segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A TERCEIRA UTOPIA

Assustados, PSDB e PT espalham a lenda de que a ascensão de Marina Silva deriva da comoção gerada pela morte trágica de Eduardo Campos. Eles sabem que é outra coisa. No Brasil, os eleitores procuram administradores, gerentes, quando se trata de disputas municipais e estaduais. Nas eleições presidenciais, contudo, buscam a personificação de uma utopia possível. FHC e Lula chegaram ao Planalto nas asas de grandes ambições. Hoje, é Marina quem aparece como a representação de uma ruptura profunda.


A utopia associada a FHC pode ser sintetizada pelas ideias de estabilização e modernização. Desde o segundo mandato tucano, porém, o PSDB abandonou a trilha das reformas e, sob o fogo da crítica petista, borrou o horizonte utópico com as cores cinzentas da "capacidade gerencial". As candidaturas de Alckmin (2006) e Serra (2010) não foram previsíveis fracassos eleitorais, mas inegáveis desastres políticos. Aécio Neves é um herdeiro da perda de rumo e, mesmo que tateie na direção correta, jamais conseguiu atravessar a fronteira do eleitorado tucano para seduzir a maioria desencantada com o lulopetismo.

A utopia associada a Lula pode ser sintetizada pelas ideias de igualdade e justiça social. Inflado pelos ventos de popa da economia mundial, o potencial utópico do lulopetismo durou um mandato mais que o dos tucanos, mas encerrou-se no quadriênio de Dilma Rousseff. As suas reformas sociais praticamente esgotaram-se nas políticas de crédito e transferência de renda que ajudaram a estimular o boom de consumo popular. Hoje, num sentido fundamental, o PT converteu-se na nova Arena: o partido cuja força emana do controle da máquina pública. O mapa das intenções de voto na candidata-presidente evidencia a regressão política do partido que traçou seu caminho para o poder entre os eleitores de alta e média escolaridade dos grandes centros urbanos.

Marina aparece como representação da terceira utopia, tão nitidamente expressa nas Jornadas de Junho de 2013. O mapa do voto "marinista", bastante inclinado na direção do Centro-Sul e das maiores cidades, revela que a vontade majoritária de mudança tende a se coagular em torno dela. A "nova política", dístico um tanto misterioso da candidata, traduz a ambição de recuperação do Estado como coisa pública, isto é, como instrumento dos cidadãos para a geração de bens públicos.

A ruptura proposta por Marina aninha-se na palha de um paradoxo. De um lado, a candidata investe contra o PT e o PSDB, apresentando-os como facetas polares da mesma "velha ordem" que deve ser superada. De outro, ensaia um estranho convite para que os dois partidos rivais ocupem lugares no seu hipotético governo. FHC e Lula juntos, sob o guarda-chuva de Marina, como sugeriu Eduardo Giannetti, um conselheiro do círculo interno do "marinismo", significaria a repentina abolição, por um mero ato de vontade, das divergências de fundo sobre o Estado, a economia e a sociedade que marcam o debate brasileiro desde o fim da ditadura militar.

O discurso da "terceira via" é, sempre, tão atraente quanto perigoso. Defini-la como a união dos polos políticos tradicionais equivale a dissolver a ideia de mudança no caldo ralo de um falso consenso. As palavras de Giannetti obedeceram, talvez, à finalidade utilitária de rebater a crítica que aponta as carências de uma estrutura partidária sólida e de quadros administrativos experimentados no movimento "marinista". Contudo, atrás delas, divisa-se o espectro do governo de unidade nacional, recurso ao qual as democracias apelam somente em casos de guerra ou colapso social.

Em princípio, eleições são sobre verossimilhança, não sobre verdade. Uma boa campanha eleitoral é aquela capaz de reduzir a distância entre uma e outra. Por enquanto, a utopia mudancista personificada em Marina circula na esfera da verossimilhança.
Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

'DINHEIRO FALSO'

Governos que mentem para o público o tempo todo acabam mais cedo ou mais tarde mentindo para si mesmos e, pior ainda, acreditando nas mentiras que dizem; o resultado é que sempre chegam a uma situação em que não sabem mais fazer a diferença entre o que é verdadeiro e o que é falso. Eis aí onde veio parar o governo da presidente Dilma Rousseff nestes momentos decisivos da campanha eleitoral. Muito pouco do que está dizendo faz nexo – resultado inevitável do hábito, desenvolvido já há doze anos, de navegar com o piloto automático cravado na contrafação dos fatos e na falsificação das realidades.


Entre atender à sua consciência e atender a seus interesses, o governo jogou todas as fichas na segunda alternativa, ao se convencer de que seria muito mais proveitoso tapear o maior número possível de brasileiros com a invenção de virtudes do que ganhar seu apoio com a demonstração de resultados. Não compensa: para que fazer toda essa força se dá para comprar admiração, cartaz e votos com dinheiro falso? Foi o que concluíram, lá atrás, os atuais donos do país. Agora, como viciados em substâncias tóxicas, vivem na dependência da embromação; está muito tarde para mudar, e a única opção é continuar mentindo até o dia das eleições. Sua esperança é que a maioria dos eleitores, como acontece com frequência, ache mais fácil acreditar do que compreender.

Para se ter uma ideia de onde foram amarrar nosso burro: o estado-maior da campanha de Dilma considerou que sua vitória mais importante no primeiro debate entre os candidatos foi ter escapado “de todas as perguntas difíceis”. É triste. Quando a verdade é substituída pelo silêncio, ensina o poeta Ievgeni Ievtushenko, o silêncio torna-se uma mentira – talvez seja, aliás, sua modalidade mais eficiente. A partir daí, vale tudo, e por conta disso os brasileiros têm ouvido as coisas mais extraordinárias por parte do governo.

Os candidatos da oposição, sobretudo Aécio Neves, foram publicamente acusados, por exemplo, de já terem decidido fazer uma recessão econômica se forem eleitos; no mesmo momento, comicamente, saíram os resultados da economia nos primeiros seis meses de 2014, mostrando que o Brasil andou para trás nos dois primeiros trimestres do ano. Ou seja: a recessão que os adversários iriam provocar no futuro já está sendo praticada pelo governo Dilma no presente. Na média dos seus quatro anos, por sinal, será o pior desempenho econômico do Brasil desde o presidente Floriano Peixoto.

Diante dos canais de concreto em ruínas na obra de transposição do Rio São Francisco, que, segundo as mais solenes promessas do ex-presidente Lula, estaria pronta em 2010, depois em 2012 e hoje é um mistério em termos de prazo, Dilma disse em sua propaganda eleitoral que a culpa do atraso é da “curva do aprendizado” – ou seja, pelo que dá para entender, ainda não aprendemos a fazer direito esse tipo de coisa. Ainda? O Canal de Suez está pronto desde 1869, o do Panamá desde 1914; será que já não deu tempo de aprender?

A Ferrovia Norte-Sul, que vem sendo construída pelos governos Lu­la-Dilma desde 2005, e que foi inaugurada mais uma vez em maio, continua fechada ao tráfego de trens, por falta de equipamentos – para piorar, ladrões vêm roubando os trilhos. São os únicos, além das empreiteiras, para quem a ferrovia tem tido alguma utilidade. O programa de formação de mão de obra técnica, descrito como “o maior do mundo”, formou até agora mais de 100 000 recepcionistas e manicures – o triplo do número de mecânicos. Em suma: já nem é mais um caso de mau governo. É anarquia.

Um dos diretores mais influentes da Petrobras durante o governo do PT, tão graduado que assumiu 24 vezes a presidência da empresa em substituição aos titulares, está na cadeia desde março, entalado em espetaculares denúncias de corrupção; foi figura-chave na tenebrosa compra da refinaria americana de Pasadena e está no centro da investigação sobre as negociatas na construção da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, um pesadelo cujo custo final pode passar dos 20 bilhões de dólares. Indagada a respeito, Dilma nada respondeu. Preferiu dizer que o grande problema da empresa foi a sugestão, feita no governo Fernando Henrique, de trocar o nome da Petrobras para “Petrobrax” – apenas uma ideia tola, de vida curtíssima e sem importância nenhuma. E a economia parada? “Eu criei 5,5 milhões de empregos”, diz a candidata. Como assim – “eu criei”?

Uma mentira começa com o ato de fazer o que é falso parecer verdadeiro. Acaba deste jeito: em alucinação.
Por: J.R. Guzzo Publicado na Veja

domingo, 21 de setembro de 2014

FOGUEIRAS DA RAZÃO

Política, ao menos na democracia, é diálogo. A condição para o diálogo é a disposição genuína de ouvir –isto é, de mudar de ideia. O fanático não dialoga, prega. Ele pretende converter o interlocutor, mas não contempla a hipótese de rever suas próprias convicções. No fundo, almeja um poder absoluto: moldar o outro segundo o figurino de crenças que selecionou como verdadeiro. O artigo "Desvendando Marina", de Rogério Cezar de Cerqueira Leite (Folha, 31/8), não desvenda a candidata do PSB/Rede, mas atesta a virulência antidemocrática dos fanáticos da Razão.


O articulista classifica Marina Silva como uma fundamentalista cristã. No universo da ciência política, o conceito de fundamentalismo religioso aplica-se às correntes que exigem a subordinação das instituições públicas e da vida civil aos dogmas de uma fé. Os fundamentalistas querem substituir o livro das leis (o contrato constitucional) pela Lei do Livro (a Bíblia, o Corão ou a Torá). Marina não é, portanto, uma fundamentalista –e, assim como a teoria da evolução, tal conclusão não é uma questão de opinião.

O pensamento científico assenta-se sobre modelos e evidências, abrindo-se ao teste da falseabilidade. Do alto de uma torre erguida com a argamassa da arrogância, o fanático da Razão viola as regras que simula seguir, operando por espasmos de subjetividade. Cerqueira Leite escandaliza-se com as "crenças íntimas" de Marina, mas nem tenta apontar nas propostas políticas da candidata alguma contaminação fundamentalista. Marina defende a laicidade do Estado, sugere submeter o tema do aborto a plebiscito e alinha-se com a decisão do STF sobre a união civil de homossexuais. São posições semelhantes às de Dilma e Aécio, que também não reproduzem o catecismo do movimento LGBT. No fim, o "desconforto" do Inquisidor da Razão é com a liberdade de religião.

As grandes fogueiras da Igreja apagaram-se no passado, ainda que suas brasas continuem queimando aqui e ali. No Ocidente, as fogueiras do último século foram acesas por Estados totalitários que falavam a linguagem da Razão. A URSS de Stálin e a China de Mao eliminaram milhões de pessoas em nome da Ciência da História, que decifrara o enigma do futuro da humanidade. A Alemanha de Hitler construiu as engrenagens do exterminismo sobre o alicerce da Ciência da Raça, que prometia a salvação nacional no Reich de mil anos. O fanático da Razão, tanto quanto o da religião, quer um governo que administre as almas, não as coisas. Na democracia, contudo, as almas não fazem parte da esfera de autoridade do Estado.

A pecha de fundamentalista religiosa lançada contra Marina circula no submundo da internet, propagada por blogueiros governistas sustentados por patrocínios de empresas estatais. Simultaneamente, e de acordo com uma calculada lógica da duplicidade, o governo ensaia reativar um projeto de lei que concede benefícios tributários às igrejas. Mas o Inquisidor da Razão parece não sentir "desconforto" com a privatização partidária da máquina pública nem com a transgressão do princípio elementar da separação entre Estado e religião. Ele se incomoda, de fato, com "crenças íntimas".

Sou agnóstico. Acho graça nos mitos religiosos da Criação –e aborreço-me com pregadores que têm a exagerada pretensão de retificar minhas "crenças íntimas". Só existem superficiais diferenças de linguagem entre eles e os intragáveis pregadores do ateísmo, que querem matar Deus, erradicando-o da mente dos seres humanos. Uns e outros sonham com um Estado inquisitorial, aparelhado para desentranhar as "ideias daninhas" que envenenam seus concidadãos.

Marina já não é uma esfinge. A candidata divulgou um extenso programa de governo, atravessado por tensões e não isento de contradições. Melhor criticá-lo que acender uma fogueira com os galhos secos da árvore da intolerância. 
Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

URSOS E BUROCRATAS

Meu plano, esta semana, era interromper a série de considerações deprimentes sobre a hedionda política nacional e mundial e oferecer aos leitores alguma coisa mais divertida. Tinha tudo para isso. Aos 67 anos, pela primeira vez na vida fiz uma viagem de recreio e estou em plena floresta do Maine, com meu filho Pedro e meu amigo Sílvio Grimaldo, caçando ursos pretos.

É uma região de beleza indescritível; os guias são pessoas gentilíssimas, de maneira que a gente se sente em família. O alojamento até parece um jogo de casinhas de brinquedo e a comida é de primeira ordem. Todo dia os guias nos levam por uma estrada de terra de onde partem as trilhas individuais que seguem pelo meio do mato até a cadeirinha onde nos encarapitamos para esperar o urso, atraído – espera-se – pela isca plantada num barril aberto.

Meu urso não deu ainda o ar da sua graça, especialmente porque ontem choveu um bocado e urso preto não gosta de chuva, mas vou continuar tentando. Levo uma Browning calibre 300 Winchester Magnum, suficiente para derrubar três ursos em fila, e minha pontaria não é de todo má.

Tinha uma boa oportunidade, portanto, para entreter os leitores com umas histórias de caçadas, mas, porca miséria, até aqui a maldita política globalista já chegou, firmemente decidida a estragar tudo e provar que "outro mundo é possível". É claro que é possível. Impossível será viver nele sem começar a pensar em suicídio aos trinta anos de idade. 

Será um mundo totalmente administrado, sem o mínimo espaço para a espontaneidade humana, onde o último arremedo de emoção consistirá em consumir drogas fornecidas pelo governo e praticar sexo industrializado. Traços desse mundo já se vêem por toda parte, exceto na Rússia, na China e nos países islâmicos, que preferem versões mais antiquadas do inferno.

A situação por aqui é a seguinte. O Maine tem uns trinta mil ursos pretos. Para impedir que comam todos os bebês de alces, é preciso matar uns cinco mil por ano. As leis e regulamentos já complicaram a coisa de tal modo que não se consegue matar nem a metade disso. Em resultado, a caçada de alces, antes um esporte popular, tornou-se privilégio de um punhado de ricaços, e mesmo estes têm de entrar numa loteria e esperar sua chance. 

A carne de alce é uma delícia, e no meu modesto entender é muito mais decente comer um bicho perigoso que você mesmo matou com risco próprio do que devorar cinicamente uma vaca indefesa assassinada a marretadas na ponta de uma baia sem saída.

Mas agora a tal da Humane Society, uma organização gigantesca subsidiada por George Soros e outras criaturas adoráveis, inventou um referendo para proibir a caça com isca, com cachorros e com armadilha, restando só a chamada “still hunting”, que consiste em andar pelo mato até encontrar um urso, o que é quase impossível. 

Tom Hamilton, nosso guia, disse que em dez anos só viu assim um único urso, de longe. O urso preto não é metido a valentão como o grizly. É bicho arisco, que se esconde como um ladrão furtivo. Se o voto "Sim" vencer, a superpopulação de ursos vai acabar de vez com os alces, invadir o espaço humano e ameaçar os animais domésticos. Será o perfeito paraíso ecológico.

Durante milênios as comunidades humanas mantiveram-se a salvo de animais ferozes graças a um vasto círculo de proteção constituído de caçadores, guardas florestais, fazendeiros etc. É assim até hoje. O típico cidadão urbano dos nossos dias ignora a existência desse círculo e imagina que é simplesmente natural os bichos ficarem em paz no seu "habitat", como que obedientes a um imenso Registro Cósmico de Imóveis, só se tornando perigosos quando seu território é "invadido" por malvados seres humanos.

Isso é de uma estupidez monstruosa. O "habitat natural" de um urso ou de um lobo não é um lugar fixo: é onde ele encontra uma comida do seu agrado. Pode ser um galinheiro, uma fazenda de gado ou uma pequena cidade. Se ele não passa daí é porque alguém lhe deu um tiro. 

O idiota urbano, a milhares de milhas, intoxicado de maconha, tagarelice ideológica e programas de TV, acredita-se protegido pela gentileza das feras e pelo milagre do "equilíbrio ecológico". É preciso ser muito, muito burro para acreditar que, deixada a si mesma, ou mantida como um santuário inviolável pelos cultores do animalismo, a Mãe Natureza resolverá tudo na mais perfeita harmonia. 

Essa gentil progenitora já liquidou mais espécies animais do que toda a humanidade caçadora reunida. De todos os fatores naturais, o homem é o menos mortífero. É aliás o único que se preocupa em preservar as outras espécies. Nenhum tigre faz passeata de protesto quando um de seus parentes come quatrocentos indianos pobres e desarmados. Nenhum grizly publica editoriais indignados quando um da sua espécie mata dezenas de filhotes, fêmeas e ursos mais fracos.

Não por coincidência, todo o movimento pela proteção às espécies animais foi uma invenção de caçadores, como Theodore Roosevelt nos EUA e Jim Corbett na Índia. Caçadores sabem o que é bom para os animais, para os seres humanos e para a convivência razoável entre as espécies. Políticos e intelectuais iluminados só pensam em si mesmos e inventam os mais belos pretextos para mandar em tudo.

Façam as contas. No Maine, onde a caça aos ursos ainda é um hábito comum, acontecem quarenta – sim, quarenta – vezes menos situações de risco entre ursos e pessoas do que em Connecticut, onde a caça é totalmente proibida e existem apenas 450 ursos em vez dos trinta mil do Maine. Quem protege melhor a população humana e animal? Os caçadores ou o governo?

P. S – Meu amigo Sílvio matou seu urso na quarta-feira. O meu e o do Pedro não deram as caras ainda. Na foto da página não apareço com a minha Browning, mas com a CZ 550 que emprestei ao Sílvio.
Por: Olavo de Carvalho é jornalista, ensaísta e prof. de Filosofia Publicado no Diário do Comercio





DE KEYNES AO PRESIDENTE

O colapso da União Soviética e a queda do Muro de Berlim geraram mudanças importantes em diversos partidos socialistas na Europa e em outras partes do mundo.


O Partido Socialista espanhol é um bom exemplo das transformações. Após amplo debate, as propostas de estatização dos meios de produção e controle da economia pelo Estado foram abandonadas, adotando-se a economia de mercado e o uso da riqueza gerada pela economia privada para financiar o governo e os programas sociais da socialdemocracia europeia.

Muitos políticos e governantes, em diversas regiões do mundo, têm dificuldades de lidar com essa equação, já resolvida há algumas décadas na Europa e em outras regiões. Por trás disso está a dificuldade de aceitar o papel central das empresas privadas na geração de emprego e de riqueza em uma economia de mercado.

Na medida em que o Estado produtor fracassou, a produção é organizada e conduzida pelo setor privado e, para ser financiada, ela passa necessariamente pelo lucro. Este precisa ser regulado por meio da prevenção de monopólios ou oligopólios e do estabelecimento da concorrência visando o aumento da qualidade e a diminuição do custo. Quanto mais aberta for a economia, mais eficiente será esse processo.

Os governantes que tentam impor suas visões de governo e de política econômica ao setor privado têm grande dificuldade de aceitar este conceito.

Uma carta escrita pelo economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946) ao presidente americano Franklin D. Roosevelt (1882-1945), na década de 1930, segue muito útil para orientar os políticos a lidarem com essas questões. Reproduzo um trecho (em tradução livre):

"Você pode conseguir que os empresários façam o que você gostaria, desde que os trate –mesmo os muito grandes– não como lobos ou tigres, mas como animais domésticos por natureza, mesmo que eles não tenham sido criados e treinados como você desejaria. É um erro pensar que eles sejam menos éticos do que os políticos. Se você os confronta e os deixa irritados, obstinados ou aterrorizados, como os animais domésticos tratados de maneira errada são capazes de ficar, a produção nacional não chegará aos mercados e, no final, a opinião pública vai reagir a isto".

É uma carta extremamente útil, particularmente no debate eleitoral presente. É importante que os políticos entendam que no Brasil prevalece a economia de livre mercado. Portanto, deve-se propiciar as condições para que as empresas possam existir, crescer, criar empregos, pagar mais salários, gerar riqueza, pagar impostos e aumentar o padrão de renda do país.
Por: Henrique Meirelles Publicado na Folha de SP

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O SOLDADO E OS MIMADOS

Uma cena da semana: um soldado na tela da CNN. Alta patente do exército conhecido como Peshmerga, o Exército curdo. Povo distante este, o curdo. Muitos de nós nem sabe que existem. Viviam, até agora, na solidão de nossa ignorância. Só quem se ocupa do Oriente Médio sabia da existência deles.


Mas, pouco importa conhecer algo hoje em dia, basta ter opiniões. Todo mundo tem opinião, a começar pelos idiotas do bem. Pergunto-me o que faria um desses diante do inimigo que este soldado enfrenta todo dia.

De volta ao soldado peshmerga. Rosto tenso, inglês difícil, pedido de socorro ao Ocidente –esta região do mundo que mergulhou nos delírios de intelectuais que se preocupam mais com os direitos dos terroristas do que com os das vítimas.

Os peshmergas combatem o Estado Islâmico (EI), grupo fundamentalista e terrorista sunita (será que algum inteligentinho discorda dos termos "fundamentalista e terrorista" aqui?) que gosta de cortar cabeças e clitóris em nome de Alá (Alá nada tem a ver com isso, coitado!).

Surgiu em meio à ridícula visão ocidental de que existiu um dia uma coisa chamada "Primavera Árabe" pela democracia, quando, na realidade, o que houve foi o que há naqueles lados do mundo há séculos: grupos brigando pelas mais variadas questões, inclusive pré-históricas. Mas ainda temos que viver mais mil anos pra passar esta febre do "moderno" que se pensa "novo" na face da Terra.

Um soldado como aquele, com o rosto marcado pelo medo e pela coragem (problema de quem de fato enfrenta a morte e não apenas assina manifestos afetados), pedia socorro ao Ocidente.

Ele, caso caia nas mãos do Estado Islâmico, terá, muito provavelmente, sua cabeça cortada. Ou será crucificado. Sua mulher e filhas vendidas como escravas, seus filhos crucificados também. Mas, em nossas terras de queijos e vinhos, os manifestos dos mimados contra a violência no Oriente Médio, quem sabe, deveriam pedir dinheiro ao Estado Islâmico, que é, aliás, bem rico.

Alguns intelectuais culpam os EUA pelo surgimento do Estado Islâmico. Mas o que fazer? Faz parte da infância mental acreditar em Papai Noel e culpar os EUA e Israel por tudo o que acontece.

Talvez, melhor, seria responsabilizar alguns professores dos departamentos de ciências humanas no Ocidente, por brincarem com coisa séria em suas sessões de queijos e vinhos.

O soldado peshmerga sabe o que é sério e o que é afetação de manifestos. Nós, não. Cremos no relativismo de butique que assola nossas universidades.

Existe sim um relativismo filosófico, desde Protágoras na Grécia, mas este é sempre uma demanda ao intelecto atento (desde Sócrates e Platão), não uma desculpa para afetações de quem confunde o mundo real com queijos e vinhos.

Não só muitos intelectuais vestiram o manto da pureza. Muitos artistas também manifestam sua superioridade moral. Formam o novo clero hipócrita do mundo. Confundem seus mundos seguros de ideias e formas com o mundo onde amor e ódio pesam mais do que ideias e formas de amor e ódio.

O soldado, que sabe que sua atitude pode custar sua vida, segue na sua solidão da guerra. A guerra é solitária. A solidão da morte.

Sonham, esses corajosos curdos que enfrentam de peito aberto os terroristas do Estado Islâmico, com uma democracia estável, na qual possam trabalhar, estudar e viver suas vidas comuns, como a de todos nós.

Sonham que um dia, em meio ao Oriente Médio, essa terra de sangue, possam ter, como eles dizem, uma sociedade como os EUA e Israel. Mas estou seguro que nosso clero de puros no Ocidente não concordaria com esses homens e mulheres que de fato podem morrer pelo que se recusam a fazer: aceitar o fundamentalismo do Estado Islâmico.

Agora o Reino Unido terá de enfrentar seus filhos do EI, criados pelo relativismo de butique de Oxford Street.

Imagino que poderíamos chamar todos os membros do clero puro de intelectuais e artistas para assessorarem o governo britânico em seu pânico com os passaportes europeus que os terroristas têm em mãos.

Afinal, uma nova era para o terrorismo islâmico se abre.
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

DA MEDIOCRIDADE OBRIGATÓRIA

“Admirar sempre moderadamente é sinal de mediocridade”, ensinava Leibniz. Uma das constantes da mentalidade nacional é precisamente o temor de admirar, a necessidade de moderar o elogio – ou entremeá-lo de críticas – para não passar por adulador e idólatra.


Já mencionei esse vício em outros artigos, assinalando que ele resulta em consagrar a mediocridade como um dever e um mérito – às vezes, a condição indispensável do prestígio e do respeito.

Mas não é vício isolado. Vêm junto com pelo menos mais dois, que o prolongam e consolidam:

O primeiro é este: Ao contrário do elogio, a crítica, a detração e até mesmo a difamação pura e simples não exigem nem admitem limite algum, nem precisam de justificação: é direito incondicional do cidadão atribuir ao seu próximo todos os defeitos, pecados e crimes reais ou imaginários, ou então simplesmente condená-lo ao inferno por lhe faltar alguma perfeição divina supostamente abundante na pessoa do crítico. Esse vício faz do efeito Dunning-Kruger (incapacidade de comparar objetivamente os próprios dons com os alheios) mais que uma endemia, uma obrigação.

O segundo é talvez o mais grave: na mesma medida em que se depreciam os méritos de quem os tem, exaltam-se até o sétimo céu aqueles de quem não tem nenhum. O mecanismo é simples: se as altas qualidades excitam a inveja e o despeito, a mediocridade e a incompetência infundem no observador uma reconfortante sensação de alívio, a secreta alegria de saber que o elogiado não é de maneira alguma melhor que ele. A compulsão de enaltecer virtudes inexistentes torna-se uma modalidade socialmente aprovada de auto-elogio indireto.

Da pura depreciação de méritos reais passa-se assim à completa inversão do senso de valores, onde a mais alta virtude consiste precisamente em não ser melhor que ninguém.

Essa inversão já era bem conhecida desde a “Teoria do Medalhão” de Machado de Assis e as sátiras de Lima Barreto, mas nas últimas décadas foi levada às suas últimas conseqüências, na medida em que a esquerda ascendente, ávida de autoglorificar-se e depreciar tudo o mais, precisava desesperadamente de heróis, santos e gênios postiços para repovoar o imaginário popular esvaziado pela “crítica radical de tudo quanto existe” (expressão de Karl Marx).

A lista de mediocridades laureadas começa nos anos 60 com o presidente João Goulart, o arcebispo Dom Hélder Câmara, o almirante Cândido Aragão, o criador das Ligas Camponesas -- Francisco Julião --, o doutrinador comunista Paulo Freire e toda uma plêiade de coitados, erguidos de improviso à condição de “heróis do povo” e incapazes de oferecer qualquer resistência ao golpe militar que os pôs em fuga sem disparar um só tiro.

Nas décadas seguintes, o insignificante cardeal Dom Paulo Evaristo Arns transfigurou-se num novo S. Francisco de Assis por fazer da Praça da Sé um abrigo de delinqüentes; o sr. Herbert de Souza, o Betinho, por ter tido a idéia maliciosa de transformar as instituições de caridade em órgãos auxiliares da propaganda comunista, foi proposto pela revista Veja, sem aparente intenção humorística, como candidato à beatificação; e o sr. Lula, sem ter trabalhado mais de umas poucas semanas, foi elevado ao estatuto de Trabalhador Arquetípico, preparando sua eleição à Presidência da República e a pletora de títulos de doutor honoris causa que consagraram o seu orgulhoso analfabetismo como um modelo superior de ciência.

Nesse ínterim, é claro, a produção de obras literárias significativas reduziu-se a zero, milhares de indivíduos incapazes de conjugar um verbo tornaram-se professores catedráticos, as citações de trabalhos científicos brasileiros na bibliografia internacional foram se reduzindo até desaparecer, o número de analfabetos funcionais entre os estudantes universitários subiu a quase cinqüenta por cento e os alunos das nossas escolas secundárias começaram a tirar sistematicamente os últimos lugares nos testes internacionais, abaixo de seus colegas da Zâmbia e do Paraguai – resultado que um ministro da Educação achou até reconfortante, pois, segundo ele, “poderia ter sido pior” (até hoje ninguém sabe o que ele quis dizer com isso).

A devastação geral da inteligência lesou até alguns cérebros que poderiam ter dado exemplos de imunidade à estupidez crescente. Nos anos que se seguiram ao golpe de 1964, os partidos comunistas conseguiram cooptar, sob o pretexto de “luta pela democracia”, vários intelectuais até então cristãos e conservadores, que, travados pelo senso das conveniências imediatas, foram então perdendo seus talentos até chegar à quase completa esterilidade. Desse período em diante, Otto Maria Carpeaux nada mais escreveu que se comparasse à História da Literatura Ocidental (1947) ou aos ensaios de A Cinza do Purgatório (1942) e Origens e Fins (1943); Ariano Suassuna nunca mais repetiu os tours de force do Auto da Compadecida (1955) e de A Pena e a Lei (1959), Alceu Amoroso Lima deixou de ser o filósofo de O Existencialismo e Outros Mitos do Nosso Tempo (1951) e de Meditações sobre o Mundo Interior (1953), para tornar-se poster man da esquerda e garoto-propaganda do ridículo Hélder Câmara.

Nada disso foi coincidência. A total subordinação da cultura superior aos interesses do Partido é objetivo explícito e declarado da estratégia de Antonio Gramsci, um sagüi intelectual que se tornou, entre os anos 60 e 90 do século passado, o guru máximo das consciências e o autor mais citado em teses acadêmicas no Brasil.

Comparados aos feitos da esquerda no campo da educação e da cultura, o Mensalão, o dinheiro na cueca e a roubalheira na Petrobrás recobrem-se até de uma aura de santidade.

Por: Olavo de Carvalho

Publicado no Diário do Comércio.





OLAVO DE CARVALHO - ENTREVISTA PARA O SITE ISLAMIDADES

Olavo de Carvalho é filósofo, escritor e jornalista e atualmente escreve para o jornal Diário do Comércio da Associação Comercial de São Paulo. É autor de vários livros, incluindo O Jardim das Aflições, O Imbecil Coletivo, O Futuro do Pensamento Brasileiro, entre outros. Também é o fundador do renomado Seminário de Filosofia.


Islamidades: Hoje um dos temas mais debatidos nos meios conservadores é a islamização da Europa. Quase sempre esta discussão é acompanhada de uma multiplicidade de posições ideológicas, desde neoconservadores até eurasianos. O fato incontestável é que a enfermidade espiritual do Velho Continente abriu as portas para a entrada do islamismo como o substituto de um cristianismo "caduco", incapaz de se apresentar de modo convincente. O surgimento de uma elite islâmica europeia parece ser a concretização daquilo que já estava contido nos escritos de Guénon e Schuon décadas passadas. Até que ponto este processo de islamização é profundo e irreversível?

Olavo de Carvalho: A penetração do Islam no Ocidente não começou com a imigração em massa, nem com o terrorismo, nem com a espetacular agitação política que se viu nas últimas décadas. Ela remonta à ação discreta de René Guénon, iniciada na segunda década do século XX e dirigida a uma elite intelectual altamente capacitada, bem longe dos olhos da mídia, dos “analistas políticos” e da maioria dos orientalistas acadêmicos. Quando Frithjof Schuon fundou nos anos 50 a tariqa que Guénon considerou o primeiro resultado significativo do seu trabalho, ela já atraiu intelectuais de primeiríssimo plano, cuja ação permaneceu discreta pelo menos até a década de 90. Foram setenta anos de conquista dos corações e mentes nas altas esferas intelectuais, políticas e financeiras.

Sem isso, a estratégia da ocupação por imigração jamais poderia ter sido levada à prática. Foi preciso, primeiro, minar a resistência nas altas esferas. O exemplo mais característico é o príncipe Charles da Inglaterra, que por intermédio de Martin Lings se tornou um discípulo de Schuon pelo menos desde a década de 80 e viria a aparecer, já no nosso século, como o maior protetor dos invasores islâmicos no seu país.

Todo esse processo passou despercebido aos analistas políticos e cientistas sociais, que até então desconheciam praticamente tudo do Islam, mas a promessa de Schuon ao voltar da Argélia e instalar sua tariqa em Lausanne foi bem explícita: “Vou islamizar a Europa”. Disse e fez. Perto dessa ação em profundidade, as ações espetaculares do aiatolá Khomeini e dos terroristas não são senão a espuma trazida pela maré. Se você me pergunta se é possível reverter o processo, respondo que sim, mas é preciso agir desde a camada profunda onde o processo começou.

Islamidades: O islamismo seria capaz de proteger-se do secularismo ocidental? Desde o séc. XIX o mundo islâmico está lutando para se adaptar ao novo contexto mundial. A ascensão do socialismo e nacionalismo árabes, como resposta de sabor europeu aos problemas concretos do Oriente Médio, mostrou-se um completo fracasso. O surgimento de grupos de libertação, como a Irmandade Muçulmana e a Revolução Islâmica no Irã, criavam mais problemas do que soluções. Ademais, desde a consolidação do wahabismo na Arábia Saudita, o “salafismo” se tornou em propulsor de anacronismos em todo o mundo islâmico. Para agravar ainda mais o cenário, o liberalismo ocidental surge como uma proposta sedutora de progresso, e cobrando a secularização da sociedade. Com este quadro formado, e analisando a “Primavera Árabe” e os seus frutos, como entender o complexo movimento de (re)conhecimento e adaptação das nações islâmicas – para não dizer Ummah – ao mundo moderno?

Olavo de Carvalho: As relações entre o Islam e o secularismo ocidental são bastante ambíguas. Por um lado, foi o secularismo que debilitou a herança cristã da civilização européia, criando um vácuo que o islamismo se oferece gentilmente para preencher. Por outro lado, a ponta de lança mais avançada do secularismo foi precisamente o movimento comunista, que armou, treinou e dirigiu não só os grupos terroristas islâmicos, desde muitas décadas atrás, mas também vários líderes políticos bem conhecidos, como Gamal Abdel Nasser e Yasser Arafat. Sobre esses dois aspectos, o secularismo embora oposto, em aparência, à ideologia islâmica, foi o grande suporte da sua penetração no ocidente. Existe, embora mais discreto e menos significativo historicamente, o reverso da medalha. Em muitos países islâmicos, a começar pelo próprio Irã, os atrativos da moderna vida ocidental, com a promessa da liberdade sexual e a sedução das drogas, inspiram alguma revolta entre os jovens, criando uma instabilidade que os governos islâmicos têm conseguido eliminar na base da repressão e da violência. As análises usuais não levam em conta essas ambiguidades, preferindo insistir na visão estereotipada de uma oposição esquemática entre “modernidade” e “fundamentalismo”. A questão complica-se, no entanto, um pouco mais, porque justamente essa oposição, assim concebida, é usada pelos secularistas ocidentais para combater não o Islam, mas o que resta de cristianismo na sociedade européia e americana, de modo que a própria retórica modernista que verbera o “atraso” e o “fanatismo” da civilização islâmica debilita ainda mais a resistência aos invasores.

Islamidades: A mística é mais eloquente do que séculos de debates teológicos. No contexto islâmico isto é ainda mais verdadeiro quando levamos em consideração o intercâmbio entre xiitas e sunitas no sufismo. Por mais que complexas concepções doutrinais os separem, como a noção xiita da função esotérica do imamato, no campo místico o diálogo é eloquente e muitas vezes supera as distinções. Como defendido por Seyyed Hossein Nasr, “somente o sufismo pode alcançar esta Unidade que abraça estas duas facetas do Islam e consegue transcender as diferenças exteriores”. A difusão da mística islâmica, ou ao menos a formação de uma elite espiritual sob a sua égide, seria fator fundamental na coesão interna do islamismo?

Olavo de Carvalho: O agressivo globalismo islâmico que aspira ao Califado universal nasce da confluência de duas correntes aparentemente incompatíveis. Por um lado, é evidente que o esoterismo “sufi” representa, ao menos virtualmente, a grande força de unificação espiritual das inúmeras correntes religiosas e ideológicas que, numa confusão dos diabos, pululam no Islam. Nesse sentido, ele é de certo modo o cérebro por trás de todo expansionismo islâmico no que ele tem de mais ligado à nostalgia das glórias passadas e ao senso messiânico que inspirou o Islam desde o começo. No século XX a influencia soviética penetrou profundamente no meio islâmico, incentivando a transformação do revanchismo anti-ocidental numa ideologia revolucionária fortalecida pela “teologia da libertação” islâmica criada por Said Qutub nos anos 30. É quase inconcebível para o observador ocidental usual atinar com uma aliança entre tradições espirituais esotéricas e o mais brutal movimento revolucionário anti-religioso de todos os tempos, mas ela aconteceu. Até hoje existe, ainda que bem controlada, essa tensão dentro do mundo islâmico, na medida em que o presente governo russo, composto quase que inteiramente de membros da mesma KGB que orquestrou a politização do islamismo seis ou sete décadas atrás, busca hoje integrar as forças islâmicas no seu projeto maior, o Império Eurasiano. Há toda uma zona de mescla, de competição e de colaboração entre “árabes” e “russos”, que até hoje não foi adequadamente mapeada pelos estudiosos. Quem vai usar o outro e quem vai ser usado é uma questão que só as próximas décadas decidirão.

Islamidades: Autores como René Guénon, a.k.a. Shaykh 'Abd al-Wahid Yahya, Frithjof Schuon, a.k.a. Shaykh 'Isa Nur al-Din Ahmad, e Martin Lings, a.k.a. Abu Bakr Siraj Ad-Din, são alguns nomes da filosofia perene, todos convertidos ao islamismo. Dentro do caldeirão da “unidade transcendente das religiões” a fé islâmica se sobressai como a plenitude das religiões tradicionais. Contudo, o que parecia ser apenas uma dinâmica própria de grupos esotéricos periféricos, tem se mostrado muito mais estruturada do pondo de vista prático, seja através do incremento de obras publicadas, como através da disseminação do esoterismo, principalmente nos EUA e Europa. Ademais, o perenialismo também influenciou, em aspectos que parecem obscuros, o modo como o ecumenismo moderno foi concebido. Os pressupostos metafísicos comuns nas crenças tradicionais possibilitariam, aos olhos da Escola Perene, um “ecumenismo esotérico”, utilizando o termo consagrado por Schuon em seu livro “Christianity Islam: Perspectives On Esoteric Ecumenism”. Até onde chega a influência do perenialismo na cosmovisão religiosa moderna e na vida intelectual ocidental?

Olavo de Carvalho: O projeto de Guénon e Schuon parece fundar-se no reconhecimento da igual legitimidade de todas as tradições religiosas, porém, na medida em que toma o esoterismo islâmico como a modalidade mais alta e vigorosa de espiritualidade nas condições da época presente, ele corresponde, na prática, a colocar todas as religiões do mundo sobre a orientação discreta de uma elite espiritual islamica. Levei décadas para entender uma coisa tão óbvia. Quando Guénon, nos anos 30, disse que o Ocidente só tinha três saídas – a barbárie, a islamização ou a restauração da Igreja Católica, ele deixou bem claro que esta última alternativa deve ser conduzida sob a direção de autoridades espirituais islâmicas. A única diferença, portanto, entre as duas ultimas alternativas é a que existe entre islamizar a civilização ocidental de maneira ostensiva ou camuflada. A prática mostrou que essas duas alternativas não se excluem absolutamente. Um detalhe interessante é que toda a retórica, tanto guénoniana quanto “perenialista” ( essas duas coisas não são exatamente a mesma) se baseia na afirmação de que o esoterismo foi totalmente perdido de vista no Ocidente pelo menos desde a Renascença, reduzindo-se a religião crista, na modernidade, ao mais raso exoterismo. Daí concluíam esses doutrinários que uma injeção de sufismo era necessária para salvar o Ocidente de si mesmo e reatar os elos da civilização com as suas raízes cristãs mais remotas. Acontece que, no Ocidente, o esoterismo só foi perdido na esfera da cultura acadêmica, mas, fora dela, continuou pujante e vigoroso, inspirando praticamente todos os grandes escritores e poetas do mundo Ocidental. Também é fato que a mais alta “realização metafísica” cuja possibilidade o sufismo de Guénon e Schuon prometia trazer de volta a uma civilização extraviada, jamais foi perdida de vista na tradição católica, como se vê, claramente, pelos livros do padre Juan Gonzalez Arintero, La Evolución Mistica e Cuestiones Misticas. Em suma, o que essa gente prometia era nos dar algo que já tínhamos, com o agravante de que a doação vinha acompanhada da transferência da autoridade da Igreja Católica para as autoridades espirituais islâmicas que a dirigiriam e orientariam desde longe.

POR ISLAMIDADES.COM





terça-feira, 16 de setembro de 2014

COMO CONVERSAR COM OS FILHOS?

Pais precisam dialogar com filhos. Dessa afirmação ninguém duvida. É pelo diálogo que os pais ensinam aos filhos as coisas da vida, que os conhecem de perto, sabem das suas opiniões e expressam com clareza os seus valores. É o diálogo o catalisador dos vínculos entre pais e filhos.


Mas, o que é diálogo, e como entabular conversas com os filhos, sempre arredios? Mães e pais enfrentam respostas monossilábicas dos filhos quando tentam iniciar uma conversa. Invariavelmente, para a pergunta: "Filho, como foi a escola hoje?", a resposta é "Bem.", "Legal." ou "Normal.". Crianças e adolescentes não gostam de prestar contas de suas vidas aos pais, principalmente dos raros momentos em que estão longe das vistas deles. Ir para a escola é um descanso da família! Da mesma forma, o trabalho, para o adulto, também funciona como uma folga da família.

Outro empecilho são as perguntas que os pais fazem sobre o que se passa com os filhos, perguntas essas que, muitas vezes, não ajudam os filhos a verbalizar o que pensam ou sentem. "Filho, o que está acontecendo com você?" ou "Filha, o que você tem passado para estar tão triste?" são perguntas interessadas dos pais, mas que em geral não contribuem para que os filhos exteriorizem seus pensamentos, sentimentos e angústias.

O que fazer para alcançar os tais diálogos? Alguns princípios ajudam: respeitar a privacidade deles -filhos têm direito a ter segredos!-, não confundir diálogo com persuasão e considerar com seriedade o que eles falam são alguns deles. Além disso, o que costuma ajudar é o fato de os pais contarem com um mediador para essas conversas. Um terceiro elemento permite que os diálogos entre pais e filhos não assumam a forma de uma discussão da relação entre eles.

Cinema em casa: essa foi a estratégia adotada por uma família com filhos de idades bem diferentes. Os pais determinaram que, uma vez na semana, a família se reúne para assistir a um filme juntos. Antes, durante e depois do filme, a família dialoga: "A qual filme assistir, e por quê?", "O que esse filme tem a ver com a vida que levamos em nossa sociedade?", "Qual a opinião a respeito do desfecho do enredo e/ou de determinados personagens?" são algumas das questões que a família debate.

O que considerei interessante é que os pais não censuram filme algum, mesmo quando eles sabem que não é bom ou quando a classificação indicativa está acima da idade do filho que tem sete anos. Eles pensam que qualquer programa ou propaganda em televisão traz para os filhos o mundo adulto e suas mazelas. "Melhor que seja em ficção", me disse o pai.

Eles riem, choram e se emocionam juntos, ficam em suspense, com medo, sempre juntos. Eles discordam, argumentam, emitem opiniões diversas. Só não podem desistir do filme, a não ser que seja consenso. Isso é diálogo!

Fazer a programação da semana: essa estratégia é usada por outra família com filhos adolescentes. Toda segunda-feira à noite, eles conversam sobre como será a semana deles, separadamente e juntos. É quando os filhos pedem para ir a festas ou fazer viagens, argumentam, contestam, reclamam das viagens constantes do pai etc. É nessa situação que essa família se atualiza, dialoga.

Os exemplos que citei foram criados pelas famílias. Que tal criar as suas estratégias e usá-las regularmente para dialogar com seus filhos? 
Por: Rosely Sayão Publicado na Folha de SP

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

POR QUE A RELIGIÃO NÃO É SAÍDA?

Por que a religião não é mais uma saída? Afirmei há algumas semanas nesta coluna ("O Impasse Conservador", de 11 de agosto) que a religião não era mais saída. Muitos leitores me perguntaram o que eu queria dizer com isso.


No contexto do pensamento conservador é muito comum associar tradições religiosas à defesa do hábito como instrumento contra os excessos do "racionalismo político" herdeiro da Revolução Francesa e sua "engenharia social".

Muitos conservadores (mas, evidentemente, não todos) são religiosos ou defendem uma adesão religiosa de alguma forma. Entendem que a vida pautada por alguma tradição religiosa responde a uma necessidade profunda do ser humano e que, portanto, o anticlericalismo iluminista francês atrapalha o homem quando o faz pensar que a religião seria atraso de vida ou coisa de gente estúpida ou ignorante.

Voltaire, por exemplo, típico iluminista do século 18 francês, via a religião como uma superstição das trevas. A crítica de Voltaire se aplicaria bem ao caso do Estado Islâmico no Iraque e seus horrores como cortar cabeças e clitóris.

Sei que muitas pessoas inteligentes são religiosas e que não se pode afirmar definitivamente nada sobre a existência de figuras como o Deus israelita, que o cristianismo abraçou na figura de Cristo. Vejo muitas das tradições religiosas do mundo como grandes exemplos de sabedoria. Nem tudo é o Estado Islâmico em religião.

Como dizia Chesterton, autor inglês do início do século 20, não há problema em deixar de acreditar em Deus; o problema é que normalmente passa-se a acreditar em qualquer bobagem como história, política, ciência, ou, pior, em si mesmo, como forma de salvação. Eu acho que não há salvação para o homem.

Existe também a literatura mística que descreve experiências diretas de Deus e que é marcada por grandes transformações na vida dessas pessoas, muitas vezes de modo enriquecedor. Sou um leitor apaixonado dessa tradição.

Mas, então, por que digo que a religião não é saída? Antes de tudo para mim, pessoalmente. Não nasci com o órgão da fé, como dizia o filósofo Cioran no século 20. Mas, de modo mais amplo, entendo que as religiões no mundo contemporâneo ou se acomodam aos ditames da sociedade de mercado e viram mais ou menos produtos dela (e acabam ficando meio inócuas), ou entram em choque com o mundo contemporâneo e caem na tentação fundamentalista.

Existem tipos de religião. Um deles é a "nova era", forma de espiritualidade ao portador, com alto poder de consumo e baixíssimo comprometimento, do tipo "budismo light". Vai bem com vinho branco no calor. Também há o tipo de religião nas redes sociais -vai bem com Coca Zero.

Outro é a adesão "dura", que muitos chamam de fundamentalismos. Podem ter viés político, como no Oriente Médio, ou os católicos comunistas da América Latina (que reclamam do capitalismo e viram MST), ou moral, como no caso dos evangélicos. Ou mesmo os católicos "praticantes".

Há também os sensíveis e cultos, que podem deixar qualquer ateu chocado com como são mais inteligentes do que os ateus militantes (um tipo basicamente chato).

Há também os que creem em "transes", do kardecismo doutrinário, meio sem graça, aos cultos afro-brasileiros, mais interessantes e "coloridos". Claro, há também os conversos às religiões orientais, que, na maioria das vezes, têm baixo comprometimento ou viram monges de adesão "dura".

Há também os que entendem que as religiões falam todas a mesma coisa: amor, generosidade, compreensão. A ideia é boa, mas não é verdade. Na prática, as religiões não falam a mesma coisa. Por exemplo, um judeu e um cristão podem concordar sobre como a guerra é ruim, mas é melhor que não discutam sobre se Jesus é ou não o messias.

No mundo contemporâneo, uma religião, para ser bem-comportada, tem que se submeter à lógica do Estado democrático laico, como diria John Stuart Mill no início do século 19. Por isso, deve "baixar a bola" e entrar na competição do "mercado de sentido da vida" e jamais questionar a sociedade laica. Se o fizer, cai na tentação fundamentalista. Um beco sem saída.
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O HOMEM NÃO TEM SALVAÇÃO

O homem não tem salvação. O que viria a ser essa "salvação"?


Para muitos, falar de "salvação" implicaria em supor alguma forma de "maldição".

Claro, no âmbito de muitas religiões, uma coisa implica na outra: pecado, desequilíbrio energético (isso eu não levo muito a sério, principalmente quando envolve posições de sofás na sala e de espelhos no hall de entrada), carma, destruição da mãe natureza, Gaia, enfim, qualquer narrativa que justifique a fria em que estamos.

Não creio em nenhuma dessas "maldições". Mas acho sim que buscamos salvação de alguma forma. Talvez, pelo fato de que engordamos quando comemos, que adoecemos, que trabalhamos demais (porque queremos sucesso) e viramos "coisa" por isso, ou de menos (porque não rola trabalho) e ficamos pobres, porque somos feios ou porque a busca da beleza nos escraviza achando que os belos são mais amados (o que pode ser uma ilusão levando-se em conta o número de inimigas que as mais bonitas e gostosas têm e o tédio que escorre dos seus rostos).

Enfim, porque não somos plenos em nada. Sei que alguns gostam de dizer que a "imperfeição é em si uma beleza", mas não cola. Não cola não porque eu não ache que se faz necessário combater de alguma forma a mania de perfeição (pelo contrário, acho que sim, devemos resistir à ditadura da perfeição na vida, típica desse mundo brega que é o mundo contemporâneo).

A reação à ditadura da perfeição não é um pseudoculto da imperfeição porque a imperfeição dói muito na realidade.

A imperfeição é falta de beleza, rugas, medo, morte, doença, pobreza, frustração, fraqueza, traição. É o simples fato de que conviver com alguém melhor do que você é sempre insuportável. Imagine se ela for mais inteligente, mais bonita, mais gostosa, mais rica, mais humilde, mais generosa! O rosto de Caim brotará em sua face.

Eu sei que está na moda dizer que todos somos iguais, mas isso é conversa para boi dormir, ou filosofia barata, ou marketing político "solidário". A tentativa de dizer que a imperfeição seja uma solução é coisa de medroso, ingênuo ou mentiroso.

Nos últimos 300 anos padecemos de outro tipo de culto salvacionista: a fé na política como redenção da vida e do mundo, graças a gente como Rousseau, Marx e Foucault.

Quando ouço a propaganda política (sempre sem querer, claro, porque a lei da propaganda política no Brasil é uma das maiores provas de "democracia autoritária" em que vivemos, esculhambando a grade da TV e do rádio ao bel prazer da "festa da democracia") e escuto alguém falar em "alternativa socialista" sinto algo como "alguém está falando em alternativa neandertal?"

Talvez seja justamente esta "falta ontológica" (falta ser em nós, somos mortais em todos os sentidos, como estava escrito no oráculo de Apolo), como dizia o historiador romeno de religiões Mircea Eliade (século 20). Esta falta gera contínua busca de soluções por parte dos humanos.

E as religiões são o melhor produto no mercado para isso. E depois da Revolução Francesa temos que aturar os tarados da "justiça social".

Sei que muitos pensam que, porque acreditam na ciência ou na política, o tema está resolvido, mas nunca está. A prova é a autoajuda corporativa e individual, a "fé na nutricionista", a crença no sexo como salvação (coisa de gente que faz pouco sexo).

Penso aqui no grande Freud e seu "Mal-Estar na Civilização" e no sofisticado sociólogo Norbert Elias e seu grandioso "Processo Civilizador".

Devido à balada brega em que o mundo virou, saiu de moda lembrar que para sair da pré-história tivemos que ficar neuróticos, obcecados pelo que pensam de nós, comendo com garfos por vergonha de sujar os dedinhos e de que achem que somos pobres e sem educação. Fazendo cursos de vinhos pra fingir que somos gente fina. O custo da repressão da pré-história em nós implicou um mal-estar contínuo e sem solução.

Gente "bem resolvida" gosta de fingir que não teme o mal-estar na civilização, vivem como se Freud não tivesse existido. Tudo se resolveria numa dieta com bike e numa espiritualidade que uiva pra lua.
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O BRASIL NÃO É A VENEZUELA

Existe hoje um clima de quase pânico em parte da elite brasileira. Sou testemunha deste fato, pois, por dever profissional, tenho contato com um grande número desses desesperados. A leitura deste pessoal é a de que estamos caminhando celeremente para o mesmo caminho trilhado pela Argentina e pela Venezuela.


O leitor sabe que não concordo com essa leitura catastrofista por várias razões. Uma delas é que a recessão que vivemos hoje nada mais representa do que o caminho natural de toda a economia de mercado depois de um período de boom econômico, como o que vivemos entre 2004 e 2011. Esse ajuste foi evitado no início do mandato da presidenta Dilma pela aplicação de doses maciças de anabolizantes com alto conteúdo de expansão do crédito dos bancos públicos e aumento dos gastos do governo.

Entre 2004 e 2007 o crédito cresceu a uma taxa de 25% ao ano nos bancos privados e de 20% no caso dos bancos públicos. Entre 2007 e 2008, esta taxa acelerou-se para mais de 35% ao ano no segmento privado, com os bancos oficiais ficando para trás, crescendo apenas 20% ao ano.

Mas, a partir do agravamento da crise americana, no segundo semestre de 2008, essas posições se inverteram, com os bancos privados pisando no freio e trazendo a taxa de expansão de seus empréstimos para menos de 10% ao ano e os bancos oficiais expandindo suas operações a uma taxa que chegou a 40% nas vésperas das eleições de 2010.

Era o governo reagindo à crise externa e defendendo a eleição de sua candidata a presidente da República. Passadas as eleições, a política econômica do governo voltou à normalidade, com os bancos públicos reduzindo a taxa de expansão de suas operações para algo próximo a 20% ao ano, a mesma verificada então nos bancos privados.

Pois foi nesse momento que a queda da atividade passou a tomar conta da economia brasileira dentro de um processo natural de ajustes, como escrevi acima. O governo, em vez de aceitá-lo -e administrar esse ajuste-, decidiu aumentar suas apostas no crescimento do consumo e, mais uma vez, os bancos públicos foram chamados a agir.

As taxas anuais de crescimento de suas operações voltaram a crescer, chegando a 30% ao ano em 2013. Neste cenário, as vendas ao consumo aumentaram, dando a impressão de que a economia -como no passado- voltaria a responder positivamente aos mesmos anabolizantes.

Ledo engano, pois as condições eram outras e a inflação apareceu com força, obrigando o Banco Central a mudar o sinal de sua política monetária. Pressionado pelos efeitos de uma inflação que, mesmo com juros mais altos, ameaçava sair do controle, o governo jogou a toalha e, nos últimos meses, ordenou que os bancos públicos normalizassem suas operações.

Hoje a taxa de expansão caiu para 18% ao ano e deve continuar a desacelerar, seguindo a direção dos bancos privados, que vem expandindo suas operações a uma taxa modestíssima para nossos padrões, de 8% ao ano.

Volto agora ao início de minha coluna e reafirmo minha posição de que esta recessão que estamos vivendo é "ainda" fruto de um ajuste natural e benéfico de nossa economia. Com uma política econômica adequada, será questão de pouco tempo voltarmos ao leito natural de crescimento, que deve ser hoje da ordem de 3% ao ano. O que nos afasta de forma clara do mesmo caminho trilhado pela Venezuela e Argentina.

E parece que essa é também a leitura do mercado internacional de capitais, pois o Brasil teve uma demanda de US$ 4,8 bilhões para a emissão de US$ 500 milhões de títulos de dez anos de prazo anunciada há poucos dias. Aproveitando-se da situação em que as ofertas de compra representaram mais de nove vezes o valor da emissão, o Tesouro vendeu um total de US$ 1 bilhão, pagando juros anuais de 3,88%, ou seja, 1,4 ponto percentual mais do que o título equivalente do Tesouro americano.

Como eu, todos os compradores destes papéis -e de outros emitidos pelo governo brasileiro no exterior e aqui no país- estão longe da histeria dos brasileiros preocupados com nosso futuro de Venezuela.
Por: Luiz Carlos Mendonça de Barros Publicado na Folha de SP

terça-feira, 9 de setembro de 2014

ZÉ MARIA NA TELINHA

Ele tinha 41 em 1998; fará 57, alguns dias antes do primeiro turno. Na telinha, de eleição em eleição, a quarta numa sequência só interrompida em 2006, nós o vemos envelhecer contando a mesma piada. Zé Maria não tem um programa de governo: ele nos propõe a revolução proletária. Seu PSTU distingue-se de incontáveis outros partidos, sopas de letrinhas da maravilhosa abóboda política brasileira, pois rejeita o escambo do tempo de tevê por cargos comissionados em algum escalão da administração pública. Por outro lado, como seus congêneres, o PSTU vive da extração compulsória de dinheiro dos cidadãos que o ignoram. Só no ano passado, o Fundo Partidário repassou-lhe R$ 772.404,41. Desconfio que Zé Maria será um ardoroso revolucionário até o fim de seus dias.


Não há nada de especialmente errado com o PEN, o PTN, o PROS, o SD, o PSDC, o PTC, o PHS et caterva. Seus dirigentes não fingem pretender seduzir-nos com a utopia de um mundo livre de todo o mal. Eles descobriram que nosso sistema partidário propicia um negócio lucrativo –e, de modo mais ou menos explícito, exibem-se como hábeis negociantes. O PSTU, não: em nome da História (assim com maiúscula), Zé Maria convida-nos a uma luta épica: o assalto ao Céu. A sua revolução será a da maioria, quando finalmente entendermos que ele marcha na companhia da Razão (maiúscula obrigatória). O problema é que, de fato, graças ao Fundo Partidário, ele não precisa que alguém concorde com ele. No Brasil, a Revolução (maiúscula!) tornou-se um bom negócio.

Zé Maria tem o direito de retrucar que faz o que todos fazem, sofisma celebrizado pelo PT desde o "mensalão". Preferirá, porém, se separar dos demais, alegando que explora as "contradições da democracia burguesa" para instalar a "democracia proletária". A racionalização do interesse próprio não muda a substância do problema: o uso do Fundo Partidário isenta o PSTU do imperativo político de persuadir as pessoas de que tem alguma razão (no caso, com minúsculas). Zé Maria não precisa de militantes, apoiadores ou simpatizantes: ele já tem o meu dinheiro e o seu. No Brasil, a Revolução converteu-se em álibi e pretexto.

Prevejo uma nota ensandecida do PSTU apontando-me como agente da CIA, da Santa Sé, do Mossad e da Mídia Burguesa. Como não os convencerei a desistir da ideia argumentando com a deselegância de maldizer um contribuinte financeiro, tento algo melhor: o problema não está neles, mas na nossa "democracia burguesa". Ainda que nos poupem das intragáveis letras maiúsculas, os grandes partidos também financiam suas (mais modestas) utopias pelo assalto legalizado ao bolso do público. Por que singularizar no sempiterno Zé Maria uma acusação que se aplica, com igual justiça, a Dilma, Aécio e Marina?

Na democracia sem adjetivos, partidos são entes privados; na nossa pobre democracia varguista, partidos são entes estatais. Por aqui, o meu dinheiro (e o seu) sustenta candidaturas que personificam o oposto do que quero. O PT ameaça, pelo financiamento público de campanha, ampliar ainda mais a transferência compulsória de recursos dos cidadãos para a elite política organizada em partidos. Imagine, pelo contrário, a célere transformação da paisagem partidária que decorreria da desestatização dos partidos, compelidos por esse ato a buscar dinheiro exclusivamente entre os indivíduos (isto é, as pessoas físicas) que os apoiam. Infelizmente, contudo, mesmo na oposição, ninguém –nem a Marina sonhática da "nova política"!– sugere tal iniciativa. No Brasil, o Partido dos Políticos estende-se de Zé Maria até o Pastor Everaldo.

O Zé Maria que envelhece na telinha, sempre igual a si mesmo, não é indício das "contradições da democracia burguesa", mas o certificado da perversa coerência de um sistema que corrompe a política. Não se amofine, Zé, o problema está em nós. Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

RUPTURA DA RUPTURA

Morremos porque um dia Deus puniu nossa desobediente ousadia de buscar o conhecimento, tornando-nos humanos. Eduardo Campos morreu em meio a uma trajetória política, mas, sobretudo, na hora crucial de um percurso de ruptura intelectual. Na campanha ao Planalto, o neto de Miguel Arraes e antigo protegido de Lula tentava completar algo como uma libertação pessoal, definindo seu lugar na cena brasileira. Um acaso trágico, ruptura súbita de uma ruptura progressiva, interrompeu a escritura do capítulo final da história.


"Versão moderna de um coronel nordestino tradicional" –a síntese ambígua escolhida em 2012 pela "The Economist" para classificá-lo talvez servisse como uma fotografia banal, mas não captava o fluxo da vida. O "coronel" cerca-se dos seus, distribuindo os destroços da coisa pública ao séquito dos "compadres". Campos, pelo contrário, distinguiu-se no governo de Pernambuco por um esforço persistente, nem sempre bem sucedido, para insular a máquina estatal dos interesses das camarilhas. Quando seus restos mortais baixarem à sepultura de Arraes, será tão legítimo celebrar a ruptura quanto a continuidade.

Campos provou que o Bolsa Família não congela a política. Dois anos depois de, com o respaldo de Lula, obter 83% dos votos na reeleição ao governo estadual, sua liderança catapultou Geraldo Júlio a um improvável triunfo na disputa municipal do Recife contra o candidato lulista. Naquela hora, convenceu a si mesmo, e ao mundo político, de que já não precisava ser um apêndice do presidente de fato. Ingrato, oportunista, traíra? Os epítetos lançados pelo PT, até quarta-feira incorporados à campanha dilmista e ainda reverberados pelos "companheiros de viagem", circulam na esfera da difamação. Campos ambicionava o poder, como qualquer político, mas sua ruptura refletia divergências de princípio.

No Brasil, vezes demais, sacrificamos a clareza no altar dos afetos. Um "lulismo sem Dilma", como parecia propor o candidato Campos, não era uma narrativa política viável, mas um tributo pago pelo presente ao passado –e uma renúncia voluntária à crítica justa. O fato, porém, é que o ex-ministro de Lula rejeitava a sujeição do interesse nacional à ideologia ("Nós não podemos ter diplomacia de partido. Nós temos de ter uma diplomacia de país"), acreditava na meritocracia ("Eu fiz salário variável na educação, na saúde, na segurança pública") e esboçava um desafio à partidocracia ("A nossa perspectiva é que os cargos comissionados, algo como metade deles, sejam exclusivos dos servidores de carreira").

Aprender e evoluir não é trair. Na sua ruptura, Campos pisou a fronteira do tabu ao concluir que os programas de transferência de renda devem funcionar como ponto de partida, não de chegada, e sugerir uma "política social 2.0". "Vemos as filhas do Bolsa Família serem mães do Bolsa Família. Vamos assistir a elas serem avós do Bolsa Família?", indagou com uma coragem incomum entre os políticos. O "ciclo da pobreza", explicou, só será ultrapassado pela qualificação dos serviços universais de educação e saúde. Ele não disse, nem precisaria, que os beneficiários políticos do "ciclo da pobreza" entrincheiraram o país no castelo da "política social 1.0".

O "menino de Arraes", na expressão cunhada por um rival em Pernambuco, pendurou o retrato do avô na parede, mas mordeu a maçã da desobediência, procurando uma trilha ainda não devassada. Em sua campanha ao Planalto, martelo e pregos à mão, ainda hesitante, escolhia um lugar adequado para o retrato de Lula na galeria do passado. Nessa tendência a se desviar encontram-se as fontes da saraivada de recriminações que lhe dirigiam as páginas de propaganda lulopetistas, apagadas às pressas logo depois da queda do Cessna PR-AFA.

Ruptura da ruptura, história incompleta. Cada um pode imaginar seu final preferido.
Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

SOBRE O COLAPSO PARCIAL E OBSERVÁVEL DA SOCIEDADE

"Digo que os ‘clérigos’ modernos [os intelectuais] pregaram que o Estado deveria ser robusto e não se importar nem um pouco em ser justo..."

Julien Benda, A traição dos intelectuais, p. 107

"Devemos organizar os intelectuais."
Willi Munzenberg, organizador comunista, 1919

A atual situação pode ser caracterizada da seguinte maneira: Todas as nossas instituições estão entrando em colapso e o caos social surge em todos os lugares: (1) o colapso da família, da maternidade e da paternidade; (2) o colapso da moralidade, especialmente da honestidade; (3) o colapso do governo constitucional e da segurança nacional, o fenômeno do presidente impostor, legisladores covardes, generais carreiristas, oficiais de inteligência que são agentes duplos; (4) um sistema educacional que é anti-patriótico; (5) narcisismo epidêmico, egoísmo, cultura de entretenimento e materialismo. Nisso tudo vemos o colapso do indivíduo e a instauração da loucura, conforme mostrado no reforço social acima.

O colapso da integridade significa o colapso da esperança e da vontade de poder. Como disse Nietzsche, “a linha do arco humano é frouxa”. Sendo assim, o que se faz necessário é uma renovação, isto é, um reestabelecimento daquilo que se entende por homem e mulher, pais e filhos e sagrado. Disso pode advir novamente os dois pares conhecidos por ‘comunidade e nação’ e ‘constituição e liderança’. Contudo, quem pode começar esse processo de regeneração? É comum afirmar que esse começo só se dará na ocasião de uma catástrofe massiva. Um evento desses ultrapassa todos os argumentos e esmigalha toda a resistência por meio da mudança que produz no coração humano. O velho termo bíblico para isso é castigo.

E eis que chegam os russos e seus “parceiros” chineses. Na conjuntura atual, os russos aceleraram seus planos contra a Ucrânia. Não devemos subestimar o controle que eles ainda exercem sobre Kiev. Não podemos subestimar a disposição deles para assassinar qualquer um que entrar no caminho, a disposição para dividir e conquistar província atrás de província, estado atrás de estado. Seria o caso de perguntar se nesse contexto o ISIS é um instrumento deles forjado clandestinamente nas entranhas da Chechênia e no deserto da Líbia (ambos são ex campos de ação soviética). Em face disso, o Ocidente não sabe o que fazer. Como se pode lutar pela soberania ucraniana se o próprio governo ucraniano é um ponto de interrogação? Esse ponto de interrogação também confronta os guerreiros americanos. Ele confronta todos aqueles países que foram tomados pela classe de governantes refinados e de tom esquerdista, politicamente correto e igualitário. Foi Evan Sayet quem os descreveu melhor: “Para o esquerdista moderno... a única explicação para o sucesso é que o sucesso, por sua própria existência, é prova de alguma tramoia ou intolerância. O fracasso, pela sua própria existência [...] para eles é prova de que alguém foi vítima de alguma coisa”.

Nosso declínio foi sem dúvidas um processo gradual. Foi, e tem sido, um processo inorgânico; isto é dizer que houve conjuntamente conveniência,sabotagem e imposição até chegar ao estado atual. Não foi um processo natural, mas sim o resultado da efetiva interferência e oposição ao que é natural. Deve-se considerar antes de tudo que ele foi uma invenção ideológica. E os perigos que sempre estão presentes numa ideologia são: (1) seu caráter artificial cujas origens são francamente neuróticas ou psicóticas; (2) na sua sede de sangue; (3) na sua insensibilidade e (4) no seu niilismo. Eu concluo essa breve edição de feriado com uma citação do livro Double Lives de Stephen Koch: “O meio político marxista-leninista [...] é um terreno propício aos paranoicos — e é por essa razão que um homem como Stálin tenha crescido justamente dentro dele”.

POR: JEFFREY NYQUIST 
Tradução: Leonildo Trombela Junior 




domingo, 7 de setembro de 2014

DIALÉTICA DA COVARDIA

Duas ou três concessõezinhas oferecidas pela candidata à economia liberal, que no fundo em nada diferem daquelas feitas pelo primeiro mandato do sr. Lula, pouco significam em comparação com o fato de que o partido de Marina pertence ao Foro de São Paulo e, como tal, tem compromissos estratégicos internacionais.


Toda decisão covarde, quer se expresse por ação ou omissão, deixa no fundo da alma uma vergonha que, quanto menos reconhecida e confessada, mais exige rituais histéricos de compensação. Posta vergonhosamente em fuga por um golpe militar que não disparou um só tiro, a esquerda brasileira exibe até hoje os sintomas residuais do vexame enterrado, mas jamais completamente esquecido: daí sua compulsão incurável de exagerar hiperbolicamente os sofrimentos padecidos e a força ameaçadora do adversário, pintado sempre como um dragão voraz mesmo quando obviamente não passa de um cãozinho doméstico.

Exemplo típico é o historiador comunista Nelson Werneck Sodré, do qual escrevi em 2008 (v.http://www.olavodecarvalho.org/semana/080414dc.html) :

“Descrevendo no seu livro A Fúria de Calibã os horrores apocalípticos da perseguição a intelectuais logo após o golpe de 1964, que ele não hesita em nivelar ao que sucedeu na Alemanha de Hitler, acaba se traindo ao relatar que, naquele mesmo período, publicou não sei quantos livros, teve não sei quantas críticas favoráveis, algumas entusiásticas, foi brindado com alguns prêmios literários e no fim ainda recebeu uma homenagem no Instituto Brasileiro de História Militar, em cerimônia realizada na presença... do presidente da República, marechal Castelo Branco. Jamais um historiador consentiu em personificar tão escandalosamente um exemplum in contrarium da sua descrição geral dos fatos.”

Mas, evidentemente, Werneck não foi o único. A repressão foi tão violenta, tão avassaladora, que o período do governo militar (1964-1985) acabou sendo, segundo registros da Câmara Brasileira do Livro, o de maior prosperidade da indústria editorial esquerdista no país.

Paralelamente, jornalistas de esquerda dominavam as redações dos maiores jornais e eles próprios publicavam semanários “nanicos” nos quais falavam o diabo da “grande mídia burguesa”.

Intelectuais e artistas de esquerda imperavam também sobre as universidades e a indústria de espetáculos – tudo isso porque, coitadinhos, tinham sido banidos de toda atividade pública, como os dissidentes soviéticos ou cubanos. Nunca no mundo os perseguidos se refugiaram em catacumbas tão altas e vistosas.

Erik von Kuenhelt-Leddihn já ensinava que ninguém jamais entenderá a mentalidade esquerdista se não estudar muito bem o mecanismo do fingimento histérico.

Mas ninguém cairia vítima de uma neurose se dela não extraísse alguma vantagem secundária, algum lucro que pode ir muito além do mero reconforto psicológico postiço.

Exagerar o tamanho e a periculosidade do adversário dissemina entre os militantes um estado de alerta, instila neles um reflexo de autodefesa grupal que os predispõe a odiar o adversário mesmo e sobretudo quando nada sabem dele. Que partido revolucionário não precisa disso?

Quando uma compulsão neurótica se soma a um proveito objetivo, ficar cada vez mais neurótico se torna um modo de vida, uma “forma mentis” integral que acaba por absorver a personalidade inteira. Que mais pode desejar um revolucionário do que um uma engenharia cênica na qual fugir da realidade se transmuta num meio de agir sobre ela com alguma eficácia?

Dessa incongruência nasce uma segunda, também característica da mente revolucionária, que é o hábito de cantar vitória ao mesmo tempo que se imagina o adversário cada vez mais forte e indestrutível, principalmente quando este agoniza e esperneia no ar entre gemidos de impotência.

É assim que, no seu blog da "Carta Maior", o indefectível dr. Emir Sader, mais conhecido nos círculos reacionários como Marquês de Sader, explica a adesão dos liberais Eduardo Gianetti da Fonseca e André Lara Rezende à candidatura Marina Silva como um truque maquiavélico da direita, prenúncio da restauração conservadora, quando ela é obviamente o oposto: a autodissolução de um corpo debilitado num corpo mais forte que, ao absorvê-lo, o extingue.

Duas ou três concessõezinhas oferecidas pela candidata à economia liberal, que no fundo em nada diferem daquelas feitas pelo primeiro mandato do sr. Lula, pouco significam em comparação com o fato de que o partido de Marina pertence ao Foro de São Paulo e, como tal, tem compromissos estratégicos internacionais que, no presente momento, seus aliados liberais não compreendem e nem sequer vislumbram, e que com toda a certeza prevalecerão, a longo prazo, sobre qualquer arranjo oportunista de campanha eleitoral.

Nada mais característico da debilidade direitista no Brasil, aliás, do que a pseudo-esperteza de aderir ao que não se pode vencer, receita de Maquiavel que, praticada pelo próprio inventor, só o levou de derrota em derrota até a completa humilhação final de ter de viver, na velhice, de um empreguinho chinfrim arrumado, num gesto de caridade, por um de seus velhos inimigos.

Maquiavel é o guru dos derrotados, sempre um derrotado ele próprio. Talvez por isso exerça tanta atração sobre quem não tem a mínima vocação para a vitória nem, por isso mesmo, como diria o sr. Lula, “nenhuma perspectiva de poder”.

Interpretando a debilidade como sinal de força, o Marquês de Sader, por seu lado, foge da realidade ao mesmo tempo que age sobre a mente da sua platéia com realismo exemplar: instigando nos fortes o medo do fraco para impeli-los a torná-lo mais fraco ainda.

Entre a dialética revolucionária e as astúcias teatrais do fingidor histérico, a semelhança não é jamais mera coincidência.

Por: Olavo de Carvalho 

Publicado no Diário do Comércio.




(15/11/2010) Olavo explica única solução para decadência cultural e polí...

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

A ARTE DA FUGA

Quem leva a sério a opinião política dos artistas? Eu não. Deixei de o fazer com a ruína dos regimes totalitários.


Nas pinturas de Isaak Brodsky (sobre Lênin); nos filmes de Leni Riefenstahl (sobre Hitler); e nas telas de Alessandro Bruschetti (sobre Mussolini), a "arte política" deixou um testamento vergonhoso, que passou pela legitimação –melhor: pela exaltação das virtudes de psicopatas.

Exceções, sempre houve. Mas o casamento entre arte e política normalmente deu maus resultados. A "arte pela arte" não é apenas um bordão do século 19. É um conselho prudente para quem tem pretensões de se dedicar a ela.

Por isso ri alto com a carta aberta que 55 artistas enviaram à Fundação Bienal de São Paulo.

Ponto prévio: nenhuma pessoa adulta escreve cartas abertas em manada; quando falamos de artistas, ou pretensos artistas, a coisa ainda soa pior. Ou a arte vive da autonomia individual, ou não vive. Só covardes assinam em manada.

Mas os 55 revoltaram-se com o apoio financeiro que Israel concedeu à Bienal. Não querem dinheiro judeu porque acreditam que esse dinheiro, depois da guerra em Gaza, conspurca as suas integridades estéticas.

Se o dinheiro fosse da Autoridade Palestina, ou até do Hamas, talvez a conversa fosse outra. Não é. É de Israel.

Não vou regressar ao conflito entre Israel e o Hamas, que vive agora a sua trégua clássica antes do próximo confronto. Enquanto o mundo não entender direito a natureza islamita e jihadista do Hamas, não vale a pena gastar latim com o assunto.

Mas talvez não seja inútil fazer uma pergunta meramente teórica: de que vive a arte, afinal?

Arrisco uma resposta: a arte vive da liberdade. Um clichê sem grande importância?

Errado. Parafraseando Saul Bellow, eu gostaria de conhecer o Balzac dos zulus. Não conheço. Se Nova York, Londres ou Berlim são centros de excelência estética, isso deve-se à estabilidade política e à riqueza material de tais cidades.

E mesmo que a arte seja "engajada", o que já me parece uma corruptela da sua vocação, convém que o "engajamento" seja direcionado para os alvos certos.

Os 55 artistas da Bienal falham nos dois planos.

Começando pela liberdade, basta consultar os rankings da ONG Freedom House para 2014. Não vou cansar o leitor com números e mais números. Resumindo, digo apenas: Israel é o único país do Oriente Médio e do norte de África considerado "livre". O resto oscila entre "parcialmente livres" (Tunísia, Líbia, Kuait) e "não livres" (Iraque, Irã, Arábia Saudita).

E, para ficarmos na vizinhança de Israel, é a desgraça: Jordânia, Egito ou Síria continuam antros de repressão. Os 55 artistas, que deveriam defender a liberdade de expressão como quem defende o oxigênio, assinam uma carta contra o único país que respeita essa liberdade em todo o Oriente Médio.

E sobre os direitos humanos? Fato: Israel merece várias linhas de condenação nos relatórios anuais da Human Rights Watch, outra ONG independente. Mas nada que se compare ao comportamento dos mesmos países do Oriente Médio, para não falar da vizinhança em volta.

Um bom indicador do respeito pelos direitos humanos está no tema clássico da pena de morte. Israel aboliu-a para crimes civis. Do Egito à Jordânia, do Líbano à Autoridade Palestina, a execução judicial continua a verificar-se.

Digo "judicial" porque o Hamas, todos o sabemos, prefere fazer as coisas de forma "extrajudicial", fuzilando traidores no meio da rua.

De resto, será preciso dissertar sobre a diferença entre os "direitos" das mulheres ou dos homossexuais em Israel e nos países em volta? Será preciso recordar o histórico de amputações de membros e lapidações de adúlteras que existe por aquelas bandas?

E será preciso acrescentar alguma coisa à selvageria do Estado Islâmico do Iraque e do Levante, que pelo visto não incomoda os 55 artistas da Bienal de São Paulo?

Criticar Israel é legítimo. Nenhum governo está acima da crítica. Transformar Israel em pária internacional é uma forma de cegueira antissemita.

Eu só respeitarei a "coragem" dos 55 artistas no dia em que eles viajarem para Bagdá, Riad ou Gaza e escreverem uma carta contra os governos locais. Em defesa da liberdade e dos "direitos humanos".

Isso, claro, se ainda tiverem mãos para escrever.
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP