quarta-feira, 9 de abril de 2014

ALGUNS DETALHES SOBRE O EMPREGO NO BRASIL


Imagine uma economia formada por 100 pessoas. Destas 100 pessoas, suponha que 90 tenham algum tipo de ocupação (seja um emprego com carteira assinada, seja fazendo bicos ou até mesmo um trabalho voluntário). E suponha também que as 10 pessoas restantes estejam desocupadas, mas estão à procura de uma ocupação.

Neste cenário, temos a seguinte situação estatística:

A População Economicamente Ativa é de 100 pessoas. A População Ocupada é de 90 pessoas, e a População Desocupada é de 10 pessoas. A taxa de desocupação é de 10%, pois há 10 pessoas desocupadas em um universo de 100 pessoas economicamente ativas.

Agora, suponha que destas 10 pessoas desocupadas, 3 desistam de procurar alguma ocupação. Os motivos dessa desistência podem ser vários: ou a pessoa achou alguém disposto a sustentar seu ócio, ou ela perdeu as esperanças de encontrar alguma ocupação, ou ela simplesmente aceitou um programa de assistencialismo governamental que proveja todas as suas necessidades básicas.

Em termos puramente estatísticos, houve uma alteração importante. O fato de 3 pessoas terem deixado de procurar uma ocupação significa que tais pessoas deixaram de ser economicamente ativas. Consequentemente, o arranjo agora passa a ser outro.

A População Economicamente Ativa passa a ser de 97 pessoas. A População Ocupada continua sendo de 90 pessoas. A População Desocupada caiu de 10 para 7 pessoas. E essas 3 pessoas que se retiraram do mercado agora fazem parte da População Não-economicamente Ativa.

Consequentemente, há agora uma nova taxa de desocupação. Antes, a taxa era de 10 pessoas em um universo de 100. Agora, a taxa é de 7 pessoas em um universo de 97. Ou seja, a nova taxa de desocupação é de 7,22% (7 dividido por 97).

Traduzindo: sem que um único emprego tenha sido criado, a taxa de desocupação — popularmente chamada de taxa de desemprego — caiu de 10% para 7,22%.

Por que isso é importante? Porque é exatamente isso o que está acontecendo no Brasil. E é o próprio IBGE quem faz esse alerta.

Comecemos por esta notícia, do final de 2013 (negrito meu):




A taxa de desemprego nas seis principais regiões metropolitanas do País ficou em 4,6% em novembro, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O resultado aponta para o menor desemprego da série histórica do IBGE, iniciada em 2002.

[...]

A redução na taxa de desemprego foi causada pela migração de indivíduos para a inatividade, e não pela geração de postos de trabalho, apontou a Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE.

"O que a gente vê aqui é a redução da desocupação em função do aumento da inatividade. Então não houve aumento do número de postos de trabalho. O que houve foi aumento das pessoas que passaram para a inatividade", ressaltou o gerente da Coordenação de Trabalho e Rendimento do IBGE, Cimar Azeredo.

Em novembro, houve aumento significativo na população não economicamente ativa. Na comparação com outubro, o aumento foi de 0,8%, o equivalente a 148 mil indivíduos.Em relação a novembro de 2012, a alta foi de 4,5%, mais 801 mil pessoas na inatividade.

Agora vejamos esta notícia, de 27 de março (negrito meu):




O número de pessoas economicamente não ativas que não buscam emprego porque não têm interesse em trabalhar aumentou 1,2% em fevereiro em relação a janeiro, segundo a Pesquisa Mensal de Emprego do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

[...]

"O que essa população não economicamente ativa está mostrando é que são pessoas que não trabalham e não procuram, elas não estão pressionando o mercado de trabalho. O que a gente vem observando é o crescimento da fatia das pessoas que não estão exercendo pressão sobre o mercado de trabalho por uma opção", disse Adriana Beringuy, técnica da Coordenação de Trabalho e Rendimento do IBGE.

O aumento da população inativa tem contribuído para manter a taxa de desemprego em mínimas históricas. A população não economicamente ativa aumentou 3,8% em fevereiro em relação ao mesmo mês do ano passado, o equivalente a 686 mil pessoas migrando para a inatividade no período. Ao mesmo tempo, a criação de vagas ficou estatisticamente estável, com a abertura de apenas dois mil novos postos de trabalho.

Toda essa evolução pode ser observada no gráfico abaixo, que contém os dados do IBGE, que estão disponibilizados no site do Banco Central.

A linha vermelha mostra a evolução da População Economicamente Ativa nas regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. A linha verde mostra a evolução da População Ocupada, e a linha azul, a da Desocupada.



Vale lembrar que 'Ocupados' abrange absolutamente todos os tipos de ocupação, seja ela remunerada (desde o executivo até o malabarista de semáforo) ou não-remunerada (instituições religiosas beneficentes, cooperativismo, aprendiz ou estagiário). Isso quer dizer que abrange também funcionários públicos, pessoas que prestam serviço militar obrigatório e os clérigos.

Para apreender corretamente o que o gráfico acima está dizendo, o melhor procedimento é fazer um gráfico que mostra a taxa de crescimento anual da População Economicamente Ativa e a taxa de crescimento anual da População Ocupada. Isso nos permitirá constatar as declarações do IBGE.



O gráfico acima ilustra vários fenômenos interessantes.

Para começar, sempre tenha em mente a seguinte igualdade:

População economicamente ativa = ocupados + desocupados.

O primeiro fenômeno que chama a atenção no gráfico é o ocorrido no ano de 2003. Mesmo com a recessão daquele ano, e com a SELIC a 26,5%, a população ocupada aumentou 4,5%. Porém, também naquele ano, a população economicamente ativa cresceu a uma taxa ainda maior. Por causa da igualdade acima, isso significa que a população desocupada também aumentou. Consequentemente, a taxa de desemprego (ou, no caso, a taxa de desocupação) chegou a 13%.

Após aquele ano, a população economicamente ativa passou a crescer a uma taxa menor do que a taxa de crescimento da população ocupada. De novo, pense na igualdade acima: se a população economicamente ativa cresce, mas o número de ocupados cresce ainda mais, então o número de desocupados está caindo. Exatamente por isso, a taxa de desocupação apresentou cifras declinantes a partir de meados de 2004. E assim foi até 2009.

A recessão de 2009 fez com que as duas variáveis ficassem praticamente estagnadas, mas por pouco tempo. Já em 2010, ambas voltaram a crescer com grande vigor.

(Para entender as causas desse forte crescimento do emprego no período 2004-2011, veja este artigo).

Nos anos de 2011 e 2012, a situação foi de estabilidade, com a população ocupada crescendo a uma média de 2% ao ano, e a população economicamente ativa, a 1,5% ao ano.

Já em 2013, houve uma guinada radical e inédita nos indicadores, especialmente a partir do segundo semestre. A população economicamente ativa começou a encolher. Em novembro de 2013, por exemplo, ela foi 1% menor do que em novembro de 2012. Isso significa que havia menos pessoas no mercado de trabalho (trabalhando ou procurando emprego) em novembro de 2013 do que havia em novembro de 2012.

Junto com a queda da população economicamente ativa ocorreu também uma queda na população ocupada. Em novembro de 2013, o número de pessoas ocupadas foi 0,73% menor do que em novembro de 2012.

E a coisa ficou ainda mais interessante agora no mês de fevereiro de 2014. A taxa de crescimento da população ocupada foi de 0%, o que significa que a quantidade de pessoas ocupadas simplesmente não se alterou em relação a fevereiro de 2013 (segundo o IBGE, neste período houve a "abertura de apenas dois mil novos postos de trabalho"). Mas a taxa de crescimento da população economicamente ativa foi negativa, de -0,46%.

De novo, voltemos à igualdade acima: se a população ocupada não se altera, mas a população economicamente ativa encolhe, então o número de desocupados também encolheu. Isso significa que as pessoas que estavam desocupadas simplesmente pararam de procurar ocupação e se retiraram do mercado de trabalho, tornando-se não-economicamente ativas, e contribuindo para reduzir a taxa de desocupação (desemprego).

Como o gráfico deixa claro, trata-se de um fenômeno inédito no Brasil. Nem mesmo nas recessões de 2003 e 2009 houve uma taxa de crescimento negativa. Muito embora a série estatística do IBGE comece apenas em 2002, a lógica leva a crer que tal fenômeno nunca antes havia ocorrido, pois a taxa de crescimento da população geral (a qual está em 1% ao ano) era bem maior no passado, o que significa que o número de pessoas jovens entrando no mercado de trabalho era maior.

Enquanto este fenômeno — pessoas desistindo de procurar ocupação e se retirando do mercado de trabalho — prosseguir, a taxa de desemprego continuará baixa.

Conclusão

As causas desse êxodo de pessoas do mercado de trabalho são diversas, e sua análise está fora do escopo deste artigo. Certamente há de tudo: há pessoas que se contentam com os proventos do Bolsa-Família, há pessoas sem capacitação que desistiram da vida, há pessoas que dão seguidos golpes no seguro-desemprego, e certamente há um grande número de pessoas indolentes que têm quem lhes sustente (inclusive, e principalmente, jovens de classe média-alta).

Com efeito, as recentes notícias sobre uma "inesperada disparada" nos gastos com o seguro-desemprego, mesmo com a taxa de desocupação estando em no menor nível da história, confirmam uma das teses acima (negrito meu):



Os gastos com seguro-desemprego e abono salarial devem alcançar R$ 45 bilhões nesse ano [2013], um aumento de 16% com relação ao ano passado e tem crescido muito nos últimos anos. Ao mesmo tempo, a taxa de desemprego vem declinando, passando de 13% em 2003 para 5,4% em 2013. 

Quais as principais consequências desse êxodo do mercado de trabalho?

De um lado, uma menor oferta de mão-de-obra tende a pressionar os salários para cima; de outro, a atual redução na taxa de crescimento do crédito (veja detalhes neste artigo) tende a contrabalançar essa pressão altista nos salários. No momento, a massa salarial registra a menor alta desde 2009, ano em que o país estava em recessão

No cômputo geral, trata-se de um fenômeno lastimável. O baixo crescimento da mão-de-obra só pode ser compensado se houver um crescente aumento na produtividade. Como o Brasil é conhecido justamente por ter uma mão-de-obra pouco produtiva, esse baixo crescimento da mão-de-obra tende a reduzir sobremaneira o aumento da oferta de bens e serviços e, consequentemente, o crescimento da economia e o enriquecimento da população.

No final, este lamentável fenômeno serve apenas para gerar uma redução artificial na taxa de desemprego, algo que o atual governo certamente usará a seu favor como ilustração do "sucesso" de suas políticas.

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Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

terça-feira, 8 de abril de 2014

SEGURANÇA VERSUS LIBERDADE - ANSIAR PELA PRIMEIRA PODE NOS DEIXAR SEM A SEGUNDA


A sociedade inteira se terá convertido numa só fábrica e num só escritório, com igualdade de trabalho e igualdade de remuneração. - Lênin (1917)

Num país em que o único empregador é o estado, oposição significa morte lenta por inanição. O velho princípio "quem não trabalha não come" foi substituído por outro: "quem não obedece não come". -Leon Trotsky (1937)

A segurança econômica, assim como a falsa "liberdade econômica", é muitas vezes apresentada como condição indispensável da autêntica liberdade. Em certo sentido, isso é ao mesmo tempo verdadeiro e importante. É raro encontrar independência de espírito ou força de caráter entre aqueles que não confiam na sua capacidade de abrir caminho pelo próprio esforço. 

Todavia, a ideia de segurança econômica não é menos vaga e ambígua do que a maioria dos outros conceitos nesse campo; e por isso, a reivindicação generalizada por uma segurança econômica pode tornar-se um perigo para a liberdade. 

Com efeito, quando a segurança é entendida num sentido absoluto, o empenho geral em conquistá-la, em vez de possibilitar uma maior liberdade, torna-se a mais grave ameaça a ela.

Há um tipo de planejamento estatal que, visando a um tipo específico de segurança, exerce um efeito insidioso sobre a liberdade: é o planejamento que se destina a proteger indivíduos ou grupos contra uma eventual redução de suas rendas, redução essa que, embora imerecida, ocorre diariamente numa sociedade competitiva. É o planejamento contra aquelas perdas que impõem duras privações, e que, contudo, são inseparáveis do sistema de concorrência. 


A reivindicação desse tipo de segurança é, pois, apenas um outro aspecto da exigência de que deve haver uma "justa remuneração" para cada indivíduo, uma remuneração proporcional aos méritos subjetivos e não aos resultados objetivos do esforço individual. 

Mas essa espécie de segurança ou de justiça não parece conciliável com a livre escolha da ocupação.Todos nós conhecemos a trágica situação do homem altamente treinado cuja especialidade, adquirida com esforço, perde de súbito todo o valor por causa de alguma invenção muito benéfica para o restante da sociedade. O último século está repleto de exemplos dessa espécie, alguns deles atingindo ao mesmo tempo centenas de milhares de pessoas.

O fato de um homem vir a sofrer grande redução dos rendimentos e amarga frustração de todas as suas esperanças sem por isso ter sido responsável, e apesar de sua dedicação e de uma excepcional habilidade, indubitavelmente ofende o nosso senso de justiça. As reivindicações das pessoas assim prejudicadas de que o estado intervenha em seu favor a fim de salvaguardar-lhes as legítimas expectativas conquistarão por certo a simpatia e o apoio popular. 


A aprovação geral a tais reivindicações fez com que, na maioria dos países, os governos decidissem agir, não só no sentido de amparar as possíveis vítimas de tais dificuldades e privações, mas também no de assegurar-lhes o recebimento de seus rendimentos anteriores e assim protegê-las contra as vicissitudes do mercado.

Contudo, para que a escolha das ocupações seja livre, a garantia de uma determinada renda não pode ser concedida a todos. E se for concedida a alguns privilegiados, haverá prejuízo para outros, cuja segurança será, ipso facto, diminuída. É fácil demonstrar que a garantia de uma renda invariável só poderá ser concedida a todos pela abolição total da liberdade de escolha da profissão. 


O que ocorre constantemente é a concessão parcial dessa espécie de segurança a este ou àquele grupo, do que decorre um aumento constante da insegurança daqueles sobre os quais recai o ônus. Não admira que, em consequência, aumente também de modo contínuo o valor atribuído ao privilégio da segurança, tornando-se mais e mais premente a sua exigência, até que, no final, nenhum preço, nem o da própria liberdade, pareça excessivo.O problema reveste-se de importância ainda maior porque, no mundo que conhecemos, torna-se improvável que um indivíduo dê o melhor de si por muito tempo, a menos que seu interesse esteja diretamente envolvido. A maioria das pessoas necessita, em geral, de alguma pressão externa para se esforçar ao máximo. Assim, o problema dos incentivos é bastante real, tanto na esfera do trabalho comum como na das atividades gerenciais. A aplicação da engenharia social a toda uma nação — e é isto o que significa planejamento — gera problemas de disciplina difíceis de resolver.

A política governamental hoje adotada em toda parte, de conceder o privilégio da segurança ora a este grupo, ora àquele, vai rapidamente criando condições em que o anseio de segurança tende a sobrepujar o amor à liberdade. Isso porque, a cada vez que se confere segurança completa a um grupo, aumenta-se a insegurança dos demais. 


Se garantirmos a alguns uma fatia fixa de um bolo de tamanho variável, a parte deixada aos outros sofrerá maior oscilação, proporcionalmente ao tamanho do todo. E o aspecto essencial da segurança oferecida pelo sistema de concorrência — a grande variedade de oportunidades — torna-se cada vez mais restrito.

No sistema de mercado, a segurança só pode ser concedida a determinados grupos mediante o gênero de planejamento conhecido como 'regulação'. O "controle", isto é, a limitação da concorrência (leia-se "da produção") de modo que os preços finais assegurem um ganho "adequado", é o único meio pelo qual se pode garantir um certo rendimento aos produtores numa economia de mercado. 


Isso, porém, envolve necessariamente uma redução de oportunidades para os demais. Para que o produtor, seja ele dono de empresa ou operário, receba proteção contra a concorrência de preços mais baixos, outros, em pior situação, serão impedidos de participar da prosperidade relativamente maior das indústrias controladas. Qualquer restrição à liberdade de ingresso numa profissão reduz a segurança de todos os que se acham fora dela.

E, à medida que aumenta o número daqueles cujo rendimento é assegurado dessa forma, restringe-se o campo das oportunidades alternativas abertas aos que sofrem uma perda de rendimento — enquanto que, para os que são atingidos por qualquer mudança, diminui do mesmo modo a possibilidade de evitar uma redução fatal da sua renda. 


E se, como vem acontecendo com frequência, em cada categoria em que ocorre uma melhora de condições permite-se que seus membros excluam os demais para garantir a si mesmos o ganho integral sob a forma de salários ou lucros mais elevados, os que exercem profissões cuja demanda diminuiu não têm para onde se voltar, e a cada mudança produz-se grande número de desempregados. Não há dúvida de que foi em grande parte por causa da busca de segurança por esses meios nas últimas décadas que aumentou a tal ponto o desemprego e, por conseguinte, a insegurança para vastos setores da população.

Numa sociedade em que a mobilidade ficou tão reduzida como resultado dessas restrições, é de absoluta falta de perspectiva a situação daqueles que se encontram fora do âmbito das ocupações protegidas, e um abismo os separa dos privilegiados possuidores de empregos a quem a proteção contra a concorrência tornou desnecessário fazer concessões para dar lugar aos que estão de fora. 


Em consequência, em vez de preços, salários e rendimentos individuais oscilarem, são agora o emprego e a produção que ficam sujeitos a violentas flutuações. Nunca houve pior e mais cruel exploração de uma classe por outra do que a exercida sobre os membros mais fracos ou menos afortunados de uma categoria produtora pelos que já desfrutam de posições estáveis, e isso foi possibilitado pela "regulamentação" da concorrência. Poucas coisas têm tido efeito tão pernicioso quanto o ideal da "estabilização" de certos preços (ou salários), pois, embora ela garanta a renda de alguns, torna cada vez mais precária a posição dos demais.

Assim, quanto mais nos esforçamos para proporcionar completa segurança interferindo no sistema de mercado, tanto maior se torna a insegurança; e, o que é pior, maior o contraste entre a segurança que recebem os privilegiados e a crescente insegurança dos menos favorecidos. E quanto mais a segurança se converte num privilégio, e quanto maior o perigo para os que dela são excluídos, mais será ela valorizada. 


À medida que o número dos privilegiados aumenta, e com ele o hiato entre a sua segurança e a insegurança dos demais, vai surgindo uma escala completamente nova de valores sociais. Já não é a independência, mas a segurança, que confere distinção e status; o que faz de um homem um "bom partido" é antes o direito a uma pensão garantida do que a confiança em sua capacidade — ao passo que a insegurança se converte numa terrível condição de pária, à qual estão condenados para sempre aqueles a quem na juventude foi negado ingresso no porto seguro de uma posição assalariada.

Essa evolução foi acelerada por outro efeito das doutrinas socialistas: o deliberado menosprezo por todas as atividades que envolvem risco econômico, bem como a condenação moral dos lucros que compensam os riscos assumidos, mas que só poucos podem obter. Não podemos censurar os nossos jovens quando preferem o emprego seguro e assalariado do funcionalismo público ao risco do livre empreendimento, pois desde a mais tenra idade ouviram falar daquele como sendo uma ocupação superior, mais altruísta e mais desinteressada. A geração de hoje cresceu num mundo em que, na escola e na imprensa, o espírito da livre iniciativa é apresentado como indigno e o lucro como imoral, onde se considera uma exploração dar emprego a cem pessoas, ao passo que chefiar o mesmo número de funcionários públicos é uma ocupação honrosa.

Numa sociedade em que o indivíduo conquista posição e honras quase exclusivamente em função de ser um servidor assalariado do governo; em que o cumprimento do dever prescrito é considerado mais louvável do que a escolha do próprio campo de atividade; em que todas as ocupações que não conferem um lugar na hierarquia oficial ou o direito a um rendimento fixo são julgadas inferiores e até certo ponto aviltantes — seria demais esperar que a maioria prefira por muito tempo a liberdade à segurança.

E quando só se pode optar entre a segurança numa posição de dependência e a extrema precariedade numa situação em que tanto o fracasso quanto o êxito são desprezados, poucos resistirão à tentação da segurança ao preço da liberdade. Tendo-se chegado a esse ponto, a liberdade torna-se quase um objeto de escárnio, pois só pode ser alcançada com o sacrifício de grande parte das boas coisas da vida. Nessas condições, não surpreende que um número cada vez maior de pessoas se convença de que, sem segurança econômica, a liberdade "não vale a pena", e se disponha a sacrificar esta em troca daquela.

Nada é mais funesto do que o hábito, hoje comum entre os líderes intelectuais, de exaltar a segurança em detrimento da liberdade. Urge reaprendermos a encarar o fato de que a liberdade tem o seu preço e de que, como indivíduos, devemos estar prontos a fazer grandes sacrifícios materiais a fim de conservá-la. Para tanto, faz-se mister readquirir aquela convicção que Benjamin Franklin expressou numa frase aplicável a tanto a indivíduos quanto a nações: "aqueles que se dispõem a renunciar à liberdade essencial em troca de uma pequena segurança temporária não merecem liberdade nem segurança".



Artigo originalmente publicado em 1944

Friedrich A. Hayek (1899-1992) foi um membro fundador do Mises Institute. Ele dividiu seu Prêmio Nobel de Economia, em 1974, com seu rival ideológico Gunnar Myrdal "pelos seus trabalhos pioneiros sobre a teoria da moeda e das flutuações econômicas e por suas análises perspicazes sobre a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais". Seus livros estão disponíveis na loja virtual do Mises Institute.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

INVALIDANDO O ESTADO - QUATRO ARGUMENTOS CONTRA O GOVERNO


Sempre que a questão da dissolução do estado é levantada, há duas objeções que inevitavelmente surgem. 

A primeira objeção é aquela que diz que uma sociedade livre e sem estado só seria possível se absolutamente todas as pessoas fossem perfeitamente boas e racionais. Em outras palavras, isso significa que os cidadãos de hoje devem ser submetidos a um estado centralizador e detentor do monopólio da violência porque existem pessoas ruins no mundo.

O primeiro e mais óbvio problema com este argumento é que, se existem pessoas ruins na sociedade, então inevitavelmente também haverá pessoas ruins dentro do estado — e, consequentemente, tais pessoas serão ainda mais perigosas.

Em um arranjo sem estado, os cidadãos são capazes de se proteger de indivíduos malvados; porém, se estes indivíduos malvados agora estiverem no controle de um aparato estatal agressivo, detentor do monopólio da violência, armado até os dentes e com um grande poderio policial e militar, tais cidadãos não terão a mais mínima chance.

Logo, o argumento de que precisamos do estado porque existem pessoas malvadas é inerentemente falacioso. É justamente por existirem pessoas malvadas que o estado tem necessariamente de ser desmantelado, uma vez que tais pessoas malvadas serão tentadas a utilizar o poder do estado para alcançar seus próprios objetivos — e, ao contrário dos ladrões e assaltantes comuns, pessoas malvadas no comando de um aparato estatal usufruirão do poderio policial e militar para impor seus caprichos sobre uma população indefesa e compulsoriamente desarmada.

Por uma questão de lógica, há quatro possibilidades quanto à combinação de pessoas boas e más no mundo:


1. Todos os indivíduos são morais

2. Todos os indivíduos são imorais

3. A maioria dos indivíduos é imoral, e uma minoria é moral

4. A maioria dos indivíduos é moral, e uma minoria é imoral

(Um equilíbrio perfeito entre bem e mal é estatisticamente impossível)

Analisemos cada um destes casos.

1. Quando todos os indivíduos são morais

Neste primeiro caso, o estado é obviamente desnecessário, dado que não há como existir o mal.

2. Quando todos os indivíduos são imorais

Neste segundo caso, não se pode permitir que o estado exista, e por um motivo muito simples. Como geralmente se argumenta, o estado tem de existir porque há no mundo pessoas más que querem fazer maldades e que só podem ser contidas por meio de uma represália do estado (polícia, prisões etc.). Um corolário desse argumento é que, quanto menor for o temor de represálias, mais maldades essas pessoas estarão propensas a fazer. 

No entanto, o estado em si não está sujeito a nenhum controle. O estado é a própria lei. A única restrição teórica sobre o aparato estatal é decisão voluntária de seus próprios membros. Mesmo nas democracias ocidentais mais avançadas, quantos políticos e policiais realmente vão para a cadeia? Sendo assim, se pessoas más existem e estão sempre propensas a cometer maldades, e se elas sabem que só podem ser contidas pela força, então esta sociedade jamais pode permitir a existência de um estado, pois estas pessoas más irão imediatamente tomar o controle deste aparato estatal com o intuito de cometer maldades e ao mesmo tempo evitar represálias. 

Portanto, em uma sociedade totalmente formada por indivíduos maus e imorais, a única esperança para a estabilidade seria um regresso ao "estado natural", no qual a totalidade da população estaria armada. Neste arranjo, o constante temor de retaliação iria ao menos arrefecer os impulsos maléficos dos mais diversos grupos.

3. Quando a maioria dos indivíduos é imoral, e uma minoria é moral

O terceiro caso é aquele em que as pessoas são majoritariamente más, e apenas algumas são boas.

Se o arranjo é este, então também não se pode permitir a existência do estado, uma vez que, por uma questão de distribuição estatística, a maioria daqueles que estiverem no controle do aparato estatal será composta por pessoas más, as quais terão poderes sobre a minoria de pessoas boas.

Mais ainda: não se pode permitir qualquer resquício de democracia sob este arranjo, dado que a minoria de pessoas boas será inevitavelmente subjugada pelas vontades democráticas da maioria de malvados. Defender democracia sob este arranjo é uma completa irracionalidade.

As pessoas más, que querem infligir maldades sem qualquer temor de represálias, irão inevitavelmente assumir o controle do aparato estatal e utilizar seus poderes para cometer suas maldades sem qualquer temor de represálias. As pessoas boas não agem moralmente porque temem represálias, mas sim porque apreciam a bondade, a serenidade e a paz de espírito — e por isso, e ao contrário das pessoas más, elas não têm nada a ganhar caso assumam o controle do estado.

Portanto, neste arranjo podemos ter a certeza de que o estado será controlado por uma maioria formada por pessoas más e irá subjugar todo o resto da população (tanto as pessoas boas quanto as pessoas más). Os maiores perdedores serão, obviamente, as pessoas morais.

4. Quando a maioria dos indivíduos é moral, e uma minoria é imoral

O quarto caso é aquele em que as pessoas são majoritariamente boas, e apenas algumas poucas são más.

Esta possibilidade está sujeita aos mesmos problemas delineados acima. As pessoas más estarão sempre querendo assumir o controle do estado com o intuito de se protegerem de retaliações.

Mas esta opção, no entanto, altera a aparência da democracia: dado que a maioria das pessoas é boa, as pessoas más que querem chegar ao poder terão de mentir para as pessoas boas, fazendo inúmeras promessas aparentemente sensatas, bondosas e caritativas para que assim consigam chegar ao poder. 

E então, uma vez no poder (algo que sempre irá ocorrer, pois pessoas más são naturalmente astutas na arte do engano e da dissimulação), essas pessoas más irão imediatamente revelar sua verdadeira face e sair em busca de seus objetivos perversos, impingindo seus desejos por meio do aparato regulatório, jurídico, policial e militar do estado. Este, é claro, é o arranjo vigente nas democracias atuais.

Assim, o estado permanece sendo o maior prêmio a ser conquistado pelas pessoas más. Uma vez conquistado, essas pessoas más irão rapidamente assumir o controle total de seu assombroso poder — consequentemente, a existência do estado também não pode ser permitida neste cenário.

Consequências

Não há, portanto, nenhuma situação na qual a existência de um estado pode ser defendida por meio da lógica. 

O único arranjo em que a existência do estado pode ser justificada seria aquele em que a maioria dos indivíduos é má, mas o controle do estado está — e para sempre estará — nas mãos de uma minoria de indivíduos bons.

Esta situação, embora seja interessante na teoria, não se sustenta logicamente pelos seguintes motivos:


a) A maioria formada por indivíduos maus iria rapidamente desalojar a minoria de bons por meio do voto; ou então iria sobrepujá-la por meio de um golpe;

b) Não há nenhuma maneira de garantir que somente as pessoas boas estarão para sempre no controle do estado; e

c) Ao longo de toda a brutal história da existência do estado, não há absolutamente nenhum caso em que tal arranjo tenha prevalecido.

O erro lógico em que as pessoas incorrem ao defender a existência do estado é que, por algum motivo insondável, elas genuinamente supõem que o estado será necessariamente controlado por pessoas ínclitas, probas, honestas e bem-intencionadas, e que as pessoas más estarão para sempre fora do aparato estatal e permanentemente pacificadas. Os juízos morais coletivos que elas aplicam aos cidadãos comuns não são igualmente aplicados ao grupo que as governa. 

Por uma questão puramente estatística, se 50% das pessoas são más, então pelo menos 50% das pessoas que estarão no comando também serão más (aliás, muito provavelmente esta porcentagem será maior, uma vez que pessoas más sempre estão propensas a buscar poder). Logo, a existência da maldade jamais pode justificar a existência do estado. Se não há maldade, o estado é desnecessário. Se a maldade existe, o estado passa a ser perigoso demais para que se permita sua existência.

A segunda objeção

Como mencionado no primeiro parágrafo deste artigo, as pessoas geralmente cometem dois erros quando confrontadas com a ideia da dissolução do estado. 

O primeiro erro é acreditar que o estado é necessário porque existem pessoas más. Os problemas lógicos desta crença foram explicitados acima. 

O segundo erro é acreditar que, na ausência do estado, surgirão instituições muito piores, as quais crescerão e inevitavelmente assumirão o lugar do estado. Consequentemente, agências de segurança privada, seguradoras, eorganizações de arbitração de litígios passam a ser consideradas como cânceres em potencial, que irão crescer, se avolumar e assumir o controle do organismo político.

Este raciocínio tem as mesmas raízes do primeiro erro analisado. Ora, se todas as instituições sociais estão continuamente tentando aumentar seu poder e impor suas vontades sobre terceiros, então, por essa mesma razão, não se pode permitir a existência de um estado centralizado.

Afinal, se é inevitável que um grupo sempre irá tentar adquirir poder sobre todos os outros grupos e indivíduos, então esta sede de poder não irá acabar se um deles chegar ao poder. Ao contrário: uma vez no poder, sua ânsia de dominação irá se espalhar por toda a sociedade, até que a escravidão seja a norma. Em outras palavras, a única esperança para a liberdade individual é que haja uma total proliferação de grupos armados, cada um com o poder de infligir males ao outro, de modo que todos terão medo uns dos outros, o que consequentemente os tornará relativamente pacíficos.

É muito difícil entender a lógica e a inteligência do argumento de que, para nos protegermos de um grupo que pode nos sobrepujar, temos de apoiar um grupo que já nos sobrepujou. Tal argumento é similar àquele outro argumento estatista sobre monopólios privados: os cidadãos devem criar um monopólio estatal porque receiam que surja algum monopólio privado. Não é necessária uma inteligência aguçada para perceber a tolice deste raciocínio.

Conclusão

Por fim, qual é a evidência que sustenta o raciocínio de que poderes descentralizados e concorrentes promovem a paz? Em outras palavras, existe algum fato que podemos usar para sustentar a ideia de que um equilíbrio de poder é a única chance que o indivíduo tem para a liberdade?

O crime organizado não é um bom exemplo, pois quadrilhas regularmente corrompem, manipulam e utilizam o poder da polícia estatal para impingir suas próprias regras. Logo, máfias e outras quadrilhas organizadas não podem ser consideradas um arranjo que opera em um estado natural, pois elas próprias fazem uso do aparato estatal que detém o monopólio da violência. 

Um exemplo mais útil seria o fato de que nenhum líder político jamais declarou guerra a outro líder político que possuísse armas nucleares. No passado, quando havia líderes que se sentiam imunes a retaliações, eles estavam mais do que dispostos a matar sua própria população ao enviá-las a guerras. Atualmente, dado que eles próprios estão sujeitos a uma aniquilação nuclear, tais líderes só têm coragem de atacar países que não têm como contra-atacar.

Eis aí uma lição instrutiva sobre por que líderes políticos se esforçam para desarmar sua população e torná-la dependente do governo. E eis aí um bom exemplo de como o temor de represálias — o qual é inerente a um sistema equilibrado de poderes descentralizados e concorrenciais — é único método comprovado de assegurar e manter a liberdade individual. 

Temer fantasmas imaginários e se entregar à falsa sensação de proteção fornecida pela opressão estatal irá apenas garantir a destruição de todas aquelas liberdades que fazem com que a vida valha a pena ser vivida.




já foi ator, estudante pós-graduado e empresário do ramo de software. Hoje ele se dedica inteiramente à filosofia. Já escreveu sete livros, todos disponíveis em seu website.

EU SEI O QUE VOCÊ ESCREVEU ONTEM

"Os senhores escravocratas do século 21 ainda se movem ao sabor das crenças de 50 anos atrás (...)", escreveu Mino Carta na revista "Carta Capital" do dia 2/4, para concluir: "Daí a oposição sistemática aos governos Lula e Dilma". Na política, o passado é uma massa de modelagem sempre disponível para servir aos interesses do presente. Sugerir que os críticos do lulismo são reencarnações dos golpistas de 1964 já se tornou um clássico da "imprensa" chapa-branca. Quando, porém, a fábula emana do teclado de Carta, um cheiro de queimado espalha-se no ar.


Nos idos de 1970, Carta ocupava o cargo de diretor de Redação da revista "Veja" e assinava os editoriais com suas iniciais. O que M.C. escreveu em 1º de abril de 1970, sexto aniversário do golpe, está no acervo digital da revista:

"Propostos como solução natural para recompor a situação turbulenta do Brasil de João Goulart, os militares surgiram como o único antídoto de seguro efeito contra a subversão e a corrupção (...). Mas, assumido o poder, com a relutância de quem cultiva tradições e vocações legalistas, eles tiveram de admitir a sua condição de alternativa única. E, enquanto cuidavam de pôr a casa em ordem, tiveram de começar a preparar o país, a pátria amada, para sair da sua humilhante condição de subdesenvolvido. Perceberam que havia outras tarefas, além do combate à subversão e à corrupção –e pensaram no futuro." Fofo?

Enquanto Paulo Malhães lançava corpos em rios, M.C. batia bumbo para Médici. A censura não tem culpa: os censores proibiam certos textos, mas nunca obrigaram a escrever algo. Os proprietários da Abril não têm culpa (ou melhor, são culpados apenas pela seleção do diretor de Redação): segundo depoimento (nesse caso, insuspeito) de um antigo editor da revista e admirador do chefe, hoje convertido, como ele, ao lulismo, Carta dispunha de tal autonomia que os Civita só ficavam sabendo do conteúdo da "Veja" depois de completada a impressão.

Carta foi quercista quando Orestes Quércia tinha poder (e manejava verbas publicitárias). Hoje, é lulo-dilmista até o fundo da alma. Na democracia, não é grave ter preferências político-partidárias, mesmo se essas (mutáveis) inclinações tendem quase sempre na direção do poder de turno. Mas aquilo era abril de 1970, bolas! As máquinas da tortura operavam a plena carga –algo perfeitamente conhecido, não pelo povo, mas por toda a imprensa. A bajulação condoreira a Médici não deve ser qualificada como um equívoco de avaliação: era outra coisa, que prefiro não nomear.

"CartaCapital" de 2 de abril publicou, também, um ensaio histórico sobre as relações entre a imprensa e a ditadura no qual –surpresa!– não há menção aos editoriais da "Veja" assinados por M.C. em 1970. A revista de Carta faz coro com os arautos do "controle social da mídia", eufemismo de censura em tempos de democracia. Cada um a seu modo, os grandes jornais acertaram as contas com o próprio passado, oferecendo desculpas ("O Globo"), reconhecendo erros (Folha) ou produzindo revisões circunstanciadas ("Estadão"). Carta optou por um caminho diferente: a camuflagem.

O artigo de Carta na "CartaCapital" é uma catilinária contra os "reacionários nativos" que, "instalados solidamente na casa-grande" e "com a colaboração dos editorialistas dos jornalões", perpetraram o golpe de 1964. De tão santa e barulhenta, a indignação editorializada induzirá algum desavisado leitor estrangeiro a imaginar que o autor denuncia, corajosamente, um golpe militar em 2014. Mas, no fim, é mesmo do presente que trata o grito rouco, o adjetivo sonante e o chavão escandido: por meio dessas técnicas, Mino Carta esconde M.C.

Acervos digitais são uma dessas maravilhas paridas pela revolução da informação. A França do pós-guerra não tinha algo assim, para sorte dos colaboracionistas de Vichy. O Brasil de hoje tem. Sorte nossa. 
Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

domingo, 6 de abril de 2014

BRIGAS E SEPARAÇÃO

Num dia, ou numa noite qualquer, um homem e uma mulher se encontraram. E se amaram. Ela achou que ele fosse sua alma gêmea, ele pensou que ela fosse a mulher de sua vida.

Por um período eles ficaram juntos -bem juntos-, fizeram juras, sonharam e pensaram em projetos para realizar no presente e no futuro. Tiveram um filho, ou dois, ou três.

Nem importa se eles se casaram ou não, se o casamento durou meses ou anos, e quais os motivos que a vida lhes apresentou que fez com que mudassem de ideia. O fato é que num dia após o outro, ou numa noite após a outra, o amor acabou -ou não mais conseguiu continuar-; nem mesmo eles sabem ao certo o que aconteceu.

Ela não mais conseguia identificar aquele homem como sua alma gêmea. Aliás, perguntava a si mesma como pudera pensar nisso algum dia, como conseguira permanecer tanto tempo de olhos tão fechados.

E ele imaginava o que teria acontecido para que aquela, que ele pensara ser a mulher de sua vida, ter mudado tanto.

Ambos sofreram com o rompimento do laço que havia entre eles e com o final de tantos sonhos e projetos em comum. Sofreram muito. Um deles até podia disfarçar melhor sua dor; o outro só conseguia deixar seu desgosto se exibir sem pudor. A amargura, porém, era dupla.

Seguiram seus caminhos na vida e, sem que se dessem conta, passaram a viver criando problemas. Problemas na divisão de bens -bobagens tolas-, encrencas para acertar horários e dias de visita ao(s) filho(s), disputas mil. Em tudo.

Restaram muita mágoa e ressentimento aos dois. Um até podia disfarçar melhor enquanto o outro não conseguia se controlar, mas o certo é que os dois reagiam um contra o outro, mesmo e principalmente à distância. Virou uma batalha.

Um dia era o atraso no horário de o pai buscar o(s) filho(s), noutro dia era uma taxa extra da escola que não estava prevista; num dia era o(s) filho(s) que chegava(m) sem banho tomado, noutro dia com o dever escolar sem fazer. Tudo era motivo para discussões, reclamações, cara fechada.

Eles nem percebiam que todos os problemas caiam sobre uma, ou duas ou três crianças. O filho(s) deles. Que um dia eles tiveram como projeto para o presente e para o futuro. E que não faziam parte dos bens divididos. O filho(s) continuaria(m) a ser dos dois. Para sempre.

"Minha mãe é boa ou má?", "Meu pai gosta ou não gosta de mim?" e outras dúvidas menos conhecidas rondavam a cabeça do(s) filho(s) algumas vezes, principalmente quando ouvia(m) as reclamações que a mãe tinha do pai e/ou que o pai tinha da mãe.

O filho(s) não sabia(m) que não era de seu pai que a mãe reclamava, e sim daquele que, outrora, fora sua alma gêmea. Difícil uma criança entender isso.O filho(s) também não percebia(m) que não era da mãe que o pai reclamava e sim daquela que, outrora, fora considerada a mulher de sua vida. Complexo para uma criança distinguir isso!

Num dia, ou numa noite qualquer, talvez esse homem e essa mulher possam se dar conta de que estão afetando, e muito, a vida do(s) filho(s) agindo assim. Afinal, os filhos são -ah, como são!- a coisa mais importante na vida de quem quis e de quem pode tê-los, não é?

E talvez um dia, quem sabe, os filhos consigam superar e perdoar seus pais porque irão entender que eles nem sabiam o que faziam, apesar de já serem adultos na época em que os filhos eram apenas crianças.
Por: Rosely Sayão Publicado na Folha de SP


QUANDO A VIDA IMITA A ARTE


"Eu sempre participava de esportes. Daí eu descobri que era possível comprar troféus. Hoje eu sou campeão em tudo".

A piada é do Demetri Martin, mas serve para simbolizar o modo como muitos brasileiros acham que a sociedade funciona: confundem o mérito da vitória com sua representação ornamental.

Quando dois fenômenos coincidem em incontáveis ocasiões, ficamos tentados a tratá-los como se constituíssem um único fenômeno, a estabelecer a partir das repetidas impressões uma relação de causalidade; ou, quando a causalidade existe, a inverter a direção da causalidade. São casos de falácia de associação.

Ninguém acreditaria que é possível melhorar a qualidade dos atletas olímpicos brasileiros meramente aumentando a produção nacional de medalhas e troféus. Mas pessoas bem educadas acreditam que,, ao alterarmos aspectos exteriores às conquistas pessoais e institucionais, estamos de fato conquistando algo além de ornamentação social.

Um exemplo era o que Frédéric Bastiat chamava de sisifismo: a crença no trabalho como um fim em si mesmo. Sociedades contemporâneas se acostumaram a pensar em renda sempre em termos de salário, o pagamento por trabalho realizado. Mas o trabalho não é um bem último, é um sacrifício instrumental para a obtenção de outros bens. Aumentar o trabalho de uma sociedade não necessariamente melhora a condição de seus membros.

Se todos os computadores do mundo parassem de funcionar ao mesmo tempo, teríamos muito mais trabalho a ser realizado, mas o mundo não ficaria mais rico. No entanto, políticas trabalhistas focam no aumento de trabalho sem que muitos percebam o empobrecimento trazido para os trabalhadores.

A luta nacional dos movimentos sindicais contra automatização de processos e flexibilidade contratual pode ter perpetuado certos empregos, mas no geral diminuiu a produtividade relativa do trabalhador brasileiro. Empregos menos produtivos podem significar mais trabalho, mas também significam uma menor recompensa ao trabalho.

A associação entre competição e recompensa também pode ser falaciosa. Nos esportes, no entretenimento, nos negócios, a competição mais acirrada costuma ser o caminho para as recompensas mais desejadas. Mas os prêmios mais altos de uma sociedade nem sempre são os mais competitivos. 

Uma corrida armamentista pode significar um desfecho infeliz para todos os participantes. Ou compare a competição para ingresso em universidades. Muitas vezes vejo os melhores alunos tomar decisões baseadas na competitividade de um curso. Enquanto a medicina é um curso disputadíssimo no vestibular, o convidativo curso de administração acaba entregando os prêmios mais altos aos seus bons profissionais.

Políticos e empresários também cometem erros similares. É bastante comum mercados muito competitivos, como o de restaurantes, darem menos dinheiro do que mercados menos competitivos, como o de tecnologia. Da mesma maneira, ser competitivo em todas as áreas não fortalece uma economia. Se os políticos conseguissem viabilizar leis que tentassem deixar o Brasil competitivo em todos os setores imagináveis, provavelmente as empresas brasileiras seriam péssimas em todos eles. A lição da vantagem comparativa é não tentar competir em todas as áreas.

Outra associação bastante comum é aquela feita entre benefícios sociais e crescimento econômico. Em toda sala de aula do país já foi dito que os países com o maior gasto em assistencialismo social são também os mais ricos do mundo. Utiliza-se os países escandinavos como exemplos da ideia de que o welfare state enriquece a população. Mas ocorre que são justamente os países mais ricos que têm mais dinheiro para desperdiçar com assistencialismo.

Países mais pobres, como os da América Latina, punem a si mesmos ao acreditarem que um gasto assistencial em níveis europeus irá corresponder à riqueza em níveis europeus. É como um carioca morador da Pavuna achar que se mudar para a Av. Atlântica irá lhe garantir a renda milionária de seus novos vizinhos. Se ele tem essa ambição, ele deveria ver o que os moradores da Av. Atlântica fizeram antes de serem milionários.

Da mesma forma, o Brasil deveria observar o caminho que Suécia e Dinamarca tomaram para que pudessem depois se dar o luxo de redistribuir mais de 25% do seu PIB.

Enquanto os brasileiros acreditarem nas mais variadas falácias de associação, continuaremos achando que proibir a reprovação letiva equivale a educar nossas crianças, que dar cotas raciais equivale a abandonar nossos preconceitos, que abaixar juros por decreto equivale a aumentar nossa poupança interna.

Enfim, continuaremos o cômico hábito de nos dar troféus sem conquistar nenhuma vitória.



Diogo Costa é presidente do Instituto Ordem Livre e professor do curso de Relações Internacionais do Ibmec-MG. Trabalhou com pesquisa em políticas públicas para o Cato Institute e para a Atlas Economic Research Foundation em Washington DC. Seus artigos já apareceram em publicações diversas, como O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Diogo é Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis e Mestre em Ciência Política pela Columbia University de Nova York.  Seu blog: http://www.capitalismoparaospobres.com

sábado, 5 de abril de 2014

A DESMORALIZAÇÃO E A SANGRIA DA PETROBRÁS

Produzir petróleo, vejam só, é prioridade da Petrobrás, segundo garantiu a presidente da companhia, Graça Foster. Essa declaração, em linguagem típica de negócios, deve ter soado como heresia em relação aos padrões da gestão petista, famosa internacionalmente por seus projetos de baixa qualidade, pela falta de foco empresarial e por um prejuízo superior a US$ 1 bilhão num único investimento. Seu valor de mercado, o 12.º maior do mundo há cinco anos, caiu para a 120.ª posição, segundo lista divulgada na internet pelo jornal Financial Times. Qualquer sinal de seriedade, nesta altura, pode favorecer pelo menos uma recuperação de imagem. Sem renegar abertamente a preferência aos fornecedores nacionais, a presidente de certa forma redefiniu as regras do jogo. Prometeu continuar comprando da indústria local, mas com duas ressalvas. As encomendas serão de acordo com a capacidade da indústria e os preços terão de ser competitivos "em relação a outras oportunidades fora do Brasil". Se continuar no posto e insistir nessa orientação, talvez consiga reconverter a Petrobrás numa empresa - uma organização de negócios com foco razoavelmente definido, metas de rentabilidade e padrões profissionais de administração.


A mudança, nesse caso, envolverá a adoção de alguns critérios vitais tanto para a Boeing quanto para a mais modesta padaria do bairro. Esses critérios foram pisoteados durante os últimos dez anos. Nesse período, a maior empresa brasileira foi subordinada a objetivos políticos e pessoais do grupo instalado no Palácio do Planalto e às conveniências de seus companheiros e aliados. Antes disso, a Petrobrás pode ter sido mal orientada em algumas fases, mas quase sempre funcionou com critérios empresariais, empenhada em procurar e extrair petróleo e gás, produzir e distribuir combustíveis e contribuir para a segurança energética do Brasil.

Com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua sucessora, os interesses empresariais da Petrobrás foram postos em segundo ou terceiro plano. Isso levou a desperdícios, comprometeu a geração de caixa e reduziu as possibilidades de investimento exatamente quando a companhia, depois da descoberta do pré-sal, teria de cumprir um programa excepcionalmente difícil e custoso.

Investimentos de US$ 220,6 bilhões estão previstos para o período entre 2014 e 2018 no recém-divulgado plano de negócios. A maior parte desse dinheiro, US$ 153,9 bilhões, deverá ser destinada a exploração e produção. Levantar esses bilhões dependerá da melhora de vários indicadores. O documento enumera os "pressupostos da financiabilidade". Será preciso manter o grau de investimento, elevar os preços de derivados até os níveis internacionais e promover parcerias e reestruturação do modelo de negócios, tudo isso sem a emissão de novas ações.

Para manter o grau de investimento e continuar atraente para os financiadores, a empresa terá de melhorar seus indicadores de endividamento e de alavancagem no prazo de 24 meses. Em outras palavras, terá de reduzir a proporção entre recursos de terceiros e recursos próprios e precisará diminuir para menos de 2,5 vezes a relação entre a dívida líquida e os ganhos antes do pagamento de juros, impostos e dividendos (Ebitda).

Não são números e objetivos escolhidos de forma arbitrária. A Petrobrás ganhou destaque na imprensa internacional, em outubro, como a empresa mais endividada do mundo, de acordo com levantamento do Bank of America Merrill Lynch. Quanto ao risco de ser rebaixada pelas agências de avaliação de crédito e perder o grau de investimento, está longe de ser imaginário.

No ano passado a Standard & Poor's alterou a perspectiva da empresa de estável para negativa. Poucos meses depois, a Moody's baixou a classificação da Petrobrás de A3 para Baa1 com perspectiva negativa, preservando o nível de investimento. Para justificar a revisão a agência citou o nível de alavancagem e a perspectiva ruim de geração de caixa nos anos seguintes.

A perda de valor de mercado afetou tanto a Petrobrás quanto a Eletrobrás, prejudicadas principalmente pela interferência política na administração das maiores estatais, convertidas em casas da mãe Joana. O loteamento de postos e o desprezo aos critérios técnicos tem sido uma das marcas principais da gestão petista. Dirigentes de grandes companhias controladas pelo governo - para nem falar da maioria dos ministros - são identificados mais pelo nome de seus padrinhos do que pela reputação profissional. Parte do noticiário sobre a prisão do ex-diretor de Refino e Abastecimento Paulo Roberto Costa tratou de suas relações com políticos do PP, do PMDB e de sua livre circulação no Congresso.

O desprezo aos padrões empresariais foi evidenciado nos fracassados projetos de associação com a PDVSA, no controle de preços de combustíveis, na baixa qualidade de vários investimentos, na desastrosa compra da refinaria de Pasadena, no Texas, e na conversão da Petrobrás em instrumento de uma política industrial com validade vencida e injustificável no século 21.

O grotesco episódio do petroleiro João Cândido, lançado ao mar em 2010 com palavrório de Lula e nenhuma condição de navegar, foi uma boa demonstração de um estilo de governo e de administração. A aprovação da compra da refinaria texana com base num sumário executivo, como confessou a presidente da República, foi perfeitamente compatível com esse estilo gerencial. Sua fama de administradora jamais foi merecida. Essa trapalhada confirma a opinião de quem nunca aceitou a lenda. Estranha, mesmo, era a presença no Conselho de Administração, então chefiado pela ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, de grandes empresários. Sua função, para o governo, seria legitimar os desmandos cometidos na empresa. Como podem ter ignorado esse detalhe?
Por: ROLF KUNTZ - Jornalisata Publicado no O Estado de S.Paulo


sexta-feira, 4 de abril de 2014

O SIBILINO CÂNTICO "CRISTÃO" DE PUTIN E OS ANTIGOS ESTRATAGEMAS SOVIÉTICOS

Na hora da propaganda, para os ex-alunos da KGB tudo vale. E Putin apresentou a “nova-URSS” como tendo “um ponto de vista conservador”.


Desde os tempos em que a Rádio Moscou incitava a população russa a resistir à invasão nazista apelando para a Virgem de Fátima nunca se vira algo igual.

Apelando para essa tática stalinista, o presidente Vladimir Putin, durante seu discurso anual à Nação no fim de 2013, defendeu o “conservadorismo” de suas políticas e erigiu-se em paladino internacional dos “valores tradicionais”, informou a agência AsiaNews.

O “inimigo” é sempre o mesmo: o Ocidente. O palavreado é surpreendente, mas obedece às antigas astúcias da máquina de propaganda soviética.

O Kremlin visa usar o tema dos “valores cristãos tradicionais” para seduzir o número crescente de ocidentais desgostosos com governos laicistas e anticristãos.

Para Putin é útil assumir a defesa da vida e da família, bem como engajar-se contra “a propaganda homossexual” que agride o senso moral de incontáveis pessoas, escreveu a agência AsiaNews.

"Sabemos que um crescente número de pessoas no mundo apoia nossa posição sobre a necessidade de defender os valores tradicionais, que constituem os fundamentos de toda nação civilizada há milênios”, disse o chefe todo-poderoso da “nova-URSS”.

Ele falou numa solene sessão conjunta da Duma, na presença de convidados, entre eles o patriarca de Moscou, Kiril.

As sondagens do sistema desenvolvido no tempo soviético apontaram os pontos sensíveis da opinião pública ocidental a serem mobilizados contra os EUA e os países que não estão sob a bota de Putin.

E este começou a bater insistentemente neles, a mandar seus enviados ao Ocidente, e a apelar para a igreja cismática de Moscou.

“Hoje muitos países estão revisando suas normas morais e éticas, cancelando suas tradições nacionais e as diferenças entre o povo e a cultura”, prosseguiu Putin com frio método.

As críticas saíram diretas contra os governos dos EUA e da Europa, que tudo fizeram para serem assim atacados.

Tais governos legalizam os “casamentos” homossexuais em decorrência de um apriorismo metafísico igualitário que exige o reconhecimento da teoria “da equivalência entre o bem e o mal”, acrescentou.

Visando enganar os ingênuos, Putin prosseguiu:

"A destruição dos valores racionais desde o alto do governo é fundamentalmente antidemocrática, porque se baseia numa noção abstrata que vai contra a vontade da maioria das pessoas”.

A Rússia, segundo ele, tem nessa matéria um ponto de vista oposto, mas não diz que ela foi e continua sendo a grande divulgadora desse principio metafísico igualitário demolidor.

Na hora da propaganda, para os ex-alunos da KGB tudo vale. E Putin apresentou a “nova-URSS” como tendo “um ponto de vista conservador”.

E de um conservadorismo que visa impedir o movimento “para baixo, rumo ao caos e às trevas”, explicou, citando Nikolai Berdiaev.

No final, o líder russo concluiu reivindicando cinicamente o papel de líder moral do cristianismo.

O chefe do Kremlin fez questão de sublinhar a diferença que haveria entre a Rússia e o rival americano: Moscou “não aspira ao título de superpotência, entendida como ambição pela hegemonia global e regional”, nem visa “ensinar aos outros como devem viver”.

Enquanto isso, na Ucrânia, suas tropas invadem, atropelam, e tentam esmagar o patriotismo dos católicos e cristãos em geral, estrangulados pela agressão indisfarçável do xará de Lênin.

A anexação ilegal da Criméia patenteou que Putin não respeita os fundamentos do Direito cristão, natural e internacional.

Nos últimos anos, o ex-coronel da polícia política soviética descobriu astutamente que é “cristão ortodoxo”, e mais recentemente, talvez à vista das seduções obtidas, passou a revestir-se de “valores tradicionais” que ele viola sistematicamente na Ucrânia.
Por: Luis Dufaur, escritor, edita o blog Flagelo Russo.




quinta-feira, 3 de abril de 2014

SERIA A CRISE UCRANIANA UMA PROVOCAÇÃO?

Então a Rússia está se unindo com China, Índia, Irã, Coréia do Norte, Vietnã, Venezuela, Nicarágua, África do Sul, Angola, Congo, Brasil, Bolívia e Equador? O que você supõe que tudo isso significa?


Quando Putin visitou Cuba alguns anos atrás, perguntaram-lhe se ele era comunista. 
Ele disse: “se for, não preciso ficar dizendo”.

“Há um considerável montante de opiniões descrevendo o anticomunismo como sendo uma obsessão de pessoas que estão incapacitadas de pensar em categorias “sensíveis” e “realistas”, escreveu Josef Mackiewicz em O Triunfo da Provocação; “elas estão, por assim dizer, afetadas por uma doença incurável, sendo, portanto, perda de tempo tratá-las. Podemos apenas descartá-los com uma encolhida de ombros”. E assim, após a queda da União Soviética, não há mais espaço para se dar à posição anticomunista. O último ponto de apoio foi destruído. A União Soviética se foi.

Será mesmo?

E se a União Soviética continuou a existir após 1991 escondida atrás da “nova” fachada democrática da Rússia? E se Rússia e Ucrânia estiverem agora aplicando a “estratégia das tesouras” contra o Ocidente? Metade dos oficiais do governo da Ucrânia têm caráter soviético. Isso é fato bem conhecido! Metade foi educada em escolas da KGB ou em outras instituições comunistas linha-dura (segundo a pesquisa de Boris Chykulay). Seria possível que eles não mais estariam recebendo ordens de Moscou? O que quer que as pessoas em cargos de responsabilidade na Ucrânia queiram transparecer, eles todos têm armas apontadas para suas cabeças – e eles sempre saberão disso. Agora o mundo todo vê a arma engatilhada e pronta para disparar.

O analista coça a cabeça. Como podemos entender um conflito entre Rússia e Ucrânia? Teria o patriotismo ucraniano tentado lidar definitivamente com as estruturas soviéticas? Será que Moscou de fato perdeu o controle? Isso pode ser verdade, embora não possamos saber ao certo. A Rússia e as ex-repúblicas soviéticas não são “transparentes” na organização política ou econômica. Esse tem sido um dos motivos de frustração para os homens de negócio e políticos do ocidente nos últimos 20 anos. Na melhor das hipóteses a situação se mantém obscura. Talvez o movimento clandestino ucraniano tenha recursos e disciplina suficientes para bater os russos em seu próprio jogo. Leve em conta os protestos recentes em Moscou com cidadãos russos agitando bandeiras ucranianas.

E então vemos os russos enviando bombardeiros carregados ao Ártico. Vemos eles mobilizando em busca de suporte político ao redor do mundo. É o caso de perguntar: estamos lidando com uma agenda?

Os analistas da grande mídia estão chocados com o reinício da Guerra Fria; enquanto isso, alguns de nós concluímos há tempos que a Guerra Fria jamais acabou. Os comunistas soviéticos continuam a governar usando a “espada e o escudo” da KGB no meio das sombras. Eles continuam a apoiar os comunistas mundo afora. Após 1991, Moscou fomentou o esforço militar comunista em Angola (contra Jonas Savimbi) e obteve sua vitória definitiva em 2002. Mesmo agora os russos continuam a apoiar os comunistas angolanos (v. Surfing Russia’s Military Cooperation With Angola). Moscou também continua a dar apoio à tomada da Venezuela por Cuba, além de ter ajudado a Nicarágua a construir sua força militar (v. Russia plans to add military bases in Nicaragua, Venezuela, other countries). Além disso, existe a aliança da Rússia com a China comunista (v.Why a Russia-India-China alliance is an idea whose time has come). A Rússia tem apoiado a causa comunista na África, América do Sul e Ásia desde 1991 sem que qualquer um no Ocidente fizesse qualquer objeção. Por que eles fazem isso então? Seria porque eles desistiram do comunismo em 1991?

Isso soa engraçado se for verdadeiro – além de completamente absurdo.

Enquanto isso acontece, devemos saber que não estamos lidando com a Federação Russa. Não, não, não e não. A dita Federação Russa é uma fachada do Partido Comunista da União Soviética para ganhar confiança dos seus inimigos – para depois providenciar a destruição deles. As palavras de Josef Mackiewicz mantêm-se verdadeiras hoje tanto quanto trinta anos atrás quando foram escritas. É um erro capital, disse Mackiewicz, tomar a União Soviética como a velha Rússia. E isso é exatamente o que estamos sendo encorajados a fazer. Os eventos de 1989 foram uma provocação. Os eventos de 1991 foram uma provocação. Os eventos de 2014 são uma provocação. “O comunismo internacional, cujo quartel general está em Moscou, não é um ‘imperialismo’ dentro das definições comuns da palavra, mas um esforço para dominar o globo, o mundo inteiro, todas as nações, para assim forçar o mundo a adotar o sistema totalitário comunista”, escreveu Mackiewicz. Se não entendermos isso, não entenderemos nada. Lênin não foi enterrado; os comunistas na África recebem suprimentos militares da Rússia e da China enquanto estas palavras são escritas. Os comunistas latino-americanos também têm recebido assistência de Moscou. Quando Putin visitou Cuba alguns anos atrás, perguntaram-lhe se ele era comunista. Ele disse: “se for, não preciso ficar dizendo”. (N.T.: Na mídia em inglês o termo usado foi “Call me a pot, but heat me not”. Algo como “Me chame de panela, mas não me aqueça”, uma charada.)

Que tipo de político dá esse tipo de resposta a uma pergunta direta? “O comunismo internacional em sua presente forma é um tipo de PESTILÊNCIA psicológica”, escreveu Mackiewicz, “e nenhum fator econômico ou nacional tem a ver com isso. Liberdade, a verdadeira, aparece apenas quando se derruba o comunismo e se destrói seu sistema, independente da língua que ele adota”. Não importa se a KGB é chamada de FSB ou se a URSS é chamada de Comunidade dos Estados Independentes ou se Putin prefere ser chamado de Panela – desde que não esquentem ele. Putin é um comunista e a Federação Russa é uma formação comunista. As estruturas governamentais da ex-União Soviética são comunistas, seus objetivos ainda são comunistas e seus métodos ainda são comunistas. Os desafortunados contrarrevolucionários da América que estão perante a probabilidade de uma imposição comunista em seu próprio solo não fazem ideia do que estão lidando. Mesmo que eles tomem Putin por ditador, dificilmente eles podem esperar conseguir entender as armadilhas comunistas nas quais eles todos caíram.

Então a Rússia invadiu a Crimeia? Então a Rússia está levando 30 bombardeiros nucleares até Voronezh? Então a Rússia está posicionando suas forças na Bielorússia? Então a Rússia está se unindo com China, Índia, Irã, Coréia do Norte, Vietnã, Venezuela, Nicarágua, África do Sul, Angola, Congo, Brasil, Bolívia e Equador? O que você supõe que tudo isso significa?

Um único punho cerrado é o que significa. Os comunistas estão juntando suas forças, pressionando por domínio em campo aberto, pois sabem que o Ocidente é fraco demais para oferecer séria resistência.

Por acaso imaginamos que a falseada morte do comunismo – essa mentira de 22 anos – foi motivo de risadas? Por acaso esperamos um comunista saindo pelado de dentro do bolo e dizendo “Ha, Ha, éramos comunistas o tempo todo! Não foi incrível nossa artimanha?” Ou a mentira acaba de modo mais realista com uma arma na mão e uma saraivada de mísseis? Está na hora também de eles trazerem abaixo o sistema financeiro ocidental, quebrar o dólar americano e quebrar os mercados ocidentais. Os russos e os chineses usarão ouro para quebrar as moedas de papel? Já estamos para ouvir falar de um suposto colapso do sistema de “shadow banking” chinês, dado que o premiê chinês alertou que devemos nos preparar para uma “onda de falências”. Estaríamos julgando a floresta pelas árvores que estamos vendo?

Conforme escrevi para um amigo na semana passada, está muito cedo para dizer qualquer coisa sábia sobre a Ucrânia. A política do país está atolada numa disputa bizantina pela posse do poder em uma república soviética que teve uma leva de lacaios expurgados que deram lugar a outros, com a complicação adicional da agitação pública. Talvez estejamos vendo a execução de um plano B onde o exército russo entra no jogo após terem falhado as “estruturas soviéticas” que supostamente deveriam manter o país em ordem. Ainda assim, algo indica que tudo o que aconteceu fora previsto muito tempo atrás. Não é acidental, por exemplo, que a Transnístria foi formada como um Estado pró-Rússia não reconhecido entre a Moldávia e a Ucrânia (similar aos casos da Abecásia e Ossétia do Sul na Geórgia). Também parte dos desígnios era a união militar total entre Bielorússia e Rússia (assinado por Boris Yeltsin em 1999). Não obstante há a manutenção de uma frota russa no Mar Negro. Por qual motivo essa frota, com toda as despesas que gera, está sendo mantida? Tal disposição não poderia ser casual, mas sim, como eu gostaria de sugerir, todo elemento faz parte de um desígnio; isto é, para manter um semicírculo de posições militares em volta da Ucrânia (com a Transnistria a sudoeste, Minsk ao norte, Sevastopol ao sul e a própria Rússia no leste). Em todos esses atos os russos deixaram claro que querem manter firmemente a Ucrânia sob seu domínio com ou sem agentes exercendo estrito controle no governo de Kiev. A Ucrânia está cercada e pode receber o golpe de misericórdia a qualquer momento. As preparações para um duplo invólucro do país tiveram início em 1991 quando foi ostensivamente dada à Ucrânia a independência. Isso basicamente mostra, antes de tudo, qual foi o espírito e a intenção da “independência” então cedida.

Por conta do governo de Kiev ser em grande parte uma charada desde 1991 e a política da Ucrânia ter sido a política da intriga e da maquinação russa, não é de se estranhar que Putin insista que a Ucrânia não é um “país de verdade”. O colapso de toda a União Soviética foi uma charada em que fomos todos ludibriados. Em toda nossa ingenuidade, nós de alguma formas viemos a pensar que a Ucrânia é algo que pode e deve ser defendido – embora não tenhamos os meios e tampouco tenhamos feito qualquer preparação séria. Fomos pegos agora de guarda baixa. Queremos ajudar o povo ucraniano. Queremos fazer com que o estado marionete da Ucrânia se desvencilhe de seu titereiro da KGB. Talvez, com efeito, a história dos fracassados agentes provocadores em Kiev não seja tão estranha, pois a história dos agentes provocadores são notáveis pelos seus “Domingos sangrentos” e Revoluções de Março. É totalmente possível que falsas revoluções possam vir a se tornar reais, pois como ensina o conto de fadas, até mesmo Pinóquio queria ser um garoto de verdade.

Então nós esperamos pelos eventos, talvez sabendo que toda a coisa foi designada para ser uma provocação. E mesmo se esses eventos não forem uma provocação, ainda assim eles são provocação, pois Moscou não pode deixar de usá-los como tais e nós não podemos deixar de nos enganar.
Por: Jeffrey Nyquistt Do site: http://www.jrnyquist.com/
Tradução: Leonildo Trombela Junior

quarta-feira, 2 de abril de 2014

MEU 1 DE ABRIL

Quando um acontecimento histórico faz aniversário em números redondos, ocorre o que os jornalistas chamam de efeméride. Foi o aconteceu no início deste mês, quando a dita Revolução de 1964 completou seus 40 anos. O leitor já deve ter notado que sempre busco fugir ao lugar comum. Assim sendo, me abstive de contar o que estava fazendo no dia 1° de abril de 1964. Mas já recebi alguns mails exigindo o relatório e, já que estamos mais distantes da data - e do lugar comum - vou contar. Aliás, já devo ter contado em crônicas passadas.

No dia 1° de abril, com a arrogância de um estudante de 17 anos - eu os completaria no dia seguinte - eu defendia bravamente as instituições democráticas, na sede do Sindicato dos Ferroviários, em Santa Maria, do ataque brutal dos militares. Trepado em uma mesa, eu deitava o verbo contra Lacerda, contra as Forças Armadas e contra os reacionários e golpistas em geral. Conclamava os operários à resistência contra o golpe e a eles oferecia o importante apoio da classe estudantil santa-mariense. Na época, se algum leitor está lembrado, a fórmula mágica para resistir a ditadura era a aliança estudantil-operário-camponesa. Verdade que a maioria dos estudantes jamais havia visto um camponês de perto, mas isto pouco importava. Havia também aquele outro slogan, povo unido jamais será vencido, refrões que repetíamos como mantras para exorcizar o mal.

Esperávamos, no sindicato, a tomada de posição do general Pope de Figueiredo, comandante da guarnição local. Confiávamos que, se a base aérea de Camobi, sediada em Santa Maria, tomasse o partido do povo, a ditadura estaria conjurada. Pois justo na hora em que eu discursava, com o ardor de meus 17 anos, chegou a tomada de posição do general Pope: trezentos homens armados, com baionetas caladas, cercaram o prédio, chamado pomposamente de Casa Rosada. Enquanto eu falava, o salão ia se esvaziando. Eu, que não sabia do que acontecia lá fora, desci da mesa muito sem graça, achando que meu discurso não estava convencendo ninguém.

Não era bem o caso. Mais convincente era a tomada de posição do general. Fiquei no prédio, com mais dez operários, um deles bêbado e armado com um facão. Queria enfrentar sozinho as baionetas. Tive de puxá-lo para dentro e fiquei me perguntando o que fazia ali. Ninguém foi preso, nem o seria, desde que abandonasse o prédio. Acabei indo embora, com a terrível sensação de herói ignorado, sem aplausos e nem mesmo vaias.

De atitudes como esta - ou semelhantes - se gabaram na semana passada escritores e cronistas de não poucos jornais. Eu, se por algum tempo me orgulhei de minha modesta participação nos acontecimentos daquele dia, hoje a deploro profundamente. Como todos os jovens, eu era um perfeito idiota. Seguia atrás de palavras de ordem, em geral oriundas de Pequim, Moscou ou Havana, e as defendia como quem defende uma verdade sagrada. Não sabia, na época, que guerrilheiros vinham sendo preparados em Cuba para, sob o comando de Julião, tomar o poder no país e transformá-lo em mais uma republiqueta atrelada a URSS. Era a segunda tentativa do Kremlin de tomar o poder no país. A primeira, fora a de 35, liderada por Luís Carlos Prestes e mais três ou quatro aventureiros internacionais.

Hoje, está mais que visto: não fossem os militares, estaríamos vivendo sob regime comunista. Com a queda do Brasil, não seria fácil de imaginar o Chile e Argentina, que já vinham sendo infiltrados pelos comunistas, sob o jugo de Moscou. Não seria também de duvidar que, com o continente latino-americano subjugado, o regime soviético tivesse mais alento e inclusive sobrevivesse mais algumas décadas. Não é demais afirmar que, sem a atitude dos militares em 64, o horror talvez tivesse dobrado a esquina do século.

Mas a vitória das Forças Armadas foi ilusória. Venceram a primeira batalha, é verdade. Mas perderam o combate. Hoje, transcorridas apenas quatro décadas, metade de uma vida de homem, menos que a ditadura de Fidel Castro, os militares foram jogados na famosa lata de lixo da História, com a pecha de vilões Os vilões da história não só tomaram o poder como posam de heróis e recebem régias aposentadorias, pelos (des)serviços prestados à Pátria. Os grandes vencedores de 64, costumo dizer, foram as esquerdas que, na época, pretendiam instalar no Brasil um regime soviético. Mas os tempos mudaram, o Muro caiu, a URSS afundou. Hoje, no poder, as esquerdas não têm mais moral para empunhar bandeiras socialistas.

Há quem creia, é verdade, que o Brasil de hoje se encaminha ao comunismo. Não acredito. Não há mais clima. Se o PT tivesse ganho em 1980, quando o mundo ainda tremia ante qualquer arroto da URSS, talvez. Agora é tarde, camaradas.

Naquele distante primeiro de abril, eu, idiota atroz, sem ser marxista nem membro do Partido Comunista, fazia o jogo dos marxistas e comunistas. Se alguém hoje ostenta tais bravatas com orgulho, eu as exibo com vergonha. Mas a vida é isso mesmo. Bom senso não é o quinhão dos jovens. 
* 12/04/2004
Por: Janer Cristaldo Do site: http://cristaldo.blogspot.com.br/



FEITIÇO INVERTIDO

Tantas o governo fez com a Petrobrás, tanto usou e abusou politicamente da empresa que acabou criando um passivo que pode se voltar contra seus interesses na campanha pela reeleição da presidente Dilma Rousseff.


Demorou, mas a conta das festividades chegou. A imagem do então presidente Luiz Inácio da Silva de macacão e mãos lambuzadas de petróleo anunciando a autossuficiência do Brasil tendo ao lado a ministra das Minas e Energia, apresentada como responsável pelo êxito que não se realizou, é um contraponto constrangedor ante a realidade atual.

Perda expressiva do valor de mercado, loteamento de cargos, manejo artificial de preços e negócios esquisitos como esse da compra da refinaria no Texas ao custo inicial de US$ 360 milhões para um gasto final de US$ 1,18 bilhão, são alguns dos pontos que o PT - sempre acostumado a usar a Petrobrás para atacar os adversários - será desafiado a explicar.

Não espanta que a presidente Dilma, quando ministra da Casa Civil e presidente do Conselho de Administração da Petrobrás, tenha avalizado a compra da refinaria, conforme revelou o Estado.

Afinal, o negócio só poderia mesmo ter sido realizado com autorização do colegiado que, de acordo com a ata da reunião realizada em 3 de fevereiro de 2006, tomou a decisão por unanimidade.

Espantosa é a justificativa dada por ela ao jornal. A presidente disse que foi induzida ao erro por informações incompletas contidas em pareceres técnicos fornecidos pela diretoria internacional da empresa.

Dois anos depois, segue esclarecendo a assessoria do Palácio do Planalto, as informações completas vieram à tona. Se fossem conhecidas, diz a nota, "seguramente" o negócio não teria sido aprovado pelo conselho.

Tal esclarecimento depõe contra os atributos de competência e austeridade da profissional Dilma Rousseff - ao menos da forma como ela é apresentada em palanques -, além de não fazer jus à indispensável transparência no tocante à administração pública.

Há algum tempo essa transação com a refinaria americana vinha sendo questionada sem que o governo se desse ao trabalho de esclarecer detalhes a respeito da decisão, deixando para fazê-lo apenas depois de divulgado o conteúdo da ata da reunião do conselho, numa explicação, convenhamos, obscura.

Por ela, todo o Conselho de Administração da Petrobrás autorizou a compra de uma refinaria ignorando cláusulas do contrato que implicariam desembolso mais de três vezes maior que o valor original aprovado.

Fica, assim, aberta uma avenida por onde a oposição poderá abrir alas e pedir passagem para usar o tema Petrobrás na campanha eleitoral. O PT não terá direito a reclamar, pois foi o primeiro a incluir o assunto na agenda eleitoral.

Agora, no entanto, a situação se inverte, pois habituado a ter a empresa como instrumento de ataque e vanglória, o partido estará na defensiva tentando evitar prejuízos decorrentes do uso da empresa que tantos benefícios políticos proporcionou.

No limite. Sobre a possibilidade de a presidente Dilma Rousseff ganhar as eleições no primeiro turno há na seara governista duas visões diferentes.

Visto de fora do Planalto, o panorama indica que não há a menor hipótese. Já pela ótica palaciana ainda há boas chances, desde que mantidos os atuais índices de intenções de votos.

Para isso é preciso estreitar ao máximo a margem de erros a serem cometidos e, portanto, uma decisão está tomada: enquanto puder a presidente não irá a debates com os adversários.

A avaliação é a de que no primeiro momento Dilma só teria a perder e os oponentes tudo a ganhar.

Autocombustão. Os arautos do enfrentamento com o Congresso pareciam interessados em "cavar" uma derrota para o governo ao insistir na votação do Marco Civil da Internet na sessão de ontem da Câmara, a despeito dos alertas em contrário do presidente da Casa, Henrique Eduardo Alves.

A ponderação acabou prevalecendo, mas a insistência deu a impressão de que havia gente no Planalto em busca de pretexto para radicalizar.

Ao microfone. Não obstante alguns conselhos de aliados para que deixe o Senado em prol de maior mobilidade eleitoral, o tucano Aécio Neves não pretende abrir mão da tribuna e fica no exercício do mandato até a convenção do PSDB, em junho.
Por: Dora Kramer - O Estado de S.Paulo

O POPULISMO E A LEI DA ACUMULAÇÃO DAS BURRADAS

Burrada gera burrada e tende a crescer em espiral, como os preços inflados, quando a besteira é realimentada pela mentira. No Brasil, essa combinação de erros levou à superinflação, nome inventado para marcar a tênue diferença entre a hiperinflação e o desastre brasileiro dos anos 80 e começo dos 90. Proscrito por algum tempo, o jogo está consagrado, novamente, na rotina brasiliense. O socorro de R$ 12 bilhões às elétricas, para atenuar os efeitos de uma política populista de tarifas, é o mais novo lance desse jogo. O Tesouro gastará R$ 4 bilhões além dos R$ 9 bilhões previstos no Orçamento e a Câmara de Comercialização de Energia, um ente privado, tentará obter no mercado um financiamento de R$ 8 bilhões, pagando juros, naturalmente. Os consumidores serão mais uma vez poupados, neste ano, e só depois de votar receberão a conta aumentada.


Mentira é uma boa palavra para designar a maquiagem das contas fiscais e a tentativa de reprimir - e falsificar, portanto - os índices de preços. No caso das contas públicas, também tem sido usada, com sucesso internacional, uma expressão mais suave: contabilidade criativa. A nomenclatura faz pouca diferença. O importante é reconhecer a realimentação e a multiplicação dos erros quando se tenta disfarçar os problemas, em vez de resolvê-los. O efeito circular é claríssimo na crise argentina. Também é indisfarçável na baderna econômica da Venezuela, marcada nas páginas da História, de forma indelével, pela escassez de papel higiênico. Haja páginas.

O exemplo argentino é um modelo para os governantes populistas, em geral muito interessados nos benefícios políticos e pouco preocupados com os custos efetivos para a economia. Para disfarçar a inflação o governo da Argentina tem falsificado os indicadores e tentado tabelar ou congelar os preços. Como o fracasso é inevitável, amplia a vigilância e tenta levar o controle até a origem dos produtos. Com isso, impõe perdas a agricultores e pecuaristas e cria um conflito entre a administração central e o setor mais eficiente da economia. De passagem, cria algum obstáculo à exportação de alimentos, para derrubar os preços internos, e compromete a receita cambial. Como o Executivo também usa os dólares da reserva para liquidar contas fiscais, a combinação das trapalhadas produz ao mesmo tempo inflação crescente, insegurança na produção e escassez de moeda para os pagamentos internacionais.

Para poupar reservas o governo impõe controles severos às compras de moeda estrangeira e aumenta o protecionismo. Também esse esquema tende ao fracasso, mas produz algum efeito quando um governo amigo se dispõe a aceitar o desaforo comercial. Neste caso, esse governo amigo tem como endereço principal o Palácio do Planalto, em Brasília. A tolerância é praticada em nome de uma solidariedade nunca retribuída e, de forma implícita, de uma liderança regional imaginária e sempre desmentida na prática.

A solidariedade tem um claro componente ideológico. O estilo dos Kirchners tem sido uma evidente inspiração para o governo brasileiro. Mas as condições no Brasil são um tanto diferentes e têm sido menos propícias, pelo menos até agora, a algumas iniciativas mais audaciosas. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ainda funciona sem interferência do Executivo. O PT conseguiu, pelo menos durante algum tempo, impor sua marca ao velho e respeitável Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mas a ação foi desastrada e desmoralizante. Não se conhece, até hoje, nenhuma tentativa semelhante em relação ao IBGE.

Sem manipulação direta dos índices, a maquiagem da inflação ocorre diretamente nos preços, por meio, por exemplo, da redução das contas de eletricidade, da imposição de perdas à Petrobrás e do congelamento das tarifas de transporte urbano. Seria politicamente muito mais complicado tentar mexer nos indicadores produzidos pelo IBGE. Mas a interferência direta na fixação de preços dispensa o governo desse risco. Impõe, em contrapartida, uma porção de outros problemas.

O congelamento de tarifas de transporte público resultou em perdas para governos municipais e estaduais, incluídos os do PT. Recursos para investimentos e até para ações rotineiras tornaram-se mais escassos, mas o reajuste de tarifas é hoje politicamente mais difícil do que no ano passado.

O esperado socorro do governo federal - uma das apostas do prefeito Fernando Haddad - também está atrasado e é pouco provável, porque as contas do Tesouro Nacional estão em más condições. Se algum socorro aparecer, será uma surpresa, porque a meta fiscal anunciada no mês passado pelo ministro da Fazenda parece cada dia mais inacessível. O aumento das despesas para socorrer o setor elétrico é uma sangria a mais para o Orçamento federal.

Se a presidente insistir em poupar os consumidores, será preciso compensar os gastos adicionais do subsídio às contas de eletricidade. O ministro da Fazenda mencionou o possível aumento de impostos e a reabertura do Refis, o refinanciamento de dívidas tributárias. Mais uma vez o balanço fiscal dependerá de receitas especiais, como os pagamentos iniciais do Refis, os dividendos do BNDES e o pedágio pago pelas concessões de infraestrutura. Se as agências classificadoras aceitarem a jogada, talvez se possa evitar a redução da nota de crédito soberano.

Um pouco mais de seriedade na gestão das contas públicas e no combate à inflação pouparia ao governo muitas complicações e livraria o País de perdas injustificáveis. Combate sério à inflação inclui o uso mais eficiente do dinheiro público e a ação realmente autônoma do Banco Central. O Brasil nada ganhou com a redução voluntarista dos juros. A inflação subiu e foi preciso apertar de novo a política monetária. Também nada ganhou com a manipulação de preços e tarifas. Burradas só geram problemas e o esforço para disfarçá-los envolve novas burradas, como a solução improvisada para o problema das elétricas.
Por: ROLF KUNTZ É JORNALISTA Publicado no Estadão