terça-feira, 24 de junho de 2014

A POLÍTICA DA ESTAGFLAÇÃO E DO ATRASO INDUSTRIAL

A emperrada economia brasileira está sujeita a dois dos governos mais desastrosos do mundo, o da presidente Dilma Rousseff, gerente da estagflação, e o de sua colega Cristina Kirchner, chefe da diplomacia comercial do Mercosul e dona, portanto, da palavra final em qualquer negociação relevante. Isso vale para as discussões com parceiros de fora, como a União Europeia, ou para os arranjos internos, como o acordo bilateral para o setor automotivo – revisto mais uma vez segundo os critérios da Casa Rosada. De janeiro a maio deste ano o Brasil exportou para os Estados Unidos produtos no valor de US$ 10,51 bilhões, pouco mais do que o vendido para o Mercosul, US$ 10,13 bilhões, e muito mais do que o embarcado para a Argentina, US$ 6,19 bilhões. As exportações para o mercado argentino foram 18,6% menores que as de um ano antes, pelas médias diárias, enquanto as vendas para os Estados Unidos ficaram 13,2% acima das contabilizadas no mesmo período de 2013.


Nenhum outro mercado aumentou tanto a absorção de produtos brasileiros, segundo registros do Ministério do Desenvolvimento. Indústria e Comércio Exterior. Mas o ministro da Fazenda, Guido Mantega, ao explicar o pífio crescimento econômico do Brasil no primeiro trimestre, 0,2%, apontou de novo as condições do mercado internacional, incluída a desaceleração americana, como principais entraves à expansão brasileira. Como de costume, ele descreveu um mundo bem diferente daquele reconhecido por qualquer observador razoavelmente atento e informado.

De janeiro a abril, 50,36% das exportações brasileiras para os Estados Unidos foram de manufaturados. Esse é o último período com informações detalhadas sobre a composição do comércio com cada parceiro. Nesses quatro meses, as vendas de manufaturados corresponderam a apenas 35,6% da receita geral. A dos básicos, a 48,9%. Somados os semimanufaturados, a parcela das commodities correspondeu a 61,6% do total (outros 2,8% ficaram na categoria de operações especiais).

A participação dos manufaturados continuou em queda. De janeiro a maio, esses produtos proporcionaram 34,8% do total faturado. O resto – quase dois terços – veio das commodities, principalmente dos básicos, 50,3% das vendas totais.

O Brasil assume, cada vez mais claramente, o papel de fornecedor de matérias-primas, principalmente no comércio com a China e outros países da Ásia. Até abril, os manufaturados foram só 3,09% das exportações para o mercado chinês. Em contrapartida, a China exporta principalmente manufaturados para o mercado brasileiro e, de quebra, toma do Brasil fatias crescentes do comércio com os latino-americanos.
O Brasil assume, cada vez mais claramente, o papel de fornecedor de matérias-primas, principalmente no comércio com a China e outros países da Ásia

Mas há nessa história um aspecto paradoxal, pelo menos à primeira vista. Cerca de metade das vendas brasileiras para os Estados Unidos ainda é formada por manufaturados. O peso desses produtos nas vendas à União Europeia é bem menor, 34,96% de janeiro a abril, mas, ainda assim, muito maior que no comércio com os parceiros da Ásia. No entanto, a indústria brasileira perde espaço no mercado externo, incluída a vizinhança latino-americana, e até no mercado interno. Aqui, a participação de fornecedores estrangeiros tem crescido há vários anos e passou de 20,4% no primeiro trimestre de 2012 para 22,5% dois anos depois, segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Em resumo: algumas indústrias conseguem manter presença no mercado americano e também – com dificuldade crescente – no europeu, enquanto a maior parte do setor manufatureiro perde espaço em quase todos os mercados. Montar uma história clara e coerente com esses pedaços é uma boa tarefa para pesquisadores, mas pelo menos alguns detalhes parecem evidentes. Um deles é a acomodação da maior parte do setor industrial no comércio com economias em desenvolvimento, quase todas menos industrializadas que a brasileira. Hoje até esse papel é inseguro, por causa da presença crescente de fortes competidores, especialmente asiáticos, na América Latina e até no Mercosul. Essa acomodação é denunciada também pelo baixo grau de inovação, discutido quarta-feira no Fórum Estadão – Inovação, Infraestrutura e Produtividade. O protecionismo, outro detalhe importante, é obviamente parte dessa história.

O estímulo à modernização e à busca de competitividade teria sido, com certeza, maior se o Brasil houvesse buscado acordos comerciais com os países mais avançados, como os da América do Norte e da Europa, mas a diplomacia econômica brasileira preferiu outro caminho a partir de 2003. O governo recusou o projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), no começo da primeira gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e fixou como prioridade a integração Sul-Sul.

O acordo com a União Europeia poderia ter aberto uma porta no mundo mais avançado, mas a aliança com o protecionismo argentino, depois convertida em sujeição, entravou as negociações. Enquanto isso, outros emergentes com facilidade de acesso ao mercado europeu, como a Turquia, consolidavam suas posições. Os demais Brics – Rússia, Índia, China e África do Sul – jamais se juntaram ao delirante e anacrônico projeto terceiro-mundista do governo brasileiro.

Alguns capítulos dessa história são temas do dia a dia: a tributação sobre o investimento e a exportação, a infraestrutura insuficiente e ruim, o atraso educacional, agravado pelas prioridades mal escolhidas, o excesso de gastos e o desperdício do dinheiro público, a tolerância à inflação elevada e o intervencionismo desastrado. As tentativas de maquiar as contas públicas e a inflação ilustram de maneira pitoresca a baixa disposição do governo de reconhecer e de resolver problemas.

O investimento reduzido a apenas 17,7% do produto interno bruto (PIB) no primeiro trimestre, 0,5 ponto abaixo do nível já ridículo de um ano antes, 18,2%, resume boa parte do quadro: incompetência governamental somada à crescente e muito compreensível insegurança do setor privado. É o Brasil em rápido processo de subdesenvolvimento.
Por: Rolf Kuntz  Fonte: O Estado de São Paulo, 7/6/2014

O JARDIM DA INVEJA DE PIKETTY


O ressentimento é a única emoção que pode durar a vida inteira e que nunca desapontará você. Em comparação, todas as demais emoções são passageiras e falíveis. Eu tentei odiar alguém por anos; isso, contudo, revelou-se impossível: o ódio desaparece como as cores das flores prensadas. Mas o ressentimento! Ele é a solução perfeita para o seu fracasso na vida. E, graças a Deus, todos nós cometemos falhas em algum sentido ou outro, pois nada seria tão insuportável, causando tanto ressentimento, quanto o sucesso total.

O sucesso dos outros fomenta o ressentimento, especialmente o sucesso em uma área na qual você gostaria de ser bem-sucedido. Sempre que eu leio um trecho de prosa maravilhosa, eu experimento o prazer dessa leitura, é claro; mas ele, muito antes, mistura-se com a irritação e, por fim, com o ressentimento. Por que o meu semelhante é capaz de escrever algo mais elegante, mais perspicaz, mais poético e mais conciso do que eu? O que ele fez para merecer o seu talento? A sorte dos escritores de língua inglesa é que Charles Dickens, por exemplo, tinha muitos e graves defeitos, pois, caso contrário, a genialidade autoevidente e transcendente de alguns dos seus parágrafos os paralisaria, minando a sua vontade de pegar caneta e papel ou de mexer os dedos no teclado.

Como se costuma dizer nos romances russos, chega de filosofia. Vamos agora descer da atmosfera rarefeita da abstração e nos deslocar para a realidade sórdida de um fenômeno real — neste caso, o fenomenal sucesso de um livro chamado Capital no Século XXI, do francês Thomas Piketty. Ele está vendendo tão rápido que as impressoras não conseguem acompanhar a demanda. Não se encontra a obra nas livrarias, mesmo (nas palavras de Lane, o mordomo do personagem Algernon em The Importance of Being Earnest, de Oscar Wilde) com dinheiro vivo.

Isso é realmente impressionante, uma vez que Thomas Piketty não é Dan Brown, o qual vende tolices abertamente supersticiosas escritas em prosa abominável para os crédulos pós-religião. Não: o livro de Piketty é grande, com centenas de páginas, e está recheado de dados misteriosos, que agora temos de chamar de fatos. Felizmente, eu comprara uma cópia desse livro quando ele apareceu pela primeira vez na França; e, em razão da sua rápida ascensão ao status de ícone internacional, eu tenho a esperança de que a minha edição original seja, no momento oportuno, considerada uma preciosa relíquia sagrada com propriedades curativas.

Obviamente, ter comprado um livro e tê-lo lido não são a mesma coisa. Infelizmente, apesar do seu tamanho e do seu peso, eu o perdi. Mas eu o carregava comigo por um tempo, assim como, há muitos anos, quando era um estudante de medicina, eu carregava comigo um livro de patologia, na esperança de que eu aprenderia o seu conteúdo por meio de um processo de osmose através das capas. No entanto, concluí que tinha de abri-lo e aprender apenas o suficiente para passar nos exames. Desnecessário dizer, eu esqueci tudo desde então.

Eu não costumo escrever sobre livros que não li; e eu suponho que, em minha vida, devo ter analisado pelo menos uns 500 livros. Seria falsa modéstia negar que eu li todos eles, incluindo muitas vezes as notas de rodapé, bem como negar a minha solidariedade e a minha empatia com os autores, até mesmo com os autores de livros tão ruins que eu considerava apenas ético fazê-lo — e isso apesar do fato de que não é preciso comer o pote inteiro de manteiga para saber que ela está estragada.

Todavia, duas ideias da obra de Piketty parecem ter sido discutidas com maior vigor em todas as análises que li sobre o seu livro; assim, eu suponho que elas devem representar o cerne daquilo que ele escreveu.

A primeira ideia é a de que há, em relação ao valor do capital, uma tendência de longo prazo a aumentar mais rapidamente do que o ritmo de crescimento da economia como um todo; e, já que a maioria das pessoas depende, para a sua sobrevivência, do seu trabalho em vez do seu capital, a desigualdade de riqueza só pode aumentar, chegando ao ponto de se tornar social e politicamente insustentável. Isso pode ser colocado em termos malthusianos: o valor do capital aumenta geometricamente, ao passo que o valor do rendimento do trabalho aumenta aritmeticamente. Ou, de novo, em termos marxistas: "Em uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes. (...) Em seguida, começa uma era de revolução social."

Mas Piketty não é um revolucionário; muito sensatamente, ele deseja evitar uma agitação violenta. Os meios através dos quais ele propõe isso é a sua segunda ideia: um imposto global sobre o capital — presumivelmente, para atingir realmente o seu desejado fim de uma maior igualdade, um imposto substancial.

Em primeiro lugar, analisemos a primeira ideia. Eu hesito em expor o meu próprio caso mais uma vez diante do público, mas alego a atenuação de que, pelo menos, trata-se de um assunto sobre o qual sou relativamente especialista. Como me prejudica o fato de que a proporção entre a riqueza de Bill Gates e a minha excede o quociente entre a minha riqueza e a de alguém que se encontra sob os cuidados do assistencialismo estatal? Eu me considero uma pessoa afortunada: eu nunca passei por quaisquer privações e dificuldades, pelo menos por nenhuma que não fosse a consequência do meu próprio comportamento ou das minhas próprias escolhas. Já fui pobre, mas não passei fome. Jamais sofri injustiça flagrante, exceto algumas detenções injustas em países da má fama (foi culpa minha tê-los visitado, embora, é claro, eu os tenha adorado).

A fortuna de Bill Gates só me prejudica se eu deixar o ácido da inveja e do ressentimento corroer a minha mente. Isso não significa dizer que algumas fortunas não possam ter sido adquiridas de maneira imoral e ilícita: por exemplo, as fortunas de muitos oligarcas russos. Há algo de errado com essas riquezas não porque elas são muito maiores do que a minha, mas sim porque elas foram adquiridas de forma imoral e ilícita. Não há dúvida de que existem muitas áreas cinzentas entre a legitimidade completamente branca e a escura negritude da desonestidade absoluta, mas as óbvias incertezas da vida devem ser suficientes para refrear e conter o nosso ressentimento.

Quanto ao imposto sobre o capital, Piketty está certo ao dizer que ele tem de ser global, pois, caso contrário, haveria fugas de capitais ou restrições locais muito severas sobre os movimentos de capitais — e isso não seria economicamente produtivo ou propício à igualdade. Um imposto global sobre o capital, porém, exigiria uma autoridade mundial para estabelecê-lo, arrecadá-lo e impingi-lo — com efeito, uma espécie de União Europeia gigante. Sinto-me feliz porque não estarei vivo para ver isso ocorrer, mas eu duvido que alguém, nascido ou não nascido, chegará a ver isso acontecer, pelo simples motivo de que os chefes supremos desse governo mundial precisariam de um paraíso fiscal no qual colocar o seu próprio dinheiro.

Eu suspeito que o enorme sucesso desse livro de Piketty seja uma homenagem ao nível de ressentimento que impera no mundo — e não o resultado de uma sede por conhecimento, especialmente entre aqueles indivíduos suficientemente ricos para comprá-lo, usando-o, em grande medida, como um reles acessório. A verdade, como Edward Gibbon nos ensina, raramente encontra uma recepção tão favorável no mundo. Eu posso estar errado, pois ainda não li a obra. Entretanto, posso invejar o seu sucesso.

Theodore Dalrymple é médico psiquiatra e escritor. Aproveitando a experiência de anos de trabalho em países como o Zimbábue e a Tanzânia, bem como na cidade de Birmingham, na Inglaterra, onde trabalhou como médico em uma prisão, Dalrymple escreve sobre cultura, arte, política, educação e medicina. Além de seu trabalho em medicina nos países já citados, ele já viajou extensivamente pela África, Leste Europeu, América Latina e outras regiões.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

PALMADA: EM CASA MANDO EU!

Quem decide acerca da religião e dos valores éticos ensinados em domicílio são os pais, e nunca o Estado.


A tal "lei da palmada", recente criação do Congresso Nacional, representa uma invasão abstrusa do Estado no recesso do lar. Com efeito, reza a Constituição Federal: "A casa é asilo inviolável, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.” (Art. 5º XI). Pois é! O Estado quer penetrar à chucha calada nas residências brasileiras, determinando como os pais devem educar os filhos.

Ninguém, em sã consciência, aprova qualquer medida física, violenta, a ser infligida contra crianças. No entanto, para coibir o excesso, já existem o Código Penal Brasileiro e leis esparsas.

Um amigo me contou que num restaurante presenciou a cena na qual uma criança, completamente fora de si, desobediente e agressiva, desferiu um tapa no rosto da mãe. O que fazer nessa situação? Segurar o referido infante energicamente pelos braços e levá-lo à força para fora do recinto seria um comportamento que se subsome ao tipo da novel lei?

No fundo, a "lei da palmada" é inconstitucional. Demais, trata-se de um precedente gravíssimo de inserção de ideologias totalitárias no seio da família, pois, atrás dessa lei demagógica poderão vir outros regramentos de cunho doutrinário. As entidades que tutelam os direitos das crianças deveriam ser as primeiras a propor ações judiciais com vistas em extirpar a aludida norma legal do ordenamento jurídico.

Em casa mando eu! A frase, tão comum nas conversas entre nossos patrícios, denota um princípio elementar do Estado laico. Quem decide acerca da religião e dos valores éticos ensinados em domicílio são os pais, e nunca o Estado.

Quem delibera a propósito do modo de educar os filhos, tornando-os pessoas solidárias e não criaturas egoístas e despóticas, são os pais e jamais o Estado!
Por: Edson Luiz Sampel, doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma e membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp).

Publicado no Diário do Comércio.

LEI DA PALMADA INSTITUI A PATERNIDADE ANÁLOGA À ESCRAVIDÃO

Idealizada por pesquisadores da USP, com o apoio da ONU, a criminalização da palmada tem como objetivo abolir o pátrio poder, impondo às famílias a tutela totalitária do Estado.


O clima bananeiro em que foi aprovada a Lei da Palmada pode ser medido pela entrada de Xuxa Meneghel no plenário do Senado.

O casamento, longe de ser uma expressão do amor romântico, é uma instituição do contrato social. A tradicional frase “enfim sós”, que os noivos se dizem mutuamente ao iniciar a lua de mel, não passa de uma figura de retórica. A rigor, desde o instante em que o casamento é celebrado, no cartório ou na igreja, os casais jamais ficarão a sós – a sociedade sempre estará entre eles. O casamento é uma espécie de triângulo social, formado pelos noivos que disseram “sim” e pela sociedade que lhes dirá “não” sempre que um deles quiser infringir o contrato social firmado diante dela. Mesmo quando se revela a própria chave da felicidade íntima, concretizando o amor romântico, o casamento nunca fecha totalmente suas portas à sociedade – ela está sempre espreitando o casal por meio das regras morais da religião, das leis civis do Estado e ou do legado familiar de cada um.

Por isso, é natural que o Estado brasileiro, como qualquer outro Estado do mundo, queira se intrometer na vida dos casais. Essa intromissão é necessária devido aos filhos, que compõem o perfil da maioria das famílias. Por delegação da sociedade, o Estado, juntamente com outras instituições, tem o dever de zelar para que os filhos sejam educados e assistidos pelos pais até se tornarem capazes de cuidar da própria vida. No Brasil, a lei que deveria zelar pela saudável convivência familiar é o Estatuto da Criança e do Adoles­cen­te (ECA), promulgado em 13 de ju­lho de 1990. O problema é que ele não foi criado com o objetivo de fortalecer as relações familiares, prescrevendo deveres mútuos para pais e filhos, à luz dos costumes da própria sociedade; pelo contrário, o ECA é a principal arma dos movimentos revolucionários que usam o Estado capitalista para criar o utópico “homem novo” socialista. Prova disso é a chamada “Lei da Palmada”, que acaba de ser aprovada no Congresso Nacional e criminaliza os pais por uma simples palmada nos filhos.

Uma lei da universidade e da ONU
O Estatuto da Criança e do Adolescente, que se torna ainda mais nocivo com a Lei da Palmada, não foi pensado para atender os interesses da criança cordata, que respeita pai e mãe, mas para fazer as vontades do filho pródigo, que se rebela contra as normas familiares. O ECA não nasceu dos anseios legítimos da sociedade brasileira, mas de uma obsessão ideológica dos movimentos de esquerda com os menores de rua, que, a partir de meados da década de 1970 e até o final do século passado, tornaram-se a principal massa de manobra revolucionária, ocupando, na época, o papel de sementeiras de conflitos sociais que usuários de drogas e moradores de rua exercem hoje. Por isso, eu não fiquei surpreso nem indignado com a aprovação da “Lei da Palmada” pelo Congresso – o que me surpreende e indigna, de fato, é a sociedade não perceber que o Estatuto da Criança e do Ado­les­cente já continha, em si, o ideário da “Lei da Palmada” e não se revoltar contra ele. Sem atacar diuturnamente o Estatuto, é impossível evitar a aprovação de leis como essa.

A Lei da Palmada não nasceu no Congresso Nacional muito menos de uma inusitada sinapse do cérebro de Xuxa, transformada em sua garota-propaganda pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL), o ex-comunista do PCdoB que se especializou em lavagem de reputação pública por meio do uso de artistas globais. Essa perniciosa lei é uma criação dos intelectuais universitários brasileiros, com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU) e se inspira em leis similares de países europeus. A primeira tentativa de aprová-la partiu do Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), por meio do Laboratório de Estudos da Criança, que, há décadas, vem produzindo campanhas contra qualquer agressão física a crianças e adolescentes. O problema é que os psicólogos da USP confundem ralho e palmada com agressão física e opressão psicológica e vinham tentando aprovar no Congresso Nacional a criminalização da palmada – o que finalmente conseguiram, após convencerem a bancada evangélica.

A primeira tentativa concreta de transformar em lei a criminalização da palmada ocorreu há dez anos, por intermédio de um projeto de lei da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), que veio a ser ministra dos Direitos Humanos no governo Dilma Rousseff e deixou o cargo em abril deste ano para disputar o Senado Federal pelo PT gaúcho nas próximas eleições. Em 2 de dezembro de 2003, Maria do Rosário apresentou o Projeto de Lei 2.654/2003, que modificava o ECA e o Código Civil, estabelecendo o direito de crianças e adolescentes “não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal, mediante a adoção de castigos moderados ou imoderados, sob a alegação de quaisquer propósitos, ainda que pedagógicos”. Como se vê, a criminalização da palmada – que se inclui entre os “castigos moderados” – era explícita, por isso o projeto da deputada gaúcha enfrentou forte resistência, não só da bancada evangélica no Congresso Nacional, mas também de articulistas laicos nos meios de comunicação.

Há alguns anos, quando o assunto foi amplamente debatido na imprensa, levando à rejeição do projeto original de Maria do Rosário, os adversários da proposta acreditaram que ela estava completamente enterrada. Proibir os pais de darem, de vez em quando, uma mera palmada educativa nos filhos parecia uma ideia absurdamente radical, sem a menor chance de se transformar em lei. Com raras exceções, os articulistas que se insurgiram contra a Lei da Palmada não foram capazes de perceber que ela estava longe de ser uma proposta folclórica de uma parlamentar xiita – pelo contrário, era a tradução literal do pensamento predominante nas universidades brasileiras e, mais cedo ou mais tarde, haveria de ressurgir das cinzas, como fênix. Um intelectual universitário jamais desiste de suas ideias, por mais absurdas que sejam – elas são seu oxigênio e ganha-pão, pois seu salário mensal não depende do acerto de suas teses. Mesmo que professe teses socialmente deletérias (como o chefe do Departamento de Artes e Estudos Culturais da Univer­si­da­de Federal Fluminense, professor Daniel Caetano, que defendeu o evento sadomasoquista “Va­gina Satâ­nica”, realizado na ins­tituição), um docente de universidade pública continuará ven­do o seu bom salário cair religiosamente na conta todo final de mês.

Por isso, mesmo rejeitada por ampla maioria da população brasileira, como provam as enquetes isentas sobre o assunto, a Lei da Palmada acabou vingando. É que a proposta original não era somente da deputada Maria do Rosário – ela foi respaldada pela “Petição por uma Pedagogia Não Violenta”, uma campanha multinacional do Laboratório de Estudos da Criança da USP, que teve início em 1994, portanto há 20 anos, e colheu mais de 200 mil assinaturas de apoio no Brasil, Peru e Argentina. Essa campanha teve o apoio do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), que, em 2005, publicou o livro “Direitos Negados: A Violên­cia Contra a Criança e o Adoles­cen­te no Brasil”, uma coletânea de artigos escritos por diversos pesquisadores. No artigo que abre o livro, as pesquisadoras Maria Amélia Aze­vedo e Viviane de Azevedo Guer­ra, ambas do Instituto de Psi­cologia da USP afirmam: “A luta mun­dial pela abolição de castigos imoderados e moderados (inclusive o famigerado tapinha no bumbum) já é vitoriosa em onze países: Suécia (1979); Finlândia (1983); Dinamarca (1983); Noruega (1987); Áustria (1989); Chipre (1994); Letônia (1998); Croácia (1999); Alemanha (2000); Israel (2000) e Islândia (2003)”.

Psicólogos da USP escreveram projeto de lei
Ora, o mundo tem quase 200 países. Isso significa que, apesar de toda a pressão exercida pela ONU, menos de 10% das nações dedicaram leis especiais contra castigos físicos em crianças. O que a maioria dos países pune – e com toda razão – é o espancamento dos filhos pelos pais, algo que o Código Penal Brasileiro e o próprio Estatuto da Criança e Adolescente também já condenam. Além disso, nos países citados pelas pesquisadoras, os menores de 18 anos que cometem crimes violentos não costumam ser inimputáveis como no Brasil e não têm o rosto totalmente protegido nas reportagens que relatam seus feitos. Sem contar que raramente um país impõe tantas restrições ao porte de arma como no Brasil, fazendo com que os bandidos, menores ou adultos, se comportem com a máxima ousadia e detenham o monopólio da pena de morte no País. Impor a um caldeirão de violência chamado Brasil, com quase 200 milhões de viventes, as mesmas leis de aldeolas escandinavas com menos de 5 milhões de habitantes, como fizeram os pesquisadores da USP com a Lei da Palmada, é não ter o mínimo senso de proporção.

O que as pesquisadoras da USP chamam de “luta mundial pela abolição dos castigos imoderados e moderados em criança” é, na verdade, uma minoritária guerrilha intelectual pela abolição do pátrio poder, colocando as famílias sob o poder totalitário do Estado. A força dessa guerrilha – que se tornou hegemônica no meio acadêmico – não resulta do apoio que desfruta na sociedade, mas das fartas verbas que recebe de ONGs, fundações internacionais e da própria ONU. Desde a redemocratização, o Brasil se tornou o laboratório preferencial dos arautos do homem novo, uma espécie de projeto-piloto em forma de país, no qual os ideólogos de esquerda testam suas leis revolucionárias, como a Lei da Palmada, sem levar em conta as culturas locais. Prova disso é que a primeira versão da Lei da Palmada, apresentada em 2003, não foi redigida pela deputada Maria do Rosário, mas por uma equipe de pesquisadores do Laboratório de Estudos da Criança do Instituto de Psicologia da USP.

“A proposição que estamos apresentando à Casa foi elaborada pelo Laboratório de Estudos da Criança (Lacri) da Universidade de São Paulo (USP), sob a responsabilidade das coordenadoras, Dra. Maria Amélia Azevedo, Dra. Flávia Piovesan, Dra. Carolina de Mattos Ricardo, Dra. Daniela Ikawa e Dr. Renato Azevedo Guerra, e, como pode ser verificado na argumentação supra, está amparado por pesquisas e análises comparativas com as legislações mais avançadas do mundo” – escreveu a deputada Maria do Rosário na justificativa de seu projeto, ao apresentá-lo na Câmara no final de 2003. Como o seu projeto era lobo com garras e dentes expostos, dizendo já na ementa e reafirmando em seu primeiro artigo que até os castigos moderados estavam proibidos, ele acabou não vingando no Congresso, devido, sobretudo, à resistência da bancada evangélica. Então, sete anos depois, o Executivo tomou para si a tarefa de aprovar a Lei da Palmada e, em 14 de julho de 2010, um dia depois do aniversário de 20 anos do ECA, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou à Câmara um novo projeto de lei nesse sentido.

Exército público de delatores profissionais
Esse projeto de lei do Executivo, que acabou aprovado na semana passada, é lobo em pele de cordeiro. Ao a­crescentar três artigos ao Estatuto da Criança e do Adolescente, ele estabelece: “A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou tratamento cruel ou degradante, como forma de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los”. Em seguida, a lei define “castigo físico” como a “ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em sofrimento físico ou lesão à criança ou adolescente”. E define como “tratamento cruel ou degradante” a “conduta ou forma cruel de tratamento que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize a criança ou adolescente”.

Como se vê, a nova versão da Lei da Palmada, rebatizada casuisticamente de “Lei Menino Bernardo”, parece não oferecer nenhum perigo para as famílias. Quem pode ser a favor do “tratamento cruel ou degradante” de uma criança, expressão que mais se destaca quando se lê o primeiro parágrafo da lei? Ocorre que essa expressão entrou aí justamente para ofuscar a criminalização da palmada, que continua embutida na expressão “castigo físico”. Afinal, se “castigo físico” fosse apenas sinônimo de espancamento e não abarcasse também uma simples palmada, não haveria necessidade de acrescentar “tratamento cruel” ao texto. Além do mais, a lei ainda prevê que os direitos da criança nela previstos deverão ser objeto de ampla campanha e integrar os temas transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC. Ou seja, na interpretação da lei que será disseminada na sociedade, a definição prática de castigo físico vai abranger a palmada – algo que, sem dúvida, será corroborado pelo Ministério Público, ainda que um ou outro promotor, individualmente, possa pensar e até agir de forma contrária.

Mas até isso será difícil, pois a lei também prevê que o profissional da saúde, da educação ou da assistência social, bem como qualquer pessoa que exerça cargo ou função pública, tem a obrigação de comunicar às autoridades competentes qualquer suspeita ou confirmação de castigo físico de uma criança, sob pena de incorrer em multa que varia de 3 a 20 salários mínimos. Ou seja, a lei cria um exército público de delatores profissionais, que, com o tempo, irão consolidar a criminalização da palmada, ainda que ela não esteja explicitamente escrita no texto da lei. Em breve, cada filho será o senhorzinho do lar e teremos a paternidade análoga à escravidão.

Alguns parlamentares, como o senador Magno Malta (PR-ES), não se deixaram enganar pela Lei Menino Bernardo e denunciaram o seu caráter subjetivo, que continua criminalizando todo tipo de castigo físico, mesmo uma leve palmada. E o deputado Pastor Eurico (PSB-PE) criticou a presença de Xuxa como madrinha da lei, lembrando o seu passado de protagonista do filme “Amor, Estranho Amor”, de Walter Hugo Khouri, em que protagoniza cenas de nudez com uma criança. Ditatorialmente, o partido de Eduardo Campos tomou as dores de Xuxa e destituiu o deputado da Comissão de Constituição e Justiça.

O clima bananeiro em que foi aprovada a Lei da Palmada pode ser medido pela entrada de Xuxa Meneghel no plenário do Senado. Ela trazia pela mão um garoto que, depois, se revelou ser o neto do presidente do Senado, Renan Calheiros. Num acintoso desrespeito aos rituais da República, o menino foi posto sentado à mesa diretora da Casa, entre o avô e Xuxa, como se o Brasil fosse uma monarquia, em que o poder se transmite hereditariamente e não há distinção entre o público e o privado. A transformação do neto de Renan Calheiros numa espécie de reizinho da República é reveladora da miséria moral reinante – simboliza a privatização da coisa pública e a estatização da vida privada, numa mistura que relembra a Itália fascista de Benito Mussolini. A Lei da Palmada já é consequência dessa indistinção entre um Estado cada vez mais possuído pelos grupos organizados e uma sociedade cada vez mais destituída de vida privada. É como se os bedéis do Estado, que batem ponto burocraticamente nas repartições, pudessem cuidar da educação de todas as crianças brasileiras – uma missão que exige dos pais de carne e osso enormes sacríficos, inclusive em madrugadas insones, quando velam pela saúde e o bem-estar de seus filhos.

Duplo grau de jurisdição na família
Os intelectuais bem-nascidos querem aplicar a todo mundo os seus próprios princípios de vida, sem levar em conta as circunstâncias em que vivem os destinatários de suas leis utópicas. O ideal é que uma criança jamais precise levar sequer uma palmada e aprenda a obedecer a um simples olhar. Mas esse é um ideal, que nem sempre pode ser posto em prática, especialmente nas classes mais pobres, em que a vida é muito dura, e os pais, machucados pela própria desesperança, nem sempre são capazes de dialogar com os filhos, depois de mais uma dura jornada de trabalho, em que enfrentam ônibus lotados para voltar ao barracão minúsculo onde a família se amontoa. Em famílias assim, uma palmada, um beliscão, um cascudo são quase inevitáveis e chegam a ser uma forma de diálogo, uma espécie de rude carinho físico entre pais e filhos, especialmente em famílias arcaicas em que beijos e abraços são raros ou inexistem.

Uma pesquisa do próprio Laboratório de Estudos da Criança da USP mostrou que mais de 70% desses castigos físicos são aplicados pelas mães – um fator de desespero para os pesquisadores uspianos, que, volta e meia, promovem palestras, exibição de filmes, apresentações de teatro, concursos de desenhos e várias outras atividades educativas tentando evitar que as mães distribuam palmadas em seus rebentos. Eles nem se dão conta de que as famílias, instintivamente, criam e aplicam uma sábia justiça doméstica que reproduz um dos pilares do processo civilizatório – o duplo grau de jurisdição. A mãe, pelo fato de ficar mais tempo com o filho e, sobretudo por tê-lo carregado no ventre, tende a ter com ele uma relação muito mais emotiva, consequentemente mais fadada à impaciência, aos ralhos, às palmadas. Mas, como diz o provérbio, pé de galinha não mata pinto. Prova disso é que mal acaba de levar uma palmada da mãe, a criança já busca o seu colo para chorar, como se a palmada fosse o prenúncio do carinho. Só quando essa primeira instância da justiça familiar não surte efeito, é que entra a segunda instância – a justiça paterna.

Mas o pai, ao contrário da mãe, deve ter maior distanciamento e evitar o castigo físico. Como sabiam os antigos, a mão do pai é pesada. Ele é o juiz de segunda instância, que só deve interferir nos casos mais graves, fazendo valer sua autoridade com um olhar severo, uma palavra firme e, no mais das vezes, com sua simples presença. Quando o pai precisa castigar fisicamente o filho, é porque esse duplo grau de jurisdição familiar está falhando e, nesse caso, sim, a criança tem grande chance de se tornar um filho rebelde, malcriado, às vezes um adulto traumatizado e sem rumo. A Lei da Palmada, ao proibir todo tipo de castigo físico, inclusive quando praticado afetivamente pela mãe, acaba com esse sábio sistema de pesos e contrapesos entre mãe e pai, privando a criança de seu primeiro e educativo contato com a Justiça – que é, antes de tudo, uma hierarquia moral de valores, em que a severidade das sanções é graduada pela gravidade dos atos. Ao desconsiderar essas nuances das relações familiares, a Lei da Palmada chega a desumanizar a criança, como se ela não passasse de um corpo sem alma, cujo maior sofrimento é a dor passageira de uma simples palmada.
Publicado no Jornal Opção.
Por: José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.




HOBBES DE BIKE

Outro dia, em visita profissional a uma das principais capitais do país (aliás, uma das minhas preferidas), vi uma cena muito significativa do Brasil atual. De primeira não acreditei, levando em conta o tipo de pessoa envolvida, mas, depois, fui obrigado a aceitar a realidade dos fatos. O que eu vi? Já conto. Antes alguns reparos.


Já disse nesta coluna que estou mais pra Hobbes do que Rousseau em termos de rompimento do contrato social e da ordem pública, porque inclusive muito dos movimentos ditos sociais superestimam sua representatividade. Quando multidões se formam, em poucos minutos podem virar um grande instrumento de violência de massa. Ninguém é "bonzinho" quando se sente parte de uma massa de "iguais".

Hobbes é o cara que viveu uma vida honesta e responsável e dizia que sem ordem degeneramos em violência porque a vida é precária, perigosa, breve e dolorosa. Rousseau é o carinha que mandou os filhos pro asilo, enlouqueceu sua mulher, mas dizia que somos anjinhos e que a propriedade privada e a ganância é que fazem sermos maus e que em multidões revolucionárias "curamos" o mundo.

Voltemos ao Brasil. Por exemplo, com relação à Copa, essa coisa de "não vai ter Copa" é uma tentativa de estragar a alegria da maioria que nunca mais terá a chance de ver uma Copa no país. Isso não significa que não tenha havido abusos e absurdos na condução da logística e infraestrutura, mas nada disso justifica querer tornar a vida das pessoas um inferno com manifestações um tanto totalitárias. Os demais movimentos são naturalmente oportunistas no sentido que a medicina dá a certos processos infecciosos.

E mais: duvido fortemente da suposta evidência de que sem movimentos de rua a sociedade deixe de se modernizar. A Revolução Francesa é um fetiche de professores que erotizam a política da violência "criadora". A França, como a Inglaterra, teria se modernizado sem a maldita revolução. A maioria dos movimentos políticos marcados por uma metafísica revolucionária (jacobinos, Rússia, Cuba, China, Vietnã, Leste Europeu até a queda do muro de Berlim e outros) não serviu para nada a não ser para matar seus inimigos com desculpas metafísicas ou enriquecer seus líderes corruptos com o passar do tempo.

É fato surpreendente que o mesmo tipo de gente que se diz contra guerras goza com a ideia de revoluções. Acho que muita dessa gente goza mais gritando frases de efeito na rua do que transando. Mas muito psicanalista (e similares) por aí acha mesmo que a "verdadeira" clínica é a política. Toda teoria política com metafísica é totalitária em algum momento.

Mas e a cena que eu vi? Conto pra você agora. Estávamos nós saindo de um restaurante à noite quando o farol em nossa frente fechou. Um grupo grande de ciclistas passou. Mas, quando o farol fechou pra eles, em vez de pararem de passar, como seria o correto, três deles barraram a passagem dos carros que tinham o direito legal de passar, como fazem os policiais militares em situações excepcionais. Ou seja, foram autoritários.

Até aí, apenas mais um exemplo de que mesmo grupos que se julgam "do bem" (salvam o planeta pedalando, socializam durante as noites passeando, têm grana porque pobre anda de bicicleta durante o dia e rico anda de bike durante a noite) degeneram em violência quando em bando.

Aí um quarto ciclista se aproximou das filas de carro barradas por eles, desceu da bike, levantou a "magrela" no ar com as duas mãos, como se fosse uma Uzi ou alguma metralhadora similar, e a sacudiu gritando algo incompreensível.

Já vi aqui em São Paulo ciclistas fecharem carros, furarem o farol xingando o motorista (que também nem sempre é educado, diga-se de passagem), correndo riscos de vida. Na Dinamarca, capital das bikes chiques, vi comportamentos agressivos semelhantes.

Fosse eu uma dessas pessoas que "postam fotos", o ciclista estaria famoso a esta altura. A pergunta é: com quem estaria ele se identificando? Eu tenho algumas hipóteses. Entre elas, o líder do Boko Haram da Nigéria e suas meninas raptadas.
Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

domingo, 22 de junho de 2014

SOCIEDADES ANÁRQUICAS

O que há de comum entre grevistas que desobedecem ordem judicial de assegurar serviço mínimo à população e a anexação da Crimeia pela Rússia? Ou entre os sem-teto que ocupam prédios e interrompem o trânsito e a concentração intimidatória de tropas na fronteira com a Ucrânia?


Em todos os casos, trata-se de grupos que julgam defender causa justa e talvez seja verdade, mas decidem agir "na lei ou na marra", obter seu direito "por la razón o por la fuerza", como dizia o lema chileno.

Em outros termos, nessas situações de conflito, um dos lados, o mais forte por natureza ou circunstâncias (proximidade eleitoral, realização da Copa), recorre à força por não crer na lei, devido a suas imperfeições ou pela demora e dificuldade de obter justiça. Os que assim agem perdem a razão que tinham; ao entrar no jogo da violência arriscam-se a serem as próximas vítimas.

Caminham para a anarquia as sociedades onde as violações são toleradas até pelas autoridades como comportamento rotineiro.

Uma das explicações do desassossego carregado de apreensão que toma conta da população brasileira provém do sentimento difuso de que estamos aos poucos escorregando rumo à anarquia.

Dizem os juristas que a sociedade internacional é anárquica. Não por lhe faltar a lei da Carta das Nações Unidas ou mecanismos de solução legal de conflitos como a Corte da Haia. O problema é que não existe poder ou autoridade capaz de obrigar os países a cumprir a Carta ou as decisões do Conselho de Segurança ou da Corte.

Nações de tradição autocrática, como a Rússia, tendem a violar as leis próprias e as alheias. Já a sociedade brasileira, semianárquica internamente, pois só consegue aplicar as leis de modo parcial e imperfeito, sempre se distinguiu no plano externo pela promoção e defesa do direito internacional.

É por isso que o Brasil deve acompanhar com atenção o risco contido nos graves precedentes de violação como os que vêm ocorrendo na Ucrânia. Pode ser que seja caso isolado, um mero acerto de contas com o passado. Ou pode anunciar tendência de comportamento futuro dos mais fortes no novo sistema internacional que se está gestando.

Critica-se com razão o abuso que os americanos fizeram de sua hegemonia unipolar, felizmente em vias de acabar. De nada serve, porém, trocá-la pelo multipolarismo do passado, o da política das grandes potências que levou, cem anos atrás, à Primeira Guerra Mundial.

Em si mesma, a difusão do poder entre vários atores poderosos não é garantia de um mundo de paz. Ao contrário, está aí a história para mostrar que foi esse o sistema responsável pelos piores conflitos, inclusive as duas guerras mundiais.

O multilateralismo de que precisamos é o do respeito à Carta da Organização das Nações Unidas e da solução de conflitos por vias institucionais. No momento em que os dois mais poderosos membros dos Brics se envolvem cada vez mais em atritos com os vizinhos, deve o Brasil, junto com a Índia e a África do Sul, defender com firmeza os valores da paz e da lei na próxima reunião do grupo em Fortaleza, que ocorrerá nos dias 15 e 16 de julho
Por: Rubens Ricupero Publicado na Folha de SP

UM PAÍS DE ANTÔNIOS

Antônio Belo é um cara bem sucedido. Aos 34 anos, ocupa um cargo de alta gerência em uma multinacional, tem prestígio e um bom salário. Com isso, conseguiu financiamento para comprar um bom apartamento e um carro bacana, que são muito desfrutados. Infelizmente, além das dívidas dos financiamentos do apartamento e do carro, Antônio também deve no cartão de crédito e no cheque especial e não sabe nem o tamanho das dívidas, nem quanto paga de juros.


Pessoas como Antônio, que mesmo ganhando bem, estão atoladas em dívidas são raras, certo? Infelizmente, não. Uma pesquisa exclusiva com 1555 brasileiros entre 18 e 60 anos das classes A, B e C em 255 municípios da minha empresa, a Ricam Consultoria, em parceria com a Ilumeo descobriu que os Antônios são a regra, não a exceção. Mais importante, ela aponta a principal causa do Brasil ter se tornado um país de Antônios: o analfabetismo financeiro.

O mau desempenho da educação no Brasil não é novidade para ninguém, porém um aspecto importante costuma ser relevado. Falta ensino sistemático em finanças pessoais desde nosso ensino básico. Nunca chegamos a aplicar em nossas vidas a maior parte do que aprendemos na escola, mas não aprendemos ou aprendemos mal algo que usaremos em toda a vida, finanças pessoais.

No Brasil da hiperinflação, as opções na vida financeira das pessoas eram limitadas e os horizontes curtos. Todos sabiam exatamente o que fazer com dinheiro. Assim que você recebia o salário, você comprava tudo que precisava porque já no dia seguinte tudo estaria mais caro e no final do mês, talvez, você só pudesse comprar metade do que comprou no dia 1º. Praticamente não havia oferta de crédito. Portanto, ninguém poderia se endividar, nem que quisesse. As opções de investimento também eram limitadas e de curtíssimo prazo, lideradas pelo overnight – investimentos em renda fixa renovados diariamente.

Há 20 anos, a hiperinflação ficou para trás e a realidade financeira no país mudou radicalmente. Acesso a crédito deixou de ser um problema, permitindo que dezenas de milhões de brasileiros comprassem produtos e serviços que antes só faziam parte dos seus sonhos. Por outro lado, com crédito farto, mas conhecimentos financeiros limitados, muitos se endividaram além das suas possibilidades. Segundo dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), hoje duas em cada três famílias brasileiras têm dívidas.

Mais grave, a pesquisa Ricam-Ilumeo indicou que dos que devem no cheque especial, por exemplo, 7 em cada 10 não sabem quanto pagam de juros e um em cada três não tem nenhum tipo de planejamento em relação a em quanto tempo pretende pagar as dívidas. Eu não conheço ninguém que compre um produto sem nem saber quanto custa, mas a maioria das pessoas faz exatamente isto quando se endivida. Apenas um em cada três brasileiros anota e controla seus gastos.

Se o quadro é preocupante com relação a gastos e endividamento, não é melhor em relação a poupança e investimentos. 43% dos pesquisados nunca ouviram nenhuma dica ou orientação financeira. Apenas 12% já investiram em previdência privada. Em um país em que a solvência da previdência pública daqui a algumas décadas está longe de ser garantida, não planejar a aposentadoria pode custar muito caro.

Pior, apenas 3% já investiram em ações, contra 64% que já investiram na caderneta de poupança. Infelizmente, em períodos longos de tempo, a segurança da caderneta de poupança acaba custando muito caro. Tanto nos últimos 10 anos quanto nos últimos 20 anos, a rentabilidade da poupança ficou para trás da dos títulos públicos, dos CDBs, da Bolsa, dos imóveis e do ouro.

Felizmente, cada vez mais, instituições financeiras, como bancos e corretoras, e empresas em geral investem na capacitação financeira de clientes e funcionários. Bancos, por exemplo, não têm interesse em que as pessoas se endividem além do que podem pagar, pois neste caso, acabarão levando calotes. Para as empresas, funcionários com problemas financeiros são muito menos produtivos porque sua atenção não está no trabalho.

O que nossa pesquisa sugere é que o trabalho de alfabetização financeira de nossos Antônios é cada vez mais urgente e importante.

Por: Ricardo Amorim Apresentador do Manhattan Connection da Globonews, colunista da revista IstoÉ, presidente da Ricam Consultoria, único brasileiro entre os melhores e mais importantes palestrantes mundiais segundo o Speakers Corner e economista mais influente do Brasil segundo o Klout.com

sábado, 21 de junho de 2014

A LISTA DO PT

Lula só pensa naquilo. Diante das vaias (normais no ambiente dos estádios) e dos xingamentos (deploráveis em qualquer ambiente) a Dilma Rousseff na abertura da Copa, o presidente de facto construiu uma narrativa política balizada pela disputa eleitoral.

A “elite branca” e a “mídia”, explicou, difundem “o ódio” contra a presidente-candidata. Os conteúdos dessa narrativa têm o potencial de provocar ferimentos profundos numa convivência democrática que se esgarça desde a campanha de ataques sistemáticos ao STF deflagrada pelo PT.

O partido que ocupa o governo decidiu, oficialmente, produzir uma lista de “inimigos da pátria”. É um passo típico de tiranos — e uma confissão de aversão pelo debate público inerente às democracias. Está lá, no site do PT, com a data de 16 de junho (LeiaAQUI).

O artigo assinado por Alberto Cantalice, vice-presidente do partido, acusa “os setores elitistas albergados na grande mídia” de “desgastar o governo federal e a imagem do Brasil no exterior” e enumera nove “inimigos da pátria” — entre os quais, este colunista.

Nas escassas 335 palavras da acusação, o representante do PT não cita frase alguma dos acusados: a intenção não é provar um argumento, mas difundir uma palavra de ordem. Cortem-lhes as cabeças!, conclama o texto hidrófobo. O que fariam os Cantalices sem as limitações impostas pelas instituições da democracia?

O artigo do PT é uma peça digna de caluniadores que se querem inimputáveis. Ali, entre outras mentiras, está escrito que os nove malditos “estimulam setores reacionários e exclusivistas a maldizer os pobres e sua presença cada vez maior nos aeroportos, nos shoppings e nos restaurantes”.

Não há, claro, uma única prova textual do crime de incitação ao ódio social. Sem qualquer sutileza, Cantalice convida seus seguidores a caçar os “inimigos da pátria” nas ruas. Comporta-se como um miliciano (ainda) sem milícia.

Os nove malditos quase nada têm em comum. Politicamente, mais discordam que concordam entre si. A lista do PT orienta-se apenas por um critério: a identificação de vozes públicas (mais ou menos) notórias de críticos do governo federal.

O alvo óbvio é a imprensa independente, na moldura de uma campanha de reeleição comandada pelo ex-ministro Franklin Martins, o arauto-mor do “controle social da mídia”. A personificação dos “inimigos da pátria” é um truque circunstancial: os nomes podem sempre variar, aos sabor das conveniências.

O truque já foi testado uma vez, na campanha contra o STF, que personificou na figura de Joaquim Barbosa o ataque à independência do Poder Judiciário. Eles gostariam de governar um outro país — sem leis, sem juízes e sem o direito à divergência.

Cortem-lhes a cabeça! A palavra de ordem emana do partido que forma o núcleo do governo. Ela está dirigida, imediatamente, aos veículos de comunicação que publicam artigos ou difundem comentários dos “inimigos da pátria”.

A mensagem direta é esta: “Nós temos as chaves da publicidade da administração direta e das empresas estatais; cassem a palavra dos nove malditos.” A mensagem indireta tem maior amplitude: no cenário de uma campanha eleitoral tingida de perigos, trata-se de intimidar os jornais, os jornalistas e os analistas políticos: “Vocês podem ser os próximos”, sussurra o persuasivo porta-voz do presidente de facto.

No auge de sua popularidade, Lula foi apupado nos Jogos Pan-Americanos de 2007. Dilma foi vaiada na Copa das Confederações. As vaias na abertura da Copa do Mundo estavam escritas nas estrelas, mesmo se o governo não experimentasse elevados índices de rejeição.

O governo sabia que viriam, tanto que operou (desastrosamente) para esconder a presidente-candidata dos olhos do público. Mas, na acusação desvairada de Cantalice, os nove malditos figuram como causa original da hostilidade da plateia do Itaquerão contra Dilma!

O ditador egípcio Hosni Mubarak atribuiu a revolução popular que o destronou a “potências estrangeiras”. Vladimir Putin disse que o dedo de Washington mobilizou um milhão de ucranianos para derrubar o governo cleptocrático de Viktor Yanukovich. O PT bate o recorde universal do ridículo quando culpa nove comentaristas pela recepção hostil a Dilma.

Quanto aos xingamentos, o exemplo nasce em casa. Lula qualificou o então presidente José Sarney como “ladrão” e, dias atrás, disse que FHC “comprou” a reeleição (uma acusação que, nos oito anos do Planalto, jamais levou à Justiça). O que gritaria o presidente de facto no anonimato da multidão de um estádio?

Na TV Estadão, critiquei o candidato presidencial José Serra por pregar, na hora da proclamação do triunfo eleitoral de Dilma Rousseff, a “resistência” na “trincheira democrática”.

A presidente eleita, disse na ocasião, é a presidente de todos os brasileiros — inclusive dos que nela não votaram. Dois anos mais tarde, escrevi uma coluna intitulada “O PT não é uma quadrilha”, publicada nos jornais O GLOBO e “O Estado de S. Paulo” (25/10/2012), para enfatizar que “o PT é a representação partidária de uma parcela significativa dos cidadãos brasileiros” e fazer o seguinte alerta às oposições: “Na democracia, não se acusa um dos principais partidos políticos do país de ser uma quadrilha.”

A diferença crucial que me separa dos Cantalices do PT não se encontra em nossas opiniões sobre cotas raciais, “conselhos participativos” ou Copa do Mundo. Nós divergimos, essencialmente, sobre o valor da liberdade política e da convivência democrática.

Se, de fato, como sugere o texto acusatório do PT, o que mais importa é a “imagem do país no exterior”, o “inimigo da pátria” chama-se Cantalice. Nem mesmo os black blocs, as violências policiais ou a corrupção sistemática são piores para a imagem de uma democracia que uma “lista negra” semioficial de críticos do governo.
Por: Demétrio Magnoli é sociólogo. Publicado em O Globo

POR QUE O BC PAROU DE SUBIR OS JUROS?

Depois de nove reuniões consecutivas aumentando os juros Selic, o Copom encerrou o ciclo de aperto monetário na última quarta feira, com voto unânime de seus membros.


Muitos analistas questionarão esta decisão com o argumento de que, apesar do choque de juros, a inflação em 12 meses deve continuar a subir nos próximos meses. A possibilidade de, em algum momento do segundo semestre, a taxa em 12 meses superar o chamado teto da banda é muito grande. Então por que parar?

Para mim, a decisão do Copom está correta, pois o objetivo principal desta escalada do custo do dinheiro era o de desacelerar a economia. A partir daí teríamos redução da demanda em mercados importantes como o de trabalho e o de serviços pessoais, aliviando assim as pressões inflacionárias.

E isto já ocorreu. Os juros mais altos agiram também de forma indireta sobre a inflação, na medida em que, ao atrair capitais financeiros de curto prazo, valorizam o real e reduzem a pressão do câmbio em outros setores como o de alimentos e de combustíveis.

Aliás, este foi o maior erro de previsão dos defensores do cenário chamado de TEMPESTADE PERFEITA, no momento em que as taxas de juros no primeiro mundo voltaram a flertar com seus níveis mais baixos no passado recente.

Os últimos indicadores de atividade econômica no Brasil –sejam eles relativos à atividade corrente ou às expectativas com o futuro– têm mostrado uma desaceleração importante, talvez até assustadora.

Os mais atingidos são os chamados índices de expectativas, tanto os medidos junto aos empresários como os que quantificam os humores dos consumidores, e que mostram um cenário para o segundo semestre nada animador.

Outra informação que ficou disponível quando escrevia esta coluna -os dados sobre o mercado de crédito- aponta também na direção de que os efeitos gerados pela freada dos juros já passaram do razoável.

A concessão de créditos a pessoas físicas pelos bancos públicos e privados está estagnada há mais de três anos e, quando medida na ponta, já apresenta taxas negativas de crescimento. Mais um dos vários foguetes auxiliares que turbinaram o crescimento dos anos Lula cai ao mar sem combustível.

Ou seja, os efeitos da política monetária sobre a atividade econômica e a inflação já bateram no teto ao provocar uma reversão nos humores dos brasileiros.

Insistir no aumento dos juros só iria ter efeito sobre o nível de atividade, sem contribuir para uma queda maior na inflação. E como não se pode esperar que outros instrumentos de política econômica sejam acionados pelo governo, às vésperas das eleições, para auxiliar a política de juros, a decisão do Copom está coberta de boas razões.

A principal vitória da política de juros do BC foi a de ancorar as expectativas dos agentes econômicos e, com isto, evitar uma escalada da inflação que já dava sinais preocupantes.

Mas seus resultados estarão limitados a isto, ficando para o próximo mandato presidencial em 2015 a responsabilidade -ou não- de trazer os índices de inflação para níveis mais seguros.

O custo maior da política defensiva dos juros vai recair sobre a atividade econômica e também no humor de grande parte da sociedade no momento das eleições.

Uma barbeiragem muito grande segundo o manual do político competente em administrar a economia com os olhos voltados para as eleições majoritárias. A regra deste pessoal é simples: apertar o cinto nos primeiros dois anos do mandato e soltá-lo depois.

O PIB do primeiro trimestre deste ano, que será conhecido quando esta coluna já tiver sido escrita, deve refletir o quadro descrito acima e mostrar um número medíocre da ordem de 1,2 % em 12 meses.

Os indicadores recentes que medem as expectativas dos agentes econômicos pioraram nos últimos meses, o que indica taxas de crescimento ainda mais baixas nos próximos meses.

As previsões de analistas experientes já apontam para o ano de 2014 como um todo taxa de crescimento abaixo de 1,5%

Por: Luiz Carlos Mendonça de Barros  Publicado na Folha de São Paulo

sexta-feira, 20 de junho de 2014

'DISCÍPULA DE PAULO FREIRE ASSASSINA MACHADO DE ASSIS'


Localizado nas proximidades do Viaduto do Chá, que, desde a inauguração em 1892, se tornou, durante muitos anos, o principal cartão postal da cidade de São Paulo, o Vale do Anhangabaú será palco, em junho próximo, de um evento literário inusitado — um túnel construído não por concreto, mas por 60 mil livros. Trata-se do lançamento da nova edição de uma das mais importantes obras da língua portuguesa de todos os tempos, a novela O Alienista, de Machado de Assis, que, depois da morte do escritor em 1908, separou-se de Papéis A­vulsos, o volume de contos em que fora originalmente publicado em 1882, e se tornou um livro autônomo, traduzido em vários idiomas. Mas não se trata exatamente da obra-prima de Machado — o que o leitor vai encontrar nesse lançamento faraônico é uma adaptação de O Alienista, coordenada pela escritora Patrícia Secco e patrocinada pelo Ministério da Cultura, por intermédio da Lei Rouanet.

“Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis. Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso”, disse Patrícia Secco, em 4 de maio último, numa entrevista ao jornalista Chico Felliti, da Folha de S. Paulo. Proprietária da Secco Assessoria Empresarial S/C Ltda., que juntamente com sua pessoa física já teve aprovados no Ministério da Cultura projetos que somam cerca de R$ 10 milhões captados, Patrícia Secco produz literatura infanto-juvenil em ritmo industrial, com mais de 200 títulos publicados, a maioria com temas da moda, como meio ambiente, direitos humanos e inclusão social. Com o propósito de facilitar a leitura de quatro clássicos da literatura brasileira, Secco pedira autorização ao Ministério da Cultura para captar R$ 1,53 milhão; por incrível que pareça, foi autorizada a captar R$ 1,45 milhão, ou seja, quase o montante que havia pedido para seu projeto. Na prática, conseguiu captar uma cifra milionária — R$ 1,039 milhão — para produzir dois livros a serem lançados num mesmo volume: O Alienista, de Machado de Assis, e A Pata da Gazela, de José de Alencar.

A princípio, a ideia de adaptar um clássico não é necessariamente condenável, especialmente se for para crianças. As adaptações de clássicos da literatura — começando pela Bíblia — devem ser tão antigas quanto o ato de ler. Em sua já clássica Uma História da Leitura, o argentino-canadense Alberto Man­guel conta que, em 1387, John de Trevisa, que estava traduzindo do latim para o inglês a epopeiaPolychronicon, do monge beneditino Ranulf Higden (c. 1280-1364), resolveu fazê-lo não em versos, mas em prosa, pois sabia que o público já não queria ouvir uma recitação pública da obra (que, por sinal, se tornaria muito popular no século XV), preferindo lê-la diretamente. Da mesma forma, a Divina Comédia, de Dante Alighieri, originalmente escrita em versos, mereceu adaptações em prosa e versões condensadas para crianças, que exploram o viés aventureiro de sua viagem ao Inferno, Purgatório e Céu, transformando-o numa espécie de Julio Verne do espírito.

Uma das primeiras justificativas para se adaptar uma obra é, sem dúvida, sua extensão. Poucas crianças são capazes de ler um romance ou uma epopeia que se estende por mais de 500 páginas. A boa adaptação é uma espécie de resumo que tenta extrair a essência da obra sem desvirtuá-la. Carlos Heitor Cony, que adaptou diversos clássicos para o público infanto-juvenil, como Dostoievski, Melville, Mark Twain, Dumas, Gogol, Eça, Manoel An­tônio de Almeida e Julio Verne, ao ser indagado numa entrevista à revista “Cult” se reescrevia ou resumia os livros, respondeu: “Era uma condensação. Eu eliminava pontos mortos, alguns diálogos, detalhes técnicos. Deixava o texto mais denso. Mas preservava a história, o clima e principalmente a expectativa”. Cony foi taxativo: ”O bom adaptador não falseia o original”.

Facilitação de Machado nega o escritor

Infelizmente, Patrícia Secco falseia Machado de Assis. Além de lhe desfigurar o estilo, ela o emburrece. Sua adaptação é um retrocesso, que sacrifica até os avanços linguísticos do estilo machadiano, já ousadamente próximo da linguagem coloquial, numa antecipação das vanguardas do modernismo que só iriam se consolidar no Brasil quase meio século de-pois. A autora esqueceu-se de que Machado, assim como Borges, Beckett, Graciliano, não dá para ser adaptado em prosa sem que se perca a essência de sua arte. A obra machadiana é basicamente linguagem. Em seus romances, não há enredos rocambolescos nem profusão de personagens, como há em Homero, Cervantes e nos clássicos românticos. Mesmo O Alienista, talvez o enredo mais movimentado de toda a sua obra, depende substancialmente da linguagem, pois é nela que moram a argúcia e a ironia do conto.

Para justificar sua adaptação, Patrícia Secco recorre a afirmações demagógicas. “Estou horrorizada. É muito triste pensar que algumas pessoas acham que Machado de Assis, o mestre da literatura brasileira, não pode ser lido pelo sr. José, eletricista do bairro do Espinheiro, que, apesar de gostar de ler, não cursou mais que o primário, ou pelo Cristiano, faxineiro de uma farmácia de Boa Viagem, que não sabe nem mesmo o significado da palavra boticário”, disse a escritora-empresária à repórter Maria Fernanda Rodrigues, do Estadão, em matéria de 9 de maio último. Ora, quem disse que um faxineiro não pode compreender Machado de Assis? Se fosse assim, o próprio Machado — descendente de agregados e ex-escravos, somente com o ensino primário — nem existiria. Foi justamente porque em seu tempo não existia uma Patrícia Secco facilitando-lhe Camões, Vieira e Almeida Garrett que o Machadinho do Morro do Livramento embebeu-se dos clássicos, aprendeu francês sozinho e não apenas se tornou capaz de compreender os mestres da literatura universal como até mesmo se tornou um deles.

Com sua adaptação de O Alienista, a escritora-empresária Patrícia Secco destrói a universalidade da literatura de Machado de Assis com a pequenez ideológica da pedagogia de Paulo Freire. Foi o criador da “Pedagogia do Oprimido”, uma espécie de marxismo de autoajuda, quem consagrou a tese pedagógica de que o aprendizado é um epifenômeno das circunstâncias materiais e é somente a partir delas que se pode alfabetizar uma criança e despertar-lhe a consciência. O pedagogo brasileiro foi um grande admirador de Mao Tsé-Tung e, assim como o monstruoso comunista chinês mandava os lavradores arrancarem até as flores nativas, porque eram inúteis no universo do trabalho, Paulo Freire também arranca as palavras burguesas da cartilha do trabalhador, determinando a alfabetização a partir das tais “palavras geradoras”, como “tijolo”. É o que chamo de pedagogia análoga à escravidão — o filho do lavrador deve ter os olhos presos ao chão e está proibido de ouvir estrelas.

Patrícia Secco professa a mesma filosofia: se o faxineiro da farmácia não sabe o que é “boticário”, que se arranque então essa maldita palavra dos textos clássicos. Nunca ocorreu a ela que seria muito mais fácil, barato e respeitoso oferecer um dicionário ao faxineiro? Aliás, um trabalhador que resolva ler O Alienista — e isso está longe de ser raro — nem precisará de dicionário para descobrir o significado dessa palavra. O próprio conto, que sempre associa o boticário Crispim Soares a remédios, já lhe oferece a resposta. Além disso, tão logo veja a palavra no texto, o faxineiro irá se lembrar de que existe uma rede de perfumaria com esse nome e, por associação de ideias, poderá lembrar-se da palavra “botica” que pode ter ouvido a um parente mais velho. Caso não disponha de um dicionário em casa, o faxineiro machadiano sempre poderá consultar uma pessoa letrada de seu meio, parente ou um conhecido, que se não for capaz de sanar sua dúvida, saberá onde encontrar a resposta. Ou Patrícia Secco acha que só existe vida inteligente em seu meio social e que nas classes pobres não há ninguém capaz de trocar ideias com um faxineiro interessado em literatura?

Censo de 1872 abalou a literatura brasileira

O psicólogo Yves de La Taille, professor da USP e autor do livro Limites, considera que os limites morais comportam três dimensões, uma das quais significa desafio — uma pessoa, além de respeitar limites em face dos direitos dos outros e de impor limites em defesa de sua intimidade, deve também superar limites, o que significa superar a si mesma, buscando a maturidade e a excelência. É tudo o que Pa­trí­cia Secco não quer do leitor, com sua simplificação dos clássicos. Nin­guém aprende sem esforço próprio, recebendo tudo de mão bei­jada. Graciliano Ramos começou a ser escritor quando se sentiu de­safiado pelas mesóclises daCarta de ABC, do lendário A­bí­lio César Borges, o Barão de Ma­caú­bas, que trazia a máxima “fala pouco e bem, ter-te-ão por al­guém”. A frase o levaria a indagar à sua meia-irmã Mocinha se “ter-te-ão” era um homem. Co­mo Mo­ci­nha, a adolescente se­mial­fabetizada que o ensinou a ler, também não tinha ideia do que fosse aquilo, o me­nino Gra­ci­li­ano, enfezado vi­vente das Alagoas, criado a cascudos e beliscões, teve que descobrir so­zinho, devorando, antes dos dez anos, a prosa romântica de José de A­lencar, bem mais distante da linguagem comum do que a linguagem coloquial de Machado de Assis.

Ao se dar conta da indignação que sua proposta suscitou no País, desde um abaixo-assinado contrário até artigos e editoriais — Patrícia Secco publicou na Folha de S. Paulo, no dia 13 de maio, uma defesa de sua adaptação. O título do artigo não poderia ser menos machadiano: “Machado não gostaria de permanecer desconhecido para quem não lê”. Que afirmação mais esdrúxula! Ma­chado, revolucionariamente, sabia-se texto e, como tal, sabia-se também de­pendente do leitor. Em sua tese Os Leitores de Machado de Assis (Editora da USP, 2004), o professor da USP Hélio de Seixas Guimarães chega a sustentar que a obra machadiana foi influenciada pelo Censo de 1872 (o primeiro realizado no Brasil e divulgado em 1876), ao revelar que apenas 18,6% da população livre e 15,7% da população total, incluindo escravos, sabiam ler e escrever. “A tomada de consciência da escassez de leitores, problema que se inscreve de maneira cada vez mais radical em seus romances, parece-me fator relevante para ajudar a guinada que o escritor imprimiu a sua carreira”, escreve Seixas Guimarães.

Mas Machado de Assis, como sociólogo e psicólogo nato, também estava preocupado com os que não sabem — ou não querem — ler, oferecendo-lhes não a literatura-texto, mas a literatura-instituição, encarnada na Academia Brasileira de Letras, que detém até o monopólio legal da língua, tão grande é a sua importância. Aliás, ao contrário do que pensa Patrícia Secco, isso torna Machado de Assis o escritor mais conhecido pelos que não sabem — ou não querem — ler, nomeando ruas e escolas e simbolizando as letras nacionais da mesma forma que o desgrenhado Be­ethoven simboliza a música para quem nunca pisou numa sala de concerto e só conhece da música erudita o eterno “tchan-tchan-tchan” da Quinta Sinfonia. No próprio modo de composição da ABL, que aceita políticos e notáveis travestidos de escritores (como o Barão do Rio Branco, Marco Maciel e Ivo Pitan­guy), Machado de Assis revelou toda sua engenharia político-institucional, dando à literatura brasileira uma dignidade social que ela jamais poderia alcançar numa nação de analfabetos se continuasse sendo produzida em bares, por uma despreocupada geração de boêmios.

E quando procurou fazer da literatura brasileira também uma instituição social descarnada do texto, capaz de chamar a atenção da sociedade por outros meios, Machado de Assis não estava pensando exatamente nas camadas populares da nação — estou certo de que ele pensava, sobretudo, na preguiçosa elite nacional, que, mesmo sabendo e podendo ler, não lia, nem em seu tempo, nem hoje. Machado estava consciente de que, mesmo entre as elites, eram poucos os que tinham o habito da leitura, tanto que seu grande amigo José de Alencar se queixava de que o público conhecia mais O Guarani pelo teatro do que pelo texto do romance em si. Portanto, Patrícia Secco revela todo o seu preconceito contra os pobres quando cita uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo mostrando que 58% dos brasileiros não leram nenhum livro nos últimos seis meses e, logo em seguida, afirma que, “por trás desses números existem rostos e vidas”, mas ao desvendá-los só se lembra de pessoas como “Seu Roberto, motorista de táxi, o Cristiano, caixa da farmácia da esquina, a Dona Nice, copeira do escritório”, pois, segundo ela, “eles são não leitores”.

Ora, só eles? E quantos são leitores entre as elites econômica, social e política do País? Essa preocupação perpassa a obra de vários críticos ao longo do tempo, como José Ve­ríssimo, Sílvio Romero e Otto Maria Carpeaux, que se angustiavam com o grande número de profissionais liberais, como médicos, engenheiros, advogados, professores e outros profissionais de nível superior, que passam ao largo da literatura, limitando-se às leituras técnicas de suas respectivas áreas e reservando o tempo livre para outras formas de lazer, que nada têm a ver com as letras. Por isso, quando se pensa em pobre como sinônimo de não leitor, o que se quer, no fundo, é uma justificativa para arrancar dinheiro dos cofres públicos.

Simplificar livros agrava o problema da leitura

Linguagem difícil nunca foi o maior empecilho à leitura. Mário de Andrade, com seu espírito galhofeiro, disse que para se gostar de Machado de Assis é preciso já nascer velho. Eu vou mais longe: para se gostar de literatura é preciso envelhecer cedo. Por isso, o Eclesiastes diz que “o muito estudar enfado é da carne”. Em nenhuma época ou lugar, a leitura foi a mais popular das formas de lazer. A literatura é a mais reflexiva das artes e a maioria das pessoas abomina reflexão, que, para muitos, rima com depressão. Isso ocorre também com a música erudita. Quantas pessoas, ricas ou pobres, formadas ou não, tão logo se sentem tocadas por um concerto de Mozart, uma sonata de Beethoven, logo tendem a afastá-las dos ouvidos, pedindo uma “música alegre”, sob a alegação de que aquele tipo de música lhes provoca tristeza?

Creio que isso ocorre com qualquer povo, só que, no Brasil, fugir da reflexão como o diabo foge de cruz não é uma característica só das massas, mas também das elites. Uma frase de Machado de Assis talvez explique esse fenômeno: “A verdadeira ciência não é a que se incrusta para ornato, mas a que se assimila para nutrição”. Infelizmente, no Brasil, a educação nunca foi um meio de edificação intelectual e moral do indivíduo, como pregava Machado, mas um salvo-conduto para o sucesso social. Nas nações que levam a sério o conhecimento, o indivíduo primeiro busca o saber e, como consequência, conquista o diploma. No Brasil dá-se o contrário: o sujeito busca avidamente o diploma e, se sobrar tempo, vai à cata de algum conhecimento para fingir que não é de todo ignorante. Por isso, lê-se pouco no Brasil, mesmo entre a gente letrada: ler exige uma posição de sentido do espírito — que é cada vez mais rara numa nação que sempre desprezou o mérito.

Simplificar livros não resolve o problema — pelo contrário, agrava-o. Iniciativas como a de Patrícia Secco abastardam o povo brasileiro ao impedi-lo de conhecer o verdadeiro Machado de Assis, sufocado por uma montanha de 600 mil falsificações de sua obra. Nesta semana que passou, dormi menos de três horas por dia, em média, varando as madrugadas na comparação — linha por linha — da sagrada escritura de O Alienista de Machado de Assis com o apócrifo de mesmo nome da escritora Patrícia Secco. Ao cabo dessa ingente labuta (que Secco, toscamente, “traduziria” por “ao fim desse grande trabalho”), faço minha a indignação de Alcides Vilaça, professor da USP: “Apresentar como sendo de Machado de Assis uma mutilação bisonha de seu texto não devia dar cadeia?” Sim, devia dar cadeia, sobretudo para os tecnocratas do MEC que torraram mais de R$ 1 milhão dos cofres públicos nessa falsificação grosseira de Machado de Assis.

Machado de Assis para consumo próprio

Nem se pode chamar de adaptação esse trabalho de Patrícia Secco. Em sua arbitrária simplificação de O Alienista, com graves erros de interpretação de texto, a escritora-empresária embrutece o espírito do leitor ao falsear o estilo de Machado de Assis, descaracterizar seus personagens e descontextualizar sua obra. Segundo ela própria contou a Chico Felliti, da Folha, a equipe que “descomplica” o texto é formada “por um monte de gente” (expressão dela, segundo o jornalista), entre eles a própria escritora e “dois jornalistas amigos”. É como pegar pintores de parede num bar e levá-los para restaurar a Capela Sistina. O resultado não poderia ser pior. Onde Machado de Assis escreve: “Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte”; Patrícia Secco traduz: “Uma curiosidade científica iluminou os olhos de Simão Bacamarte”. Além de destruir a musicalidade da frase, a troca de palavras assassina o sentido do texto: “volúpia” tem uma forte conotação sexual, imprescindível para se compreender a paixão de Bacamarte pela ciência, algo que se perde completamente com a palavra “curiosidade”. Além do mais, palavras como “volúpia” e “alumiar” não precisam de tradução: a primeira pode ser lida na Bíblia ou ouvidas em homilias católicas e pregações evangélicas e a segunda, em que pese fazer parte do repertório clássico da língua, é perfeitamente compreensível para qualquer lavrador que nunca frequentou escola, mas sabe perfeitamente o que é uma candeia alumiando.

A impressão que fica é que Patrícia Secco e sua equipe traduziram Machado de Assis para consumo próprio. Ou alguém imagina que uma pessoa esforçada o suficiente para ler um livro não vai ser capaz de compreender, com a ajuda do contexto da obra, palavras e expressões como “congregar”, “atarantado”, “estatelar-se”, “pessoa de consideração”, “déspota”, “laudas”, “demanda”, “estar em erro”, “arruaças e clamores”, “vereança”, “eloquência”, “aritméticos”, “abono”, “vestuário”, “gaiato”, “intuito”, “oficiou”, “lusitana”, “juiz-de-fora” e outras do mesmo nível? Pois todas essas palavras foram substituídas por sinônimos catados arbitrariamente no dicionário sem levar em conta o contexto da obra muito menos o estilo do autor. Analisei minuciosamente a adaptação de Patrícia Secco e hei de voltar a ela. Mas já adianto: trata-se de um caso clínico de analfabetismo funcional, digno de ser recolhido às dependências da Casa Verde de Simão Bacamarte. Em vários momentos, Secco e sua equipe não conseguem compreender o que Machado diz com sua peculiar clareza e desvirtuam completamente o original.

Machado de Assis escreve: “Simão Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e aceitando essa ideia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos”. Patrícia Secco deturpa: “Simão Bacamarte começou organizando um pessoal de administração. Convencendo o farmacêutico Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos”. Reparem no absurdo: a adaptadora transforma o alienista num subordinado do boticário, a quem precisa convencer sobre a necessidade de uma administração em seu próprio manicômio. Em outro trecho, o Padre Lopes diz: “Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo”. A adaptadora reescreve: “Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, prejudica o juízo”. Chega a ser inacreditável essa troca da popularíssima expressão “vira o juízo” por “prejudica o juízo”, um barbarismo que deve ter revirado o estômago do primeiro verme que roeu as frias carnes do defunto Brás Cubas!

Deturpando o enredo e a história

Machado conta que, como D. Evarista não conseguia ter filhos, o Dr. Simão Bacamarte “fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial”. Entretanto, “a ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, — explicável, mas inqualificável, — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”. Qualquer dona de casa sem nenhum estudo compreende que D. Evarista, por amor à saborosa carne de porco de Itaguaí, não quis fazer a dieta proposta pelo marido e, por isso, não conseguiu ter filhos. Agora vejam a versão analfabeto-funcional de Patrícia Secco: “[Simão Bacamarte] acabou por indicar à mulher um regime alimentício especial. A ilustre dama, que deveria se alimentar exclusivamente com a carne de porco de Itaguaí, não atendeu aos conselhos do esposo. E, à sua teimosia — explicável, mas inqualificável — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”. Ela simplesmente está dizendo que o alienista receitou uma dieta de carne de porco à esposa, quando foi o contrário.

Mais adiante, quando descreve a revolta dos Canjicas contra a Casa Verde, Machado de Assis narra: “Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro”. Patrícia Secco estropia o texto: “Os soldados pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse. Mas, enquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro”. A adaptadora não faz ideia da conjunção “conquanto” e, em vez de recorrer a “embora”, a traduz por “enquanto”, transformado Machado em analfabeto. No mesmo episódio, o escritor diz que o capitão dos “dragões” mandou “carregar contra os Canjicas”. Patrícia Secco traduz “carregar” (que, no contexto, significa “investir contra”) por “disparar”, sem perceber que os dragões — como os “Dragões da Independência” de hoje — usavam espadas e não armas de fogo. Com isso, o leitor de sua adaptação vai achar que Machado de Assis fazia realismo mágico: uma tropa mete fogo na multidão e essa multidão arrosta as balas, sem medo da morte.

Uma das admiráveis qualidades do conto O Alienista é o cuidado com que a história aparece nele. Machado de Assis preocupa-se com os mínimos detalhes históricos e escreve que Simão Bacamarte era “o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”. Patrícia Secco corrige para “Espanha”, sem fazer a menor ideia de que, na época colonial em que se passa a história, a Espanha era oficialmente chamada de “Reino das Espanhas”. Em outro trecho, Machado diz que, para D. Evarista, ver o Rio de Janeiro “equivalia ao sonho do hebreu cativo”, sintetizando nessa expressão a sensação de exílio e confinamento que a acanhada Itaguaí produzia no espírito frívolo da mulher de Bacamarte. Patrícia Secco estraga a imagem, substituindo “hebreu cativo” por “judeu cativo”. Ela confunde os hebreus que se tornaram escravos no Egito e foram libertados por Moisés com os filhos da tribo de Judá que, já na terra prometida de Canaã, séculos depois, emprestariam o nome de sua tribo para todo o povo eleito. Se ao citar Dante, Machado tivesse dito, com precisão histórica, “poeta florentino”, não tenho dúvida de que Patrícia Secco iria corrigir para “poeta italiano”. Aliás, numa das raras e lacônicas notas de rodapé, a adaptadora faz isso: ela diz que Averrois é um filósofo e poeta “hispano-árabe”. É o mesmo que chamar Santo Agostinho de filósofo romano-argelino.

Por que Patrícia Secco e sua equipe cometem essa profusão de erros de extrema gravidade ao adaptar o conto de Machado de Assis? Sem dúvida, porque não estão à altura da tarefa. No fundo, a escritora e seus amigos jornalistas, a cada vez que buscam um sinônimo para um termo ou expressão do conto, estão traduzindo a obra para eles próprios e não para o eletricista, o faxineiro, o motorista de táxi, que precisam menos do que eles dessa facilitação. Para se ter uma ideia do quanto é absurda essa adaptação, Machado empregou o termo “transeuntes” e a adaptadora achou por bem substituí-lo pela expressão “os que por ali passavam”. Imagino Patrícia Secco ouvindo uma rádio AM do interior na década de 70, quando o Brasil era muito menos escolarizado do que hoje. Ela ficaria pasmada (ou “espantada” conforme sua tradução de Machado) ao se dar conta de que um dos grandes sucessos de Tonico & Tinoco, dedicado por peões de fazenda às suas respectivas namoradas, era a canção O Gondoleiro do Amor, um poema de Castro Alves, cantado pela dupla caipira ao som de violinos. Saudosos tempos em que uma dupla de lavradores elevava o povo até Castro Alves; hoje, gente como Patrícia Secco faz é rebaixar o povo quando dá a ele um Machado de Assis no nível de si mesma.

Por: José Maria e Silva Publicado no Jornal Opção de Goiânia