segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O GERENCIAMENTO DO DINHEIRO PELO LIVRE MERCADO

Este artigo foi extraído do livro "O que o governo fez com o nosso dinheiro", futuro lançamento do IMB.

O dólar original era alemão

A unidade monetária

Na seção anterior, vimos como o dinheiro surge naturalmente no mercado. Agora, veremos como ele pode ser produzido e gerenciado privadamente. A primeira pergunta a ser feita é: como este dinheiro-mercadoria (no caso, ouro e prata) é utilizado? Mais especificamente, qual é o estoque — ou a oferta — de dinheiro na sociedade e como ele é transacionado?

Em primeiro lugar, bens físicos tangíveis são comercializados em termos de sua massa ou de seu peso. A massa é a unidade característica de uma mercadoria tangível. Sendo assim, o comércio ocorre em termos de unidades como toneladas, libras, onças, grãos, gramas etc.[1] O ouro não é exceção. Como outras mercadorias, o ouro pode ser transacionado em unidades de massa.[2]

É óbvio que o tamanho da unidade comum escolhida para o comércio não faz diferença para o economista. Um país que esteja no sistema métrico pode preferir calcular em gramas; já a Inglaterra ou os Estados Unidos podem preferir trabalhar com grãos ou onças. Todas as unidades de massa são conversíveis entre si: uma libra equivale a dezesseis onças; uma onça equivale a 437,5 grãos ou 28,35 gramas etc.

Supondo que o ouro seja escolhido como dinheiro, o tamanho da unidade de ouro utilizada no cálculo não importa. João pode vender um casaco por uma onça de ouro nos Estados Unidos ou por 28,35 gramas na França. Ambos os preços são idênticos.

Embora tudo isso pareça óbvio demais para ser enfatizado, a realidade é que uma enorme quantidade de miséria ao redor do mundo teria sido evitada caso as pessoas houvessem entendido completamente essas simples verdades. Por exemplo, quase todas as pessoas pensam no dinheiro como se ele fosse uma unidade abstrata de algo que pode ser trocado por outra coisa, com cada moeda estando ligada exclusivamente a um determinado país. Mesmo quando os países estavam no "padrão-ouro", as pessoas continuavam pensando desta forma. A moeda norte-americana era o "dólar", a francesa era o "franco", a alemã, o "marco" etc. Todas estas moedas estavam explicitamente vinculadas ao ouro, mas todas elas eram consideradas soberanas e independentes por seus cidadãos. Exatamente por isso foi fácil para os países "saírem do padrão-ouro". Mas isso não altera uma verdade: todos estes nomes de moedas eram meras denominações para unidades de massa de ouro ou prata.

A "libra esterlina" inglesa era a denominação originalmente dada a uma libra de prata. E o dólar? O dólar surgiu como sendo o nome dado a uma onça de prata cunhada por um conde da Boêmia chamado Schlick, no século XVI. O conde Schlick vivia no Vale do Joachim, ou Joachimsthal em alemão. As moedas do conde ganharam grande reputação por sua uniformidade e pureza, e passaram a ser chamadas por todos de Joachimsthalers. Com o tempo, elas passaram a ser chamadas simplesmente de "thalers" [que significa proveniente "do vale"]. O nome "dólar" surgiu de "thaler".

No livre mercado, portanto, os vários nomes que as unidades podem ter são simplesmente definições de unidades de massa. Até antes de 1933, quando estávamos "no padrão-ouro", as pessoas costumavam dizer que o "preço do ouro" estava "fixado em 20 dólares por onça de ouro". Mas isso era uma forma perigosamente errada de ver a moeda. Na realidade, "o dólar" havia sido definido como sendo o nome dado a 1/20 (aproximadamente) de uma onça de ouro. Era, portanto, errado falar em "taxas de câmbio" entre a moeda corrente de um país em relação às outras moedas de outros países. A "libra esterlina", na prática, não "cambiava" por cinco "dólares".[3] O dólar havia sido definido como 1/20 de uma onça de ouro, e a libra esterlina, na época, era simplesmente o nome dado a 1/4 de uma onça de ouro. Logo, por simples matemática, uma libra esterlina também valia 5/20 de uma onça de ouro. Daí o senso comum de que uma libra esterlina valia 5 dólares.

Claramente, todos estes valores e todo este emaranhado de nomenclaturas eram complicados e enganosos. Como eles surgiram é algo que será mostrado mais adiante no capítulo sobre a interferência do governo na questão monetária. A questão é que, em um mercado genuinamente livre, o ouro simplesmente seria transacionado diretamente em gramas, grãos ou onças, e tais denominações confusas, como dólares, francos, marcos etc., seriam supérfluas. Por conseguinte, nesta seção, trataremos o dinheiro como sendo diretamente transacionável em termos de onças ou gramas.

É certo que o livre mercado irá escolher como sendo a unidade comum aquela grandeza do dinheiro-mercadoria que for a mais conveniente. Se o dinheiro fosse a platina, ela provavelmente seria transacionada em termos de frações de uma onça; se o ferro fosse utilizado como dinheiro, ele seria calculado em libras ou toneladas. Obviamente, o tamanho da unidade não faz diferença para o economista.

O formato da moeda

Se o tamanho da unidade monetária ou o seu nome fazem pouca diferença econômica, o formato do metal monetário também é igualmente irrelevante. Dado que o metal é o dinheiro utilizado, conclui-se que a todo o estoque do metal, contanto que esteja disponível ao homem, constitui o estoque mundial de dinheiro. Não faz muita diferença qual seja o formato em que o metal se encontra em determinado período. Caso o ferro seja o dinheiro, então todo o ferro existente é dinheiro, esteja ele em formato de barras, de minério ou incorporado em um maquinário especializado.[4] O ouro já foi comercializado como dinheiro na forma de pepitas, de pó em sacas, e até mesmo como jóias. Não é de se surpreender que o ouro, ou outras metais, possa ser comercializado em vários formatos, uma vez que a característica que importa é sua massa.

É verdade, no entanto, que alguns formatos são mais convenientes do que outros. Nos últimos séculos, ouro e prata foram fracionados em moedas metálicas para as transações de menor valor, aquelas do dia-a-dia, e em barras para as transações de maior valor. Alguma quantidade foi transformada em jóias e outros ornamentos. Mas isso é importante: qualquer tipo de transformação de um formato para outro custa tempo, esforço e consome vários recursos. Realizar tal trabalho será um empreendimento como qualquer outro, e os preços por esse serviço serão estabelecidos da maneira habitual. A maioria das pessoas concorda que é legítimo que joalheiros façam ornamentos a partir do ouro bruto, mas elas estranhamente rejeitam que o mesmo princípio seja aplicado à manufatura de moedas. Não obstante, no livre mercado, a cunhagem é, em essência, um empreendimento como outro qualquer.

Muitas pessoas acreditavam, na época do padrão-ouro, que as moedas eram, por algum motivo, um dinheiro mais "real" do que o ouro maciço não cunhado e em estado natural (em barras, lingotes ou qualquer outro formato). É verdade que as moedas usufruíam um ágio sobre o ouro em barra, mas isso não se devia a nenhuma misteriosa virtude embutida nas moedas. Isso adivinha do simples fato de que era mais caro cunhar moedas a partir da barra do que fundir moedas de volta ao formato de barra. Por causa dessa diferença, as moedas eram mais valiosas no mercado.

A cunhagem privada

A ideia de cunhagem feita por empresas privadas parece tão estranha nos dias de hoje, que vale a pena uma análise mais minuciosa. Estamos acostumados a pensar na cunhagem de moedas como sendo uma "necessidade de soberania". No entanto, o mundo não mais está vinculado a uma "prerrogativa real", e o conceito de soberania jaz não no governo, mas no povo. Ou é o que dizem.

Como funcionaria a cunhagem privada? Da mesma maneira que qualquer outro empreendimento, como dissemos acima. Cada cunhador ou empresa cunhadora, ao receber clientes com lingotes de ouro, iria fundir estes lingote e produzir moedas nos tamanhos ou formatos que mais agradassem a seus consumidores. O preço deste serviço seria estabelecido pela livre concorrência no mercado.

A objeção típica a este arranjo é que seria muito trabalhoso mensurar o peso ou avaliar a pureza do ouro em cada transação realizada. Mas absolutamente nada impede os cunhadores privados de estamparem tais informações nas moedas, e garantirem seu peso e sua pureza. Cunhadores privados podem garantir a qualidade de uma moeda com, no mínimo, a mesma eficácia que a Casa da Moeda estatal. Aqueles cunhadores reconhecidos como os mais honestos ganhariam proeminência no mercado. As pessoas utilizariam as moedas daqueles cunhadores que usufruíssem a melhor reputação pela boa qualidade de seu produto. Meros pedaços de metal polido não seriam aceitos como moeda. Como vimos, foi exatamente assim que o "dólar" se tornou notório e conhecido — como uma moeda de prata competitiva e de qualidade.

