a supervisão rigorosa de um mestre.

Como sugere Renan Santos, 

Pedro Abelardo se inspirou nesse método dialético e o aprofundou em sua obra Sic et Non, que virou referência para a resolução de problemas a partir da sucessão de afirmações e negações sobre um mesmo tópico. Para isso, era imprescindível uma definição satisfatória dos termos, que evitasse ambiguidades. Tiveram muito sucesso nesse sentido os escolásticos, chegando a criar palavras totalmente novas a partir das raízes do grego e do latim, o que acabou resultando no latim escolástico. A própria evolução das ciências se deve em grande parte ao desenvolvimento desse rigor terminológico.

Entre os renascentistas e iluministas, criou-se a ideia de que a Escolástica havia se submetido a Aristóteles como um servo feudal se curva ao seu mestre, o que os estudos do século XX mostraram ser uma afirmação absurda. A verdade é que, com a chegada da imensa obra de Aristóteles, foram surgindo naturalmente dois partidos nas universidades: os tradicionais, agostinianos e platônicos, que não admitiam a ideia de ciências autônomas em relação à teologia, e os "modernos" aristotelistas, fascinados a tal ponto com a investigação da Filosofia Natural que buscaram tornar as ciências independentes da Teologia.

Essa discussão levou a grandes e memoráveis contendas acerca da relação entre fé e razão, cuja ruptura definitiva ficaria a cargo do franciscano inglês Guilherme de Ockam, no século XIV.

Na assim denominada "querela dos universais", na esteira das traduções que abalaram o Ocidente, encontrou-se a Isagoga, obra do filósofo antigo Porfírio, expondo o problema dos universais em Aristóteles. Iniciava-se assim um dos mais longos debates da história da Filosofia. Recorrendo ainda a Santos: 

Quando olhamos para duas maçãs, vemos algo de comum entre elas? Ou elas são completamente diferentes? Há uma substância "maçã" separada delas, ou ela está em cada uma das maçãs? Ou a substância "maçã" não existe de forma alguma? Perguntas desse tipo é que dirigiram o debate dos universais.

Os ultrarrealistas, de índole platônica, como Santo Anselmo, Odo de Tournai e Bernard de Chartres, diziam que sim, que há uma substância, um universal "maçã" separado de todas as maçãs e que lhes serve de modelo. Os realistas, moderados e mais aristotélicos, como Pedro Abelardo, João de Salisbury e o grande Aquinate, afirmavam que o universal "maçã" existe somente nas maçãs e nunca fora delas. Já os nominalistas, como Roscelin e Guilherme de Ockham, negariam que houvesse qualquer universal, já que "maçã" não seria nada mais que um simples nome. Esta discussão ecoaria no confronto entre empiristas e racionalistas modernos.

Porém, historicamente, podemos dividir a Escolástica em três períodos: Escolástica Primitiva (sécs. IX ao XII); Escolástica Média (sécs. XII e XIII) e Escolástica Tardia (sécs. XIV e XV e início do séc. XVI).

A Escolástica Primitiva teve início com o renascimento carolíngio e com o ressurgimento da escola que então se verificou e que desenvolveu um método de ensino que posteriormente foi elaborado pormenorizadamente, formado pelas quaestiones (problemas sujeitos a exame) e disputationes (exposição de argumentos a favor ou contra). As grandes disputas centravam-se em torno de dois problemas fundamentais: o problema da relação entre a fé e razão, ou seja, entre dialéticos partidários da razão e antidialéticos, defensores da fé e o problema da polêmica dos universais.

Na Escolástica Média surgiram diversos tipos de escolas, incluindo as primeiras universidades e iniciou-se um intenso trabalho de tradução, especialmente na Península Ibérica, que possibilitou o conhecimento dos clássicos gregos e latinos, a Filosofia Natural e a Metafísica de Aristóteles, bem como as obras de seus estudiosos gregos e árabes. 

No século XIII, com a introdução, em Paris, da filosofia árabe, representada pela contribuição de Averróis, um especialista em Aristóteles, iniciou-se uma tendência denominada averroísmo latino, que preconizava a defesa da tese da dupla verdade, isto é, de que fé e razão são verdades independentes e igualmente legítimas. Com a criação das ordens franciscana e dominicana, a Escolástica alcançou o seu ponto culminante com a obra de São Tomás de Aquino, da escola dominicana, que adaptou, seguindo de perto Averróis, a filosofia de Aristóteles ao pensamento cristão. De outra parte, a escola franciscana, de que São Boaventura é o expoente maior, inspirou-se no neoplatonismo e na filosofia de Santo Agostinho. 

A Escolástica Tardia (o período dos pós-escolásticos) começou no séc. XIV e se caracterizou pela separação definitiva entre a Filosofia e a Teologia. A Teologia manteve-se em vigor na escola franciscana, representada por Escoto e Occam e a Filosofia concentrou-se no empírico, no particular e no sensível. A Escolástica conheceu então um notável florescimento na Espanha e em Portugal, comandado pelas ordens dominicana e jesuíta, orientadas para a nova interpretação que se fez da teoria de São Tomás na Itália, especialmente por Santo Antonino de Florença e São Bernardino de Siena. O dominicano Francisco de Vitoria fundou uma escola em Salamanca, em que se formaram notáveis teólogos tomistas que, juntamente com os jesuítas de Coimbra e Francisco Suárez, em polêmica com o escotismo e o nominalismo, defenderam uma síntese escolástica tradicional, porém de acordo com as novas tendências de pensamento da época. 

No final desta série de artigos, você encontrará um apêndice mostrando o quadro evolutivo da Filosofia Moral e Política da Idade Média, desde São Justino de Cesareia, o Mártir (100-165) até nosso "herói" Juan de Mariana. O quadro foi elaborado cuidadosamente por Alex Catharino para o II Ciclo sobre Pensamento Ético, Político e Econômico, módulo I: Antiguidade e Idade Média, A Filosofia Moral e a Teoria Política de Santo Tomás de Aquino, curso promovido pelo Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista - Cieep, em parceria com a Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro.

3. A Escola de Salamanca e os pós-escolásticos (ou escolásticos tardios)

Feita essa pequena digressão histórica, imprescindível para os fins a que me proponho neste artigo, posso agora ir ao em tema principal, a Escolástica Tardia, os pós-escolásticos com destaque para Juan de Mariana e sua importância para a Escola Austríaca de Economia.

Murray Rothbard, em seu excepcional tratado de História do Pensamento Econômico, "Economic Thought Before Adam Smith - An Austrian Perspective on the History of Economic Thought", dedica o capítulo 4 do volume I a uma minuciosa descrição da importância daqueles pensadores dos séculos XIV, XV e XVI. Inicia mostrando que agrande depressão de longo prazo do século XIV e da primeira metade do século XV começou a dar lugar para a recuperação econômica na segunda metade do século XV. Espanha e Portugal, os exploradores líderes dos novos continentes, tornaram-se estados nações dominantes e impérios no século XVI.

Lentamente, porém inexoravelmente, as cidades-estados italianas, que representavam a vanguarda do progresso econômico e da cultura no período do Renascimento, começaram a ser deixadas para trás frente ao avanço do poder econômico e político ibérico derivado da era dos grandes descobrimentos.

Mas, junto com a expansão comercial veio a inflação, alimentada pelo aumento imenso de ouro e prata levados para a Europa pelos espanhóis das minas recém-descobertas do hemisfério ocidental. Uma triplicação aproximada do estoque da espécie na Europa resultou em um século de inflação, com os preços também triplicando durante o século XVI. O novo dinheiro fluiu pela primeira vez no Velho Continente no principal porto espanhol de Sevilha e, em seguida, espalhou-se para os outros países da Europa, e a geografia dos aumentos de preços seguiu, naturalmente, em conformidade com essa expansão.

Inglaterra e França cresceram em força junto com as outras nações atlânticas da Europa ocidental, o que foi bastante facilitado pelo fim da Guerra dos Cem Anos entre os dois países, que na verdade teve a duração de 116 anos, de 1337 a 1453. As doutrinas do estado absoluto, anteriormente limitadas em grande parte aos teóricos e governantes das cidades estados italianas, agora se espalhavam por todos os estados e nações da Europa. O absolutismo triunfou em toda a Europa no início do século XVII e Rothbard mostra que essa vitória foi alimentada pela ascensão do protestantismo e, um pouco mais tarde, pelo secularismo, a partir do século XVI.

Para compreendermos mais precisamente o ethos dos pós-escolásticos, é conveniente visualizarmos, na tabela seguinte, como evoluiu o pensamento econômico desde os escolásticos medievais até os nossos dias.



O nominalismo, derivado da Escolástica Medieval, consistia em uma abordagem reducionista de problemas sobre a existência e natureza de entidades abstratas e opunha-se ao platonismo e ao realismo. Enquanto o platônico defende um enquadramento ontológico em que coisas como propriedades, gêneros, relações, proposições, conjuntos e estados de coisas são assumidos como primitivos e irredutíveis, o nominalista, por definição e maneira de enxergar o mundo, nega a existência de entidades abstratas e procura mostrar que o discurso sobre essas entidades é analisável em termos do discurso sobre concretos particulares da experiência comum. Seus autores mais expressivos foram Guilherme de Ockam (1290-1350), Jean Buridan de Bethune (1300-1358), Nicole Oresme (1325-1382) e Heinrich von Langenstein (1325-1397).

Apesar de influenciarem também o positivismo e François Quesnay (o fundador do fisiocratismo) e de se oporem ao tomismo, os nominalistas contribuíram para o desenvolvimento da Escolástica Tardia ao abordarem, principalmente, três temas: a teoria do valor (dando a ela enfoque subjetivista); a defesa do livre comércio e a defesa da propriedade privada (a defesa franciscana de que se deve abrir mão das riquezas exige que se possuam essas riquezas, o que conduz à defesa do direito de propriedade). Oresme defendeu também a conhecida "Lei de Gresham", segundo a qual "a moeda má expulsa a moeda boa", bem como o padrão-metálico.

Vejamos agora o quadro sinóptico que mostra as origens a as influências dos escolásticos tardios, com alguns aspectos das ideias defendidas por seus principais nomes. Trata-se de um quadro semelhante ao elaborado por Alejandro Chafuen, em seu celebrado livro Economia y Etica: Raices Cristianas de La Economia de Libre Mercado, de 1991.



Escolástica Tardia na Itália

São Bernardino de Siena (1380-1444), franciscano, sistematizou, na Toscana, a herança intelectual econômica de São Tomás, sendo o primeiro teólogo, depois de Olivi, a escrever um livro inteiro dedicado à teoria econômica escolástica. Os pontos principais de sua doutrina foram a defesa da propriedade privada (embora a considerasse artificial e não natural), a defesa do empreendedorismo, a defesa do livre comércio, a legitimação dos lucros, a teoria do valor, em que o "preço justo" é definido como sendo o preço de mercado e os perigos da tributação excessiva.

Santo Antonino de Florença (1389-1459), um discípulo de S. Bernardino, seguiu a mesma análise de seu preceptor, mas enfatizou um ponto crucial da filosofia do Aquinate, o de que qualquer transação no mercado traz benefícios mútuos para ambas as partes, pois estas resultam melhores do que antes, em termos de ficarem mais satisfeitas.

Ambos foram contra a usura, contudo, o que contribuiu para manter esse aspecto da teoria econômica obscuro, cercado de mistérios e quase que proibido.

Escolástica Tardia na Espanha

Especialmente em Salamanca, a partir dos sécs. XV e XVI, diversos autores, inicialmente dominicanos e mais tarde jesuítas, abordaram temas ligados à teoria monetária, propriedade privada, juros, inflação e tributação. Vejamos sucintamente (já que nosso personagem principal neste artigo é Juan de Mariana) como avançaram.

Surge a Escolástica Tardia em Espanha com Francisco de Vitoria (1495-1560), em Salamanca, com seus escritos sobre Direito Internacional e suas explicações morais e econômicas da Summa. Os principais pontos de Vitoria são:o "preço justo" é o preço de mercado e a propriedade privada, a justiça e a paz resultam de trocas voluntárias realizadas entre os agentes.

Martin de Azpilcueta, o "Doutor Navarro" (1493-1586), também dominicano, professor em Salamanca e Coimbra, desenvolveu as bases do conceito de "preferência intertemporal" e da "Teoria Quantitativa da Moeda", defendeu preços livres da interferência dos governos, alertou que emissões de moeda sem lastro provocam distorções na economia e na sociedade e criticou o sistema de reservas fracionárias dos bancos.

Diego de Covarrubias y Leiva (1512-1577), Bispo de Segóvia, alertou para os efeitos nocivos de diminuições no teor metálico das moedas, criticou o sistema de reservas fracionárias dos bancos e chegou a esboçar uma teoria subjetiva do valor.

Luís Saravia de la Calle (século XVI) defendeu, em seu Instrucción de Mercaderes, publicado em 1544, as ações dos comerciantes como legítimas e antecipou o que Menger escreveu em 1871, que não são os custos que determinam os preços, mas os preços que determinam os custos:

Los que miden el justo precio de la cosa según el trabajo, costas y peligros del que trata o hace la mercadería yerran mucho; porque el justo precio nace de la abundancia o falta de mercaderías, de mercaderes y dineros, y no de las costas, trabajos y peligros.

Francisco de García, em Tratado Utilíssimo de Todos los Contractos, Quantos en los Negocios Humanos se Pueden Ofrecer, publicado em Valência em 1583, sustentou que a utilidade marginal dos bens, inclusive a da moeda, é decrescente.

Luís de Molina (1531-1601) advogou a liberdade de preços, criticou as regulações excessivas e as distorções provocadas pelas políticas de preços máximos e mínimos, desenvolveu o conceito de lucros cessantes (lucros perdidos de investimentos) e foi o primeiro a perceber, em 1597, que os depósitos bancários fazem parte da oferta monetária.

Genónimo Castillo de Bobadilla, em Politica para Corregidores y Señores de Vassallos (Madri, 1597), defendeu a competição dinâmica como um processo e não como o estudo de casos de equilíbrio, antecipando Menger, Mises, Lachmann e Kirzner em 400/500 anos!

Juan de Mariana (1535-1624), sobre o qual vamos escrever pormenorizadamente no próximo artigo, jesuíta, "politicamente incorreto" e considerado por alguns estudiosos como o mais importante dos escolásticos tardios, destacou que: a propriedade privada é muito importante para o desenvolvimento econômico e social; monopólios são como que impostos cobrados sem autorização, pois distorcem os preços e empobrecem o povo; o orçamento público deve ser equilibrado, já que os déficits orçamentários resultam em mais impostos ou em emissão de moeda, com a consequente inflação; escreveu um tratado sobre a inflação (atualíssimo), mostrando o que é, sua causa e suas consequências; criticou o poder monopolístico de emitir moeda detido pelos governos; criticou também as regulamentações de preços; argumentou que o intervencionismo viola a lei natural e prejudica a coordenação do corpo social; antecipou Hayek em 400 anos, ao sustentar que a informação é dispersa e subjetiva e que não se deve centralizá-la, sob pena de perda da solidez da ordem social; e mostrou que o valor da moeda depende de sua quantidade e de sua qualidade

Francisco Suarez (1548-1617) e Juan de Salas (1553-1612) argumentaram sobre a impossibilidade de modelos de equilíbrio: "el precio que habrá mañana nel mercado solo Dios lo conosce".

E Juan de Lugo (1583-1660) defendeu a natureza dinâmica dos mercados como processos, criticando a visão teórica que os enxergava como algo estático e em equilíbrio.

As ideias desses e de outros autores espalharam-se pela Europa, especialmente, no início, na Itália e em Portugal. Leonardo Léssio (1554-1623) recompilou os escritos econômicos de Salamanca e os difundiu nos Países Baixos e Antonio de Escobar y Mendoza (1589-1669) os difundiu em França.

A Escolástica Tardia gerou dois ramos:

1. Ramo Norte (anglo-saxão)

2. Ramo Continental (menos conhecido)

Leonardo Léssio (na Bélgica), Grocio e Pufendorf influenciaram John Locke, bem como Hutchinson e, portanto, Adam Smith (este, com uma mescla de subjetivismo e objetivismo) e, daí, a "mainstream economics".

Posteriormente, a partir do século XVIII, foram publicados trabalhos muito importantes para a genealogia da Escola Austríaca, dos quais podemos destacar os de:

Jacques Turgot (1727-1781), teólogo, político e ministro, um subjetivista que defendeu o livre comércio e mostrou que o papel do estado não deve ser o de controlar as atividades econômicas; debuxou o princípio da utilidade marginal decrescente; elaborou uma crítica aos modelos de equilíbrio e formulou uma Teoria do Capital que antecipou o austríaco Eugene von Böhm-Bawerk em quase 200 anos.

Ferdinando Galiani (1728-1787), que escreveu, aos 22 anos, o tratado Della Moneta e resolveu o famoso "paradoxo da água e dos diamantes", explicando-o com o conceito de escassez relativa.

Etienne Bonnot, o Abade de Condillac (1714-1780), publicou La Commerce et le Gouvernment - Considerés relativement l´Un à l´Autre, em 1776 (mesmo ano de publicação de A Riqueza das Nações, de Adam Smith), sob os auspícios de Turgot, que era então ministro. Condillac antecedeu o que Bastiat escreveu na primeira metade do século seguinte, ao analisar as diferenças entre os efeitos "que se veem" e os efeitos "que se devem prever"

Esses três autores possuem diversos pontos comuns: o indivíduo como eixo central; o subjetivismo metodológico; o estudo da Teologia; a defesa do livre comércio e a crítica aos "agregados econômicos" (que dois séculos depois ficariam conhecidos como Macroeconomia).

Por sua vez, Turgot, Galiani e Condillac influenciaram Jean Baptiste Say, Bastiat e Molinari em França, bem como os autores alemães da Escola de Valor de Uso, como Wilhelm Roscher, da Universidade de Leipzig, mestre de Carl Menger (que dedicou o seu Princípios de Economia Política a ele e o cita 17 vezes elogiosamente ao longo da obra, que sustentava que os preços é que determinavam os custos (e não o oposto)

Parece interessante, à guisa de parêntesis, observarmos as citações sobre diversos autores de Menger, o fundador da Escola Austríaca de Economia: Hermann (outro pensador alemão, 12 vezes, todas elogiosamente); Adam Smith (12 vezes, 11 para criticá-lo); Say (11 vezes, 10 para criticá-lo), bem como, sempre elogiando, Condillac, Galeani e Covarrubia que, como vimos, eram escolásticos tardios.

Observando como evoluiu o pensamento econômico desde São Tomás e principalmente com os escolásticos tardios, vemos claramente praticamente todas as características da Escola Austríaca de Economia:

- subjetivismo

- individualismo

- inflação e dos ciclos econômicos como fenômenos causados por distúrbios monetários

- propriedade privada

- mercados como processos

- princípio da ação humana

- interdisciplinaridade

- preferências intertemporais

- união entre Ética, Política e Economia (interdisciplinaridade)

- ordens espontâneas

- liberdade de preços

- livre comércio

- informações insuficientes, dispersas e interpretadas subjetivamente

- tempo real (não newtoniano)

Como vemos, São Tomás é a origem de tudo e o mundo latino e católico não tem por que padecer de qualquer complexo de inferioridade quando se trata de Teoria Econômica.

No próximo artigo: Juan de Mariana, um austríaco politicamente incorreto

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Visite seu website.

LIVRE MERCADO x ECONOMIA INTERVENCIONISTA

As diferenças essenciais entre uma genuína economia de livre mercado e uma economia intervencionista

intervencionismo.jpg
Ao longo de toda a história humana, foram várias as manifestações de movimentos ideológicos coletivistas. Especialmente nas décadas de 1930 e 1940, em várias partes da Europa, estes movimentos se tornaram mais explícitos e radicais, e assumiram suas extremadas formas de comunismo, fascismo e nazismo. Todas estas três ideologias representavam a total rejeição da liberdade econômica, do livre mercado e da liberdade individual. 

Atualmente, o comunismo, o fascismo e o nazismo — ao menos no formato que assumiram no século XX — estão mortos. Eles fracassaram miseravelmente, tendo produzido nada mais do que genocídios, forme, devastação e miséria. Embora sejam vários aqueles que alegam — em todos os eixos do espectro político ideológico — que o capitalismo triunfou sobre estas ideologias, a verdade é que o sistema econômico que hoje existe ao redor do mundo está muito longe daquilo que economistas liberais-clássicos como Mises consideravam ser uma economia de livre mercado.

O que seria uma verdadeira economia de mercado? Quais as características indispensáveis que uma economia deve apresentar para ser considerada de livre mercado? Os nove princípios a seguir definem, em minha opinião, uma genuína economia de livre mercado:

1. Todos os meios de produção são propriedade privada, seja de indivíduos ou de empresas.

2. Os proprietários destes meios de produção têm total liberdade para utilizá-los da maneira que mais lhes aprouver, sem estipulações estatais, sem restrições e sem regulamentações (a única restrição óbvia é não agredir a vida, a propriedade e a liberdade de terceiros).

3. A demanda dos consumidores é o que realmente determina como estes meios de produção serão utilizados.

4. As forças concorrenciais da oferta e da demanda determinam os preços dos bens de consumo e dos vários fatores de produção, inclusive da mão-de-obra.

5. A livre concorrência é plena, o que significa que não há restrições à entrada de indivíduos ou empresas em nenhum tipo de mercado. Não há empecilhos burocráticos e não há agências reguladoras determinando quem pode e quem não pode entrar em um determinado mercado. 

6. O sucesso ou o fracasso de empresas e empreendimentos é determinado exclusivamente pelos lucros e pelos prejuízos destas empresas, os quais, por sua vez, decorrem de sua capacidade de vencer a concorrência das empresas rivais no mercado e mais bem satisfazer as demandas dos consumidores. Não há programas de socorro governamental a nenhum tipo de empresa falida, inclusive bancos.

7. O mercado não está restrito a transações domésticas. Há plena liberdade de comercializar com pessoas de todos os cantos do mundo, sem restrições governamentais, sem tarifas protecionistas.

8. O sistema monetário é completamente separado do estado. O governo não possui controle algum sobre o dinheiro, e este não é de curso forçado. Não há um banco central protegendo o sistema bancário e imprimindo dinheiro para expandir o crédito, determinar juros e estimular os lucros dos bancos. Há plena liberdade de entrada no setor bancário. A moeda será aquela voluntariamente escolhida pelos cidadãos.

9. O governo é restrito a níveis locais e sua atividade consiste unicamente em proteger a vida, a liberdade e a propriedade das pessoas.

Por essa definição, nenhum país do mundo é atualmente uma sociedade de livre mercado (embora haja várias gradações que deixem alguns — majoritariamente as cidades-estados — mais perto destes critérios). Sendo assim, que tipo de sistema econômico existe hoje no mundo? Mises explicou isso em sua coleção de ensaios de 1929, Uma Crítica ao Intervencionismo:

Quase todos os teóricos de política econômica e quase todos os estadistas e líderes partidários estão procurando um sistema ideal que, em suas crenças, não deve ser nem capitalista nem socialista, e que não se baseie nem na propriedade privada dos meios de produção e nem na propriedade pública. Estão procurando um sistema de propriedade que seja restrito, regulado e dirigido pela intervenção governamental e por outras forças sociais, como os sindicatos. Denominamos tal política econômica de intervencionismo, que vem a ser o próprio sistema de mercado controlado.

Uma economia intervencionista

Eis a seguir os nove pontos que definem uma economia intervencionista:

1. Os meios de produção podem ser propriedade privada, mas seu uso é restringido e regulamentado pela autoridade política.

2. O governo pode estipular, restringir ou regulamentar o modo como os meios de produção são utilizados, bem como pode proibir ou regular o acesso a determinados setores da economia, ou mesmo estipular que apenas ele, o governo, pode incorrer em determinada atividade comercial.

3. A demanda dos consumidores não é o único fator a determinar como os meios de produção serão utilizados. O governo pode impor regulamentações estipulando metas de produção, obrigando a prestação de serviços em determinados mercados sem demanda ou proibindo a produção de determinados tipos de produtos ou serviços.

4. O governo influencia ou até mesmo controla a formação dos preços de vários bens de consumo e de fatores de produção, inclusive da mão-de-obra. O governo manipula os efeitos do mercado — isto é, das leis de oferta e demanda — sobre o sucesso ou o fracasso de várias empresas, influenciando as receitas das empresas através de meios artificiais como regulações de preços, políticas de compra de estoques excedentes, limites à liberdade de entrada nos mercado, subsídios diretos e indiretos, e redistribuição de riqueza.

5. A livre concorrência é tolhida por vários tipos de restrição à entrada em vários setores da economia. Agências reguladoras determinam quem pode e quem não pode entrar em um determinado mercado, bem como quais serviços as empresas escolhidas podem ou não ofertar, e quais preços podem cobrar.

6. O governo pode escolher quais empresas podem falir e quais devem ser socorridas com o dinheiro dos pagadores de impostos. Os pequenos são utilizados para cobrir os prejuízos dos grandes com boas conexões políticas e sindicais.

7. A liberdade de entrada de produtos estrangeiros no mercado doméstico é desestimulada ou mesmo impedida por meio de proibições, tarifas ou quotas de importações. O mesmo se aplica à entrada de potenciais empresas estrangeiras que possam rivalizar com empresas nacionais já estabelecidas.

8. O sistema monetário é inteiramente regulado pelo governo, que detém o monopólio da moeda e impõe sua aceitação obrigatória para todos os cidadãos. Um banco central protege e carteliza o sistema bancário, além de manipular os juros e o valor do dinheiro ao determinar a que taxa sua quantidade na economia deve ser aumentada. A expansão do crédito é determinada pelo governo e não pela poupança voluntária dos cidadãos. Todas estas medidas são utilizadas como ferramentas para afetar o emprego, a produção e o crescimento a economia.

9. O governo está presente em várias áreas da economia e da vida das pessoas, possui abrangência nacional e não está limitado à proteção da vida, da liberdade e da propriedade.

É importante observar que o sistema intervencionista representado por estes nove pontos só pode ser implementado por meios violentos e coercivos. Somente o uso da força, ou a ameaça do uso da força, pode fazer as pessoas incorrerem em ações diferentes daqueles em que elas incorreriam voluntariamente sem a intervenção do governo. Sendo assim, embora a intervenção estatal seja normalmente discutida como se fosse "política pública", a verdade é que não há nada de "pública" nela. Intervenções são políticas coercivas implantadas por políticos e burocratas visando ao interesse próprio e de seus favorecidos.

Compare estas políticas ao livre mercado, ou à economia desobstruída, como foi definido acima. O que é mais evidente é a natureza voluntária de arranjos sociais genuinamente baseados em transações de mercado. A violência ou a ameaça de violência é reduzida a um mínimo, e o indivíduo adquire a liberdade de viver sua própria vida e de aprimorar suas circunstâncias por meio da livre associação com terceiros.

Exatamente por isso é importante compartilhar com um maior número possível de pessoas uma visão clara e persuasiva a respeito da sociedade livre e da economia de livre mercado. Apenas esta difusão de ideias pode, se não pôr um fim, ao menos restringir bastante esta era do estado intervencionista, levando-nos para um pouco mais perto da liberdade humana, que é um direito natural de qualquer indivíduo.
Richard Ebeling 
leciona economia no Hillsdale College em Michigan, é um scholar adjunto do Mises Institute e trabalha no departamento de pesquisa do American Institute for Economic Research.
 Tradução de Leandro Augusto Gomes Roque

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

UM CASO EXEMPLAR

Uma sociedade onde a única manifestação pública de racismo observada em muitos anos foi apenas uma piada é, com toda evidência, uma sociedade sem racismo praticamente nenhum.


O episódio do estudante de Santa Catarina que provocou uma onda de protestos com uma foto-caricatura considerada racista (v. http://jornaldesantacatarina.clicrbs.com.br/sc/noticia/2013/12/e-uma-covardia-o-que-fizeram-comigo-diz-aluno-da-ufsc-acusado-de-racismo-4362363.html) é um condensado simbólico de toda a loucura nacional. Vale a pena desmembrá-lo analiticamente nos seus elementos constitutivos:

1. O autor da piada jura não ter tido intenção racista, mas a foto é objetivamente ofensiva. A oferta de bananas em lugar de flores reduz o amor do casal negro a uma paixão entre macacos. A comparação remonta ao século XIX, quando o sucesso da concepção darwiniana do ser humano que se destacava progressivamente de seus ancestrais símios, fundindo-se com a visão do atraso e barbarismo do continente africano, espalhou entre os brancos europeus a ilusão de uma superioridade racial tanto mais persuasiva quanto mais confirmada, aparentemente, pelos testemunhos convergentes da ciência e dos viajantes. O sentido da cena remonta portanto a uma tradição cultural inconfundível, da qual nenhum estudante universitário pode razoavelmente alegar ignorância.

2. Subjetivamente, a mesma figura pode ser usada com graus diversos de intenção ofensiva, desde o gracejo inócuo entre amigos até a afirmação franca e brutal de um programa ideológico assumido. Como a foto foi publicada, em vez de circular apenas num grupo privado, ela já não está, obviamente, no primeiro grau dessa escala, mas também não chega ao último, pois o autor parece sincero ao negar que seja ideologicamente racista e ao dizer-se perplexo ante a reação hostil da coletividade negra local. Não sendo nem uma brincadeira inocente nem uma tomada de posição ideológica, o ato só pode ser explicado como um caso de inocência perversa, o mal crônico da sociedade histérica baseada no auto-engano geral. É preciso uma boa dose de ilusão histérica para um sujeito achar que pode fazer bonito com um estereótipo racial, em público, sem parecer racista. O histérico não sente o que percebe, mas o que imagina.

3. Alguma reação indignada dos seus colegas negros era, portanto, não somente razoável, mas inevitável. A coisa escapou da psicologia normal, porém, a partir do instante em que a militância negra recusou ouvir um pedido formal de desculpas e preferiu partir para o protesto coletivo organizado e a exigência de punição administrativa. Essa decisão evidencia o desejo de forçar o senso das proporções para dar ao caso uma dimensão que ele por si não tem, transformando um erro individual momentâneo numa atitude política que devia ser respondida com outra atitude política. Isso também é pura histeria. O histérico não reage proporcionalmente aos estímulos, mas avalia “ex post facto” o estímulo pela intensidade da sua reação. Por exemplo, se morre de medo de um gato, persuade-se de que ele é perigoso como um tigre, ou, se tem uma explosão de cólera ante uma pequena ofensa, imagina que ela foi brutal e imperdoável. É compreensível que, num reflexo automático de autojustificação, ele então deseje instilar a mesma reação nos outros, produzindo uma resposta desproporcional para espalhar a impressão de que o estímulo foi maior do que realmente foi. Essa conduta é tanto mais irresistível quando não se trata de mera reação individual, mas de um contágio coletivo. A gritaria da massa passa então a ser a unidade de medida do motivo que alegadamente a provocou. A elite revolucionária, que não se constitui de histéricos mas de psicopatas, conhece perfeitamente bem esse mecanismo e sabe desencadeá-lo repetidas vezes até que, num meio social altamente carregado de paixões ideológicas, ele se torne automático e rotineiro. Praticamente todos os “movimentos sociais”, hoje em dia, vivem disso. No caso de Santa Catarina, forçar um protesto coletivo a contrapelo do pedido de desculpas que o tornava desnecessário foi o meio encontrado para dar a um miúdo desatino individual o alcance postiço de um sinal de racismo organizado, endêmico, ameaçador.

4. Objetivamente, uma sociedade onde a única manifestação pública de racismo observada em muitos anos foi apenas uma piada é, com toda evidência, uma sociedade sem racismo praticamente nenhum. Mas o senso de identidade da militância negra depende, em grande parte, da expectativa comum de estar permanentemente ameaçada por uma militância igual e contrária, por um racismo antinegro endêmico e perigoso. A reação à foto-piada foi produzida exclusivamente por essa predisposição, totalmente alheia à gravidade maior ou menor dessa ofensa em particular. Uma vez desencadeada, era preciso portanto dar à ofensa as dimensões de um perigo iminente e grave contra o qual era obrigatório defender a todo custo a integridade do grupo. A reação desproporcional visou precisamente a dar a impressão de racismo generalizado, de modo a justificar novas e mais violentas reações. É estímulo a um racismo negro em resposta a um racismo branco praticamente inexistente ou inofensivo, que se deseja pintar como uma ameaça temível para daí tirar vantagem psicológica e política: reforçar a identidade do grupo e ao mesmo tempo ganhar para ele o apoio da opinião pública.

As lições do psiquiatra polonês Andrew Lobaczewski em “Political Ponerology: A Science on the Nature of Evil Adjusted for Political Purposes” (Red Pill Press, 2007) são ilustradas diariamente pelo noticiário nacional. A esse jogo abjeto de intercontaminação histérica reduz-se a política de um país governado por psicopatas. 
Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio.