sexta-feira, 8 de agosto de 2014

A LÓGICA DA VIDA


A regra básica do comportamento humano, ou ninguém troca 10 por 9

O comportamento humano é um ato de vontade. Por ser um ato volitivo escolhemos e adotamos o tipo de comportamento que nos parece ser, nas circunstâncias, o mais conveniente. Todas as formas de comportamento são, em princípio, passíveis de ser escolhidas e adotadas.

Convém, preliminarmente, esclarecer que devemos entender comportamento humano como uma forma de ação que tem condições de ser adotada; uma forma de ação cuja implementação esteja ao nosso alcance. Portanto, apenas escolhemos, entre as formas de comportamento possível, aquele que nos parece ser o mais adequado. Obviamente, de nada nos adiantaria escolher um comportamento impossível. Seria uma contradição. Convém também não confundir comportamento com desejo: comportamento é uma forma de ação que só depende de nós; desejo é algo que, para ser realizado, depende não só de nosso comportamento, mas também de circunstâncias exógenas. Ganhar na loteria é um desejo; comprar um bilhete é um comportamento.

Entre os diversos comportamentos possíveis, existem alguns que provocam consequências que nos são desagradáveis, embora num primeiro e mais rápido juízo possam ter-nos parecido um caminho mais curto e menos penoso para a consecução do objetivo pretendido. Assim sendo, na medida em que sejamos capazes de identificar essas consequências desagradáveis como decorrentes do comportamento adotado, ou seja, na medida em que tenhamos consciência das relações de causa e efeito, reduzimos o espectro de nossas escolhas, pela exclusão daquelas ações cujas consequências desejamos evitar. As primeiras grandes limitações ao exercício de nossa vontade na escolha do comportamento que iremos adotar nos são determinadas pelas leis naturais. Sabemos todos que não devemos sair andando pela janela ou colocar a mão no fogo para apanhar um objeto, embora essa pudesse ser a nossa melhor opção, não fossem as bem conhecidas e desagradáveis consequências que as leis físicas e fisiológicas impõem ao nosso comportamento.

Mais importante ainda que as limitações impostas pelas leis naturais — e de consequências bem mais severas — são as limitações impostas pelas leis praxeológicas, ou seja, pelas leis do comportamento humano. Praxeologia (praxis — ação + logia — ciência) foi a denominação dada por Ludwig von Mises à ciência da ação humana na sua "ópera magna" — Ação Humana, publicada em 1949.

Entretanto, as limitações decorrentes das leis do comportamento humano não têm sido tão respeitadas como deveriam, sobretudo em virtude de suas consequências estarem geralmente distantes das respectivas causas, dificultando a percepção da relação de causa e efeito, o que faz com que soframos as consequências sem saber a que causas atribuí-las, levando-nos, não raro, a apontar falsos culpados para as mazelas que estão nos incomodando.

Valendo-nos de um aforismo criado pela sabedoria popular, podemos enunciar a regra básica do comportamento humano reduzindo-a à sua expressão mais simples, como sendo: "Ninguém troca 10 por 9." Vale dizer: voluntariamente, ou seja, por vontade própria ninguém troca algo a que atribui mais valor por algo a que atribui menos valor.

Obviamente, ninguém troca 10 por 9: ninguém troca 10 dólares por 9 dólares. Quem quiser assim proceder não precisa encontrar um parceiro para efetuar uma troca: basta renunciar ao que tem. Os que assim o desejarem são livres para fazê-lo até o limite de suas propriedades, num primeiro momento, e até o sacrifício de sua própria vida, num caso mais extremo. Convém esclarecer, apenas por uma questão de precisão conceitual, que quem assim agisse, por livre e espontânea vontade, não estaria trocando 10 por 9; estaria preferindo se desfazer daquilo a que atribui menos valor — seus bens e sua própria vida — para receber em troca aquilo a que atribui maior valor — a gratidão dos que beneficiou ou a satisfação íntima de ter feito o que considera ser um bem.

Ninguém, de livre e espontânea vontade, troca 10 por 9. É uma impossibilidade lógica. Ninguém conseguirá apontar uma situação ou uma circunstância em que essa regra possa ser negada. Embora, na vida real, as escolhas que temos que fazer sejam bem mais complexas, por mais complexas que sejam a lógica subjacente é sempre a mesma: ninguém troca aquilo a que atribui mais valor — no sentido mais amplo do termo — por algo a que atribua um valor menor. Ou seja: ninguém age para causar a si próprio uma insatisfação.

Por maior que seja o grau de complexidade de nossas escolhas e das trocas que fazemos no nosso dia-a-dia, envolvendo valores de natureza exclusivamente material ou de natureza sentimental, moral, afetiva ou estética, a lógica subjacente será sempre a mesma. Numa troca voluntária estaremos sempre recebendo algo a que damos mais valor e renunciando àquilo a que damos menos valor. Estaremos sempre trocando 9 por 10. Ninguém troca 10 por 9.

E, se estamos sempre trocando 9 por 10 e se a outra parte também está trocando 9 por 10, temos que após uma troca voluntária ambos ganham. Ambos resultam com algo a que dão mais valor. É, como se diz no jargão econômico, um jogo de soma positiva. Numa troca voluntária há como que uma criação de valor, uma vez que ambos os participantes, pela sua própria avaliação subjetiva, tiveram um aumento de satisfação.

Um produtor de maçãs pode propor ao seu vizinho — produtor de uvas — trocar uma caixa de maçãs por uma caixa de uvas. Como tem muitas maçãs, atribui um valor maior à caixa de uvas que receberá em troca. Para ele a troca é vantajosa, porque estará trocando algo a que atribui menos valor por algo a que atribui mais valor; para o seu vizinho a troca é também vantajosa, porque para ele, pelas mesmas razões, uma caixa de uvas tem menor valor do que uma caixa de maçãs.

Ludwig von Mises, no seu já citado livro Ação Humana, analisa esse conceito de forma bastante completa, mostrando exaustivamente que toda ação humana é um comportamento propositado: visa passar de um estado de menor satisfação para um estado de maior satisfação. Essa definição de ação humana é universal; não comporta exceções: ninguém poderá apontar um vago período da história ou uma tribo da Polinésia onde essa definição não se aplique. É um comportamento intrínseco ao ser humano; faz parte da lógica da vida.

Geralmente associamos estado de maior satisfação com melhoria da situação econômica. Mas é importante assinalar que o aumento de satisfação de natureza essencialmente econômica é apenas um caso particular de um fenômeno muito mais abrangente. A relação com a pessoa amada, o prazer da experiência estética e a busca do conhecimento são comportamentos que habitualmente nos levam a alcançar um estado de maior satisfação. O amor, a beleza e a verdade serão sempre fontes inesgotáveis de aumento de satisfação. Nas transações meramente econômicas o aumento de satisfação propiciado pela ação é denominado lucro; entretanto, lucro, no seu sentido mais abrangente, é o objetivo de toda ação humana. É preciso também se ter em mente que as escolhas feitas pelo homem são sempre escolhas individuais e nunca coletivas; o fato de numa comunidade a maioria das pessoas perseguir objetivos semelhantes usando meios análogos configura apenas a existência de um estágio cultural, ou seja, uma mesma forma de reagir às mesmas circunstâncias, e nunca uma decisão coletiva.

No exame das consequências do comportamento humano é mister distinguir comportamento propositado de comportamento instintivo, que é próprio dos animais e também do homem enquanto animal. As respostas instintivas e automáticas das células, órgãos e nervos de um animal estão impressas no seu código genético; não são um comportamento voluntário, fruto de uma escolha racional. Não são um ato de vontade e, como tal, não são passíveis de erro; são respostas invariáveis, ou melhor, que só variam quando as circunstâncias do acaso assim o provocam; e a necessidade, considerando o acréscimo de coerência e de eficácia trazido ao sistema, fixa essa nova forma de comportamento. Assim têm evoluído as espécies animais. Jacques Monod, ganhador do prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1965, no seu trabalho O Acaso e a Necessidade, desenvolve o tema de forma bastante clara, tornando-o compreensível mesmo para o leitor não especializado no assunto.

Já no caso dos seres humanos, ao comportamento instintivo se sobrepõe o comportamento propositado, fruto do emprego da razão, de que só o homem é dotado. O homem tem assim a capacidade e a possibilidade de influir na sua própria evolução, o que, sendo uma vantagem muito grande, pode também representar um risco desastroso. O processo civilizatório é uma ampla evidência dessa capacidade de o homem influir na sua própria evolução. O processo civilizatório consiste basicamente em tornar possível a existência de bens e serviços para cuja produção seja necessária uma seqüência de atividades intermediárias que se estendem ao longo do tempo e do espaço. Se o homem não tivesse tornado possível a produção de bens e serviços que demandam um alongamento do tempo e do espaço (no sentido de usar materiais e insumos que estão cada vez mais distantes do seu espaço de produção e consumo), estaria até hoje vivendo apenas "da mão para a boca".

O que tornou possível esse alongamento do processo produtivo e, portanto, do aumento da capacidade humana de gerar novas e maiores formas de satisfação foi a adoção de regras de conduta moral que inibissem o uso exclusivo da vontade, fazendo com que o homem considerasse, na escolha de seu comportamento, as consequências desagradáveis que adviriam se essas regras de conduta não fossem respeitadas. De certa forma, podemos dizer que a adoção de regras de conduta constitui um processo de contenção dos instintos pelo uso da razão. O ser humano civilizado, de uma maneira geral, não procura satisfazer os seus apetites tomando pela força o que pertence ao seu vizinho ou atacando uma fêmea que lhe desperte atração sexual, porque já percebeu — graças à razão de que é dotado — que esse comportamento, se generalizado, lhe será prejudicial e lhe acarretará uma diminuição de satisfação. Se o homem não tivesse universalmente adotado as regras do "Não matarás" e "Não roubarás" estaria ainda hoje vivendo praticamente como um animal.

E essas regras não poderiam vir a ser universalmente adotadas se o homem não tivesse também percebido a necessidade de criar um aparato de coerção — geralmente denominado estado — com a finalidade precípua de fazer cumprir essas regras e de punir os seus eventuais transgressores. Que o estado, que é um mero instrumento a serviço do homem, tenha se afastado dessa sua função precípua não deve ser entendido como uma condenação de sua existência, e sim como um mau uso feito pelos homens de um instrumento indispensável à existência do processo civilizatório.

Na escolha e na adoção das regras de conduta que o aparato de coerção do estado fará respeitar é indispensável levar em consideração as leis básicas do comportamento humano. Regras de conduta que nos obriguem a trocar 10 por 9, embora possam parecer benéficas no curto prazo, a longo prazo não serão obedecidas em virtude das consequências desagradáveis — e mesmo catastróficas — que inexoravelmente provocam. Tentaremos mostrar que muitas vezes, geralmente por um ato de coerção, como, por exemplo, uma intervenção do estado, somos levados a tomar decisões que implicam trocar 10 por 9, cujas consequências desastrosas não são percebidas como tendo sido causadas pela infausta intervenção que, freqüentemente, continua a prevalecer simultaneamente com o alarido e a reclamação contra as consequências causadas pela própria intervenção. Ou seja: somos levados a trocar 10 por 9, continuamos a fazê-lo e ao mesmo tempo reclamamos das consequências sem nos apercebermos da causa de nosso infortúnio. É como se continuássemos a colocar a mão no fogo e a reclamar de que a nossa mão está sendo queimada, sem nos darmos conta de que a queimadura decorre de estarmos colocando a mão no fogo.

E é compreensível que assim seja, uma vez que o comportamento propositado, por ser um ato de vontade fruto da análise que o homem faz de suas circunstâncias, é passível de erro. As circunstâncias podem ser enganadoras, a razão pode ser superficial, as informações podem estar deformadas, e a escolha feita pelo homem pode se revelar errada. Errada no sentido de que a ação escolhida não irá proporcionar o aumento de satisfação cuja expectativa havia motivado a ação. A correta compreensão da lei básica do comportamento humano poderá nos ajudar a diminuir os erros que cometemos e, portanto, as consequências deles decorrentes. Sim, porque se erros não tivessem consequências não teriam importância nem precisariam ser evitados. Erro, no caso, significa um comportamento adotado na presunção de que nos propiciará um aumento de satisfação mas que, na realidade, provoca um aumento de desconforto.

O fato de o homem sempre trocar 9 por 10 faz com que exista, entre os seres humanos, o que se chama de progresso. Ao longo de sua história, por ter cometido muito mais acertos do que erros, o homem progrediu. Não se poderá dizer o mesmo dos animais: ninguém poderá falar do progresso das girafas ou das abelhas. O conceito de progresso só se aplica ao ser humano em virtude da razão de que é dotado.

Mas, se cometeu mais acertos do que erros, nada impede que venha a cometer mais erros do que acertos, bastando para tal um mau uso da razão e uma inadequada compreensão de suas circunstâncias. O homem, por isso, se por um lado é capaz de promover o progresso pode, também, diferentemente dos animais, promover o atraso e até mesmo, no limite, provocar a sua própria extinção, em virtude de seus próprios erros. Não se está querendo dizer com isso que o homem esteja correndo o risco, ainda que remoto, de extinção, mas apenas ressaltar que essa não é uma impossibilidade lógica, bastando para tal que passe a trocar 10 por 9 pensando que está trocando 9 por 10. E, se a extinção é uma hipótese meramente conjectural, o possível empobrecimento ou não-enriquecimento é uma circunstância concreta e perfeitamente identificável no nosso dia-a-dia.

Os objetivos que cada um pretende alcançar — e, portanto, o que cada um entende como "progresso" — variam de indivíduo para indivíduo e, no mesmo indivíduo, podem variar de um momento para outro. O que para um indivíduo poderá ser visto como um aumento de satisfação poderá, para outro, ser entendido como um aumento de desconforto. Ninguém, a não ser o próprio indivíduo, pode avaliar as suas circunstâncias. Afinal, o ser humano é a única testemunha de si mesmo. Por isso não é possível a alguém ou ao órgão central de um governo estabelecer os objetivos a serem perseguidos pelos indivíduos e muito menos tentar implementá-los.

Para que o nível de acertos seja o maior possível, é indispensável que se respeitem dois postulados: primeiro, que o homem seja livre para fazer as suas escolhas, porque só ele dispõe das informações que são próprias de suas circunstâncias e ninguém as conhece tão bem quanto ele; e, segundo, que seja respeitado o princípio da responsabilidade individual, para que cada indivíduo se beneficie dos seus acertos e sofra as consequências de seus erros, o que fará com que, num permanente processo de feedback, possa modificar as suas escolhas e alterar o seu comportamento. A tentativa de determinar, invocando razões de natureza política, social ou de qualquer outra natureza, quais devam ser os objetivos individuais só pode ser efetivada pelo uso da coerção e constitui o que Friedrich von Hayek, no seu último livro, qualificou de "Presunção Fatal", por conter subjacente a pretensão de que alguém — seja o rei-filósofo de Platão, ou um déspota esclarecido, ou um comitê central, ainda que eleito democraticamente — possa conhecer as circunstâncias de cada indivíduo. Essa mesma percepção já havia levado Kant a dizer, com propriedade: "Ninguém pode me obrigar a ser feliz à sua maneira."

Se no escopo geral de nossas decisões — a escolha do cônjuge, de nossa profissão, de quem vamos nos tornar amigos — a grande maioria concordará que a decisão deve ser deixada a cargo de cada indivíduo, no caso das decisões de natureza tipicamente econômica um grande número de pessoas, se não mesmo a maioria (ou, pelo menos, a maioria dos que detêm o poder), é propenso a acreditar que deve interferir nas decisões individuais, geralmente sob o pretexto de que se assim não o fizerem os indivíduos que foram capazes de escolher o cônjuge, decidir ter filhos, escolher o presidente da República, etc. não serão capazes de fazer a escolha que melhor convém aos seus interesses. Assim sendo, através do poder de coerção do estado interferem nas decisões econômicas, tentando determinar qual deve ser o salário, a jornada de trabalho, a taxa de juros, a taxa de câmbio, o preço das mercadorias, o nível de competição empresarial e tantas coisas mais.

Esse procedimento, por beneficiar alguns e prejudicar outros — geralmente a grande maioria — e por não dispor de um mecanismo nítido de feedback, como na decisão individual, pode fazer com que se persista no mesmo erro durante décadas sem que se perceba que estamos sendo obrigados a trocar 10 por 9 e, por conseguinte, empobrecendo. Os benefícios, por estarem concentrados em alguns grupos, são bem identificados, enquanto os malefícios, estando dispersos no grande número, não chegam a ser claramente percebidos; formam-se, assim, os grupos de pressão que defendem a intervenção que lhes é benéfica sem encontrar resistência da grande maioria que está sendo prejudicada.

Por isso, tanto no caso das decisões de natureza econômica quanto no caso de decisões de natureza afetiva, política ou de qualquer outra natureza, para que o número de acertos e o aumento de satisfação sejam cada vez maiores, é indispensável, convém repetir, que prevaleça a liberdade individual e que os indivíduos sofram ou usufruam as consequências de suas escolhas. O estado, que detém o monopólio da coerção, tem como função precípua garantir esse direito à liberdade individual não só nos seus aspectos políticos, mas também nos seus aspectos econômicos. Se assim o for, prevalecerá na sociedade uma economia de mercado. A economia de mercado é um fenômeno natural, como o leito de um rio no seu caminho para o mar. O estado não tem como implementá-la; pode apenas obstruí-la. Os indivíduos, desde que lhes seja garantida a liberdade, empregarão o melhor do seu esforço e do seu talento para trocar 9 por 10, numa troca voluntária em que sempre ambas as partes ganham, e a comunidade progride. E assim farão existir uma economia de mercado sem que tenha sido esse o seu desígnio explícito. Foi para descrever esse fenômeno que Adam Smith cunhou a tão famosa expressão "mão invisível", no célebre e notável trecho de seu livro A Riqueza das Nações: "O indivíduo, ao visar apenas alcançar um aumento de sua satisfação, é como que conduzido por uma mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de sua intenção."

A humanidade em geral e as elites intelectuais e políticas em particular ainda não se deram conta da importância de conhecer e respeitar as regularidades da ação humana. Parecem crer, como bem assinalou Ayn Rand, "que a ciência só é aplicável quando lidamos com objetos inanimados; quando se trata de seres humanos o conhecimento deixa de ser necessário, os princípios passam a ser irrelevantes, a causalidade não produz efeitos, as consequências não podem ser previstas, e para que possa existir uma sociedade livre e próspera bastam líderes com boas intenções e bastante poder".

Talvez seja porque imaginam que o avanço do conhecimento no campo das ciências humanas deva ocorrer como ocorreu, com enorme sucesso, no campo das ciências naturais. Talvez não estejam percebendo, como salientou Alberto Benegas Lynch em seu livro El Juício Crítico Como Progreso, que existe uma diferença epistemológica fundamental entre esses dois ramos do conhecimento: as ciências naturais são hipotético-dedutíveis, ou seja, a partir de uma hipótese, confirmada pela experiência ou pela observação da natureza, é possível enunciar uma lei e deduzir as suas consequências. E assim será até que uma nova hipótese e a confirmação dessa nova hipótese venham mostrar que a anterior ou estava errada ou era apenas um caso particular de uma nova teoria mais abrangente. É conhecida a resposta de Einstein, numa entrevista à imprensa em que os jornalistas tentavam depreciar Newton por ter sido a sua teoria superada pela nova teoria gravitacional do contínuo espaço-tempo: "Quão sábio foi Newton que, ao enunciar a sua teoria, não disse que matéria atrai matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias, e sim que tudo se passa como se matéria atraísse matéria..."

O sucesso do método experimental das ciências naturais pode ter induzido a que esse mesmo método fosse usado nas ciências humanas. Mas ocorre que as ciências humanas — ou praxeológicas — são axiomático-dedutíveis. Ou seja: a partir de um axioma que não possa ser refutado, são dedutíveis as consequências das regularidades do comportamento humano. Não adianta fazer experiências; não bastam boas intenções: é preciso refutar o axioma original. E o axioma central da ação humana: toda ação humana visa obter um aumento de satisfação — o que aqui enunciamos como sendo ninguém troca 10 por 9 — está aí para ser refutado por quem for capaz de fazê-lo. Mas, se isso não for possível, há que respeitá-lo e compreender que não respeitá-lo produz, inexoravelmente, consequências indesejadas.

E isso é assim porque a lógica do comportamento humano é a mesma de todo ser vivo, seja ele uma simples célula, uma bactéria ou um ser humano. Todos têm o mesmo propósito: o de prover a sua sobrevivência e a sua descendência. Por isso, um ser vivo não efetua qualquer troca que lhe seja química ou fisicamente possível, mas somente aquelas que lhe propiciem um aumento de coerência e de eficiência para a realização de seu propósito. Por isso, o ser vivo não troca 10 por 9. Se assim procedesse estaria contrariando a lógica da vida e terminaria por deixar de existir.

Podemos imaginar um Universo regido por leis físicas completamente diferentes: um Universo em que a gravidade afaste os corpos ou em que a luz seja instantânea. Não há nenhuma impossibilidade lógica nisso. Podemos imaginá-lo de qualquer forma, porque o Universo não tem um propósito. Mas não podemos imaginar um ser vivo que troque 10 por 9; porque o ser vivo tem um propósito: preservar a sua própria vida. Do ser humano à forma mais elementar de vida, "o sonho de cada célula é tornar-se duas", como assinalou o cientista François Jacob, ganhador do prêmio Nobel de Medicina. Trocar 10 por 9 seria negar a própria vida. Seria pretender que a vida pudesse obedecer à lógica da morte. O que seria um paradoxo, e os paradoxos não existem; por definição não podem existir. A vida não é um paradoxo.

As circunstâncias em que somos levados a trocar 10 por 9

Para que uma troca voluntária se realize é condição necessária que as partes envolvidas obtenham, com a troca, um aumento de satisfação. Se assim não for, a troca simplesmente não se realiza, e as coisas continuam inalteradas.

Existem, entretanto, circunstâncias em que somos levados a efetuar trocas que acarretam, pelo menos a uma das partes envolvidas, uma diminuição de satisfação; trocas que, não fora a existência das referidas circunstâncias, certamente não seriam realizadas. Ao realizá-las temos consciência de estar trocando 10 por 9 ou pensamos estar assim agindo por estarmos mal informados. O primeiro caso ocorre quando nos vemos diante de uma situação de coerção, hipótese em que ao nosso ganho somos forçados a acrescentar o benefício de não sofrer a violência decorrente da coerção, seja ela legal ou ilegal. No segundo caso embora pensando estar trocando 10 por 9, estamos sendo levados a agir contra o nosso interesse, contra, portanto, o nosso aumento de satisfação, por fraude ou por ignorância.

No caso da coerção somos levados a fazer uma troca que nos é insatisfatória; e só aceitamos fazê-la para evitar uma possível represália, em virtude da existência de um poder de coerção. Diante da arma de fogo de um assaltante, que nos obriga a escolher entre "a bolsa ou a vida", a grande maioria dos indivíduos preferirá entregar a carteira para poder permanecer vivo. Se nos abstrairmos dos aspectos éticos e psicológicos de uma situação como essa, podemos dizer que a troca assim efetuada representou, em termos estritamente econômicos, um jogo de soma zero: o que um tinha na carteira passou a pertencer a outro.

Mas a troca forçada pela coerção pode assumir formas bem mais complexas, bem mais freqüentes e bem mais nocivas por resultar, em termos estritamente econômicos, num jogo de soma negativa, no qual as partes envolvidas ou têm uma diminuição de satisfação ou pelo menos não têm o aumento de satisfação que poderiam ter. Por exemplo: se o estado determina que um determinado produto de uso corrente e de difícil substituição deva ser objeto de um monopólio — pouco importa se estatal ou privado — e se o detentor do monopólio, cuja existência se deve exclusivamente ao poder de coerção do estado, for pouco eficiente, tiver custos altos e grande margem de desperdício, como inevitavelmente sói acontecer, as trocas que vierem a ser efetuadas constituirão um jogo de soma negativa, porque o comprador é compelido a receber um produto mais caro e de pior qualidade sem que isso represente um maior ganho para o vendedor. Não tivessem ocorrido a coerção e o correspondente monopólio, se prevalecesse uma situação de liberdade e, portanto, de competição, o comprador teria acesso a um produto melhor e mais barato, e o vendedor ainda teria um lucro maior, devido à sua maior eficiência, criatividade e eliminação de desperdícios.

São exemplos nítidos dessa deformação, na nossa história recente, os monopólios do petróleo, das telecomunicações e da energia elétrica, que nos obrigaram a pagar mais por produtos de pior qualidade enquanto as empresas, no caso estatais, não conseguiram gerar resultados compatíveis com a insatisfação que estava sendo imposta à população brasileira. São também bons exemplos dos malefícios da interferência estatal o protecionismo concedido a setores industriais — notadamente à indústria automobilística —, que nos obrigou, durante muito tempo, a comprar verdadeiras "carroças" piores e mais caras por estarem protegidas da competição. Os bancos estatais, que "conseguiram" ter prejuízo embora estivessem atuando numa área, durante muito tempo, extremamente lucrativa, bem como a lei de informática, proibindo o consumidor brasileiro de ter acesso aos enormes avanços tecnológicos, ilustram também essa ocorrência do jogo de soma negativa gerado pela interferência do estado nas relações de troca, que, se tivessem sido livres, teriam provocado um jogo de soma positiva e um aumento de satisfação para a grande maioria do povo brasileiro.

Mas, certamente, em nenhum outro caso os inconvenientes da presença de coerção nas trocas voluntárias foram mais desastrosos e mais duradouros do que os ocorridos no grande período da inflação brasileira. A inflação brasileira, com seus enormes malefícios sobre os mais necessitados, só pôde ter tido a dimensão e a extensão catastrófica que teve porque o estado brasileiro nos obrigou, coercitivamente, a usar as suas diversas moedas de curso legal — seja o cruzeiro, o cruzado ou o real. Tivesse-nos sido possível recorrer a outras moedas nas nossas transações particulares, a moeda podre de curso legal teria ficado restrita ao uso do estado e, como tal, teria tido vida curta, encurtando correspondentemente os danos causados aos cidadãos que foram forçados a usá-la por tanto tempo.

Um regime que nos permita escolher livremente a moeda a ser usada nas nossas transações é, sem dúvida, o que maiores benefícios traria a todos, sobretudo por evitar que, por falta de alternativa, tivéssemos que sofrer as consequências de um estado irresponsável. Se um país é capaz de gerar uma moeda de curso legal decente e estável, a questão da livre competição entre moedas perde muito de sua relevância. Um país como a Suíça, a Alemanha ou os estados Unidos, onde é livre a circulação de capitais e onde há uma tradição de zelar pela consistência de sua moeda, pode, sem grandes consequências, adotar uma moeda de curso legal; mas, se suas autoridades políticas vierem a cometer os desatinos que as nossas cometeram, aqui como lá será muito melhor abolir a moeda de curso legal e permitir a livre competição entre moedas.

De consequências mais amenas e menos duradouras são aquelas em que a troca é influenciada por algum tipo de fraude. O uso de meios fraudulentos para obter vantagens não consegue mais do que resultados efêmeros e pouco importantes. Afinal, como ressaltou Lincoln, num célebre discurso, "é possível enganar alguns durante todo o tempo e enganar todos durante algum tempo, mas não é possível enganar todos durante todo o tempo". Nos tempos modernos, o recurso à fraude ocorre com mais freqüência através da publicidade enganosa; seus mentores geralmente só conseguem ser bem-sucedidos por um prazo curto, até que a farsa seja desmascarada. Onde há liberdade e vigora uma economia de mercado isso não chega a assumir uma dimensão que provoque maiores apreensões.

A terceira hipótese em que as trocas voluntárias podem resultar numa diminuição de satisfação ocorre quando prevalece um razoável grau de ignorância. Ignorância, naturalmente, em relação ao nível de conhecimento já existente, que, portanto, poderia ter sido superada. As consequências da ignorância que ultrapassa o conhecimento existente não têm como ser evitadas. São apenas um dado de nossas circunstâncias. Ao efetuar uma troca, uma das partes — ou ambas —, por ignorância das consequências que advirão, pensa estar fazendo uma transação que lhes proporcionará um aumento de satisfação e só mais tarde, às vezes bem mais tarde, percebe que cometeu um equívoco e, se pudesse voltar atrás, não faria de novo a mesma opção. Essas circunstâncias estão presentes e têm mais importância em escolhas de natureza pessoal, como a escolha do cônjuge ou do sócio, ou, ainda, na escolha de nossos representantes no processo político e do consequente sistema de organização da sociedade — mais ou menos autoritário e/ou intervencionista — que deverá prevalecer. No plano econômico, sua ocorrência é geralmente identificada como tendo sido um "mau negócio".

Em qualquer dessas circunstâncias que provocam indesejadamente um aumento de desconforto, em vez de um aumento de satisfação, a melhor alternativa para diminuir a sua ocorrência ou minimizar-lhes as consequências é fazer prevalecerem a liberdade e a responsabilidade individual, o que implica, como consequência, a prevalência da democracia representativa no plano político e da economia de mercado no plano econômico. Se assim for, através do feedback negativo (que é, reconhecidamente, entre os diversos métodos que podem ser utilizados pela humanidade para reduzir a ignorância, o mais eficaz e o mais utilizado) as pessoas sofrerão as consequências de seus atos e, tendo liberdade, adotarão um novo comportamento mais compatível com o objetivo intrínseco de toda ação humana, que é obter um aumento de satisfação.

As consequências de sermos levados a trocar 10 por 9

As consequências mais graves de sermos levados a trocar 10 por 9 ocorrem em virtude do uso prolongado do poder de coerção do estado com o propósito de impor relações de troca diferentes daquelas que prevaleceriam num ambiente institucional em que as trocas fossem voluntariamente pactuadas. Em situações dessa natureza, as consequências transcendem de muito os prejuízos individuais das partes envolvidas e assumem uma dimensão verdadeiramente desastrosa, geralmente por impedir ou inviabilizar a realização de trocas individuais que, não fora a malsinada intervenção do estado, poderiam estar ocorrendo e, portanto, propiciando um aumento de satisfação. O mal maior não decorre das transações feitas, e sim das transações que poderiam estar sendo feitas e que deixam de ser feitas.

E, se num primeiro momento essa intervenção aparentemente favorece uma das partes — a parte tida como mais "fraca", em detrimento da parte mais "forte" — e por esse motivo geralmente receba um razoável apoio popular e, por conseguinte, da classe política, num segundo momento os grandes prejudicados são invariavelmente os da classe que se pretendia amparar.

Duas situações bastante conhecidas da realidade brasileira serão suficientes para ilustrar esse verdadeiro "tiro pela culatra" da intervenção estatal, quando medidas que restringem a liberdade de troca, tomadas com razoável, se não amplo, apoio popular resultaram numa verdadeira tragédia para os menos favorecidos. E, como sempre, por estarem os efeitos distantes das causas, passam desapercebidas as relações de causa e efeito, fazendo com que essas intervenções sejam mantidas e até mesmo louvadas, apesar de suas desastrosas consequências.

A primeira é a que decorre da promulgação da "lei do inquilinato", há mais de 50 anos. Naqueles idos o investimento em apartamentos ou casas — geralmente casas de vila ou casas de cômodos — com o propósito de auferir uma renda através do aluguel era uma forma de poupança bastante simples e disseminada, bem de acordo com as nossas origens portuguesas. Quem dispunha de recursos fazia logo umas casinhas ou comprava uns apartamentos para garantir uma renda na velhice. Estatísticas indicam que mais de 50% das unidades construídas àquele tempo o eram para aluguel.

Sendo muito difícil para quem está começando a vida adquirir uma casa, a solução de alugar a sua moradia apresentava-se como uma alternativa viável, até que a ascensão social permitisse o passo maior da aquisição da casa própria, livrando-se do aluguel e até mesmo gastando com a prestação de um possível financiamento o valor até então pago a título de aluguel.

As condições de locação eram livremente pactuadas; e o mercado e a lei da oferta e da procura se encarregavam de adequar o tipo e a localização das unidades em função da capacidade de pagamento de cada um, como ocorre em qualquer segmento da atividade econômica em que prevalecem a liberdade econômica e a livre interação dos indivíduos na busca incessante do seu aumento de satisfação. Raramente, àquele tempo, a taxa de retorno sobre o investimento feito em imóveis para aluguel ultrapassava 10% ao ano.

Foi então promulgada a lei do inquilinato, que, com o propósito de proteger os inquilinos da "ganância" dos proprietários, determinava que os valores do aluguel pactuado não poderiam ser modificados no tempo. Tal provisão, prevalecendo ao mesmo tempo em que o fenômeno inflacionário assumia proporções alarmantes, fez com que a renda dos aluguéis se tornasse verdadeiramente ridícula diante do investimento que havia sido feito. Para os proprietários dos imóveis já construídos não havia alternativa; mas ninguém mais poderia se dispor a fazer investimentos dessa natureza, e o número de imóveis construídos para aluguel reduziu-se a ínfimos 3% do total de habitações construídas.

Só uma minoria pode dispor de recursos para comprar ou construir sua própria casa; a grande maioria, não dispondo de recursos, não existindo sistema de financiamento a longo prazo e tendo deixado de haver uma oferta de imóveis para aluguel, ficou completamente sem alternativa. Isso num quadro de população urbana crescendo explosivamente. A consequência natural foram as favelas: não podendo construir sua casa própria e não havendo oferta de imóveis para locação, a única alternativa para esses mais desfavorecidos foi invadir terrenos e construir barracos — inicialmente, de tábuas e caixotes; hoje, as favelas têm edifícios de cinco andares em concreto armado, construídos de forma totalmente ilegal. É importante notar que nas favelas sempre existiram "barracos" ou quartos para aluguel cuja rentabilidade econômica é bastante satisfatória. Isso só é possível porque nas favelas, construídas ilegalmente, convém reafirmar, nunca prevaleceu a lei do inquilinato; os aluguéis são estabelecidos em dólares — e ai daqueles que não pagá-los.

Não era isso o que se pretendia com a promulgação da lei do inquilinato, mas foi essa a inexorável consequência de se interferir em relações livremente pactuadas com o propósito de obrigar uma das partes a trocar 10 por 9. A consequência foi muito mais danosa aos menos favorecidos, já que os detentores de recursos deixaram de investir em imóveis e passavam a fazer novos tipos de investimentos. No caso brasileiro, uma boa parte desses investimentos foi absorvida pelo estado e está representada pela enorme dívida pública estatal contraída para cobrir os gastos no mais das vezes suntuosos, eivados de desperdícios e não raro acrescidos pelo fenômeno da corrupção.

É importante ressaltar que a população favelada, na sua maioria, tem poder aquisitivo para pagar um aluguel suficiente para remunerar o investidor; a oferta de imóveis de aluguel é que foi gradualmente desaparecendo, devido à desastrada intervenção do estado. Não fora isso, a nossa geografia urbana seria hoje bastante diferente, porque não nos faltariam recursos, capital e tecnologia para que fossem construídos imóveis de aluguel, legais, economicamente rentáveis, que pudessem abrigar a grande maioria da população favelada.

O segundo caso, também de consequências trágicas, refere-se à nossa legislação trabalhista. A relação de troca entre empregador e empregado é das mais antigas do mundo e também a que envolve o maior número de variáveis: jornada de trabalho, dias de férias (remunerados ou não), assiduidade, condições de rescisão, periculosidade, esforço físico — condições estas que, quando não estão explicitadas, obviamente se refletem no valor do salário. A tentativa de padronizar essas variáveis, determinando como devem ser as condições do contrato de trabalho, ao invés de permitir que as pessoas pudessem livremente pactuar as suas relações de troca, conduziu a resultados que são o oposto do que pretendiam os seus mentores quando introduziram a legislação trabalhista nas relações entre empregadores e empregados.

Convém notar que a introdução da legislação trabalhista resultou num jogo de soma negativa. Ou seja: os empregadores são obrigados a pagar mais pelo serviço contratado, e os empregados recebem menos pelo serviço prestado. Ambos foram obrigados a trocar 10 por 9.

Devemos ter em mente que a legislação trabalhista representa, de uma maneira geral, de um ponto de vista estritamente econômico, uma poupança compulsória que o empregado, queira ou não queira, seja-lhe vantajosa ou não, é obrigado a fazer. Uma parte dessa poupança — férias, 13º salário, aviso-prévio — fica em poder do empregador para ser devolvida ao empregado depois de um ano ou mais. A parte maior, entretanto, é entregue ao estado para ser devolvida 35 anos depois sob a forma de aposentadoria ou ao longo de sua vida, sob a forma de assistência de saúde.

Por que um empregado deve receber um 13º salário no mês de dezembro, em vez de receber essa importância todos os meses e fazer ele mesmo, se assim julgar mais importante e mais conveniente, uma poupança para ser utilizada durante o Natal? Por que não receber o valor das férias todos os meses, dando a esses recursos outras destinações mais urgentes, cabendo-lhe apenas o direito de se ausentar do trabalho durante um certo período, sem receber nada, pois já o recebeu junto com o salário? Ou mesmo não tirar férias e receber mais, o que, para inúmeras pessoas, sobretudo as que estão iniciando sua vida laboral, é uma alternativa bem mais conveniente?

Se no caso da poupança compulsória, deixada à disposição do empregador por pelo menos um ano, a situação já é um absurdo, no caso da poupança entregue ao estado o resultado é calamitoso. Obrigar o trabalhador a poupar cerca de 35% do seu salário durante 35 anos de vida para, ao final, ter direito a uma aposentadoria do INSS é inqualificável. Deve ser a isso que chamam de "justiça social"!

Se considerarmos que não fosse a compulsoriedade do sistema estatal as pessoas poderiam comprar o seu próprio plano de aposentadoria e de saúde e que 10% do salário seriam suficientes para garantir, após 35 anos, uma aposentadoria bem melhor do que à que hoje os trabalhadores brasileiros têm direito; se acrescentarmos 3% a título de seguro para que, em caso de morte antes dos 35 anos, a família possa receber a aposentadoria como se a contribuição houvesse sido feita integralmente e ainda 4% para atender a um seguro saúde, temos que com 17% do salário o trabalhador obteria muito mais do que obtém hoje "poupando" 35% do seu salário! E se, além disso, considerarmos que esse trabalhador não raro veio do Nordeste, trabalhou em diversos empregos, alguns sem carteira assinada, ficou algum tempo desempregado, quando consegue reunir toda a papelada para obter sua aposentadoria já está no limite de sua expectativa de vida — malnutrido que foi e sem acesso a uma assistência médica eficiente — podemos aquilatar a dimensão do disparate que estamos cometendo há mais de 50 anos. É, podemos assim qualificar, um caso de sadismo explícito.

A consequência natural dessa intervenção tão prolongadamente mantida graças ao poder de coerção do estado, impedindo que pudesse prevalecer uma livre negociação entre as partes, consiste no fato de que mais da metade da população brasileira economicamente ativa trabalha na economia informal. E isso por quê? Porque o empregador gasta menos e o empregado ganha mais. A economia informal foi a forma que empregador e empregado encontraram para não ter que trocar 10 por 9 e para poder estabelecer uma relação de troca que lhes seja mutuamente mais vantajosa.

Implementada sob o galardão de ser a "legislação trabalhista mais avançada do mundo", conseguiu a façanha de colocar metade da força de trabalho na economia informal. É o preço que estamos pagando por não levar em consideração a regra básica do comportamento humano.

A solução para essas mazelas, assim como para inúmeras outras que poderiam ser apontadas, consiste exatamente em não obstruir a liberdade que as pessoas devem ter para, na sua interação com outras pessoas, buscar o que consideram ser um aumento de satisfação — aumento de satisfação esse que só pode ser avaliado pelo próprio indivíduo, uma vez que só ele conhece as suas circunstâncias e o valor que atribui a cada uma delas. E, além disso, fazer valer o princípio da responsabilidade individual para que cada um possa se beneficiar ou sofrer as consequências de suas decisões e, dessa forma, modificá-las e aprimorá-las ao longo da vida nesse processo permanente de remoção da ignorância. Para que o princípio da responsabilidade individual seja efetivo, cabe ao estado zelar pelo cumprimento dos contratos, fazendo com que efetivamente as pessoas sofram as consequências de seus atos; para isso foi-lhe atribuído o monopólio da coerção, e não para determinar quais devam ser as nossas decisões.

A humanidade tem boa consciência das consequências de um comportamento que desrespeite as leis naturais; infelizmente, o mesmo não pode ser dito em relação às leis praxeológicas, ou seja, as leis da ação humana. Seria preciso que a humanidade e, sobretudo, as suas elites intelectuais compreendessem que o desrespeito às leis do comportamento humano provoca consequências que podem ser desastrosas e que poderiam ser evitadas. Mas, se não forem capazes de compreendê-lo, não estarão invalidando as leis do comportamento humano. Estarão apenas empobrecendo a sociedade humana ou impedindo que ela enriqueça tanto quanto poderia, diminuindo-se o grau de satisfação dos indivíduos que a compõem.



Donald Stewart Jr. (1931--1999) foi um engenheiro civil, empresário e ativista liberal brasileiro. Fundador do Instituto Liberal, e tradutor de várias obras de Mises, inclusive Ação Humana, foi sócio da Sociedade Mont Pèlerin e um dos grandes expoentes do liberalismo no Brasil. Faleceu em 1999, vitimado pelo câncer.


quinta-feira, 7 de agosto de 2014

AFINAL, O QUE É UM DIREITO?

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"Eu tenho esse direito!"

Várias pessoas fazem essa afirmação sem nem sequer pensar na natureza e na fonte dos direitos. O que são direitos? De onde eles vêm?

A visão progressista ou intervencionista diz que, desde que a legislação seja criada de acordo com as regras do devido processo legal, o governo tem o poder de criar e extinguir direitos. Por exemplo, o governo pode, por meio dos votos do legislativo, criar ou extinguir o direito a um emprego, a uma educação "gratuita", ou a receber comida.

Quando os progressistas querem expandir os tentáculos do governo, eles frequentemente inventam uma distinção bastante peculiar entre "privilégio" e "direito". De acordo com eles, está ocorrendo um privilégio quando uma pessoa pode adquirir um bem ou serviço por meio de suas próprias posses; já quando o governo usa o dinheiro de impostos ou outros poderes coercivos para fornecer esse bem ou serviço para indivíduos, independentemente de quais sejam as posses desses indivíduos, isso seria apenas um direito.

Coisas realmente importantes, dizem os progressistas, devem ser direitos, e não privilégios. Por exemplo, acesso a serviços de saúde já foi um privilégio, mas agora é louvado, tanto na retórica quanto na lei, como um direito. O mesmo é dito sobre educação e moradia.

De fato, a natureza dotou os seres humanos de alguns direitos. Tais direitos são chamados de "direitos naturais" — isto é, direitos são inerentes à natureza humana; direitos que todos nós como seres humanos usufruímos pela simples virtude de sermos humanos. Esses direitos não podem ser negados, pois, se isso ocorrer, a pessoa que os nega estará caindo em contradição. 

Esses direitos naturais, por essa sua natureza, são logicamente anteriores à existência do governo. Caso estivéssemos em um mundo sem nenhum governo, ainda assim tais direitos existiriam. Eles não dependem de nenhum governo para existir. E o governo não tem nenhuma autoridade legítima para acrescentar ou subtrair direitos. No máximo, ele pode apenas protegê-los.

Se quisermos avaliar se um determinado direito, um suposto direito, é de fato um direito genuinamente válido, então é necessário fazermos um teste crítico e logicamente irrefutável, qual seja: todos nós temos de ser capazes de usufruir esse mesmo direito, ao mesmo tempo e da mesma maneira.

Apenas assim esse direito pode ser natural. A obviedade dessa afirmação vem do fato de que, para um direito ser natural, seu usufruto não pode levar a nenhum conflito ou a nenhuma contradição lógica.

Se algo é um direito natural, então ele se aplica a todos os indivíduos simplesmente pela virtude de serem humanos. Se uma pessoa tem um determinado direito, então todos os outros seres humanos devem logicamente ter esse mesmo direito. Não pode haver conflito. Um indivíduo não pode, sem cair em contradição, alegar que possui um direito humano e, ao mesmo tempo, negar esse direito para terceiros. Fazer isso seria o equivalente a admitir que esse direito não é realmente um direito "humano". Isso, sim, seria um privilégio.

Ademais, e como dito, tem de ser possível que todos os indivíduos possam usufruir esse suposto direito simultaneamente, sem nenhuma contradição lógica. Se, quando eu exerço um direito que alego possuir, estou fazendo com que seja impossível outra pessoa exercer esse mesmo direito ao mesmo tempo, então minha ação implica que este suposto direito não é inerente à natureza humana. Minha ação implica que tal direito é apenas meu, e não de outra pessoa.

Por exemplo, suponha que eu alegue ter direito a um emprego. Se tal alegação significa que eu estarei empregado sempre que eu quiser (e o que mais ela significaria?), então tem de haver outra pessoa com o dever de me fornecer este emprego. E aí começa a contradição: essa outra pessoa não mais tem o mesmo direito que eu tenho. Meu direito é estar empregado; o "direito" dela é me fornecer um emprego. Meu direito criou um dever para essa pessoa: ela agora é obrigada a efetuar uma ação que ela não necessariamente queria efetuar. Não obstante o fato de nós dois sermos humanos, a liberdade de escolha dessa pessoa foi subordinada à minha liberdade de escolha.

Haveria algum direito humano fundamental relacionado ao trabalho? Obviamente que sim: trata-se do direito que todo e qualquer indivíduo tem de vender sua mão-de-obra ou de comprar uma mão-de-obra oferecida, nos termos que ambos os lados acordarem. Eu tenho o direito de colocar minha mão-de-obra à venda nos termos que eu quiser. Você também tem. Todos nós podemos exercitar esse direito sem ao mesmo tempo negá-lo para ninguém. Eu tenho o direito de me oferecer para comprar a mão-de-obra (empregar) de qualquer outra pessoa nos termos que eu quiser. Você também. Podemos fazer isso sem ao mesmo tempo estar negando esse direito a nenhuma outra pessoa. Aquelas pessoas a quem você e eu fazemos nossas ofertas são perfeitamente livres para rejeitá-las. Ao exercitarmos esses direitos, não estamos impondo nenhum dever a ninguém; esses nossos direitos não obrigaram nenhuma pessoa a incorrer em uma ação que ela não queria praticar.

Aplique esse mesmo raciocínio a coisas como saúde, educação, moradia e comida. Acaso há algum que seja um direito humano? Se eles significam que indivíduos irão receber serviços de saúde, educação, moradia e comida independentemente do desejo das outras pessoas, então eles não representam direitos humanos fundamentais. Todos nós temos o direito fundamental de nos oferecermos para comprar ou vender serviços de saúde, serviços de educação, moradia e comida nos termos que quisermos; porém, se não encontrarmos terceiros dispostos a aceitar nossas ofertas, então não temos o direito de forçá-los a aceitá-las.

E o mesmo raciocínio pode ser aplicado aos seguintes direitos: liberdade religiosa, liberdade de associação, liberdade de expressão, e liberdade de imprensa. Todos estes são direitos humanos fundamentais. Cada um de nós pode exercitar nosso livre arbítrio em termos de religião sem ao mesmo tempo negarmos esse mesmo direito a terceiros. No entanto, vale ressaltar que não temos o direito de nos afiliarmos a uma organização religiosa que não queira nos aceitar. Igualmente, não podemos obrigar que determinadas religiões aceitem práticas contrárias às suas crenças.

Prosseguindo, todos nós podemos nos associar a qualquer outro indivíduo ou grupo de indivíduos, mas somente desde que eles estejam dispostos a se associar a nós. Exercer esse direito não impede que outros façam exatamente o mesmo.

Todos nós podemos dizer o que quisermos, pois isso, por si só, não impede que outras pessoas façam o mesmo. No entanto, vale novamente ressaltar que não temos o direito de obrigar outras pessoas a nos ouvir ou a nos fornecer um espaço para nos expressarmos. Não temos o direito, por exemplo, de publicarmos nossas opiniões em um veículo ou em um website que não as queira. Isso é uma mera questão de direitos de propriedade. Todos nós somos livres para tentar angariar os recursos necessários, por meio de acordos voluntários com terceiros, para publicar um jornal ou uma revista (ou criar um blog na internet). Porém, não temos nenhum direito de obrigar outras pessoas a nos fornecer os recursos necessários para nos expressarmos. 

Ambas as visões — a progressista e a dos direitos naturais — não são apenas diferentes; elas são incompatíveis. Sempre que um suposto direito reivindicado por alguém impõe uma obrigação sobre outra pessoa, a qual agora será obrigada a efetuar uma ação, este suposto direito é uma fraude. Na realidade, ele é um privilégio. Ele não pode ser efetuado simultaneamente por ambas as partes sem que haja uma contradição lógica.

Essa visão progressista sobre direitos é normalmente chamada de visão positivista, pois tais direitos necessariamente impõem a terceiros a obrigação de efetuar ações positivas. Faz parte de uma filosofia mais ampla chamada de positivismo legal, a qual afirma que direitos são determinados pelo governo. Qualquer coisa que o governo determine como sendo um direito se torna um direito.

Já os direitos naturais são frequentemente chamados de "direitos negativos", pois a única obrigação que tais direitos impõem a terceiros é a de não efetuar uma determinada ação. Trata-se do dever de não iniciar coerção contra terceiros, seja na forma de violência bruta, seja na forma furtiva obrigá-lo a pagar por bens e serviços que serão ofertados a terceiros. Por isso, de acordo com esta visão, o próprio governo estaria restringido e limitado pelos direitos humanos universais de todo e qualquer indivíduo.

Portanto, da próxima vez que você disser "Eu tenho esse direito!", faça a si mesmo a seguinte pergunta: "E de quem é a obrigação?" 

Se houver um fardo recaindo sobre um terceiro, o qual agora terá a obrigação de fazer qualquer outra coisa que não seja não coagir você, pergunte-se: "Por que teria eu o direito de subordinar aquela pessoa aos meus caprichos?"


quarta-feira, 6 de agosto de 2014

OS POBRES, O LIVRE MERCADO, E A MORALIDADE DESTE ARRANJO

Se uma determinada atividade econômica sempre foi socializada, praticamente todas as pessoas concluem que é assim que tem de ser e que não poderia ser de outra maneira.


Com efeito, à primeira vista, imaginar como o livre mercado faria funcionar um setor até então estatizado é difícil. Décadas de doutrinação estatista nas escolas (públicas e privadas) geraram essa incapacidade de raciocínio. Murray Rothbard certa vez comentou que se o governo fosse o único fabricante de sapatos, a maioria das pessoas seria incapaz de imaginar como o mercado poderia ser capaz de produzi-los. Disse ele:

Se o governo, e somente o governo, tivesse o monopólio da fabricação de sapatos e fosse o dono de todas as revendedoras, como será que a maioria das pessoas iria reagir a quem advogasse que o governo saísse do setor de calçados e o abrisse para empresas privadas? Sem dúvida nenhuma as pessoas iriam bradar: "Como assim? Você não quer que as pessoas, e principalmente os pobres, usem sapatos! E quem iria fornecer sapatos ao povo se o governo saísse do setor? Quais pessoas? Quantas lojas de sapato haveria em cada cidade? Em cada município? Como isso seria definido? Como as empresas de sapato seriam financiadas? Quantas marcas existiriam? Qual material elas iriam usar? Quanto tempo os sapatos durariam? Qual seria o arranjo de preços? Não seria necessário haver regulamentação da indústria de calçados para garantir que o produto seja confiável? E quem iria fornecer sapatos aos pobres? E se a pessoa não tiver o dinheiro necessário para comprar um par?"

Troque a expressão "fabricação de sapatos" por qualquer outra e o raciocínio continua idêntico. Sem uma educação socializada, como os pobres conseguiriam pagar por seus estudos? Se os Correios não fossem estatais, como as pessoas que moram naqueles rincões mais afastados receberiam suas cartas? Sem a Previdência Social estatal e compulsória, os idosos morreriam na miséria! Se o sistema elétrico não estivesse sob o controle do estado, milhares de famílias estariam hoje às escuras! Se a extração de Petróleo não fosse de competência do estado, não haveria gasolina e diesel nas bombas!

Pavorosamente, quando se aceita a "necessidade da socialização", a ideia do absolutismo estatal passa a ser vista com naturalidade. Afinal, se o estado é visto como essencial em várias áreas, por que ele deixaria de ser essencial em outras? 

Para entender essa confusão mental não é necessário muito esforço. 

Tão logo uma atividade foi socializada, torna-se impossível demonstrar, por meio de exemplos práticos, como os indivíduos agindo em um mercado livre e irrestrito poderiam efetuar esta mesma atividade de maneira mais eficiente, mais abundante e mais barata. Por exemplo, como seria possível comparar os Correios estatais a um Correio privado quando a existência deste último é proibida por decreto estatal? Como explicar que o mercado de telefonia seria melhor caso a entrada de concorrência estrangeira fosse liberada, quando sempre tivemos o estado regulando o setor e especificando quem pode e quem não pode entrar?

É como tentar explicar para um povo que sempre viveu na escuridão como as coisas seriam caso houvesse luz. A única coisa que você pode fazer é recorrer a construções imaginárias.

Para ilustrar esse dilema: durante as últimas décadas, homens e mulheres praticando trocas livres e voluntárias (isso se chama livre mercado) descobriram como fazer a entrega da voz humana ao redor do globo em bem menos de um segundo; descobriram como transmitir um evento, como uma partida de futebol ou uma corrida de automóveis, e exibi-lo ao vivo e a cores na casa de qualquer pessoa em qualquer ponto da terra; descobriram como transportar mais 300 passageiros de um continente a outro em questão de horas; descobriram como transportar gás de uma mina remota ao aconchegante lar de alguém em outra cidade a preços inacreditavelmente baixos e sem subsídio; descobriram como entregar vários barris de petróleo do Golfo Pérsico ao oeste americano — meia volta ao mundo — por menos do que o governo cobra para entregar uma carta de 50 gramas ao outro lado da rua!

No entanto, e ainda assim, esses e tantos outros fenômenos rotineiros que o livre mercado nos proporciona ainda não são capazes de convencer a maioria das pessoas de que "os Correios" poderiam ficar a cargo da livre concorrência sem que isso causasse sofrimento aos usuários.

Agora, imagine este outro cenário: suponha que o governo federal, desde seu surgimento, tenha decretado uma lei ordenando que todos os meninos e meninas, desde o nascimento até a maioridade, recebam sapatos e meias "gratuitamente" do governo federal. Imagine que essa prática de receber "sapatos e meias gratuitamente" estivesse em prática desde o descobrimento do país. Por fim, imagine que um de nossos contemporâneos — alguém que acredite nas maravilhas que podem ser alcançadas quando as pessoas são livres para empreender — dissesse: "Não creio que dar meias e sapatos para as crianças deveria ser uma responsabilidade do governo. Isso deveria ser uma responsabilidade das famílias. Tal atividade jamais deveria ter sido socializada. Ela seria muito mais adequadamente efetuada pelo livre mercado".

Quais seriam as reações a essa declaração? Baseando-se em tudo o que ouvimos tão logo uma atividade é estatizada — mesmo que apenas por um curto período de tempo —, a resposta-padrão a essa desestatização seria algo assim: "Ah, mas aí você traria sofrimento para as crianças pobres, que ficariam completamente descalças!"

No entanto, neste exemplo, como se trata de uma atividade que ainda não foi estatizada, somos capazes de mostrar que as crianças pobres estão mais bem calçadas naqueles países em que sapatos e meias são de responsabilidade da família do que naqueles países em que sapatos e meias são responsabilidade do governo. Somos capazes de demonstrar que as crianças pobres estão mais bem calçadas em países que são mais livres do que em países que são menos livres.

Sim, é verdade que o livre mercado ignora os pobres — só que ele ignora os pobres justamente porque ele não reconhece os ricos. O livre mercado não é um "respeitador de pessoas". O livre mercado é simplesmente uma maneira organizacional de criar bens e serviços por meio da livre concorrência. Ou seja, trata-se de um arranjo em que a entrada na arena da produção e da comercialização é livre, não dependendo de autorizações ou permissões estatais. Trata-se de um arranjo que permite que milhões de pessoas cooperem e compitam sem que seja necessário exigir autorizações preliminares de pedigree, nacionalidade, cor, raça, religião ou riqueza. 

Livre mercado significa transações voluntárias; significa uma justiça impessoal na esfera econômica. Livre mercado não tolera protecionismo, subsídios e favores especiais concedidos por aqueles que estão no poder. Por isso, o livre mercado é, em sua essência, contra a coerção, a espoliação, o roubo e todos os outros métodos anti-mercado criados por governos para privilegiar alguns poucos poderosos em detrimento de todo o resto. O livre mercado é o único arranjo que permite que qualquer indivíduo possa concorrer em qualquer área da economia (mas que não dá garantia nenhuma de sucesso). O livre mercado, por fim, permite que os mortais ajam moralmente porque eles são livres para agir moralmente.

Sim, é necessário admitir que a natureza humana é defeituosa, e que essas imperfeições muitas vezes serão refletidas no mercado (e muito mais no governo, setor cujos integrantes detêm o poder e não estão submetidos à concorrência). Porém, o livre mercado é o único arranjo que possibilita a cada indivíduo agir de acordo com sua melhor moral e ser recompensado por isso, ao passo que o estatismo e a abolição da concorrência é o arranjo que premia (ou não pune) os imorais e desleixados.

Nenhum defensor do livre mercado nega a existência de empreendedores salafrários; nós apenas acreditamos — e para isto baseamo-nos na sólida teoria econômica — que, quanto mais livre e concorrencial for o mercado, mais restritas serão as chances de sucesso de vigaristas, e mais honestas as pessoas serão forçadas a se manter. E elas terão de ser honestas não por benevolência ou moral religiosa, mas sim por puro temor de que, uma vez descobertas suas trapaças, elas serão devoradas pela concorrência, podendo nunca mais recuperar sua fatia de mercado e indo a uma irrecuperável falência.

Por outro lado, quanto maior for a regulamentação estatal sobre um setor, mais incentivos existirão para a corrupção, para o suborno, para os favorecimentos e para os conchavos. Em vez de se concentrar em oferecer bons serviços e superar seus concorrentes no mercado, as empresas mais poderosas poderão simplesmente se acertar com os burocratas responsáveis pelas regulamentações, oferecendo favores e, em troca, recebendo agrados como restrições e vigilâncias mais apertadas para a concorrência.

Não há absolutamente nenhum motivo para crer que homens dotados com o poder da coerção — como são os políticos e os empresários que atuam em um mercado fechado pelo governo — irão se comportar mais moralmente do que as pessoas em um ambiente de livre concorrência.

Por isso, o livre mercado é a única opção moral concebível.


POR: Leonard Read foi o fundador do instituto Foundation for Economic Education -- o primeiro moderno think tank libertário dos EUA -- e foi amplamente responsável pelo renascimento da tradição liberal no pós-guerra.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

A SITUAÇÃO EUROPEIA E A HEGEMONIA DA ALEMANHA


O Banco Central Europeu (BCE) está sob pressão. A inflação de preços na zona do euro, no acumulado de 12 meses, foi de apenas 0,5% em junho. Vários comentaristas econômicos seguem recorrendo ao bicho-papão de sempre — os supostos perigos da deflação! — para, com isso, incitar o BCE a adotar medidas mais expansionistas, algo que irá beneficiar apenas os especuladores e onerar ainda mais os poupadores.

A baixa inflação de preços na zona do euro não deveria ser surpresa para ninguém. A região do euro vem apresentando, já há um bom tempo, um crescimento de quase zero na expansão do crédito e na expansão da oferta monetária. Como noticiado pela Reuters, em abril, a taxa de crescimento do agregado monetário M3 acumulada em 12 meses foi de mísero 0,8%. Os empréstimos para o setor privado caíram 1,8% em abril de 2014 em relação a abril de 2013. 

Essa estagnação do crédito vem ocorrendo há um bom tempo, como ilustram os gráficos a seguir sobre a expansão do crédito:



No gráfico C5, a linha pontilhada vermelha mostra a taxa de crescimento dos empréstimos para as empresas da zona do euro. 

No gráfico C6, a linha azul contínua mostra a taxa de crescimento nos empréstimos para consumidores; a linha vermelha pontilhada mostra a taxa de crescimento nos empréstimos para a compra de imóveis; e a linha azul pontilhada mostra a taxa de crescimento de todos os outros tipos de empréstimos para pessoas físicas.

Como se observa, o crédito na zona do euro — não obstante as taxas de juros extremamente baixas — está bem contido e "apertado". Naturalmente, a turma defensora do crédito fácil e farto, e de uma política monetária expansionista, está em polvorosa. O bilionário David Tepper, que gerencia um hedge fund, disse que o BCE está muito atrás da curva. Martin Wolf, do Financial Times, está exigindo do BCE "mais um tiro de bazuca". E o famoso jornalista britânico Ambrose Evans-Pritchard está dizendo que uma fraternidade entusiasta de uma "política monetária rígida" está no controle do BCE, o que estaria jogando a economia europeia no abismo.

Estaria o BCE sendo controlado por algum linha-dura?

Eu certamente gostaria muito que sim, mas duvido. Basta ver as recentes medidas adotadas pela instituição.

No início de junho, o BCE tomou uma decisão inédita: estabeleceu uma taxa negativa para uma de suas três taxas básicas de juros.

Antes de junho, os bancos da zona do euro podiam obter fundos normais do BCE (a chamada "taxa de refinanciamento", que é a principal taxa de juros manipulada pelo BCE) a 0,25%; podiam obter fundos de emergência 0,7%, e podiam depositar voluntariamente dinheiro extra no BCE a 0%. Agora, eles podem obter fundos normais a 0,15%, fundos de emergência a 0,40%, e têm de pagar 0,10% sobre qualquer quantia que depositarem voluntariamente no BCE.

Essa taxa negativa é inédita na zona do euro.

Qual será o impacto de tudo isso? Quase nenhum, creio eu.

Há quem acredite que a taxa de - 0,1% sobre os depósitos voluntários dos bancos no BCE representa uma multa para os bancos que ali deixarem dinheiro "estacionado", e que isso irá estimular os bancos a fazerem outras coisas com esse dinheiro "ocioso". O problema é que essa descrição não é correta. Ela passa a impressão de que os bancos podem emprestar esse dinheiro que está no BCE para empresas e pessoas. Mas os bancos não podem fazer isso.

Os depósitos dos bancos no Banco Central formam as reservas bancárias. Elas não podem ser transferidas ou emprestadas para pessoas e empresas simplesmente porque pessoas e empresas não possuem uma conta no Banco Central. Tudo o que os bancos podem fazer é emprestar ou transferir esse dinheiro para outros bancos. Quando o Banco A faz um empréstimo para o cidadão X, o banco cria dígitos eletrônicos na conta de X. Quando X for gastar esses dígitos, eles irão parar na conta bancária do cidadão Y, que tem conta no Banco B. Ao final, o Banco B irá exigir do Banco A a transferência eletrônica destes dígitos (a chamada 'compensação bancária'). 

Ou seja, no agregado, a quantidade de reservas não se alterou. Isso significa que o sistema bancário não pode se livrar destas reservas. Portanto, a esta nova taxa negativa, o setor bancário irá pagar aproximadamente €220 milhões para o BCE anualmente, e não há quase nada que eles possam fazer quanto a isso (não há com o que se preocupar; essa quantia é apenas um trocado).

Como isso pode ser "economicamente estimulante"? Não sei.

Quantos empréstimos arriscados para empresas pequenas e médias os bancos irão fazer para tentar evitar ao máximo essa "multa" de 0,1% no BCE? Não creio que serão muitos.

A questão é que os bancos da zona do euro não estão concedendo muitos empréstimos (como mostra o gráfico) simplesmente porque ainda estão preocupados com a situação de seus balancetes, que se encontram dizimados após o estouro de bolhas imobiliárias e por calotes dados por governos, empresas e pessoas. Adicionalmente, os bancos compreensivelmente querem evitar os riscos inerentes a conceder novos empréstimos para pessoas e empresas já muito endividadas e com pouca solvência. Para completar, a demanda por novos empréstimos também não parece estar alta.

Após um longo período de acentuada expansão do crédito (vide o gráfico acima), algo que desembocou em uma grande recessão, um período igualmente longo de crescimento nulo (ou até mesmo de contração moderada) do crédito não apenas não deveria ser uma surpresa, como também deveria ser visto como algo eminentemente sensato e totalmente recomendável.

Os gráficos acima não apenas ilustram como a expansão do crédito — e, consequentemente, da oferta monetária — arrefeceu desde 2009, como também mostram o crescimento substancial ocorrido no período anterior à crise. Pensei que, após 2009, a maioria das pessoas já estivesse ciente de que um período de desalavancagem e de restauração dos balancetes dos bancos é inevitável após uma bolha.

A crise financeira não foi um ato divino ou uma manifestação de alguma força da natureza, e, independentemente do prisma que você adote, a temerária expansão do crédito desempenhou um papel fundamental na criação dela; expansão essa que foi generosamente financiada pelo BCE. Os bancos gregos, espanhóis, italianos, franceses e alemães, todos eles pareciam zumbis em 2009, e muitos certamente ainda o são. Por que eu deveria dormir melhor ao saber que o BCE está fazendo de tudo para estimular os bancos a voltar à insensatez do início da década de 2000?

Adicionalmente, vale enfatizar que uma taxa de crescimento de zero ou até mesmo negativa do crédito não significa que ninguém está conseguindo obter um empréstimo; significa apenas que, no agregado, a quantidade de empréstimos que está sendo quitada é maior do que a quantidade de empréstimos que está sendo concedida pelos bancos.

Por fim, uma baixa expansão da oferta monetária tende a explicitar todos os tipos de rigidez estrutural existentes na zona do euro, como mercados de trabalho excessivamente regulados, leis trabalhistas onerosas, gastos governamentais insustentáveis e endividamento excessivo. Nenhuma dessas rigidezes está perto de ser solucionada, e a elite política — totalmente paralisada — sempre considerou o assunto explosivo demais, de modo que abordá-lo é impopular e representaria um suicídio político.

Não sou nenhum entusiasta de bancos centrais e creio que a própria instituição de um banco central — que existe para cartelizar e proteger o sistema bancário, e para permitir que os bancos financiem despreocupadamente os déficits do governo — não existiria em capitalismo pleno. Porém, também sou um realista e sei que os bancos centrais não irão desaparecer tão cedo. Portanto, já que é para existir um banco central, então que ele seja controlado por tipos ríspidos e durões, como o velho Helmut Schlesinger do antigo Bundesbank. Em um banqueiro central, a inatividade é uma virtude. 

Em minha opinião, dentre os principais bancos centrais do mundo, o BCE tem sido o menos irresponsável. Nos últimos anos, o euro tem se mantido relativamente estável — em alguns momentos, chegou a se apreciar ligeiramente — em relação às moedas de seus parceiros comerciais. Para os cidadãos e empresas da zona do euro, isso se traduziu em um aumento moderado de seu poder de compra nos mercados internacionais. Os preços dos produtos importados diminuíram e isso ajudou a manter os preços domésticos bastante estáveis. Pessoas que vivem de renda fixa (aposentados, pensionistas, assalariados e pessoas que vivem de assistencialismo) mantiveram seu poder de compra, algo excepcional durante uma fase de recessão econômica. 

É insensato afirmar que tal ambiente — moeda forte e preços estáveis — afeta o desempenho econômico, e que o desejável seria ter mais carestia e um menor poder de compra para a moeda.



Política: Alemanha x França

Todo o projeto do euro depende do eixo Alemanha-França e pode ser analisado como uma contínua guerra fria entre as elites políticas desses dois países, cada qual com visões muito diferentes — quase antagônicas — sobre política econômica.

Para a elite francesa, o euro sempre foi visto como um veículo criado especialmente para quebrar a hegemonia monetária que a Alemanha usufruía na Europa por meio do robusto marco alemão — a moeda menos inflacionada da segunda metade do século XX — e do todo-poderoso e inflexível Bundesbank. Tão logo o marco alemão fosse abolido e substituído pelo euro, e o Bundesbank estivesse neutralizado e sob o controle de franceses (agora sob o nome de Banco Central Europeu), o puritanismo monetário alemão supostamente se tornaria obsoleto (ou passé, como diriam os franceses), e uma burocracia educada na Sorbonne e na École Polytechnique assumiria o controle, comandaria o show europeu e injetaria um pouco de vigor tipicamente gaulês na coisa toda.

Até uns dois anos atrás, tinha-se a certeza de que a França iria liderar o bloco anti-austeridade dos países do Mediterrâneo contra a Alemanha. Hoje, isso parece uma memória distante.

A elite política francesa está completamente desacreditada e se encontra em um estado de total desmazelo. 

Muitos acreditaram que François Hollande com sua política socialista de tributar pesadamente os ricos seria a face do novo populismo europeu. Mas isso não ocorreu. Ao contrário, aliás. Com índices de aprovação abaixo de 20% (atualmente em 16%), Hollande é um zumbi (ou um "pato manco"). Ele é tão miseravelmente impopular, que Dominique Strauss-Kahn, acusado de abuso sexual, já é mais popular do que ele. Já Nicolas Sarkozy — que sofreu a inédita humilhação pública de ser interrogado pela polícia por 15 horas — está sendo acusado de corrupção, de tráfico de influência e de suborno de dois magistrados.

Todo esse desmazelo resultou em uma votação recorde no nacionalista e totalmente anti-euro Frente Nacional, que conseguiu 25% dos votos para o Parlamento Europeu.

Enquanto isso, Angela Merkel reina soberana na Europa. Na Alemanha, os opositores que estão à sua direita e que são anti-euro — a Alternative für Deutschland — conseguiram apenas 7% dos votos para o Parlamento Europeu em maio. Seus índices de popularidade continuam respeitáveis, a economia alemã não tem rivais na Europa, e não se vê líderes políticos que possam fazer sombra à chanceler.

Merkel pode até não querer exagerar muito em suas exigências pró-austeridade, mas a exigência de reformas estruturais e de austeridade 'moderada' na zona do euro irá continuar. Uma Alemanha política e economicamente forte alivia um pouco a pressão sobre o BCE.

E o BCE, que hoje está sob o comando do italiano Mario Draghi, não é muito popular entre a elite política alemã. Os alemães são céticos quanto às políticas de afrouxamento quantitativo e muitos compartilham das restrições feitas pelo Tribunal Constitucional da Alemanha de que tais políticas nada mais são do que financiamento do governo por meio da criação de dinheiro (claro que são!). Tampouco a frase de Draghi de que fará "tudo o que for necessário" para salvar o euro — o que difundiu a crise da dívida soberana — é popular junto ao governo alemão. 

Por qualquer que seja o ângulo, o fato é que a Alemanha é hoje o porto-seguro da estabilidade na Europa: baixo desemprego, nenhum déficit significativo, crescimento econômico razoavelmente sólido, produtividade crescente e uma estabilidade política que chega a ser tediosa e monótona. Seu poderio econômico não tem rivais e não há líderes políticos que possam fazer sombra a Merkel. Falta agora recuperar o controle do BCE.__________________________________________

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Por: Detlev Schlichter, formado em administração e economia.  Trabalhou 19 anos no mercado financeiro, como corretor de derivativos e, mais tarde, como gerente de portfolio.  Nesse meio tempo, conheceu a Escola Austríaca de Economia e, desde então, dedicou seus últimos 20 anos ao estudo autônomo da mesma.  Foi apenas após conhecer a Escola Austríaca que ele percebeu o quão mais profundas e satisfatórias eram as teorias austríacas para explicar os fenômenos econômicos que ele observava diariamente em seu trabalho.  Visite seu website.

Tradução de Leandro Roque

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A DESTRUIÇÃO DA INTELIGÊNCIA

Poucas coisas são tão grotescas quanto a coexistência pacífica, insensível, inconsciente e satisfeita de si, da afetação de inconformismo com a subserviência completa à autoridade de um corpo docente.


Aprender, imitar e introjetar o vocabulário, os tiques e trejeitos mentais e verbais da escola de pensamento dominante na sua faculdade é, para o jovem estudante, um desafio colossal e o cartão de ingresso na comunidade dos seus maiores, os tão admirados professores.

A aquisição dessa linguagem é tão dificultosa, apelando aos recursos mais sutis da memória, da imaginação, da habilidade cênica e da autopersuasão, que seria tolo concebê-la como uma simples conquista intelectual. Ela é, na verdade, um rito de passagem, uma transformação psicológica, a criação de um novo “personagem”, apoiado no qual o estudante se despirá dos últimos resíduos da sentimentalidade doméstica e ingressará no mundo adulto da participação social ativa.

É quase impossível que essa identificação profunda com o personagem aprendido não seja interpretada subjetivamente como uma concordância intelectual, ao ponto de que, no instante mesmo em que repete fielmente o discurso decorado, ou no máximo faz variações em torno dele, o neófito jure estar “pensando com a própria cabeça” e “exercendo o pensamento crítico”.

A imitação é, com certeza, o começo de todo aprendizado, mas ela só funciona porque você imita uma coisa, depois outra, depois uma infinidade delas, e com a soma dos truques imitados compõe no fim a sua própria maneira de sentir, pensar e dizer.

No aprendizado da arte literária isso é mais do que patente. O simples esforço de assimilar auditivamente a maneira, o tom, o ritmo, o estilo de um grande escritor já é uma imitação mental, uma reprodução interior daquilo que você está lendo. A imitação torna-se ainda mais visível quando você decora e declama poemas, discursos, sermões ou capítulos de uma narrativa. Porém nas suas primeiras investidas na arte da escrita é impossível que você não copie, adaptando-os às suas necessidades expressivas, os giros de linguagem que aprendeu em Machado de Assis, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Balzac, Stendhal e não sei mais quantos. Esse exercício, se você é um escritor sério, continua pela vida a fora. Quando conheci Herberto Sales – que Otto Maria Carpeaux julgava o escritor dotado de mais consciência artística já nascido neste país --, ele estava sentado no saguão do Hotel Glória com um volume de Proust e um caderninho onde anotava cada solução expressiva encontrada pelo romancista, para usá-la a seu modo quando precisasse. Já era um homem de setenta e tantos anos, e ainda estava praticando as lições do velho Antoine Albalat.[1] É assim, por acumulação e diversificação dos recursos aprendidos, que se forma, pari passu com a evolução natural da personalidade, o estilo pessoal que singulariza um escritor entre todos. T. S. Eliot ensinava que um escritor só é verdadeiramente grande quando nos seus escritos transparece, como em filigrana, toda a história da arte literária.

Em outros tipos de aprendizado, a imitação é ainda mais decisiva. Nas artes marciais e na ginástica, quantas vezes você não tem de repetir o gesto do seu instrutor até aprender a produzi-lo por si próprio! Na música, quantas performances magistrais o pianista não aprende de cor até produzir a sua própria!

Nas ciências e na tecnologia, o manejo de equipamentos complexos nunca se aprende só em manuais de instrução: o aluno tem de ver e imitar o técnico mais experiente, num processo de assimilação sutil que engloba, em doses consideráveis, a transmissão não-verbal. [2]

Por que seria diferente na filosofia? Compreender uma filosofia não se resume nunca em ler as obras de um filósofo e julgá-las segundo uma reação imediata ou as opiniões de um professor. É impregnar-se de um modo de ver e pensar como se ele fosse o seu próprio, é olhar o mundo com os olhos do filósofo, com ampla simpatia e sem medo de contaminar-se dos seus possíveis erros. Se desde o início você já lê com olhos críticos, buscando erros e limitações, o que você está fazendo é reduzir o filósofo à escala das suas próprias impressões, em vez de ampliar-se até abranger o “universo” dele. Erros e limitações não devem ser buscados, devem surgir naturalmente à medida que você assimila novos e novos autores, novos e novos estilos de pensar, pesando cada um na balança da tradição filosófica e não da sua incultura de principiante. Não seria errado dizer que, entre outros critérios, um professor de filosofia deve ser julgado, sobretudo, pelo número e variedade dos autores, das escolas de pensamento, das vias de conhecimento que abriu em leque para que seus estudantes as percorressem.[3]

Não é preciso mais exemplos. Em todos esses casos, a imitação é o gatilho que põe em movimento o aprendizado, e em todos esses casos ela não se congela em repetição servil porque o aprendiz passa de modelo a modelo, incorporando uma diversidade de percepções e estilos que acabarão espontaneamente se condensando numa fórmula pessoal, irredutível a qualquer dos seus componentes aprendidos.

Mas o que acontece se, em vez disso, o aluno é submetido, por anos a fio, à influência monopolística de um estilo de pensamento dominante, aliás muito limitado no seu escopo e na sua esfera de interesses, e adestrado para desinteressar-se de tudo o mais sob a desculpa de que “não é referência universitária”?

Se durante quatro, cinco ou seis anos você é obrigado a imitar sempre a mesma coisa, e ainda temendo que o fracasso em adaptar-se a ela marque o fim da sua carreira universitária, a imitação deixa de ser um exercício temporário e se torna o seu modo permanente de ser – um “hábito”, no sentido aristotélico.

É como um ator que, forçado a representar sempre um só personagem, não só no palco mas na vida diária, acabasse incapaz de se distinguir dele e de representar qualquer outro personagem, inclusive o seu próprio. Pirandello explorou magistralmente essa situação absurda na peça Henrique IV, onde um milionário louco, imaginando ser o rei, obriga os empregados a comportar-se como funcionários da côrte, até que eles acabam se convencendo de que são mesmo isso.

Toda imitação depende de uma abertura da alma, de uma impregnação empática, de uma suspension of disbelief em que o outro deixa de ser o outro e se torna uma parte de nós mesmos, sentindo com o nosso coração e falando com a nossa voz. Se praticamos isso com muitos modelos diversos, sem medo das contradições e perplexidades, nossa mente se enriquece ao ponto do nihil humanum a me alienum, daquela universalidade de perspectivas que nos liberta do ambiente mental imediato e nos torna juízes melhores de tudo quanto chega ao nosso conhecimento. Não é errado dizer que o julgamento honesto e objetivo depende inteiramente da variedade dos pontos de vista, contraditórios inclusive, que podemos adotar como “nossos” no trato de qualquer questão.

Em contrapartida, o enrijecimento da alma num papel fixo abusa da capacidade de imitação até corrompê-la e extingui-la por completo, bloqueando toda possibilidade de abertura empática a novos personagens, a novos estilos, a novos sentimentos e modos de ver.

Habituado a tomar como referência única o conjunto de livros e autores que compõe o universo mental da esquerda militante, e a olhar com temerosa desconfiança tudo o mais, o estudante não só se fecha num provincianismo que se imagina o centro do mundo, mas perde realmente a capacidade de aprendizado, tornando-se um repetidor de tiques e chavões, caquético antes do tempo.

Quem não sabe que, no meio acadêmico brasileiro, a receita uniforme, há mais de meio século, é Marx-Nietzsche-Sartre-Foucault-Lacan-Derrida, não se admitindo outros acréscimos senão os que pareçam estender de algum modo essa tradição, como Slavoj Zizek, Istvan Meszaros ou os arremedos de pensamento que levam, nos EUA, o nome de “estudos culturais”?

Daí a reação de horror sacrossanto, de ódio irracional, não raro de repugnância física, com que tantos estudantes das nossas universidades reagem a toda opinião ou atitude que lhes pareça antagônica ao que aprenderam de seus professores. Não que estejam realmente persuadidos, intelectualmente, daquilo que estes lhes ensinaram. Se o estivessem, reagiriam com o intelecto, não com o estômago. O que os move não é uma convicção profunda, séria, refletida: é apenas a impossibilidade psicológica de desligar-se, mesmo por um momento, do “eu” artificial aprendido, cuja construção lhes custou tanto esforço, tanto investimento emocional.

Justamente, a convicção intelectual genuína só pode nascer da experiência, do longo demorado com os aspectos contraditórios de uma questão, o que é impossível sem uma longa resignação ao estado de dúvida e perplexidade. A intensidade passional que se expressa em gritos de horror, em insultos, em afetações de superioridade ilusória, marca, na verdade, a fragilidade ou ausência completa de uma convicção intelectual. A construção em bloco de um personagem amoldado às exigências sociais e psicológicas de um ambiente ideologicamente carregado e intelectualmente pobre fecha o caminho da experiência, portanto de todo aprendizado subseqüente.

A irracionalidade da situação é ainda mais enfatizada porque o discurso desse personagem o adorna com o prestígio de um rebelde, de um espírito independente em luta contra todos os conformismos. Poucas coisas são tão grotescas quanto a coexistência pacífica, insensível, inconsciente e satisfeita de si, da afetação de inconformismo com a subserviência completa à autoridade de um corpo docente.

No auge da alienação, o garoto que passou cinco anos intoxicando-se de retórica marxista-feminista-multiculturalista-gayzista nas salas de aula, que reage com quatro pedras na mão ante qualquer palavra que antagonize a opinião de seus professores esquerdistas, jura, depois de ler uns parágrafos de Bourdieu para a prova, que a universidade é o “aparato de reprodução da ideologia burguesa”. Aí já não se trata nem mesmo de “paralaxe cognitiva”, mas de um completo e definitivo divórcio entre a mente e a realidade, entre a máquina de falar e a experiência viva.

Se, conforme se observou em pesquisa recente, cinqüenta por cento dos nossos estudantes universitários são analfabetos funcionais[4] – não havendo razão plausível para supor que a quota seja menor entre seus professores mais jovens --, isso não se deve somente a uma genérica e abstrata “má qualidade do ensino”, mas a um fechamento de perspectivas que é buscado e imposto como um objetivo desejável. 

Não que a presente geração de professores que dá o tom nas universidades brasileiras tenha buscado, de maneira consciente e deliberada, a estupidificação de seus alunos. Apenas, iludidos pelo slogan que os qualificava desde os anos 60 do século XX como “a parcela mais esclarecida da população”, tomaram-se a si próprios como modelos de toda vida intelectual superior e acharam que, impondo esses modelos a seus alunos, estavam criando uma plêiade de gênios. Medindo-se na escala de uma grandeza ilusória, incapazes de enxergar acima de suas próprias cabeças, tornaram-se portadores endêmicos da síndrome de Dunning-Kruger[5] e a transmitiram às novas gerações. Os cinqüenta por cento de analfabetos funcionais que eles produziram são a imagem exata da sua síntese de incompetência e presunção.

Notas:[1] V. Antoine Albalat, La Formation du Style par l'Assimilation des Auteurs (Paris, Alcan, 1901).
[2] V. sobre isso as considerações de Theodore M. Porter em Trust in Numbers. The Pursuit of Objectivity in Science and Public Life,  Princeton University Press, 1995, pp. 12-17.
[3] Digo isso com a consciência tranqüila de haver cumprido esse dever. Ao longo dos anos, introduzi no espaço mental brasileiro mais livros e autores essenciais  do que todos os corpos docentes de faculdades de filosofia neste país, somados aos “formadores de opinião” da mídia popular. Em vez de me agradecer, ou de pelo menos ter a sua curiosidade despertada pela súbita abertura de perspectivas, estudantes e professores, com freqüência, me acusaram de “citar autores desconhecidos” – dando por pressuposto que tudo o que é ignorado no seu ambiente imediato é desconhecido do resto do mundo e não tem a mais mínima importância.
[5] Efeito Dunning-Kruger: incapacidade de comparar objetivamente as próprias habilidades com as dos outros. “Quanto menos você sabe sobre um assunto, menos coisas acredita que há para saber.” V. David McRaney, You Are Not So Smart, London, Oneworld Publications, 2012, pp. 78-81.

Por: Olavo de Carvalho Publicado no Digesto Econômico.

http://olavodecarvalho.org

domingo, 3 de agosto de 2014

MÍSSIL QUE MATA, MAS ESCLARECE

A criminosa derrubada de um avião comercial da Malaysia Airlines teve o efeito de um raio: matou infelizmente a vários, mas — precisamente como fazem tais raios — iluminou com uma claridade terrível um panorama então coberto de trevas.


Densas trevas, sim, que há anos vêm toldando progressivamente os horizontes de política internacional, com óbvios reflexos sobre a política interna dos países onde ainda há liberdade.

Convém que a realidade assim posta em evidência com o fulgor irresistível, mas tão transitório, de um raio, não seja esquecida pela opinião pública.

Bem ao certo, o que houve? Ainda se discutem pormenores. Mas, o fato essencial está aí: um país agressor já tinha invadido e anexado uma região de um país vizinho: a Rússia se empossou ilegalmente e pela violência da Criméia.

Porém, o invasor queria mais. E, para isso, vinha atiçando uma guerra subversiva com pretextos culturais e étnicos contra a vizinha Ucrânia.

Nós conhecemos fenômenos análogos na América Latina alimentados desde Cuba. Alguns crepitam semeando destruição e morte, como as FARC na Colômbia. 

No Brasil, “movimentos sociais” como o MST, o CIMI, apoiados por ONGs e simpatizantes internacionais de esquerda trabalham para criar espécies de secessões, ou áreas onde não mais vigoram plenamente as leis que cimentam a unidade do Brasil. 

Até a maioria dos cidadãos por razões étnicas ou culturais não podem ingressar em alguns desses territórios, submetidos a estatutos especiais.

Esses secessionismos peculiares em cada país e em cada grupo étnico e cultural também dividem a maioria da opinião pública nos países onde existem.

Pois para uns se trata de reivindicações peculiares de minorias culturais, étnicas ou sociais reconhecidas por leis com as quais podem até estar em desacordo. Para outros, a mão do comunismo está por trás.

O segundo grupo é olhado com desdém pelo primeiro. "Comunismo? O comunismo já era! Há em verdade alguns redutos comunistas como Cuba, mas já acabarão por se adaptar ao resto do mundo."

E se houvesse dúvida ali está Vladimir Putin que sem renunciar ao passado soviético, aparece para alguns com uma espécie de novo Carlos Magno vindo do Oriente para derrotar o caos de Ocidente.

Putin conseguiu ir persuadindo certos ingênuos do Ocidente, de que ele estava promovendo na Rússia um enigmático processo de restauração mental e religioso. 

Moscou muito favorecida pelo supercapitalismo, pelas superindústrias e pelos superbancos do Ocidente estaria mudando. O supersuprimento de recursos financeiros, econômicos e técnicos de múltiplas ordens, estava transformando a “nova URSS” de Putin num país moderno.

E Rússia está se impondo como o líder político dos países emergentes conhecidos como BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

E à testa da imensa nação russa instalou-se um personagem que gradualmente – sem conversão e sem explicações – um dia passou a ser tido como grande defensor do cristianismo, dos valores básicos da vida, da família, do casamento, do patriotismo nacional: Vladimir Putin.

A História jamais compreenderá como tal ilusão pôde ganhar pé no momento mesmo em que a velha URSS se metamorfoseava numa “nova URSS” e vem estendendo suas garras em todos os continentes.

Haja vista a cálida e idílica recepção que lhe foi conferida em sua recentíssima gira por Cuba e América do Sul.

Recepção de quem? Dos líderes comuno-populistas que vem efetivando a destruição dos valores que certos ingênuos acham que Putin vai resgatar. 

Similis simili gaudet. O semelhante se regozija com seu semelhante, diz o sábio adágio latino. Isso se evidenciou eloquentemente com gestos, palavras e silêncios astutos dos líderes “chavistas” latino-americanos além do representante castrista com Vladimir Putin! 

Mas nada disto abria os olhos dos enganados.

Até que o crime contra o Boeing 777 da Malaysia Airlines que ceifou 298 vidas foi com um raio em céu sereno. O avião comercial foi atingido por um míssil mortífero, mas esclarecedor. Esclarecedor porque nos faz ver o que há de falacioso no mito do “cristianismo” humanitário de Putin. 

Há pouco mais de 30 anos, em 1º de setembro de 1983, jatos Sukhoi Su-15 soviéticos derrubaram um Boeing 747 da Korean Airlines e mataram todos os seus 269 passageiros e tripulação.

Pretextos diversos foram aduzidos então para o criminoso atentado, mas após investigação ficou averiguado para a história que a derrubada fora intencional, despropositada e ordenada por Moscou.

Certas formas de impiedade têm necessidade de desafogos, e esses são horríveis. Na Ucrânia, “ex”-comunistas, milicianos separatistas e batalhões de mercenários ilegais enviados desde a Rússia estavam perdendo posições.

Os planos de Putin para a anexação do leste ucraniano estavam indo água abaixo. 

Que esta tremenda tragédia faça abrir os olhos dos que foram enganados pela metamorfose cosmética capitaneada pelo líder da KGB para restaurar o império soviético sobre novas bases.

Que Deus onipotente tenha pena dos passageiros do voo MH017 vitimados sem culpa. 

Que Ele pela intercessão de Nossa Senhora poupe aos povos que saibam amá-lO sinceramente não se deixando iludir com enganosos artifícios. Pois detrás deles se esconde um anticristianismo que perpetua o pesadelo soviético comunista.
Por: Luis Dufaur edita o blog Flagelo Russo.

DINHEIRO NÃO COMPRA EDUCAÇÃO DE QUALIDADE

O investimento de 10% do PIB em educação pode não surtir o efeito desejado, caso o ensino brasileiro não se liberte da doutrinação que o assola, como defende a ONG Escola Sem Partido, que realiza o primeiro congresso a tratar do tema.


Caso a educação pudesse ser feita apenas com dinheiro, sem dúvida, o Brasil teria um ensino de Primeiro Mundo. Com a promulgação pela presidente Dilma Rousseff do Plano Nacional de Educação (Lei Federal 13.005), em 25 de junho último, o Brasil terá de aplicar 10% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação, o que significa uma soma anual de R$ 484 bilhões, considerando o PIB de 2013, segundo o IBGE. Hoje, o País investe 5,8% do PIB em educação e, a partir do quinto ano de vigência do plano, isto é, em 2019, esse investimento terá de ser de 7%, alcançando os 10% no final da vigência do plano, em 2024.

Com os 5,8% que já investe na educação, o Brasil desponta como um dos países que mais investem no setor. Segundo reportagem da “Folha de S. Paulo”, publicada em 5 de junho, “entre os países com maior peso na renda mundial, reunidos no G-20, os desembolsos com a educação variam de 2,8%, na Indonésia, a 6,3% do PIB no Reino Unido, de acordo com a ONU”. Ou seja, o Brasil já está próximo do topo do investimento e, com os 10% do PIB para a educação, tende a se isolar na liderança entre as grandes economias, ficando atrás apenas de nações diminutas, como Lesoto, que lidera investindo 13% do PIB, ou de Cuba, cujas estatísticas sociais – jamais fiscalizadas a sério pela ONU – são tão confiáveis quanto uma nota de 3 reais.

O comprometimento desse porcentual do PIB no ensino foi a grande bandeira da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, liderada pelo ex-líder estudantil Daniel Cara, com uma vasta rede de apoiadores nacionais e internacionais, que vão desde a ONG ActionAid, presente em mais de 40 países, até a Unesco e o Unicef, organismos da ONU para a educação, a cultura e a criança, passando pela Open Society do megainvestidor Georges Soros. Essa medida irá salvar a educação brasileira? A resposta é não. Nas condições em que se encontra o ensino no País, investir 10% do PIB em educação é quase jogar sal em carne podre. E uma das razões para se considerar esse gasto um desperdício e não um investimento é, sem dúvida, o viés ideológico da educação brasileira.

O próprio Plano Nacional de Educação é um sintoma da doutrinação que impera nas escolas do País, tanto públicas quanto privadas. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que sustentou a luta pela aprovação do plano e dos 10% do PIB, é muito mais do que a face de Daniel Cara, fartamente entrevistado pela imprensa como líder do movimento. Seu comitê diretivo conta com 11 entidades, entre elas o Centro de Cultura Luiz Freire, um grupo de esquerda radical de Pernambuco, sediado em Olinda, que defende o controle social dos meios de comunicação, e até o indefectível MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), com 2 mil es­colas em seus assentamentos e a­campamentos, nas quais oferece uma educação à moda cubana, tendo Che Guevara como modelo.

Universidades viraram incubadoras de minorias

Hoje, muitos movimentos sociais não surgem espontaneamente – são fomentados ou até criados pelas universidades, que se tornaram verdadeiras incubadoras de minorias. Na maior parte dos casos, de forma culposa, em decorrência de uma pregação ideológica geral, mas, em alguns casos, de modo doloso, por meio da organização institucional desses movimentos, que contam até com financiamento público, geralmente com verbas destinadas à pesquisa e à extensão universitária.

É o caso, por exemplo, do Centro de Difu­são do Comunismo da Uni­ver­si­dade Federal de Ouro Preto (MG), um programa de extensão vin­culado ao Curso de Serviço Social da universidade, que oferecia bolsas de pesquisas para os alunos participantes de suas atividades de militância política contra o capitalismo.

Apesar de declarar que “não é um programa acadêmico com objetivos político-partidários”, o Centro de Difusão do Comunismo afirma que seu objetivo é “desenvolver o trabalho de ensino, pesquisa e extensão a partir da perspectiva da classe trabalhadora – do ser social que trabalha e é explorado – e lutar por uma sociedade para além do capital!”. O próprio nome não poderia ser mais expressivo: em vez de um “grupo de estudos” do marxismo, como muitos que pululam dentro das universidades pelo País afora, trata-se de um “centro de difusão” do comunismo, o que revela o seu papel de militância política e não de estudo apenas teórico.

Diante desse aparelhamento político da universidade, um advogado de São Luís do Maranhão, Pedro Leonel Pinto, entrou com uma ação popular contra o centro comunista e conseguiu que a Justiça Federal suspendesse o custeio de suas atividades por parte da Universidade Federal de Ouro Preto, que ficou impedida de fornecer professores e disponibilizar suas dependências para as atividades do centro. Todavia, a única medida que deve ter surtido efeito prático foi a suspensão do pagamento das bolsas de extensão para os ativistas do centro, pois a pregação comunista continuou dentro da própria universidade, a despeito da decisão da Justiça.

De 24 de abril a 10 de julho último, por exemplo, o Núcleo de Estudos Marxistas da Federal de Ouro Preto, vinculado ao CNPq, promoveu um encontro sobre a obra do marxista húngaro István Mészáros, realizado nas dependências do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da universidade. Nos cartazes de divulgação das palestras aparece a frase: “Em apoio ao Centro de Difusão do Comunis­mo”. No mês de maio, também nas dependências do instituto, foi realizado um “Encontro com os Traba­­lhadores”, envolvendo quatro sindicatos, promovido pelo Curso de Serviço Social em apoio ao Centro de Difusão do Comunismo. No cartaz de divulgação do evento, uma frase desafiadora: “Ação judicial nenhuma vai impedir nossa luta ao lado dos trabalhadores”.

Minorias com verbas milionárias

Não se trata de um caso isolado, mas de uma tendência. Pelo Brasil afora, núcleos de estudantes de pós-graduação ou graduandos com bolsa de iniciação científica engrossam as fileiras de movimentos como a Marcha das Vadias, a Marcha da Maconha, o Movimento Passe Livre e os black blocs, geralmente associando a militância política com as atividades discentes. O movimento gay, o movimento negro e o movimento feminista são os que mais se beneficiam da doutrinação ideológica que impera nos meios acadêmicos. Hoje, na área de humanidades, não faltam linhas de pesquisa destinadas aos estudos de raça e de gênero, que se tornaram até mais atraentes do que os estudos de classe das velhas gerações do marxismo ortodoxo, calcado no materialismo histórico-dialético.

O próprio movimento negro, que tem raízes numa luta justa contra o racismo, especialmente nos Estados Unidos, adquiriu contornos claramente artificiais, chegando a ser ele próprio segregacionista ao tratar o branco como inimigo e o mulato como um ser desprezível, que só é digno de respeito caso se assuma como negro. No excelente livro “Uma Gota de Sangue”, o geógrafo e sociólogo Demétrio Magnoli disseca a criação artificial de minorias pelo mundo afora, num levantamento à altura dos estudos do economista norte-americano Thomas Sowell, que, analisando as ações afirmativas de países como Estados Unidos, Índia, Ni­gé­ria, Sri Lanka e Malásia, de­monstra a ineficácia das políticas pú­blicas que visam a emancipar as mi­norias e, no mais das vezes, acabam produzindo injustiças e conflitos.

E o que é mais grave: muitas dessas minorias só tomam consciência de si, criando uma história que nunca tiveram, por meio do discurso ideológico produzido nas universidades e fomentado com recursos de poderosas fundações privadas, como a Fundação Ford. De­métrio Magnoli descreve esse fenômeno: “Diferentemente das nações, que emanam de um processo complexo de fabricação de uma história, uma literatura e uma geografia, as ‘minorias’ da globalização emergem apenas de uma postulação étnica superficial. Nações podem até ser interpretadas como imposturas, mas são imposturas nas quais o povo acredita. As ‘minorias’, em contraste, são imposturas nas quais nem mesmo os impostores acreditam”.

Para Demétrio Magnoli, as elites multiculturalistas que formam essas minorias artificiais “não precisam de apoio popular, pois a sua legitimidade se conquista nos salões suntuosos das instituições internacionais”. O autor mostra que só a Fundação Ford destinou 280 milhões de dólares, em 2001, para criar programas de pós-graduação voltados para a formação de “lideranças emergentes de comunidades marginalizadas fora dos EUA”. Segundo outras fontes, de 1962 a 2001, a Fundação Ford investiu só no Brasil 347 milhões de dólares, em valores corrigidos pela inflação. Magnoli afirma que “as subvenções da Fundação replicaram nas universidades brasileiras os modelos de estudos étnicos e de ‘relações raciais’ aplicados nos EUA e consolidaram uma rede de organizações racialistas que começaram a produzir os discursos e demandas dos similares norte-americanos”.

Atentado à dignidade humana

Ora, se até o histórico movimento negro já está perdendo suas raízes legítimas e se tornando um engenho ideológico da academia, o que dizer de movimentos sem qualquer lastro histórico, como a Marcha das Vadias? Tanto no Canadá, onde teve origem, quanto no Brasil, que imita tudo, essa marcha é pura consequência dos estudos de gênero que se disseminaram pelas universidades de todo o mundo. Vá lá que, em metrópoles como São Paulo ou Nova York, onde existem tribos para todos os gostos, esse tipo de marcha pudesse surgir espontaneamente (e nem isso ocorre). Mas o que dizer da modesta cidade de Jataí, no interior de Goiás, com seus 93.759 habitantes? Lá, a “Marcha das Vadias” só existe porque conta com o apoio do Campus UFG, por meio de um grupo de extensão sobre gênero, direitos e violência.

O extremismo ideológico que grassa nas universidades pode chegar ao ponto de destruir a própria dignidade humana, equiparando-se aos experimentos de Joseph Men­gele no ápice do terror nazista. Em 29 de maio último, os alunos do curso de Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense, como parte da disciplina chamada “Corpo e Resistência”, promoveram no Campus de Rio das Ostras o evento “Xereca Satânica”, em que, a pretexto de denunciar o alto índice de estupro, uma mulher teve a vagina costurada no meio da festa. Depois que o evento foi denunciado na grande imprensa, a Polícia Federal chegou a abrir inquérito para apurar responsabilidades, mas provavelmente a investigação não dará em nada, esbarrando na apregoada liberdade estética de seus promotores.

Mais espantoso do que o próprio evento foi a defesa que se tentou fazer dele. O coordenador do curso de Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense, Daniel Caetano, graduado em Cinema e doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, explicou que a mulher que teve a vagina costurada integra um coletivo de Minas Gerais que foi ao Rio especialmente para participar do evento. E acrescentou: “É um coletivo que está habituado a fazer performances como a que aconteceu, feitas para chocar a sensibilidade das pessoas e fazê-las pensar sobre seus próprios limites”. Ora, se é para testar limites, que se acabe com a tal Comissão da Verdade e se contratem torturadores da ditadura para fazer performances nas universidades.

Daniel Caetano foi ainda mais longe, afirmando taxativamente: “Embora não tenham sido feitos ‘rituais satânicos’ e o título do evento fosse essencialmente provocativo (ao contrário do que o jornalismo marrom afirmou), precisamos dizer que não haverá de nossa parte qualquer censura a atos do gênero”. E desafiou: “Qualquer pessoa em cargo público que porventura se posicionar contra a performance será por nós inquirida acerca de suas atitudes prévias contra os estupros em Rio das Ostras”. Engraçado é que essa gente, quando se trata de combater criminosos armados, sempre fica contra a polícia, alegando que violência não se combate com violência. Mas na universidade ensina a combater o estupro estuprando – o corpo, a inteligência e a dignidade humana.

Efeitos negativos na educação básica

Mas engana-se quem pensa que essa ideologia destrutiva fica restrita às universidades e afeta apenas a qualidade do ensino superior. Ela tem graves consequências na sociedade, especialmente em áreas como saúde e educação. Esse tipo de ativista, até por integrar coletivos ideológicos, participando de amplas redes de relacionamento acadêmico, acaba fazendo especialização, mestrado, doutorado e se tornando autoridade pedagógica, indo pontificar na educação básica sobre gênero, minorias, exclusão. Em que outro lugar um especialista em costurar vagina e teorizar sobre isso arranjaria trabalho? Só mesmo nas Secretarias de Educação, onde poderá pontificar sobre teoria de gênero e “heteronormatividade burguesa”, coordenando a distribuição de camisinhas e kit gay.

Agora pensem quantas camisinhas não dá para distribuir nas escolas com 10% do PIB para gastar? É por isso que, antes de se investir essa fabulosa soma de recursos na educação, seria preciso combater a doutrinação nas escolas. É evidente que o conhecimento não é absolutamente neutro e o professor ou o autor de um livro, na relação com seus alunos e leitores, fatalmente há de misturar alguma crença pessoal em meio aos fatos que leciona. Mas justamente por reconhecer essas limitações humanas, é que a ciência sempre se esforçou para criar métodos que afastassem ao máximo a inevitável subjetividade do indivíduo – e a educação, que serve à ciência e dela se serve, tam­bém esposou esse mesmo prin­cípio, inculcando no mestre a necessidade de cultivar a imparcialidade.

Mas, hoje, ocorre o contrário: ancorando-se em pensadores como o pedagogo Paulo Freire e o filósofo Michel Foucault, o ensino se tornou um instrumento das mais diversas lutas políticas, transformando as escolas num feirão de experimentos de gueto, em que cada minoria julga-se no direito de ter o seu português, a sua matemática, a sua história, a sua geografia, a sua literatura, dilapidando o patrimônio comum que tornou possível o surgimento das grandes civilizações ao longo da história.

Seminário contra a doutrinação
Felizmente, já surgem reações a essa destrutiva politização do ensino. Exemplo disso é a ONG Escola Sem Partido, fundada e coordenada pelo jurista Miguel Nagib, à frente de um grupo de pais e alunos que lutam contra a doutrinação nas escolas. Além do blog que leva seu nome e acumula dezenas de estudos de caso de doutrinação, a ONG realizará na próxima quinta-feira, 24, em Brasília, o I Congresso Nacional so­bre Doutrinação Política e Ideológica nas Escolas, em parceria com a Federação Nacional das Escolas Particulares. O evento será sediado no Colégio Ciman, em Brasília, e terá transmissão ao vivo pela internet, no site da Fenep. O filósofo Olavo de Car­valho será um dos palestrantes, por videoconferência, diretamente dos Estados Unidos, onde reside.

Um fato que chama a atenção no seminário é a presença de professores universitários com doutorado, numa prova de que a fortaleza ideológica da esquerda no ensino superior não é inexpugnável. Luís Lopes Diniz Filho é doutor em Geografia pela USP, professor do Depar­tamento de Geografia da UFPR e autor dos livros “Funda­mentos Epistemoló­gicos da Geografia” (2009) e “Por uma Crítica da Geografia Crítica” (2013). Bráulio Porto de Matos é professor da Faculdade de Edu­cação de Brasília, mestre e doutor em sociologia pela UnB e pós-doutor pela University of Sussex, além de autor de “Pedagogic Authority and Girard’s Analysis of Human Vio­lence” e co-autor de “A Pós-Gra­du­ação no Brasil – Formação e Tra­ba­lho de Mestres e Doutores no País”.

O medievalista Ricardo da Costa é professor do Depar­ta­mento de Teoria da Arte e Música da Uni­ver­sidade Federal do Es­pí­rito e doutor pelo Institut Su­perior d’Investigació Coope­ra­tiva Ivitra. Trajano Sousa de Melo é promotor de Justiça do Minis­tério Público do Distrito Federal e Territórios. Ana Caroline Cam­pagnolo é mestranda em História na Universidade do Estado de Santa Catarina e foi professora de História na rede de ensino pública e privada de seu Estado. Miguel Nagib é advogado e o idealizador de tudo isso. Este que vos escreve completa o quadro de palestrantes. E levo comigo Durkheim, que profeticamente alertava: “De que serviria uma educação que levasse à morte a sociedade que a praticasse?”.
Publicado no Jornal Opção.
Por: José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.