Os opositores da cunhagem privada dizem que as ocorrências de fraude seriam generalizadas. No entanto, estes mesmos opositores estão dispostos a conceder ao governo o monopólio da cunhagem. Mas, dado que eles estão dispostos a confiar no governo, então, certamente, com a cunhagem privada, elas deveriam ao menos confiar no governo para evitar ou punir as fraudes. Normalmente se pressupõe que a prevenção ou a punição da fraude, do roubo e de outros crimes é a verdadeira justificativa para a existência de um governo. Mas se o governo não é capaz nem de deter um criminoso quando a sua função é a de meramente fiscalizar a cunhagem privada, então qual a esperança de haver uma cunhagem confiável quando a integridade dos agentes do mercado privado é descartada em prol de um monopólio governamental de cunhagem? 

Se o governo não é confiável nem para desmascarar aquele malfeitor que ocasionalmente surgiria no livre mercado de moedas, por que então deveríamos confiar no governo quando este é colocado em uma posição de total controle sobre o dinheiro, podendo depreciá-lo, adulterá-lo, falsificá-lo ou deturpá-lo com plena sanção legal para agir como o único vilão no mercado? Da mesma forma que é uma insanidade dizer que o governo deve socializar toda a propriedade a fim de evitar que alguém roube propriedades, é também ilógico dizer que o governo deve abolir a cunhagem privada e monopolizar esta tarefa com o intuito de evitar fraudes. O raciocínio por trás da abolição e da proibição da cunhagem privada é o mesmo daquela da socialização da propriedade privada.

Ademais, todos os empreendimentos modernos baseiam-se na garantia de padrões. A farmácia vende um frasco de 250 mililitros de remédio; o açougueiro vende um quilo de carne. O consumidor espera que tais medidas sejam acuradas, e elas são. E pense nos vários milhares de produtos especializados e vitais fabricados pelas indústrias, os quais devem seguir padrões e especificações extremamente rigorosos. O comprador de um parafuso de 12,7 milímetros (1/2 polegada) deve obter um parafuso de exatamente 12,7 centímetros, e não um de 9,5 milímetros.

E, ainda assim, não obstante todo este rigor de medidas, tais empreendimentos não faliram. Eles não desapareceram. São poucas as pessoas racionais que defendem que o governo tem de estatizar a indústria de maquinários como parte da sua tarefa de evitar fraude nas medidas indicadas. A economia de mercado moderna é formada por um número infinito de transações intricadas, a maioria delas dependente de padrões de quantidade e qualidade muito precisos. E as fraudes ocorrem em níveis mínimos, e esse mínimo, ao menos em teoria, está sujeito a ação judicial. O mesmo ocorreria caso houvesse a cunhagem privada. Podemos ter a certeza de que os clientes de um cunhador, bem como os concorrentes desse cunhador, estariam intensamente alertas para qualquer possibilidade de fraude no peso ou no grau de pureza de suas moedas.

Os defensores do monopólio estatal da cunhagem alegam que o dinheiro é diferente de todas as outras mercadorias porque a "Lei de Gresham" comprova que "o dinheiro ruim expulsa o dinheiro bom" de circulação. Sendo assim, o livre mercado não é confiável para ofertar ao público um dinheiro de qualidade. Mas essa formulação tem por base a interpretação equivocada da famosa lei de Gresham. A lei de Gresham é válida apenas quando há um controle de preços imposto pelo governo sobre o dinheiro. O que a lei de Gresham realmente diz é que "o dinheiro que está artificialmente sobrevalorizado pelo governo tirará de circulação o dinheiro que está artificialmente subvalorizado".

Suponha, por exemplo, que haja várias moedas de uma onça de ouro em circulação. Após alguns anos de intenso uso, começam a surgir desgastes em algumas dessas moedas, de modo que elas passam a pesar somente 0,9 onça. É óbvio que, no livre mercado, essas moedas desgastadas circulariam valendo 90% do valor das moedas íntegras, de modo que o valor de face das moedas desgastadas teria de ser repudiado.[5] No mínimo, são justamente essas moedas "ruins" que deixariam de ser utilizadas e sairiam de circulação. 

Mas suponha que o governo decrete que todos os cidadãos devem tratar as moedas desgastadas da mesma maneira como tratam as íntegras, e que todos devem aceitá-las igualmente, ao seu valor de face, em suas transações diárias. O que o governo fez neste caso? Impôs um controle de preços coercivo sobre a "taxa de câmbio" entre os dois tipos de moeda. Ao insistir na paridade em vez de permitir que as moedas desgastadas fossem transacionadas a um valor nominal 10% menor, o governo sobrevalorizou artificialmente as moedas desgastadas e subvalorizou as moedas novas. Consequentemente, todos os cidadãos tenderão a utilizar apenas as moedas desgastadas, e entesourarão (ou exportarão) as novas. Portanto, não é no livre mercado que "o dinheiro ruim expulsa o dinheiro bom", mas sim como resultado direto da intervenção governamental no mercado.

Não obstante o infindável assédio dos governos sobre esta atividade, algo que tornou as condições altamente precárias, as moedas privadas ainda assim conseguiram prosperar em vários momentos da história. Em conformidade com a lei que diz que todas as inovações surgem de indivíduos livres e não do estado, as primeiras moedas foram cunhadas por cidadãos privados e ourives. Com efeito, quando o governo começou a monopolizar a cunhagem, as moedas da realeza traziam as garantias de banqueiros privados, os quais, aparentemente, usufruíam muito mais confiança aos olhos do público do que o governo. Moedas de ouro cunhadas privadamente circularam na Califórnia até 1848.[6]



Veja também:



[1] Mesmo aqueles bens que são nominalmente comercializados em termos de volume (fardo, alqueire, etc.) assumem de maneira tácita um padrão de peso por unidade volumétrica.
[2] Uma das virtudes cardeais do ouro como dinheiro é a sua homogeneidade — ao contrário de muitas outras mercadorias, o ouro não possui diferenças em sua qualidade. Uma onça de ouro puro é igual a qualquer outra onça de ouro puro ao redor do mundo.
[3] Na verdade, a libra esterlina era por definição igual a US$4.87, mas estamos utilizando US$5 por uma questão de conveniência nos cálculos.
[4] Enxadas de ferro foram extensamente utilizadas como dinheiro tanto na Ásia quanto na África.
[5] Para lidar com o problema do desgaste, os cunhadores privados poderiam ou estabelecer um tempo limite de garantia do peso estampado em sua face ou concordar em cunhar novamente, seja no peso original ou em um mais baixo. Podemos notar que, em uma economia livre, não haverá aquela padronização compulsória das moedas que predomina quando um monopólio estatal controla o processo de cunhagem.
[6] Para exemplos históricos de cunhagem privada, ver B.W. Barnard. "The Use of Private Tokens for Money in the United States", Quarterly Journal of Economics (1916-17), p. 617-26; Charles A, Conant, The Principles of Money and Banking, Nova York: Harper Bros, 1905, vol. I, p. 127-32; Lysander Spooner, A Letter to Grover Cleveland, Boston: B. R. Tucker, 1886, p.79; e J. Laurence Laughlin, A New Exposition of Money, Credit and Prices, Chicago: University of Chicago Press, 1931, vol. I, p. 47-51. Sobre cunhagem, ver também Ludwig von Mises, Theory of Money and Credit, p. 65-67; e Edwin Cannan, Money, 8th Edition, Londres: Staples Press, 1935, p. 33ss.

Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies. 

domingo, 27 de janeiro de 2013

COMO SABER SE O ESTADO É BOM

Só descobriremos se o estado é bom ou não se a iniciativa privada puder competir com ele

Entrevista concedida ao repórter Abdo Jose Bertollo Chequer do jornal A Gazeta, do Espírito Santo. Algumas palavras estão em colchetes para ressaltar algumas ideias mais relevantes que foram omitidas da edição final da reportagem.Filho do ministro da Desburocratização no governo de João Baptista Figueiredo (1979 a 1985), o economista Helio Beltrão é um liberal convicto que continua carregando a bandeira um dia empunhada pelo pai, de quem herdou também o nome. Membro do conselho de administração do Grupo Ultra (controlador de Ipiranga, Texaco e Ultragaz) e presidente do Instituto Mises Brasil (em homenagem ao grande defensor da liberdade econômica Ludwig von Mises), Beltrão é um feroz defensor da liberdade de empreender e um crítico contumaz do peso do Estado brasileiro. "Pagamos impostos absurdos, temos uma burocracia absurda e uma regulamentação absurda". Seus argumentos são apresentados na entrevista que segue. 
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O que é ser um liberal? 

O liberal é uma pessoa que, por conta dos conhecimentos adquiridos, chegou à conclusão de que a livre iniciativa e a liberdade de cada indivíduo de buscar seus ideais de realização são as formas mais eficientes de se alcançar a prosperidade e a felicidade. 

Como se dá a regulação nesse modelo?

Nenhum liberal concorda com a anarquia [no sentido de falta de regras ou desordem]. Alguns liberais, como eu, acreditam que o mercado é a melhor forma de criar regras e regulamentações, essenciais para a sua operação. Hoje, existe uma crença muito profunda de que só o governo pode prover regulamentação e regras para o funcionamento do mercado, mas isso não é verdade. Por exemplo, todos os aparelhos elétricos e eletrônicos têm um selo ou mais de um. A maioria das empresas que fornecem esses selos, que certificam se esses aparelhos são seguros o não, são privadas. Os varejistas contratam essas empresas e só topam vender os produtos se estes passarem por essa regulamentação.

Veja a questão dos tratados internacionais entre países. Aí envolve governo, mas a resolução de conflitos é feita por tribunais privados, como se fossem as arbitragens. Quem determina as penas e os culpados são tribunais privados. Eles fornecem a segurança jurídica que todos nós liberais queremos. São exemplos de regulamentação privada que, sem dúvida, são mais eficazes que a governamental típica. 

Por quê? 

A teoria econômica diz que toda vez que só há um [órgão] supervisionando e fazendo as regras, este tende a ser capturado pelos regulados. Ou seja, é de se esperar que, por exemplo, no caso da Anatel (Agência Nacional das Telecomunicações), as empresas que são supervisionadas por ela passem a se infiltrar ou a fazer algum tipo de conchavo com integrantes da Anatel para que elas não sofram as consequências de uma regulamentação que as atinja. Se os consumidores pudessem escolher quem iria defender seus interesses, seria menor o risco de captura. Se você percebesse que a agência regulatória por você escolhida é corrupta, passaria a utilizar outra. 

Os críticos do liberalismo afirmam que a livre concorrência não traz o equilíbrio social e econômico prometido. 

Em parte é verdade, ninguém está dizendo que o mercado é perfeito. Mas repare bem, hoje, um indiano médio vive muito melhor que um inglês há 200 anos. O habitante de um dos países mais pobres de hoje vive melhor que o cidadão do melhor país do início do século XIX. Isso atesta a favor do mercado. Nós nascemos na natureza, temos de construir formas de viver melhor e de conseguir sobreviver. Não é direito adquirido que todos nascerão com direito a tudo. Existem pessoas desassistidas no mundo inteiro e temos que lidar diretamente com esses desassistidos, pode ser ajudando diretamente, via governo ou não. Mas sempre temos de ter a confiança, pelo menos como liberais, que quanto mais liberdade para empreender e agir você tiver, maior a prosperidade. Isso tem lógica, funcionou no passado e melhorou o padrão de vida do indiano, por exemplo, que hoje vive muito melhor que um cidadão há 200 anos na Inglaterra.

Qual deve ser o papel do Estado? 

Em tese, nenhum. Se o estado é bom no que se propõe, qual o motivo de não permitir que isso seja feito de forma voluntária e não obrigatória? Se ele (estado) é um bom provedor de um determinado serviço, seja ele qual for, então não precisa colocar na cadeia quem compita com ele. Eu acho que o estado pode fazer tudo e também pode não fazer nada, mas só descobriremos se o estado é bom ou não se permitirmos que a iniciativa privada possa fazer o mesmo bem ou serviço em igualdade de condições. É preciso também que o estado não use o dinheiro tomado à força da população [impostos] para fazer tal bem ou serviço, o que configura um privilégio gigantesco em relação à iniciativa privada e é, claramente, pouco produtivo. 

E como ficam funções tipicamente de Estado, como Forças Armadas, polícia e Justiça? Como funcionaria uma sociedade ou comunidade com várias justiças, exércitos e polícias? 

Já existem várias justiças e polícias. No Brasil, temos a Justiça estatal e a Justiça arbitral, que é totalmente privada. As duas convivem. Em um enorme número de casos você pode escolher com qual Justiça trabalhar — e não aconteceu nenhum caos, pelo contrário. Já falamos anteriormente dos tribunais privados que tratam de questões envolvendo dois países de maneira muito mais eficiente e barata que os tribunais estatais. Quanto à polícia, é mais ou menos parecido. Há várias empresas de segurança operando no Brasil. Todos os grandes shoppings contratam segurança privada que tem jurisdição para operarem lá dentro e nada disso implica no caos.

Se o indivíduo pudesse escolher a empresa de segurança com a qual ele gostaria de trabalhar, isso traria um incentivo gigantesco para que houvesse melhora do serviço. Hoje, somos obrigados a usar um serviço pago, muito caro aliás, que é péssimo. É péssimo porque não podemos trocar. Por isso, achamos que a rua é terra de ninguém e o sentimento é outro dentro de um shopping, por exemplo. 

Qual é o modelo que vigora hoje no Brasil? 

O Brasil é hoje uma economia mista, com alguma liberdade para operar no mercado e uma quantidade bastante grande de intervenção estatal. Intervenção que não agrega valor, que atrapalha, gera burocracia, desesperança, corrupção, favorecimento a grupos de interesse. Essa mistura é o que a gente tem no Brasil hoje. Acho que o mundo em geral adotou esse modelo, em maior ou menor grau, porque viu que o socialismo puro, abolindo o mercado, não funciona de forma alguma. Mas ao mesmo tempo não queriam adotar o livre mercado. Dessa forma, adotaram uma solução mista, e você continua tendo algum nível de propriedade privada desde que pague impostos absurdos, com uma burocracia absurda e uma regulamentação absurda.

Como o senhor enxerga as intervenções feitas em 2012 pelo governo federal em setores como energético e bancário? Luz e juros mais em conta não são bons para o consumidor e, consequentemente, para a economia? 

Pois é, aparentemente, para quem não entende muito de economia, é bom. As pessoas vão dizer: "é muito bom conseguir baixar por decreto o preço de algum produto essencial". Isso, obviamente, tem um potencial eleitoreiro muito grande. Analisando o caso dos juros, seria fantástico que os bancos cobrassem menos juros. O problema é que os juros bancários embutem uma série de custos que as instituições precisam cobrir antes que tenham lucro. Qualquer empresa tem custo operacional, no caso dos bancos há a inadimplência e uma série de impostos.

Grosso modo, dos 8% ou 9% ao mês cobrados por um banco, você tem como lucro do banco, não lembro todos os números exatamente, uma margem que beira os 2 pontos percentuais, para usar um número qualquer. Se o governo determina, por decreto, que os juros caiam de 8% para 4% [na verdade, obrigaram Caixa e Banco do Brasil a emprestarem a 3%], isso significa que a [receita com os juros] não cobre o custo do banco. Isso significa que em algum momento as instituições terão um rombo que terá de ser coberto com dinheiro público, ou seja, nosso. É uma medida populista, uma lástima que isso ocorra e que as pessoas não se deem conta das consequências dessa medida. 

O liberalismo sai avariado dessa crise econômica? 

Sem dúvida. O (Barack) Obama (presidente dos EUA), desde a sua campanha, já clamava por um estado maior. Ele vem fazendo cada vez mais intervenções e aumentando o tamanho do estado. O abismo fiscal é fruto da última negociação entre republicanos e democratas (meados de 2011), quando ficou claro que Obama não era capaz de gerenciar adequadamente as contas públicas e estava tendo déficits muito maiores e perigosíssimos. Foi feito um acordo (agosto do ano passado) que dizia que, se Obama não conseguisse controlar as despesas, automaticamente entrariam em vigor aumento de impostos e corte nas despesas.

Todos condenam o abismo fiscal como se fosse a pior coisa do mundo, e eu entendo que aumento de impostos é ruim mesmo, mas a parte de corte de custos é muito adequada. A crise foi usada por Obama como desculpa para aumentar o tamanho do estado e segue sendo usada até hoje. Não vejo nenhuma perspectiva para que isso retroceda e que eles voltem a ter um cenário mais organizado para conseguir crescimento. 

Há previsões de que, caso os EUA entrem de fato nesse abismo, a recessão poderia alcançar 4% já em 2013. O FMI fala em queda de 2%. Isso não assusta o senhor? 

Essa premissa está completamente equivocada. Para que o governo gaste, é preciso que alguém deixe de gastar. O dinheiro não nasce em Washington. Ou seja, se o governo deixou de gastar, as pessoas agora podem gastar, investir no crescimento americano, podem fazer a economia girar. Toda vez que o dinheiro é gasto por Washington, ele é gasto de maneira menos eficiente, com coisas que atendem menos as necessidades da economia naquele momento. Quem fez essa assertiva está falando uma grande bobagem econômica.

Seu pai, Hélio Beltrão, foi ministro da Desburocratização (entre 1979 e 1983, governo de João Baptista Figueiredo). Nesse período, ele acabou com, entre outros entraves burocráticos, o reconhecimento de firma que, na prática, ainda existe. O senhor acha que a jornada dele foi inglória? 

Foi muito gloriosa. O que ele conseguiu fazer foi um milagre dada a mentalidade do Brasil da época. Ele ter conseguido brigar com a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para constituir os juizados de pequenas causas, e com a Receita Federal para criar o estatuto da micro e pequena empresa, que hoje é o Simples, foram conquistas incríveis. Mas você tem razão que inúmeras outras conquistas não perduraram, caso da eliminação da lei que exigia firma reconhecida. Foi muito glorioso, mas é decepcionante que sigamos com toda essa burocracia e que parte do trabalho dele tenha sido engolida pela fome estatal. Mal comparando, é como se ele tivesse se infiltrado numa máfia para tornar a máfia boa. Não estou dizendo que o estado é uma máfia, mas é como se fosse um grupo que defende seus próprios interesses independentemente do resto. É muito triste, mas sou um filho muito orgulhoso do trabalho do meu pai.

Helio Beltrão é o presidente do Instituto Mises Brasil.

CICLOS ECONÔMICOS

O papel da quarta proposição fundamental de J. S. Mill na teoria austríaca dos ciclos econômicos

Obs: o artigo a seguir é uma versão resumida de um texto escrito especialmente para a futura revista acadêmica do IMB. Para ver o artigo em seu formato original, com análise gráfica, veja aqui.

1. Introdução

A Quarta Proposição Fundamental de John Stuart Mill (1806-1876), formulada em 1848, no Livro I, capítulo V, dos Principles, na forma de um aforismo ("demanda por commodities não é demanda por mão-de-obra"), é um dos elementos decisivos para distinguir a "macroeconomia" dos austríacos e, particularmente, a de Hayek, da macroeconomia convencional. Nos modelos macroeconômicos modernos, de tintas keynesianas ou não, gastos de consumo e de investimento movem-se sempre no mesmo sentido. Mill, contudo, sugere que a demanda por bens de consumo e a demanda por investimentos podem mover-se em sentidos opostos. É lamentável que Keynes, noventa anos depois, demonstrasse não ter compreendido sua essência e enveredado pelo caminho dos "agregados macroeconômicos", no que foi seguido, infelizmente, pelos monetaristas, o que influenciou de modo negativo toda a macroeconomia ensinada nas universidades e — o que é pior — as práticas dos governos em todo o mundo, desde os anos 30 do século XX até hoje.

A Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos (TACE) plantada por Menger, formulada por Mises em seu tratado monetário de 1912, desenvolvida posteriormente por Hayek nos anos 30, explicada magistralmente por Rothbard e outros austríacos de renome e compatibilizada com a macroeconomia convencional de maneira bastante criativa por Roger Garrison, é formada por sete elementos, que podem ser assim isolados [ver, para maior profundidade, meu Ação, Tempo e Conhecimento, cap. 7]:

(1º) o processo de mercado; (2º) a doutrina da poupança forçada; (3º) a estrutura de capital da economia; (4º) o papel de coordenação intertemporal da taxa de juros; (5º) o efeito Ricardo, o efeito taxas de juros, o efeito preços relativos e o efeito concertina; (6º); a teoria hayekiana do conhecimento e (7º) a Quarta Proposição Fundamental de John Stuart Mill. 

Neste artigo, queremos mostrar o papel que o último desses elementos desempenha na TACE. Antes, parece conveniente, para evitar eventuais ataques de puristas, ressaltar que, embora, obviamente, a Escola Austríaca não contenha algo que se possa chamar de "macroeconomia", não existe nada de errado em utilizar este termo para que possamos compará-la com as teorias alternativas, das quais as principais são a teoria keynesiana e o monetarismo. Como diriam alguns, "Se a montanha não vai a Maomé, vai Maomé à montanha"... De resto, os assuntos tratados pela macroeconomia e pela TACE são rigorosamente os mesmos.

2. As quatro proposições fundamentais de John Stuart Mill

A famosa Quarta Proposição decorre das três primeiras. No entanto, essas últimas parecem envoltas em certo mistério, para quem não leu os Principles of Political Economy de Mill, ou seja, da maneira como anda o ensino de economia hoje, infelizmente, para dez em cada dez economistas jovens. Por isso, para que o leitor não se pergunte por que apenas nos referimos à Quarta Proposição sem fazer qualquer referência às três primeiras, vamos descrevê-las aqui. A Quarta é uma extensão lógica das três primeiras, vale dizer, existe coerência lógica interna entre elas. É importante termos em mente que o quarteto é um resumo da posição dominante clássica na época de Mill e, portanto, anterior ao livro seminal de Menger, o famoso e fenomenal The Principles of Political Economy, de 1871. Vamos aos enunciados das três primeiras proposições:

Primeira: "A indústria é limitada pelo capital" (e, adicionalmente, "todos os aumentos de capital proporcionam, ou são capazes de proporcionar, empregos adicionais na indústria, e isso sem um limite atribuível").

Segunda: "O capital é o resultado da poupança".

Terceira: "A poupança não é um abismo, um negativo, uma ausência, mas é uma utilização produtiva real dos recursos" (e, ainda, "o capital, embora poupado, é o "resultado" da economia e, não obstante, também é consumido)".

E a Quarta Proposição?

Que tal passarmos a palavra ao próprio Mill, no original [The Principles of Political Economy, Book 1, Chapter 5, Section: Fundamentals propositions respecting capital, 9.9]?

Passemos agora para um quarto e fundamental teorema a respeito do Capital, o qual é, talvez, mais frequentemente desconsiderado ou mal interpretado do que qualquer um dos anteriores. O que mantém e emprega a mão-de-obra produtiva é o capital utilizado para colocar a mão-de-obra para trabalhar, e não a demanda por compradores pelos produtos da mão-de-obra quando estes estiverem finalizados. Demanda por commodities não é demanda por mão-de-obra. A demanda por commodities determina em qual setor específico da produção a mão-de-obra e o capital deverão ser empregados; ela determina a direção da mão-de-obra; mas não a quantidade de mão-de-obra empregada ou o valor de seu pagamento. Isso vai depender da quantidade de capital ou de outros fundos diretamente voltados para a manutenção e a remuneração da mão-de-obra.

Para a maioria dos economistas de hoje, isto soa ou como absurdo ou como incompreensível, porque o keynesianismo inoculou em suas mentes exatamente o oposto. No mundo keynesiano a demanda por mercadorias representa enfaticamente a demanda por mão-de-obra, embora esta seja uma demanda derivada daquela. Esta suposição implícita de que adquirir mercadorias (ou quebrar vidraças, como escreveu Bastiat) contribui para empregar trabalhadores — que a Escola Austríaca sempre rejeitou — é que Mill estava tentando negar. Ele estava querendo demonstrar que comprar mercadorias não é o mesmo que empregar o fator de produção trabalho e que aumentos na demanda por mercadorias, ou seja, por bens de consumo, podem até mesmo fazer diminuir o número de pessoas empregadas. Precisamos entender como a lógica dessa proposição depende claramente da validade das três proposições anteriores. Este é nosso passo seguinte.

3. A coerência entre as quatro proposições de Mill

Iniciemos tomando as duas primeiras proposições: (1ª) a indústria é limitada pelo capital; (2ª) o capital é criado pela poupança.

Em primeiro lugar, notemos que o capital proporciona a base para a produção, que pode ser sob a forma de bens de consumo ou de investimento, sendo que estes servem para aumentar o próprio estoque de capital. A poupança é assim definida por Mill: "consumir menos do que o montante produzido é poupar; e este é o processo mediante o qual o capital aumenta".

Correto, mas devemos lembrar, à guisa de parêntesis que, para os austríacos, no entanto, a poupança não é simplesmente a diferença entre produção e consumo — isto é simplesmente entesouramento —, mas é determinada essencialmente pelas preferências intertemporais, em que a taxa de juros determina quanto vai ser consumido hoje e quanto de consumo será postergado para o futuro, ou seja, poupado hoje!

Se a demanda por bens de consumo aumenta, levando em conta que a capacidade da economia de produzir é limitada por sua base de capital, esse aumento no consumo deve diminuir o nível de investimento, ou seja, a produção de bens de capital. Esse aumento na demanda por bens de consumo pode se dar ou por políticas de estímulo à demanda por esses bens ou por uma diminuição no desejo de poupar por parte dos agentes econômicos. No caso keynesiano, obviamente, se dá pelo primeiro motivo.

Como consequência o desvio da produção de bens de capital para a produção de bens de consumo vai diminuir a taxa de crescimento global da economia, porque o crescimento do capital produz impactos maiores sobre a capacidade de crescimento da economia do que o aumento do consumo. Esse movimento para mais consumo e menos investimento tem um efeito imediato sobre a acumulação de capital, mas também um efeito de longo prazo, na medida em que a economia ficará restrita em sua capacidade de acumular capital por meio do próprio crescimento do produto. origem dos eixos.

O aumento na demanda por mercadorias diminui a oferta de poupança e também provoca uma queda equivalente na geração de capital. Com o passar do tempo, esse nível mais baixo de investimento reduzirá a capacidade de produzir tanto mercadorias como capital, restringindo novamente o crescimento do capital no longo prazo.

Em segundo lugar, Mill está convencido de que não é a compra de bens e serviços que gera emprego, mas sim a sua produção, sua oferta. Nisto, podemos dizer que foi um austríaco. O que a demanda determina é o que deve ser produzido (notemos a harmonia dessa afirmativa com o pensamento de Menger e toda a tradição austríaca)! Em suas próprias palavras:

A demanda por commodities determina em que ramo específico da produção o trabalho e o capital devem ser empregados; ela determina a direção [preferiríamos dizer o sentido] do trabalho.

É a decisão prévia de produzir, tomada pelas empresas, que determina o nível de
produção e isso vai depender da quantidade de capital disponível. O produto cresce quando a oferta de capital aumenta. A quantidade de produto é determinada essencialmente pela quantidade de capital. Devemos notar, no entanto, a ausência nesta análise de um fator importantíssimo na Teoria Austríaca, que é a Estrutura de Capital da Economia. Com efeito, Mill parece considerar o capital como algo homogêneo e agregado, composto pelo estoque acumulado, até a data presente, de investimentos em máquinas, equipamentos, instalações e construções, ou seja, o capital físico.

Isto entra em choque flagrante com a análise austríaca — desenvolvida brilhantemente por Böhm-Bawerk — que trata o capital como uma estrutura bastante heterogênea ao longo dos diferentes estágios da estrutura de produção, desde os que produzem bens de capital (bens de ordens mais elevadas) até os que produzem bens consumo (ou bens de ordens baixas, sendo que os bens de consumo final, na nomenclatura adotada por Menger, ainda em 1871, são chamados de bens de primeira ordem. Para os austríacos, portanto, o capital não se resume a máquinas e equipamentos, mas a todos os insumos que estão sendo utilizados nos diferentes estágios do processo de produção, aí incluída a mão de obra e o tempo de produção em cada estágio ou etapa desse processo.

Com o nível de produção determinado pela quantidade de capital, uma queda nesta última geraria também uma queda no nível de produção. O desvio de esforço produtivo (investimento) para o consumo presente ocorrido no primeiro estágio diminuiu o montante de capital disponível e isso vai provocar queda correspondente no nível de produção Em essência, isto está correto, mas não podemos deixar de lado o que escrevemos há pouco, que, não sendo o capital um simples agregado, assim como o produto, essas quedas não são uniformes ao longo da estrutura de capital da economia.

Por fim, aparece o efeito da queda dos níveis de produção sobre o nível de emprego. Mill acrescenta uma condição adicional, a de que os salários reais deveriam pelo menos ser mantidos:

Eu entendo que, se por demanda por trabalho se entende a demanda pela qual os salários aumentam, ou o aumento no número de trabalhadores no mercado de trabalho,a demanda por commodities não se constitui em demanda por trabalho.

Com a queda no valor do capital puxando para baixo o salário médio real que pode
ser pago, o efeito de uma queda na produção é uma queda na procura de trabalho ao nível atual do salário real. Uma vez que é a disponibilidade de capital no agregado o que importa - o que é muito mais do que apenas o "fundo de salários", pois inclui todo o
estoque de itens de capital que podem ser utilizados no processo de produção - a redução
de capital se traduziu em uma redução na demanda por trabalho. Como Mill escreveu:

Cada adição ao capital dá para o trabalho: ou empregos adicionais ou remunerações adicionais

A conhecida função de produção neoclássica relaciona o nível de produto com o nível de emprego. Então, a queda na produção, mantido o salário real provoca uma queda no nível de emprego. Portanto, um aumento na demanda por consumo levou a uma queda no nível de emprego, contrariamente ao que o keynesianismosuporia mais de oitenta anos depois. Conclusão correta, mas que padece do mesmo defeito apontado anteriormente: não é correto tratar a mão de obra, o consumo e o emprego de mão de obra como agregados, já que, como a produção é composta por estágios, em cada um destes haverá um mercado de trabalho específico, com oferta e demanda e as quedas não serão uniformes, pelo contrário, serão desiguais ao longo da estrutura de produção.

A Quarta Proposição segue, então, das três primeiras. Ela mostra que um aumento na demanda por mercadorias (consumo presente) levaria a uma queda na demanda por mão de obra, porque desviaria a utilização de recursos da criação de capital adicional - e é apenas a quantidade de capital que suporta maior emprego. Uma queda na quantidade de capital produzido levaria a uma queda no valor de produção e, portanto, a uma redução no nível de emprego, para que os salários reais pudessem ser mantidos constantes. Mas notemos que essa diminuição na demanda por mão-de-obra não se dará em todos os estágios da estrutura de produção, mas apenas naqueles que produzem bens de ordens mais elevadas, distantes, portanto, do consumo final.

Por "commodities", é claro que Mill está se referindo ao uso da base de recursos de uma economia para produzir formas de produto não geradoras de crescimento, que não fornecem uma base para aumentar o nível de emprego. Para Mill, a produção de bens e serviços não utilizados para agregar valor ao estoque total de capital, ou como insumos em uma empresa produtiva, mas sim como mercadorias para serem vendidas em um armazém, ou como bens e serviços comprados pelos assalariados, não podem aumentar o nível de emprego ao salário real existente.

E este é o ponto de Mill, na concepção neoclássica. Foi uma conclusão que satisfez toda uma geração de economistas e é difícil ver de que forma ela estaria errada. É certamente um argumento válido em seus próprios termos e contexto. É sempre possível aumentar o emprego ao mesmo tempo, se o salário real médio cair. Mas se o objetivo da política (para Mill) é manter ao mesmo tempo o emprego e tornar a comunidade mais próspera, então o foco deve ser na acumulação de capital em seu sentido mais amplo, o que significa que esse conceito deve incluir as mudanças tecnológicas e, possivelmente, até o desenvolvimento de habilidades (capital humano, conceito que não era conhecido por esse nome na época). Apesar de os austríacos discordarem de políticas econômicas, essa conclusão de Mill não anula o fato elementar de que a essência do crescimento econômico é a acumulação de capital, que acontece mediante investimentos e não por estímulos ao consumo presente. Vidraças quebradas só oferecem ganhos para vidraceiros e para a indústria de vidros.

Resumindo a Quarta Proposição: um aumento na demanda por consumo desvia esforços produtivos da acumulação de capital e, portanto, das formas de produção que podem suportar ou apoiar o nível de emprego. Demanda por mercadorias não é demanda por trabalho!

4. Hayek e a Quarta Proposição

A interpretação austríaca da Quarta Proposição pode ser extraída das palavras de Hayek:

Antes de prosseguir, no entanto, será aconselhável a restabelecer a proposição de Mill de uma forma que não deixa dúvidas sobre o seu significado exato. Em primeiro lugar, é provavelmente claro que o modo como a doutrina tem sido geralmente colocada precisa ser corrigido, como temos feito, para substituir bens de consumo por"commodities", e que a demanda por "commodities" terá de ser descrita não como uma simples quantidade, mas como uma demanda ou curva que descreve as quantidades de bens de consumo que serão comprados a preços diferentes. Em segundo lugar, o teste para saber se a demanda por "bens" dos consumidores é "demanda por trabalho" (ou, podemos dizer, demanda pura por inputs) deve ser claramente se um aumento na curva de demanda por bens de consumo aumenta a curva de demanda por inputs (e se uma queda da primeira reduz a última), ou se uma alteração na demanda dos consumidores de bens não causa "mudança na mesma direção, ou talvez mesmo, uma mudança na direção uma mudança na direção oposta, para a demanda pura por inputs. [negritos nossos]

Aí parece bastante claro que Hayek tinha em mente a estrutura de capital que caracteriza a Escola Austríaca.

Este é o ponto de Hayek! Tal como interpretou o efeito-Ricardo não como a simples substituição de homens por máquinas e sim por substituições entre bens de ordens mais elevadas por bens de ordens menos elevadas ao longo da estutura de capital, a Quarta Proposição de J. S. Mill, para Hayek, significa que consumo e investimento, definidos não como agregados, mas como compartimentalizados em estágios, podem e devem normalmente variar em sentidos opostos.

Hayek interpreta o aforismo da Quarta Proposição, sugerindo que Mill procurava enfatizar que é precipitado incorporar demandas derivadas em economia política e tirar conclusões a esmo. As teorias macroeconômicas modernas, em que as demandas pelo produto final e pelos fatores de produção movem-se sempre no mesmo sentido, parecem não dar importância a essa advertência. Esta é a Quarta Proposição de Mill segundo Hayek!

5. A quarta proposição e a TACE

Mill, então, alertou para o perigo da incorporação de demandas derivadas em economia política, mas nas teorias macroeconômicas modernas as demandas pelo produto final e pelos fatores de produção movem-se sempre no mesmo sentido. Assim, na conhecida equação de corte keynesiano Y = C + I, em que Y representa o produto "agregado", C o consumo "agregado" e I o investimento "agregado", se um dos componentes da demanda (C, por exemplo) estiver subindo (caindo), então o outro (I, no caso), necessariamente, também estará subindo (caindo). Essa suposição — errada! — é base para todo o keynesianismo, com seu conhecido efeito multiplicador. Se mostrarmos que ela é falsa, todo o keynesianismo cai por terra! E não é difícil fazer isso.

A formulação austríaca reconhece que as duas demandas podem mover-se em sentidos opostos e essa atenção para com a Quarta Proposição distingue a "macroeconomia" de Hayek — e, por conseguinte, a Escola Austríaca — da macroeconomia keynesiana.

Se o consumo presente está caindo, isto não significa necessariamente que a demanda por trabalho e por outros fatores também esteja caindo: pode significar que a propensão a poupar esteja aumentando e, portanto, que o consumo futuro também vai crescer, o que, se for incorporado às expectativas dos produtores, poderá fazer crescer a produção de bens de consumo futuros e, assim, aumentar a demanda por trabalho no período atual. Para Hayek, em um dado período, os gastos de consumo e de investimento podem e, em condições de pleno emprego (ou de nível natural de emprego), devem mover-se em sentidos contrários.

Mutatis mutandis, se o consumo está aumentando (como consequência, por exemplo, de uma disposição menor a poupar), isto não significa automaticamente que a demanda por trabalho e por outros insumos componentes da Estrutura de Capital esteja também subindo: pode significar que o desejo de poupar esteja caindo e que, portanto, o consumo futuro também vai cair - porque a formação de capital vai declinar e não será lastreada na poupança, que diminuiu -, o que, quando incorporado às expectativas dos produtores, poderá diminuir a demanda por trabalho imediatamente.

Este deslocamento de recursos entre bens de ordens inferiores ("consumo") e bens de ordens superiores ("investimento") e entre os diversos estágios da estrutura de produção — os efeitos Ricardo, preços relativos, taxas de juros e concertina — é que leva à coordenação intertemporal ou à sua ausência: coordenação, quando o deslocamento é provocado por alterações nas preferências temporais e falta de coordenação quando é causado por manipulações monetárias, por crédito não lastreado em poupança.

Como vimos, a demanda por fatores de produção é estritamente uma demanda derivada e, embora não haja qualquer objeção a esse conceito no âmbito microeconômico de análise de equilíbrio parcial, extrapolar, como fez Keynes, da empresa ou da indústria para a economia como um todo e afirmar que a demanda da economia por mão de obra é derivada à la Marshall da demanda por bens de consumo é incorrer na conhecida falácia da composição, que consiste em se admitir que o que é verdade para uma parte do sistema, então também é verdade para todo o sistema. Vejam que isso nos leva à própria macroeconomia! Por exemplo, se a quantidade de pães fabricados por um trabalhador em uma padaria for muito elevada num determinado dia, o rendimento dos seus colegas aumentará, embora a produção dos mesmos possa até ter sido menor naquele dia; porém, se todos os trabalhadores na padaria conseguirem produzir quantidades muito grandes de pães, o rendimento do conjunto poderá ser mais baixo. Se concluíssemos o contrário, incorreríamos na falácia da composição.

A teoria keynesiana, no entanto, não se restringe à demanda por bens de consumo, mas a todas as formas de gastos: quanto maior a demanda agregada, maior a demanda por mão de obra. Este é o ponto fundamental da análise do tipo C + I + G + X - M, sintetizado no início dos anos 40 por Alvin Hansen e John Hicks nas famosas"curvas IS e LM".

Hayek reconhece que no âmbito macroeconômico consumo e investimento podem mover-se em sentidos opostos e esse reconhecimento é básico em suas críticas a Keynes, que desprezou a Quarta Proposição de Mill, já que, na sua visão, isto se daria apenas no caso especial e improvável de uma economia no pleno emprego. Mas consumo e investimento podem se mover no mesmo sentido apenas quando o nível de ociosidade de recursos se move no sentido oposto. Não há custos de oportunidade (ociosidade passada não é um custo) associados a ter mais de ambos os componentes da atividade econômica. Com efeito, foi o desprezo de Keynes em relação à Quarta Proposição de Mill que levou Hayek a se referir à economia keynesiana como "economia da abundância".

Em um ensaio de 1928, Hayek mostra como o mecanismo de preços relativos do mercado desloca recursos das atividades de consumo para atividades de investimento em resposta a mudanças nas preferências intertemporais. Ele mostra como uma queda na demanda por produtos (isto é, no consumo corrente), pode ser associada com um aumento na demanda por trabalho e outros inputs no espectro temporal da estrutura de produção, permitindo assim um aumento no nível de consumo futuro. Estes são os mecanismos de mercado, cuja existência ou é negada ou ignorada ou negligenciada por Keynes.

Eis a essência da TACE: com taxas de juros artificialmente baixas, os consumidores reduzem a poupança e passam a consumir mais, e os empresários aumentam seus gastos com investimento. E então se cria um desequilíbrio entre poupança e investimento. Tem-se uma economia com crescimento insustentável. Essa é, em suma, a lição da crítica austríaca aos bancos centrais, desenvolvida nos anos 1920 e 1930.

Com bastante clareza, o Prof. Roger Garrison observa que, quando as pessoas optam por poupar mais, elas mandam dois sinais aparentemente conflitantes para o mercado: o primeiro é que consumo menor enfraquece a demanda por bens de capital que estão próximos — em termos temporais — do produto final de consumo. Esse é o efeito derivado da demanda. E o segundo é que uma taxa de juros menor, que significa empréstimos a custos menores, estimula a demanda por bens de capital que estão distantes, em termos temporais, do produto final de consumo. Esse é o efeito do desconto temporal — ou simplesmente o efeito da taxa de juros.

Os efeitos derivados da demanda e do desconto temporal estarão em conflito apenas se o "investimento" for concebido como um simples agregado — como é na fórmula keynesiana C + I + G. Na "macroeconomia" da Escola Austríaca, o capital — logo, o investimento — é concebido como uma estrutura. Mudanças na demanda por investimentos, portanto, produzem efeitos distintos sobre os vários estágios da produção (que podem sofrer adições ou subtrações) que compõem a estrutura de capital.

A teoria de Keynes, feita em termos de agregados, negligencia não só a teoria austríaca do capital, mas qualquer outra teoria do capital. Isso motivou Hayek a afirmar de que "os agregados do Sr. Keynes escondem os mecanismos mais fundamentais da mudança". (Para quem desejar aprofundar-se na análise Garrison, aconselhamos o vídeo de sua lecture The Austrian Theory of the Business Cycles, que pode ser acessado emhttp://www.youtube.com/watch?v=5rJceunyCwU)

6. Paradoxo da poupança?

Para a Escola Austríaca, o famoso paradoxo da poupança de Keynes é um absurdo! Segundo Keynes, qualquer redução nos gastos resultaria em excessos de estoques, que por sua vez causariam cortes na produção, demissões e espirais baixistas na renda e nas despesas. A economia entraria em recessão e os empresários iriam investir menos. A "solução" que ele apresentou foi que o governo aumentasse os seus dispêndios. Esse paradoxo da poupança sugere, então, que aumentos na disposição de poupar gerariam desemprego e é, com todas as letras, uma balela! Os ciclos econômicos são provocados por poupança de menos e investimentos demais, e não — como acreditava Keynes — por poupança demais e investimentos de menos.

Sempre pensando em "agregados", Keynes sustentava que o mercado atua perversamente, impedindo que a poupança e o investimento se "equilibrem". Partindo do pressuposto de desemprego e ociosidade de recursos como regra geral, defendia políticas contracíclicas fiscais e monetárias, e, em última instância, uma "socialização abrangente do investimento". Já Friedman, incontestável defensor dos mercados, se baseava em níveis ainda maiores de agregados, podendo-se, nesse sentido, dizer que era um "keynesiano". Aliás, é famosa uma de suas frases, "we are all Keynesians". A Teoria Quantitativa da Moeda negligencia a questão da alocação de recursos e as mudanças nos preços relativos, provocadas pelas injeções de moeda na economia, centralizando sua atenção na relação entre oferta de moeda, estabelecida previamente pelos bancos centrais de acordo com uma "regra x", e "nível geral de preços", outro conceito agregado rejeitado pelos austríacos. Se para Keynes a Grande Depressão fora provocada por poupança demais e investimento de menos, para Friedman ela fora provocada por moeda de menos circulando na economia. Isso não lembra, respectivamente, Krugman e Bernanke?

Para estudar a dinâmica da TACE, recomendo vivamente ao leitor a leitura do livro de Roger Garrison, Time and Money: the Macroeconomics of Capital Structure. Recomendo também a coletânea de artigos de Mises, Haberler, Rothbard e Hayek, compilada por Richard Ebeling e com introdução e sumário de Garrison, The Austrian Theory of the Trade Cycle, editada pelo Mises Institute em 1996. E, por fim, o livro memorável de Rothbard, recém editado pelo Instituto Mises Brasil, A Grande Depressão Americana, com introdução de Paul Johnson.

Quando o banco central aumenta a oferta de moeda, o novo dinheiro entra na economia em pontos específicos da estrutura de capital, e não uniformemente, como supõem os keynesianos e os monetaristas. As chamadas "autoridades monetárias", literalmente, criam dinheiro do nada — já que atualmente não se exige qualquer lastro — e o colocam em circulação. Esse novo dinheiro passa a ser visto como poupança (é o mecanismo da poupança forçada ou artificial), um dos sete elementos da TACE a que já nos referimos no início deste artigo. Assim, a oferta de fundos para empréstimos (crédito) aumenta, mas sem que tenha havido qualquer aumento da poupança. Reagindo ao incentivo de uma taxa de juros menor, os agentes (ação humana) passam a poupar menos e a consumir mais. O resultado não será sustentável, mas uma ausência de coordenação que, por algum tempo, fica encoberta pela injeção desses fundos adicionais de crédito. Os bancos centrais criaram um descompasso entre poupança e investimento!

A dinâmica desse ciclo, na linguagem de Mises, gera tanto investimentos excessivos (sobreinvestimentos) como também investimentos errôneos ou maus investimentos. Essas distorções são agravadas pelo sobreconsumo. Ocabo de guerra que opõe consumidores a investidores leva a economia para além de suas possibilidades, o que é insustentável. A baixa taxa de juros favorece o investimento, mas as restrições cada vez maiores de recursos impedem que a economia atinja esse ponto. As tentativas dos bancos centrais de proverem cada vez maior liquidez só irão agravar os problemas que eles mesmos criaram, porque seus diretores nunca estudaram a TACE. Alguém aí pensou novamente em Bernanle?

7. Considerações finais

O Prof. Gottfried Haberler, referindo-se às injeções artificiais de crédito na economia, mostra sucintamente como essas emissões provocam falta de coordenação na economia:

... o período de produção é muito mais longo do que o período de circulação de dinheiro. O dinheiro recém-criado tende a chegar ao mercado para bens de consumo muito antes de os novos processos terem sido completados e já estarem produzindo bens prontos para o consumo [ver obra citada, pág. 57]

Em outras palavras, se um bem leva, por exemplo, oito meses para ser produzido e para ser posto à venda em uma loja de departamentos, a demanda por esse bem acontecerá antes desses oito meses. Isto é ausência de coordenação. Da mesma forma, não existirá coordenação se outro bem leva seis meses em produção até ser posto em uma prateleira de uma loja, mas a demanda por esse bem surgir depois desses seis meses. Na TACE, o elemento que coordena a demanda com a oferta é a taxa de juros. Por isso, quando os governos alteram artificialmente essa variável, a falta de coordenação será um fato líquido e certo. Haverá escassez imprevista ou formação de estoques indesejados.

Em suma, os sete elementos básicos da TACE e, muito especialmente, a Quarta Proposição de John Stuart Mill simplesmente demolem os argumentos keynesianos em prol de estímulos à demanda, não deixando pedra sobre pedra. Estímulos à demanda não aumentam o emprego de mão de obra e costumam mesmo agravar o problema.

O monetarismo, por sua vez, peca pela agregação, por negligenciar a Quarta Proposição de Mill e por também não trabalhar com uma teoria do capital, qualquer que viesse a ser esta. Por isso, o "remédio" receitado por Friedman para combater grandes recessões — injetar moeda maciçamente na economia — para os austríacos não é remédio, mas veneno, porque provoca ausência de coordenação entre poupança e investimento, vale dizer, entre oferta e demanda.

Podemos encerrar enunciando a Quarta Proposição, agora em uma linguagem austríaca: alterações na demanda por bens de consumo não são acompanhadas por mudanças proporcionais na demanda por mão-de-obra.Adicionalmente, uma queda na demanda por bens de consumo pode acontecer porque os indivíduos mostram-se mais dispostos a poupar, o que, sem dúvida, fortalecerá seu poder de compra no futuro. Mudanças na demanda por trabalho não são um simples espelho da demanda por consumo presente, mas refletem alterações nas preferências intertemporais.



Referências bibliográficas
Ebeling, Richard M. (ed), The Austrian Theory of the Trade Cycle and Other Essays, Ludwig von Mises Institute, Auburn, AL, 1996 (with an Introduction and Summary of Roger W. Garrison 
Hayek, Friedrich A.Money, Capital and Fluctuations: Early Essays, The University of Chicago Press, 1984
Iorio, Ubiratan J.Ação, Tempo e Conhecimento: a Escola Austríaca de Economia, Instituto Mises Brasil, 2011, 1ª Ed., cap. 7
Mises, Ludwig vonAs Seis Lições, Instituto Mises Brasil/Instituto Liberal, S. Paulo, 7ª ed., 2009
 Mises, Ludwig von, The Theory of Money and Credit, Liberty Fund, Indianapolis, s/data
Mises, Ludwig vonHuman Action: a Treatise on Economics, Liberty Fund, Indianapolis, 2007
Mill, John S.The Principles of Political EconomyBook 1, Chapter 5, Section: Fundamentals propositions respecting capital
Rothbard, Murray N.A Grande Depressão Americana, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012, com Introdução de Paul Johson
Stephen Kresge (ed.)The Collected Works of F. A. Hayek, Part I, Good Money, Liberty Fund, Indianapolis, 1999

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).  Visite seu website.

sábado, 26 de janeiro de 2013

SEM DINHEIRO, NÃO HÁ NEM CIVILIZAÇÃO E NEM PROGRESSO

Este artigo foi extraído do livro "O que o governo fez com o nosso dinheiro", futuro lançamento do IMB

O surgimento do dinheiro

Como surgiu o dinheiro? É claro que Robinson Crusoé, sozinho em sua ilha, não necessitava de nenhum dinheiro. Ele não poderia comer moedas de ouro. Tampouco Crusoé e Sexta-Feira, ao trocarem entre si peixe por madeira, tinham de se preocupar com dinheiro. Porém, quando a sociedade se expande e passa a ser formada por várias famílias, o cenário se torna propício para o surgimento do dinheiro.

Para explicar a função do dinheiro, temos de retroceder no tempo e perguntar: por que, afinal, os homens fazem transações econômicas? Por que eles trocam bens entre si? A troca é a base essencial de nossa vida econômica. Sem trocas, não haveria uma economia real e, praticamente, não haveria sociedade. Quando uma troca é voluntária, ela claramente ocorre porque ambas as partes esperam se beneficiar dessa transação. Uma troca é um acordo entre A e B no qual A transfere seus bens ou seus serviços para B, e B por sua vez transfere seus bens ou seus serviços para A. Obviamente, ambos, por definição, esperam se beneficiar dessa troca, pois cada um valoriza mais aquilo que está recebendo do que aquilo do qual abriu mão. Não fosse assim, não haveria uma troca voluntária.

Quando, por exemplo, Robinson Crusoé troca um peixe por um pedaço de madeira, ele dá mais valor à madeira que está "comprando" do que ao peixe que está "vendendo", ao passo que para Sexta-Feira, ao contrário, dá mais valor ao peixe do que à madeira. De Aristóteles a Marx, o homem erroneamente tem acreditado que uma troca denota algum tipo de igualdade de valor — que se um barril de peixes é trocado por dez toras de madeira, então há uma espécie de igualdade secreta entre tais coisas. A verdade, no entanto, é que a troca só ocorreu porque cada uma das partes valorou os dois produtos de maneira distinta.

Por que a propensão a transacionar é algo tão universal na humanidade? Fundamentalmente, por causa da grande variedade existente na natureza: a variedade que há nos homens e a variedade e a diversidade da localização dos recursos naturais. Cada homem possui um conjunto diferente de habilidades e aptidões específicas, e cada pedaço de terra possui suas características próprias, suas riquezas únicas. É desta variedade — um fato externo e natural — que surge a troca: o trigo produzido em uma localidade geográfica é trocado pelo ferro produzido em outra localidade geográfica; um indivíduo fornece seus serviços médicos em troca do prazer de ouvir uma música tocada em um violino por outro indivíduo. 

A especialização permite que cada indivíduo aprimore suas melhores habilidades, e permite que cada região geográfica desenvolva seus próprios recursos particulares. Se ninguém pudesse transacionar, se cada indivíduo fosse forçado a ser totalmente autossuficiente, a maioria de nós obviamente morreria de fome, e o restante mal conseguiria se manter vivo. A troca é a força vital não só da economia, mas da própria civilização.

Escambo

No entanto, esse processo de troca direta de bens e serviços úteis dificilmente seria capaz de manter uma economia acima de seu nível mais primitivo. Tal troca direta — ou escambo — dificilmente é melhor do que a pura e simples autossuficiência. Por quê? Em primeiro lugar, está claro que tal arranjo permite somente uma quantidade muito pequena de produção. Se João contrata alguns trabalhadores para construir uma casa, com o que ele lhes pagará? Com partes da casa? Com os materiais de construção que não forem utilizados? 

Os dois problemas básicos deste arranjo são a "indivisibilidade" e a ausência daquilo que chamamos de "coincidência de desejos". Assim, se o senhor Silva tem um arado que ele gostaria de trocar por várias coisas diferentes — por exemplo, ovos, pães e uma muda de roupas —, como ela faria isso? Como ele dividiria seu arado e daria uma parte para um agricultor e a outra parte para um alfaiate? Mesmo para os casos em que os bens são divisíveis, é geralmente impossível que dois indivíduos dispostos a transacionar se encontrem no momento exato. Se A possui um suprimento de ovos para vender e B possui um par de sapatos, como ambos podem transacionar se A quer um terno? Imaginem, então, a penosa situação de um professor de economia: ele terá de encontrar um produtor de ovos que queira comprar algumas aulas de economia em troca de seus ovos! 

Obviamente, é impossível haver qualquer tipo de economia civilizada sob um arranjo formado exclusivamente por trocas diretas.

Trocas indiretas

Felizmente, o homem descobriu, em seu infindável processo de tentativa e erro, um arranjo que permitiu que a economia crescesse de forma contínua: a troca indireta. Em uma troca indireta, você vende seu produto não em troca daquele bem que você realmente deseja, mas sim em troca de um outro bem que você, futuramente, poderá trocar pelo bem que você realmente deseja. À primeira vista parece uma operação canhestra e circular. Mas a realidade é que foi exatamente este maravilhoso arranjo o que permitiu — e que segue permitindo — o desenvolvimento da civilização.

Considere o caso de A, o agricultor, que quer comprar os sapatos feitos por B. Dado que B não quer ovos, A terá de descobrir o que B realmente quer — digamos que seja manteiga. O indivíduo A, então, troca seus ovos pela manteiga de C, e então vende a manteiga para B em troca dos sapatos. O indivíduo A irá comprar a manteiga não porque a deseja diretamente, mas sim porque isso o permitirá adquirir os sapatos. Similarmente, o senhor Silva, o dono do arado, venderá seu arado por uma mercadoria que ele possa com mais facilidade dividir e vender — por exemplo, manteiga. Ato contínuo, ele trocará partes de manteiga por ovos, pães, roupas etc. 

Em ambos os casos, a superioridade da manteiga — razão pela qual existe uma demanda extra por ela, que vai além do seu mero consumo — está em sua maior comerciabilidade, ou seja, em sua maior facilidade de ser trocada, de ser vendida, de ser comercializada.

Se um bem é mais comerciável do que outro — se todos os indivíduos estão confiantes de que tal bem será vendido com mais facilidade —, então ele terá uma grande demanda, pois ele será usado como um meio de troca. Ele será o meio pelo qual um especialista poderá trocar seu produto pelos bens de outros especialistas.

Assim como há uma grande variedade de habilidades e recursos na natureza, também há uma grande variedade na comerciabilidade dos bens existentes. Alguns bens são mais demandados que outros, alguns são plenamente divisíveis em unidades menores sem que haja perda de valor, alguns são mais duráveis, e outros são mais transportáveis por longas distâncias. Todas essas vantagens aumentam a comerciabilidade de um bem. Sendo assim, em cada sociedade, os bens mais comerciáveis serão, com o tempo, escolhidos para representar a função de meio de troca. À medida que sua utilização como meio de troca vai se tornando mais ampla, a demanda por eles aumenta, e, consequentemente, eles se tornam cada vez mais comerciáveis. O resultado é uma espiral que se auto-reforça: mais comerciabilidade amplia o uso do bem como meio de troca, o que por sua vez aumenta ainda mais sua comerciabilidade, reiniciando o ciclo. No final, apenas uma ou duas mercadorias serão utilizadas como meios gerais de troca — em praticamente todas as trocas. Tais mercadorias são chamadas de dinheiro.

Ao longo da história, diferentes bens foram utilizados como meios de troca: tabaco, na Virgínia colonial; açúcar, nas Índias Ocidentais; sal, na Etiópia (na época, Abissínia); gado, na Grécia antiga; pregos, na Escócia; cobre, no Antigo Egito; além de grãos, rosários, chá, conchas e anzóis. Ao longo dos séculos, duas mercadorias, o ouro e aprata, foram espontaneamente escolhidas como dinheiro na livre concorrência do mercado, desalojando todas as outras mercadorias desta função. Tanto o ouro quanto a prata são altamente comerciáveis, são muito demandados como ornamento, e se sobressaem em todas as outras qualidades necessárias. Em épocas recentes, a prata, por ser relativamente mais abundante que o ouro, se mostrou mais útil para trocas de menor valor, ao passo que o ouro foi mais utilizado para transações de maior valor. De qualquer maneira, o importante é que, independentemente do motivo, o livre mercado escolheu o ouro e a prata como a mais eficiente forma de dinheiro.

Este processo — a evolução cumulativa de um meio de troca no livre mercado — é a única maneira pela qual o dinheiro pode surgir e ser estabelecido. O dinheiro não pode se originar de nenhuma outra maneira: mesmo que as pessoas repentinamente decidam criar dinheiro utilizando materiais inúteis, ou o governo decrete que determinados pedaços de papel agora são "dinheiro", nada disso pode funcionar se o bem estipulado não possuir um histórico como meio de troca. 

Toda e qualquer demanda por dinheiro ocorre porque as pessoas podem utilizar aquele bem para calcular preços. Incorporado na demanda pelo dinheiro está o conhecimento dos preços do passado imediato. Ao contrário dos bens diretamente utilizados pelos consumidores e pelos empreendedores, a mercadoria a ser utilizada como dinheiro tem de apresentar um histórico de expressão de valores na forma de preços. Antes de tal produto ser definido como dinheiro, ele tem de possuir um passado no qual ele foi utilizado como definidor de preços. É sobre este histórico que a demanda será baseada. 

Porém, a única maneira pela qual isso pode acontecer é começando por uma mercadoria que foi utilizada quando a economia ainda operava sob escambo. Ato contínuo, a essa demanda anterior pelo seu uso direto (por exemplo, no caso do ouro, para ornamentos), é acrescentada a demanda para ele passar a ser utilizado como um meio de troca.[1]

Portanto, o governo é completamente impotente para criar um dinheiro do nada, utilizando um material sem passado algum como meio de troca; o dinheiro só pode surgir e evoluir pelo processo de livre mercado.

O que nos leva, então, à verdade mais importante de toda essa nossa argumentação a respeito do dinheiro: o dinheiro é uma mercadoria. Aprender essa simples lição é uma das tarefas mais importantes do mundo. Com enorme frequência, as pessoas falam de dinheiro como se fosse algo muito acima ou muito abaixo dessa realidade. O dinheiro não é uma abstrata unidade de conta, perfeitamente separável de um bem concreto; não é um objeto inútil que só presta para trocas; não é um "título de reivindicação" sobre os bens produzidos pela sociedade; não é uma garantia de um nível fixo de preços. O dinheiro é simplesmente uma mercadoria. 

O dinheiro difere das demais mercadorias por ser demandado majoritariamente como um meio de troca. Mas, excetuando-se isso, o dinheiro é uma mercadoria — e, como todas as mercadorias, ele possui um estoque real e é demandado por pessoas que querem comprá-lo, que querem portá-lo etc. Como todas as mercadorias, seu "preço" — em termos de outros bens — é determinado pela interação entre sua oferta total, ou estoque, e sua demanda total por pessoas que querem comprá-lo e guardá-lo. (As pessoas "compram" dinheiro ao venderem seus bens e serviços, e "vendem" dinheiro ao comprarem bens e serviços).

Os benefícios do dinheiro

O surgimento do dinheiro foi uma grande dádiva para a humanidade. Sem o dinheiro — sem um meio geral de troca — seria impossível haver uma genuína especialização, uma genuína divisão do trabalho. Consequentemente, seria impossível a economia avançar para além de seu nível mais simples e primitivo. Com o dinheiro, todos os problemas de indivisibilidade e da "coincidência de desejos", que atormentavam a sociedade baseada no escambo, são eliminados. Agora, João pode contratar trabalhadores e pagá-los em... dinheiro. O senhor Silva pode vender seu arado por unidades de... dinheiro.

O dinheiro-mercadoria é divisível em pequenas unidades, e é aceito generalizadamente por todos. Sendo assim, todos os bens e serviços são vendidos por dinheiro, e esse dinheiro é então utilizado para comprar outros bens e serviços que as pessoas desejam. Por causa do dinheiro, é possível se criar uma complexa "estrutura de produção" formada por fatores de produção como bens de capital, mão-de-obra e terra. Todos estes fatores são combinados de modo a aprimorar o processo produtivo em cada estágio da cadeia de produção. E todos estes fatores são pagos em dinheiro.

A criação do dinheiro traz outro grande benefício. Uma vez que todas as trocas são feitas em dinheiro, todas as 'taxas de câmbio' ou 'razões de troca' são expressos em valores monetários, de modo que as pessoas agora podem comparar o valor de mercado de cada bem em relação aos demais. Se um aparelho de televisão é trocável por três onças de ouro, e um automóvel é trocável por sessenta onças de ouro, então nota-se que um automóvel "vale", no mercado, vinte aparelhos de televisão. Tais 'taxas de câmbio' ou 'razões de troca' são os preços, e o dinheiro-mercadoria serve como um denominador comum para todos os preços. 

É o estabelecimento de preços monetários no mercado o que permite o desenvolvimento de uma economia civilizada, pois somente os preços permitem ao empreendedor fazer o cálculo econômico. Podendo fazer o cálculo econômico, os empreendedores podem avaliar o quão corretamente estão satisfazendo as demandas dos consumidores; eles podem avaliar como os preços de venda de seus produtos se comportam em relação aos preços que têm de pagar pelos fatores de produção (seus "custos"). Dado que todos esses preços são expressos em termos monetários, os empreendedores podem determinar se estão auferindo lucros ou sofrendo prejuízos. São esses cálculos que guiam os empreendedores, os trabalhadores e os proprietários de terra e de bens de capital em sua busca pela renda monetária no mercado. Somente esses cálculos permitem que recursos escassos sejam alocados para seu uso mais produtivo — para aqueles investimentos que irão satisfazer da melhor forma possível a demanda dos consumidores.

Praticamente todos os manuais de economia dizem que o dinheiro possui várias funções: ser um meio de troca, ser uma unidade de conta (ou um "mensurador de valores"), ser uma "reserva de valor" etc. No entanto, já deve estar claro que todas essas funções são simplesmente corolários da única grande função do dinheiro: ser um meio de troca. Por sempre ter sido um meio geral de troca, o ouro é a mercadoria mais comerciável. Ele pode ser estocado para servir como meio de troca tanto no futuro quanto no presente, e historicamente todos os preços sempre foram expressos em termos de ouro.[2] Por sempre ter sido uma mercadoria utilizada como meio para todas as trocas, o ouro sempre serviu como unidade de conta tanto para os preços do presente quanto para os preços esperados no futuro. 

É importante entender que o dinheiro só pode ser visto como uma unidade de conta ou como um título de reivindicação sobre bens a partir do momento em que ele passa a servir como um meio de troca. É de sua função como meio de troca que derivam todas as outras suas características, como ser unidade de conta e reserva de valor.

Civilizações só existem e o mundo só se desenvolve quando existe o dinheiro.

[1] Sobre a origem do dinheiro, cf. Carl Menger, Principles of Economics, Glencoe: Free Press, 1950, p. 257-71; Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit, New Haven: Yale University Press, 1951, p. 97-123.
[2] O dinheiro não "mensura" preços ou valores.  O dinheiro é um denominador comum para a expressão de preços e valores. Em suma, os preços são expressos em dinheiro, mas são por ele mensurados.

Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.