segunda-feira, 11 de março de 2013

COMO PAREI DE INVENTAR DESCULPAS E FINANLENTE LIBERTEI MINHA MENTE


É com bastante frequência que recebo as seguintes perguntas: "Quando foi que você percebeu que não era necessário haver um estado?", "Quando foi que você deixou de defender a existência de um estado?", ou até mesmo "Como foi que você percebeu que era incoerente ser pró-liberdade e ao mesmo defender o monopólio da violência para uma instituição política?". E há também a pergunta que resume tudo: "Quando foi que você se tornou um anarcocapitalista?"

Não é uma pergunta fácil de ser respondida. Mudanças profundas na perspectiva intelectual de uma pessoa não ocorrem da noite para o dia. Primeiro, você cogita a ideia. Em seguida, você avalia sua plausibilidade. Você pode até abraçar completamente a ideia, mas apenas de forma abstrata. A verdadeira mudança intelectual ocorre apenas quando você se torna capaz de ver a ideia funcionando no mundo real — até mesmo em sua vida cotidiana. É aí que a confiança em uma ideia se impõe.

É justamente por esta razão que nunca entendi como é possível alguém se tornar socialista. É algo que vai totalmente contra a lógica. O socialismo é a ideia menos plausível que pode ser imaginada. Bens escassos não podem ser propriedade de todos. Não é uma questão de ideologia, mas sim de lógica pura. Tente socializar seu notebook, ou seus sapatos, seu carro ou qualquer bem de capital ou de consumo. Duas pessoas não podem ser proprietárias de forma simultânea e integral do mesmo bem. O socialismo inevitavelmente sempre terminará em controle estatal total. É por isso que o socialismo gera desastres humanitários sempre que é integralmente implementado. Socialistas genuínos ou não entendem essa lógica ou simplesmente querem viver no perpétuo autoengano.

A primeira vez em que ouvi falar em anarcocapitalismo — ou 'anarquismo baseado na propriedade privada' — foi quando vi o livro de Murray Rothbard Man, Economy, and State na estante de livros de um professor. Só o título [Homem, Economia e Estado] já abordava diretamente alguns problemas que vinham me atormentando à época. Perguntei ao professor sobre aquele livro e ele ficou alarmado, como se eu houvesse visto algo que não podia ver. Ele rapidamente me alertou que eu não deveria ler o livro. "Rothbard é um anarquista", disse ele de forma soturna. É claro que, por causa desta antipropaganda, eu imediatamente quis ler aquela obra (mas não podia porque não havia dela na biblioteca da escola e eu não consegui bolar uma maneira de pegar furtivamente o livro da estante do professor).

Tive de deixar este objetivo temporariamente de lado, mas passei a me dedicar mais profundamente à leitura de livros pró-livre mercado. Quanto mais eu lia, mais eu me impressionava. Milton Friedman estava certo. Henry Hazlitt estava certo. Ludwig von Mises estava certo. F.A. Hayek estava certo. Leonard Read estava certo. Toda esta tradição, que remetia a Adam Smith, apresentava uma lógica de raciocínio espetacular. O mundo estava tentando gerenciar suas economias por meio de decretos estatais, mas tudo estava dando errado. Com essas leituras, aprendi que somente a liberdade e a propriedade privada são genuinamente produtivas, criativas e evolutivas, e somente elas realmente dão poder para as pessoas comuns da sociedade.

E, ainda assim, cada um desses pensadores, por algum motivo que me escapava, não levava essas ideias ao seu extremo lógico. Eles não chegavam ao ponto de dizer que nós realmente não precisamos de um estado. Todos eles pareciam concordar que o estado era necessário para manter a paz; que o estado é realmente tudo o que se interpõe entre nós e o caos total. Sem o estado, não seríamos capazes nem mesmo de dar aquele primeiro passo rumo à ordem social. Não haveria como usufruir aquela segurança que tomávamos como natural. Bens e serviços essenciais não poderiam ser ofertados. Não haveria tribunais, serviços de segurança e defesa, e talvez nem mesmo estradas. O estado fornece coisas que o mercado não pode fornecer — ou pelo menos era o que dizia tal raciocínio.

Com o passar do tempo, e com minhas leituras, estas ilusões foram sendo destroçadas uma por uma. Descobri que estradas, correios, comunicações e até mesmo aqueles lendários 'bens públicos' como faróis de navegação marítima foram, de uma perspectiva puramente histórica, todos ofertados pelo livre mercado. Só depois é que o governo monopolizou estes serviços. Tribunais? Na década de 1980, as cortes estatais já estavam tão cheias e eram tão ineficientes, que empresas e indivíduos não queriam utilizá-las. A arbitragem privada era uma opção muito melhor. Mesmo nos empreendimentos cotidianos, contratos eram formulados de modo que contendas fossem resolvidas em tribunais privados. Para mim, tudo aquilo significava que mesmo estes serviços não eram algo exclusivo do governo; eles poderiam ser ofertados exclusivamente pelo livre mercado. O mesmo se aplicava à segurança. Não é o estado o que nos dá segurança diariamente, mas sim nossas próprias precauções e medidas preventivas, como fechaduras, armas e a contratação de serviços de segurança privados.

E vale ressaltar que toda essa transformação estava ocorrendo em minha mente durante os anos finais da Guerra Fria. Um holocausto nuclear era uma ameaça real e diária. Inimigos estrangeiros nos rodeavam. Os comunistas queriam destruir nosso modo de vida. Falar sobre isso atualmente parece uma grande tolice, principalmente quando se descobriu, após 1989, o quão inacreditavelmente pobres e patéticos eram todos os países do bloco soviético. Porém, naquela época, tudo era amedrontador. Não poderíamos abrir mão de nossas armas nucleares porque isso colocaria em risco nosso modo de vida.

Aprofundando meus estudos de história, comecei a descobrir coisas interessantes. Ocorre que a Ameaça Vermelha era algo recorrente na história dos EUA. As pessoas tinham tanto pavor dos comunistas na década de 1920 quanto na década de 1980. Neste ínterim, no entanto, houve aquele estranho período em que os líderes americanos e soviéticos eram considerados aliados próximos na batalha contra os japoneses e os alemães. Com efeito, os EUA fizeram de tudo para manter o regime soviético intacto, e, após a Segunda Guerra Mundial, os próprios EUA ajudaram a entregar o Leste Europeu ao jugo soviético. Após isso, os soviéticos repentinamente se tornaram novamente o inimigo. Foi para chamar a atenção para esse absurdo que George Orwell escreveu1984. (O título faz um trocadilho com 1948. O livro foi publicado em 1949).

Estes fatos começaram a complicar o cenário. Não é necessário relatar todo o revisionismo histórico aqui; basta dizer que as guerras em que os EUA se meteram no século XX se tornaram bem menos claras e muito mais confusas para mim do que aparentavam ser para a mídia ideologicamente polarizada. A Guerra Fria não era uma história de anjos e demônios, não obstante os impulsos nacionalistas para se torcer por seus respectivos governos. A Guerra Fria foi uma batalha entre estados, ambos os quais estavam perfeitamente dispostos a mentir para seus cidadãos, a explorar sua população e a preferir o conflito à paz. Era também impossível não perceber que, quanto mais os EUA elevavam o tom belicista contra o comunismo, mais o próprio governo americano se tornava uma ameaça às liberdades dos cidadãos. A guerra, como descobri, nunca foi uma aliada da liberdade.

Enquanto isso, comecei a perceber que, se os EUA realmente fossem invadidos por um inimigo estrangeiro, os governos federal, estaduais e municipais poderiam até ajudar, mas a maior probabilidade é que atrapalhassem impondo leis marciais, estatizando a indústria e confiscando nossas armas — como todos os governos tendem a fazer em qualquer emergência. Na prática, na iminência de uma invasão, os cidadãos e os mercados é que serão decisivos para combater e derrotar os invasores utilizando meios privados: nossas próprias armas, nosso aparato de segurança, nossas redes de amizade, e nossos esforços individuais e comunitários. Quanto mais eu pensava sobre isso, mais ridícula se tornava a ideia de que deveríamos depender do governo para toda a nossa proteção. Tomando-se por base a experiência, governos podem agravar ainda mais os malefícios, simplesmente porque eles tendem a usar situações de emergência em proveito próprio — e em benefício daqueles que lhes garantem poder (os grupos de interesse e os lobistas). O que é ainda pior: pessoas com poder tendem a estimular ou até mesmo a criar emergências quando têm o poder para tal.

Esta foi a evolução do meu progresso intelectual durante um período de aproximadamente cinco anos. Finalmente, em um belo dia, parei para refletir melhor e me fiz a seguinte pergunta: existe alguma coisa que o governo faz, que tem de ser feita e que não pode ser efetuada de maneira mais eficiente e mais completa pela livre e voluntária associação entre indivíduos?

Fiquei revirando esta pergunta em minha mente. Não conseguia pensar em outra resposta senão a de que não há absolutamente nada de essencial que o governo faça que não possa ser mais bem efetuado pela livre iniciativa e pela livre associação entre as pessoas. Confesso que foi um pensamento amedrontador. Será que eu estava me tornando um anarquista? Será que esse pensamento iria mudar minha vida? Se eu seguisse nessa direção, estaria eu fazendo algo terrivelmente irresponsável? Encontrei consolo na possibilidade de que talvez eu não houvesse raciocinado corretamente; de que talvez houvesse algo de errado na maneira em que eu havia formulado a pergunta. Tentei confortar-me na hipótese de que eu havia desconsiderado alguma pequena característica positiva do governo, característica essa que eu poderia defender de modo a não ter de me considerar um maluco.

Foi no saguão de um hotel em que Murray Rothbard estava hospedado que eu finalmente fiz a ele esta pergunta. Formulei de maneira bem direta. Se eu respondesse 'não' àquela pergunta acima, seria eu um anarquista? Murray disse que sim. Assustado, tentei esclarecer melhor: se eu cheguei à conclusão de que o estado não contribui com absolutamente nada de valor para a ordem social, e de que ele não pode trazer nenhum aprimoramento para aquilo que criamos com nosso próprio esforço, seria eu um anarquista? Ele novamente disse que sim. E eu respondi: bom, então acho que sou um. E ele então soltou uma gargalhada efusiva, apertou vigorosamente minha mão, e me congratulou de forma exuberante, tudo naquele seu bem conhecido estilo jubiloso. Uau. O feito havia sido consumado, pensei.

E, ainda assim, eu estava enganado. O feito intelectual havia sido consumado, mas ainda era muito fácil manter esta ideia como uma abstração, como algo que não afetava em nada meu trabalho diário ou minha vida. Uma coisa é você enxergar a luz lá longe; outra bem diferente é ver essa luz ao seu redor constantemente. Este passo me tomou vários outros anos de meditação acerca de questões específicas como direitos humanos, serviços de mercado, a maneira como a liberdade funciona, a maneira como o estado se portou ao longo da história, e a maneira como ele funciona hoje. Os últimos estágios desse processo de pensamento levaram vários anos para serem processados.

O que eu fui descobrindo de maneira gradual em minha rotina diária é que o anarquismo está inteiramente ao nosso redor. O estado não nos acorda de manhã, não arruma nossa cama, não tece nossos lençóis, não constrói nossas casas, não faz nossos carros funcionarem, não prepara nossa comida, não nos faz trabalhar com mais afinco e dedicação, não produz os livros que lemos, não gerencia nossas igrejas, não nos dá roupas, não escolhe nossas amizades e nossos amores, não toca a música de que gostamos, não produz os filmes a que assistimos, não cuida de nossos filhos, não cuida de nossos pais, não escolhe onde passamos férias, não dita o assunto de nossas conversas, não torna nossos feriados mais bonitos e alegres, não cria nada de positivo para nós.

Tudo isso são coisas que fazemos por conta própria. Nós moldamos o nosso próprio mundo. Por meio da prática da vontade humana, todos nós trabalhamos para fazer com que o mundo à nossa volta seja ordeiro. Isso é o que toda a população mundial faz. Todos nós trabalhamos motivados pelo nosso interesse próprio com o intuito de encontrar maneiras de ter uma vida melhor. Mais ainda: todos nós nos esforçamos para trabalhar com terceiros em um arranjo que seja mutuamente benéfico, de modo que o aprimoramento de nossa vida não ocorra à custa dos direitos e das liberdades de terceiros. A liberdade está onde são geradas as coisas bonitas de nossas vidas. E isso é válido em todos os cantos do mundo. Sempre foi. Uma bela anarquia é a principal fonte da própria civilização.

Qual o papel do estado? Ele interfere. Ele confisca nossa propriedade e reduz nossa riqueza individual. Ele bloqueia oportunidades por meio de suas regulamentações e subsequentes criações de cartéis. Na verdade, ele faz ainda pior: ele busca desculpas para iniciar guerras, ele se intromete em nossas famílias, ele pune o comportamento pacífico que não prejudica ninguém — em suma, ele obstrui o progresso de variadas formas. O estado é o grande forasteiro. Ele é exógeno à própria sociedade. A maior parte do mundo ainda funciona, e a civilização ainda prospera, porque as pessoas se esforçam para ignorar o estado o máximo possível. E se ele desaparecesse? Eu realmente não consigo ver nenhuma consequência negativa neste fenômeno. Mas vejo várias positivas.

E ainda assim há aqueles que alertam para o iminente apocalipse caso o estado desapareça. A maioria das pessoas que acreditam em um governo limitado ("minarquistas") nutre essa ideia. Mesmo grandes pensadores como Ludwig von Mises e Henry Hazlitt acreditavam nisso. Todos eles aceitavam alguma versão do pesadelo imaginado por Thomas Hobbes: na ausência do estado, a vida seria sórdida, solitária, bestial e curta. Mas o fato é que ele escreveu isso durante uma época de turbulência política, uma época em que tribos religiosas guerreavam para controlar o estado. A vida sem o estado teria sido exatamente daquela maneira — mas exatamente por causa da presença do estado que todos queriam controlar, e não por sua ausência.

Não irei aqui analisar todas as distorções já feitas em relação a esta ideia, e nem irei utilizar este espaço para tentar refutar todas as justificativas já apresentadas em defesa do estado. Irei apenas mencionar uma intuição bastante comum que muitas pessoas têm. As pessoas dizem que não faz muito sentido eliminar o estado porque outras pessoas irão simplesmente criar outro em seu lugar. Não duvido que esta afirmação seja verdadeira. As pessoas de fato têm a ilusão de que o estado contribui com algo de positivo e importante para a sociedade. Elas querem líderes que governem desde lá de cima, ainda que elas próprias estejam aqui em baixo.

Pense em Samuel, do Velho Testamento. As pessoas vinham até ele implorando por um rei. Ele advertiu que um rei confiscaria suas propriedades, colocaria seus filhos em servidão, iniciaria guerras terríveis e, no final, escravizaria a todos. Não importava. Elas queriam um rei de qualquer maneira.

Este é exatamente o comportamento das pessoas de hoje. Nada mudou. Elas continuam implorando por sua própria escravidão. Pior ainda: temem viver em liberdade. É por isso que o estado continua se reinventando. Aqueles que ao menos entendem que o estado deve ser limitado caso tenha de existir merecem alguns créditos. Mas o problema é que tais limites nunca de fato funcionaram. É por isso que é melhor simplesmente deixar a sociedade prosperar sem o jugo de um estado. O grande projeto da liberdade é fazer as pessoas entenderem que elas não devem abraçar a ilusão de que um estado — qualquer estado — pode ser um aliado e um benfeitor da liberdade humana. Foi isso que a revolução liberal que ocorreu no final da Idade Média até o Iluminismo pregou. É imprescindível entender a real beleza da liberdade para se poder alcançá-la.

Desde o início da era digital, estamos tendo o privilégio de observar em primeira mão o atordoante poder criativo da volição humana. A cada bilionésimo de segundo, indivíduos ao redor de todo o mundo estão trabalhando para criar novos tipos de associações, instituições, capital e meios de prosperidade. Estamos vendo se desenrolar perante nossos olhos coisas que até a década passada eram tidas como impossíveis. E tudo está apenas começando. Estamos ainda nos primórdios de coisas como impressora 3-D, moedas alternativas, e civilizações com bases digitais capazes de nos ofertar mais filmes, mais livros, mais arte e mais sabedoria do que qualquer ser humano de épocas passadas seria capaz de obter durante várias vidas. Este mundo recém-surgido está transformando nossa existência. Tome nota: nenhum estado foi responsável por isso, nenhum estado criou isso, nenhum estado aprovou isso e nenhum estado está administrando tudo isso.

Por fim, deixe-me admitir aqui que meu anarquismo é provavelmente de ordem mais prática do que ideológica — o que é exatamente o oposto da postura dos mais bem conhecidos pensadores anarquistas da história. Vejo a regularidade e a harmonia da ação e da volição humana ao meu redor o tempo todo. Acho tudo isso totalmente inspirador. É algo que liberta a minha mente e me permite entender o que é realmente importante na vida. Essa capacidade de observação me permite ver a realidade como ela é. Não é uma ideologia inalcançável o que me deixa ansioso por um mundo sem estado, mas sim o fato de eu saber do que é capaz o ser humano quando tem liberdade para melhorar este mundo por meio de seus próprios esforços. Somente seres humanos podem superar a irremediável realidade da escassez que o mundo impôs sobre nós. Até onde sei, o estado é, na melhor das hipóteses, o grande distúrbio que retarda esse poderoso projeto de construção da civilização.

Por: Jeffrey Tucker é o presidente da Laissez-Faire Books e consultor editorial do mises.org. É também autor dos livros It's a Jetsons World: Private Miracles and Public Crimes e Bourbon for Breakfast: Living Outside the Statist Quo

domingo, 10 de março de 2013

"ATÉ MESMO HAYEK E FRIEDMAN DEFENDEM O BOLSA FAMÍLIA"


Existe alguma ideia pior do que estatizar a esmola, tornando-a assim um dever para uns e um direito para outros? Por um lado, trata-se de uma imoralidade criminosa subtrair por meio da força a propriedade alheia; por outro, gera dependência e um incentivo à vadiagem.

Muitas pessoas de bom senso, mesmo sem possuir base alguma na teoria econômica ou na de direitos naturais, rejeitam instintivamente tal ideia. Apesar disso, a ideia começou a ser implantada no Brasil por FHC em 2001, e hoje está em pleno funcionamento. Embora seja uma ideia tenebrosa, ela encontra respaldo em muitos pensadores associados ao Liberalismo. O primeiro deles pode ter sido Thomas Paine. O escritor que participou da Revolução Americana e da Revolução Francesa idealizou uma proposta de "renda mínima" — talvez se baseando no proviso de Locke, o pensador que é um dos pilares do liberalismo.Muitos outros autores fizeram propostas semelhantes, como Marx, Keynes e Galbraith, e era esperado que defendessem esse redistributivismo. Mas é absurdo ver nomes associados à defesa da liberdade dando seu aval a este tipo de espoliação.

Quando F. A. Hayek estava escrevendo sua obra Os Fundamentos da Liberdade, ele estava sendo subsidiado pelo Volker Fund. Nesta mesma época, Murray Rothabrd trabalhava como consultor para o Volker Fund e, em janeiro de 1958, quando Hayek entregou os catorze primeiros capítulos de seu livro, o Volker Fund pediu a Rothbard que desse sua opinião sobre eles. A análise de Rothbard, além de devastadora, continha uma acurada previsão de como aquele livro seria usado pelos inimigos da liberdade em prol da causa redistributiva. Devido a seus erros conceituais — com destaque ao conceito de coerção —, Rothbard o classificou como um péssimo livro, um "livro do mal"; além disso, graças ao status de Hayek, o livro foi considerado também como sendo extremamente perigoso, e Rothbard recomendou que se descontinuasse qualquer suporte à finalização e promoção da obra, já que isso seria destrutivo para a causa da liberdade.

Hayek era considerado um dos mais proeminentes líderes intelectuais pró-livre mercado, e como ele estava defendendo que o estado atuasse em inúmeras funções, Rothbard previu que a oposição iria se utilizar do velho artifício de "mas até mesmo Hayek admite que . . ." para argumentar em defesa de suas posições pró-estado.

A previsão que Rothbard teve instantaneamente, assim que bateu os olhos nos primeiros capítulos da obra de Hayek, vem se concretizando desde então. Por exemplo, para atacar Ron Paul na última corrida presidencial americana, o "economista" esquerdista Paul Krugman usou Hayek contra os opositores da saúde pública:

No passado, conservadores aceitavam a necessidade de uma rede de proteção garantida pelo governo por razões humanitárias. E não sou eu quem está dizendo isso; quem disse isso foi Friedrich Hayek, o herói intelectual conservador, que declarou especificamente em O Caminho da Servidão seu apoio a um "amplo sistema de serviços sociais" para proteger os cidadãos de "eventualidades comuns", e especificou a área da saúde.

Outro teórico que é considerado um dos maiores defensores do livre mercado e que também fez inúmeras concessões à atuação do estado foi Milton Friedman; e ele é igualmente utilizado pelos detratores do livre mercado, como constatou Hans-Hermann Hoppe anos depois da previsão de Rothbard:

... fazer concessões em nível de teoria, como vemos acontecer, por exemplo, entre liberais moderados como Hayek e Friedman, ou mesmo entre os chamados minarquistas, não apenas denota uma grande falha filosófica, como também é uma atitude, do ponto de vista prático, inútil e contraproducente. As ideias destas pessoas podem ser — e de fato são — facilmente cooptadas e incorporadas pelos governantes e pelos ideólogos do estado. Aliás, não é de se estranhar a frequência com que ouvimos estatistas defendendo a agenda estatista dizendo coisas como "até mesmo Hayek (Friedman) diz — ou, nem mesmo Hayek (Friedman) nega — que isto e aquilo deve ser feito pelo estado!" Pessoalmente, eles até podem ter ficado descontentes com isso, mas não há como negar que suas obras serviram exatamente a este propósito; e, consequentemente, queiram ou não, eles realmente contribuíram para o contínuo e incessante crescimento do poder do estado.

Hayek e Friedman são mundialmente aclamados como os representantes máximos do livre mercado; logo, este artifício não conhece fronteiras — e no Brasil também foi e é utilizado por estatistas. O primeiro economista brasileiro a propor um programa de renda mínima foi Antônio Maria da Silveira, no artigo Redistribuição de Renda, publicado na Revista Brasileira de Economia, em abril de 1975 — e, para tal, ele se baseou nos trabalhos dos liberais Friedman e Hayek, além de nos de outros economistas socialistas. E foi um grande amigo de Antônio Maria um dos maiores responsáveis pela implementação do programa assistencialista no Brasil: o senador Eduardo Matarazzo Suplicy. Juntamente com o senador Cristovam Buarque, eles podem ser considerados os pais do Bolsa Família. E, exatamente como previsto por Rothbard, também se utilizaram do artifício "Até mesmo Hayek e Friedman" na defesa de suas propostas:

Podemos encontrar defensores da renda mínima e do imposto de renda negativo dentre aqueles que se posicionaram com mais eloquência em favor do capitalismo. Friedrich A. von Hayek, ganhador de um prêmio Nobel de Economia, defende, em O caminho da servidão (1994), no capítulo sobre segurança e liberdade, proteção contra privações físicas severas e garantia de que um mínimo de meios de subsistência deve ser dado a todos. George Stigler (The economics of minimum wage legislation, American Economic Review, n. 36, jun. 1946) mostrou que o imposto de renda negativo seria a melhor forma de proteger a remuneração daqueles que, de outra forma, ganhariam muito pouco. Milton Friedman popularizou a defesa do imposto de renda negativo como o instrumento mais eficiente no combate à pobreza (Capitalism and freedom, University of Chicago Press, 1962).

Hayek e Friedman poderiam discordar de determinadas particularidades do Bolsa Família ou de outros programas de renda mínima, mas o fato de eles aceitarem conceitualmente um programa estatal de amparo aos necessitados já serviu para desmantelar qualquer oposição que poderia existir a estes programas. Inclusive, Hayek e Friedman parecem discordar entre si nas particularidades de seus programas. Hayek declarou que era totalmente contra o programa de Imposto de Renda Negativo de Friedman, e que concordava com a refutação que Henry Hazlitt havia feito dele. Não obstante, a proposta de Friedman parece ser menos pior que a de Hayek, pois Friedman a desenvolveu para ser apenas um substituto de outras ações assistencialistas do estado. E mais, Hayek é mesmo uma figura confusa, parecendo discordar dele próprio. Nesta entrevista realizada anos após a publicação de suas principais obras, ele se posiciona contra qualquer tipo de redistribuição de renda, pois estas políticas seriam discriminatórias ao fazerem distinção entre diferentes grupos de pessoas — uma posição irreconciliável com seus escritos anteriores.

Friedman também discordou de particularidades de outros programas, como o EITC (Earned income tax credit), mas concordou com o princípio redistributivista, como mostraram Suplicy e o professor Philippe Van Parijs em entrevista que realizaram com Friedman. Respondendo a uma questão sobre o EITC, Friedman diz:



O EITC contribuiu para erradicar a pobreza nos EUA. Eu não acredito que tenha sido uma ferramenta extremamente eficiente devido à forma particular pelo qual ele se integra ao imposto de renda. Tem dado margem a abusos.

E quando Suplicy pede para Friedman comparar sua proposta de Imposto de Renda Negativo à do renda do cidadão, Friedman diz que ambas são semelhantes, como o professor Philippe Van Parijs comenta: "Esta é uma afirmação muita clara da equivalência formal entre os dois esquemas, o que sugere que Friedman é tão a favor de uma proposta quanto de outra".

Detalhes a parte, o maior erro de Hayek e Friedman foi o de não considerarem um princípio elementar de ética e justiça. Para haver qualquer forma de renda mínima, esta renda tem de vir de algum lugar. Se o amparo aos mais necessitados vem de Igrejas, instituições ou indivíduos privados, a renda tem origem voluntária, por meio de doações de pessoas que desejam destinar parte de seus bens para caridade. No entanto, se é o estado quem fornece a renda mínima, então este recurso é obtido por meio da agressão ou da ameaça de agressão física dos produtores, isto é, por meio do roubo. Frédéric Bastiat expressou brilhantemente este princípio em 1850:

é-me impossível separar a palavra fraternidade da palavra voluntária. Eu não consigo sinceramente entender como a fraternidade pode ser legalmente forçada, sem que a liberdade seja legalmente destruída e, em consequência, a justiça seja legalmentedeturpada. A espoliação legal tem duas raízes: uma delas, como já lhe disse anteriormente, está no egoísmo humano; a outra, na falsa filantropia.

Se algo é compulsório, então não é caridade mas sim agressão. O conceito de caridade compulsória é contraditório, pois considera apenas o recebedor e ignora o espoliado. Se caridade significa ajudar, quem é que está ajudando a pessoa que está sendo obrigada, sob a mira de um revólver, a entregar parte de sua renda para que ela seja dada a outra pessoa? É esta a base de qualquer programa de redistribuição de renda feito pelo estado, pois para haver algo para distribuir é necessário que este algo tenha sido previamente produzido e retirado à força dos produtores. 'Não é seu para dar' é um conceito que até pouco tempo era amplamente compreendido até mesmo por políticos socialistas, como Herbert Hoover, que estendeu os tentáculos do estado a inúmeras áreas, mas tinha ressalvas quanto à caridade:

A assistência voluntária era praticamente a única esfera em que o presidente Hoover parecia preferir de todo o coração a ação voluntária à governamental. No outono anterior, Hoover havia se recusado a convocar uma sessão especial do Congresso para a assistência ao desemprego dizendo que isso era responsabilidade das agências voluntárias. De fato, a tradição voluntarista ainda era tão forte nessa área, que a Cruz Vermelha opôs-se a um projeto de lei, no começo de 1931, que lhe concederia US$ 25 milhões para prestar assistência. A Cruz Vermelha declarou que seus próprios fundos bastavam, e seu Presidente disse a um comitê da Câmara que essa verba do congresso "em grande medida destruiria a doação voluntária". Muitos líderes locais da Cruz Vermelha opunham-se fortemente a qualquer ajuda federal, e até mesmo a qualquer assistência pública de modo geral, de modo que o projeto de lei, após passar pelo Senado, foi derrubado na Câmara. Muitas organizações privadas de caridade, filantropos e assistentes sociais tinham a mesma opinião.

É inegável que Hayek e Friedman colaboraram muito na luta contra a tirania estatal. Porém, eles não são nem de longe os autores que melhor representam a liberdade; e é inegável também que eles apoiaram muitas posições contrárias à liberdade. E é exatamente por causa de todas as concessões que estes autores fizeram aos estatistas, que a esquerda os alçou à posição de maiores e mais radicais representantes do livre mercado, ao passo que pensadores realmente radicais como Mises e Rothbard foram jogados para fora do debate. Hayek e Friedman são os inimigos que a esquerda adora odiar. De fato, eles não são inimigos — eles fazem parte da esquerda, e são aceitos e respeitados pelo mainstream (que é esquerdista).

Libertários não seguem pessoas; nós seguimos ideias. Aqui mesmo no Instituto que leva seu nome, criticamos diversas ideias de Ludwig von Mises, e não pretendemos fazer "culto à personalidade" nem de Mises, nem de Rothbard e nem de ninguém. Mas o fato é que alguém inevitavelmente será identificado como o líder intelectual de um movimento, e a esquerda já nomeou os atuais "líderes". Não temos líderes, mas se existem pessoas cuja obra representa melhor a defesa da liberdade, estas pessoas são Mises e Rothbard.



[1] A proposta de "dividendo universal" de Paine, que garantiria uma renda mínima a todos, é baseada em sua ideia de que todo ser humano do planeta é coproprietário da terra apenas em virtude de ter nascido neste planeta e de estar vivo. Já o proviso de Locke dizia que os indivíduos podiam se apropriar da terra 'misturando seu trabalho a ela', contanto que sobrasse o suficiente para que outros também pudessem se apropriar de porções semelhantes.  Veja a refutação do proviso lockeano em Rothbard, capítulo 29 do A Ética da Liberdade; Hoppe, pág. 410 et pass. The Economics and Ethics of Private Property; e de Jasay, págs. 188 e 195 do Against Politics.
[2] Dois anos depois, quando Rothbard recebeu e analisou a obra completa, ele elogiou a erudição da obra — principalmente pelo valioso conteúdo de suas notas — e enalteceu alguns capítulos específicos, mas no geral sua avaliação continuou a mesma. Hayek havia fracassado monumentalmente em sua tentativa de estabelecer um sistema em prol da liberdade. Murray N. Rothbard vs. the philosophers: unpublished writings on Hayek, Mises, Strauss, and Polanyi, capítulos 2 e 3, Roberta Adelaide Modugno — Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, 2009.  Para uma crítica devastadora de Os Fundamentos da Liberdade, veja: F.A. Hayek e o conceito de coerção, em A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, capítulo 28.
[3] Homenagem a Antônio Maria da Silveira, Eduardo Matarazzo Suplicy.
[4] SUPLICY, Eduardo Matarazzo e BUARQUE, Cristovam. Garantia de renda mínima para erradicar a pobreza: o debate e a experiência brasileiros. Estud. av. [online]. 1997, vol.11, n.30
[5] O professor Philippe Van Parijs, da Universidade Católica de Louvain, é um filósofo e economista político belga, conhecido como proponente e principal defensor do conceito da renda mínima. É um dos fundadores e secretário-geral da "BIEN", "Basic Income European Network" (Rede Europeia da Renda Básica), fórum que defende a instituição de uma renda básica em todas as nações.
[6] UM DIÁLOGO COM MILTON FRIEDMAN SOBRE O IMPOSTO DE RENDA NEGATIVOpaper de EDUARDO M. SUPLICY. Basic Income European Network, VIIIth International Congress, Berlin, 6-7 de outubro de 2000.
[7] Ibid., pág. 9.
[8] A Lei, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, pág. 24.
[9] A grande depressão americana, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, pág. 281.
[10] "The Hayek Myth", PFS 2012, Hans Hermann Hoppe.

Fernando Chiocca é um intelectual anti-intelectualpraxeologista e conselheiro do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

sábado, 9 de março de 2013

MANIPULAR JUROS NÃO GERA CRESCIMENTO ECONÔMICO


É até possível que haja alguns políticos e burocratas que tenham conhecimento de alguns inexoráveis princípios econômicos, mas é fato que a maioria se deixa guiar apenas por aquela mística sensação gerada pelo poder político. Eles legislam e regulam qualquer atividade ou fenômeno econômico que chame sua atenção. A taxa de juros, que é o preço dos empréstimos, é um dos principais exemplos desta concupiscência pelo poder.

Desde o surgimento da história documentada, a taxa de juros tem sido o objeto que os políticos mais desejam controlar. Na Grécia antiga, os estadista e legislador ateniense Sólon proibiu a cobrança de juros em alguns mercados. Os judeus antigos, a Igreja Cristã, e o Islamismo chamavam este fenômeno de usura e proibiram sua prática entre seus congregados. Quando a proibição finalmente foi revogada nos países ocidentais, as taxas de juros passaram a ser rigidamente fixadas ou estreitamente limitadas pelos governos ou por seus bancos centrais. Os juros raramente foram deixados a cargo da livre interação das forças do mercado.

Em uma economia livre, na qual não houvesse uma agência governamental com a função de manipular os juros, estes teriam uma função similar àquela desempenhada pelos preços e pelos salários. Juros, preços e salários surgem naturalmente das escolhas e dos juízos de valor feitos pelas pessoas. E suas escolhas e juízos de valor dão origem ao fenômeno da "oferta e demanda", que é o que guiará os produtores em suas decisões sobre a amplitude do investimento que devem fazer e o tipo de atividade econômica a que devem se dedicar. A taxa de juros informa aos empreendedores a quantidade de recursos escassos disponíveis para serem investidos (ou seja, o capital), além de como eles devem utilizar este capital limitado ao longo do tempo — se ele deve utilizá-lo na produção para bens de consumo presentes ou se ele deve investi-lo para satisfazer aqueles desejos que os consumidores manifestarão mais no futuro. A função básica da taxa de juros, portanto, é guiar as decisões empreendedoriais.

A taxa de juros de mercado é uma taxa bruta normalmente formada por três componentes distintos: a taxa pura, a taxa de inflação, e o prêmio de risco em decorrência da chance de o empréstimo não ser pago. 

A taxa pura advém da simples realidade de que o homem é um ser mortal, o que o obriga a acrescentar o fator tempo em todos os fenômenos econômicos por ele vivenciados. Sendo assim, o homem atribui um valor menor para bens futuros em relação ao presente. Em outras palavras, tudo o mais constante, o homem prefere ter um bem hoje a ter este mesmo bem em uma data futura. Logo, ele valora um bem presente de maneira mais alta do que este mesmo bem no futuro. Ou, o que dá no mesmo, para abrir mão de um bem presente em troca de tê-lo de volta apenas no futuro, ele irá cobrar algo por isso.

Já o componente inflacionário surge sempre que Banco Central inflaciona e deprecia a moeda. A taxa de depreciação da moeda — mais especificamente, o quanto o emprestador imagina que a moeda será depreciada durante seu empréstimo — determina o tamanho deste componente.

Por fim, o prêmio de risco reflete a confiabilidade e a solvência do devedor.

O Banco Central, que legalmente possui a responsabilidade de manter as condições monetárias e creditícias favoráveis a uma economia robusta, raramente presta atenção à taxa de juros de mercado. Suas políticas são guiadas por doutrinas populistas que clamam pelo contínuo estímulo ao emprego e à renda. O Banco Central é alheio ao fato de que todas as taxas que não sejam determinadas pelo mercado fornecem sinais errôneos aos produtores e consumidores. Elas estimulam investimentos errôneos e insustentáveis, que geram desperdício de capital e subsequente empobrecimento.

Quando o Banco Central estipula uma taxa de juros menor do que as taxas de mercado, ele está estimulando o aumento da demanda por crédito. Empreendedores tomam empréstimos para investir em projetos de mais longo prazo (quanto menores os juros, mais rentáveis passam a ser os projetos de longo prazo). Ao mesmo tempo, os consumidores também se aproveitam dos juros baixos para se endividar e aumentar seu nível de consumo. A expansão do crédito aumenta aceleradamente. Esta maior demanda tanto por bens de consumo da parte dos consumidores quanto por bens de capital da parte dos empreendedores gera três efeitos: a taxa de desemprego cai, os salários aumentam e os preços sobem.

Esta expansão do crédito, que ocorreu por meio da simples criação de dinheiro do nada (tanto pelo Banco Central quanto pelo sistema bancário de reservas fracionárias) e que ocorreu sem que houvesse nenhum aumento na poupança, gera ganhos monetários ilusórios. Como a quantidade de dinheiro na economia cresce a taxas altas, as pessoas passam a ganhar dinheiro com mais facilidades. Elas genuinamente creem que estão vivendo um momento de prosperidade perene. Elas genuinamente creem que estão mais ricas do que realmente são. Durante este período de expansão do crédito, os preços das ações e dos imóveis disparam, o que atrai vários especuladores para este mercado em busca de ganhos fáceis. As construções e as reformas de imóveis viram febre. Quem está no setor aufere ganhos invejáveis. No entanto, todos os indivíduos, empreendedores e investidores, executivos e trabalhadores, estão apenas consumindo seu capital. 

Em um dado momento, em decorrência de toda essa expansão creditícia e monetária, preços e salários começam a apresentar uma aceleração mais forte. Ato contínuo, o Banco Central eleva os juros para conter esta escalada de preços. Os bancos restringem seus empréstimos. A quantidade de dinheiro na economia passa então a crescer a taxas menores. Com empresas e indivíduos endividados, preços em alta, e uma menor quantidade de dinheiro entrando na economia, gastos e investimentos são reduzidos. Empreendimentos vultosos descobrem que não têm aquela demanda que inicialmente havia sido imaginada. Vários são liquidados. Alguns imóveis ficam inacabados. Recursos escassos — como matérias-primas e materiais de construção — foram desperdiçados. Houve uma destruição de capital. A economia está mais pobre.

Neste momento, o Banco Central pode tentar reativar a economia reduzindo novamente a taxa básica de juros, na esperança de reestimular a atividade econômica. No entanto, dependendo da intensidade com que se deu a expansão econômica anterior, esta medida será inócua. 

A redução da taxa básica de juros durante uma recessão tende a ter seu efeito expansionista frustrado pela incerteza econômica. A incerteza desencoraja novos endividamentos. O temor quanto à duração da recessão pode até mesmo induzir os devedores a reduzir suas dívidas, o que reduzirá o volume de gastos na economia, levando a menores receita para as empresas, dificultando ainda mais sua situação. 

Adicionalmente, em um ambiente de adversidade e incerteza, os credores tendem a elevar os juros cobrados com o intuito de compensar o maior risco agora vigente neste cenário. Enquanto o Banco Central se esforça para reduzir a taxa básica de juros, o mercado pode se opor adotando medidas contrárias, mitigando seus efeitos.

No que mais, uma redução da taxa básica de juros afeta muito pouco os juros cobrados pelos bancos para a concessão de empréstimos. A taxa básica de juros controlada pelo Banco Central é uma taxa de curto prazo e os empréstimos bancários tendem a ser de longo prazo. As expectativas do mercado quanto à inflação futura — as quais podem aumentar em decorrência da postura mais agressiva do Banco Central — constituem um importante componente da formação dos juros cobrados pelos bancos em seus empréstimos. Em épocas inflacionárias, essas expectativas tendem a frustrar as políticas do Banco Central.

Portanto, por mais que o Banco Central tente reativar a economia reduzindo a taxa básica de juros, o mercado pode reagir de maneira oposta, contrariando a intenção dos burocratas. Com empresas e indivíduos endividados e gastando menos, e com um grande volume de capital tendo sido imobilizado em empreendimentos infrutíferos, os prejuízos forçam as empresas a finalmente se reajustarem às novas condições do mercado. É impossível evitar o reajuste.

Uma expansão creditícia inevitavelmente leva a uma recessão. E uma recessão nada mais é do que o período em que o mercado se reajusta, liquidando os investimentos errôneos que foram feitos na época da expansão econômica artificial. Enquanto alguns investimentos são liquidados, outros apenas têm seu valor reduzido. Mas, no final, houve empobrecimento, uma vez que recursos escassos foram desperdiçados em investimentos insustentáveis, para os quais não havia demanda. (Investidores sagazes podem reconhecer os reajustes que estão ocorrendo durante o período da expansão e enriquecer quando chegar a recessão, mas, no geral, a farra do consumo e os investimentos errados reduzirão a riqueza da sociedade).

Uma recessão, em vez de ser evitada, deve ser abraçada, pois é ela quem corrigirá os excessos do boom anterior. O mercado só se reajustará quando os juros puderem ir livremente para seu real valor de mercado, e preços e salários puderem cair para seus valores reais (e não os artificiais estimulados pela expansão do crédito).

Não existem milagres na economia. Não é possível enriquecer toda uma sociedade pela simples manipulação dos juros e pela simples criação de dinheiro. A realidade, cedo ou tarde, sempre irá se impor. E, quando isso ocorrer, políticos e funcionários do Banco Central serão relembrados de que manipular os juros não gera crescimento econômico.

Por: Hans F. Sennholz (1922-2007) foi o primeiro aluno Ph.D de Mises nos Estados Unidos. Ele lecionou economia no Grove City College, de 1956 a 1992, tendo sido contratado assim que chegou. Após ter se aposentado, tornou-se presidente da Foundation for Economic Education, 1992-1997. Foi um scholar adjunto do Mises Institute e, em outubro de 2004, ganhou prêmio Gary G. Schlarbaum por sua defesa vitalícia da liberdade.

Tradução de Leandro Roque

sexta-feira, 8 de março de 2013

DESMISTIFICANDO ALGUNS MITOS SOBRE BANCOS CENTRAIS

O moderno sistema mundial de bancos centrais se sustenta sobre mitos. E, como vários mitos, eles contêm um elemento de verdade que foi distorcido pelo exagero e pelo uso indevido. Em dezembro deste ano, o Banco Central americano, o Federal Reserve — aquela máquina que, ao inundar o mundo de dólares, obriga os bancos centrais de outros países a adotarem a mesma política monetária para evitar valorizações cambiais — fará seu 100º aniversário. A ocasião, portanto, é apropriada para se desfazer alguns mitos persistentes.


O primeiro mito é o de que bancos centrais são intrinsecamente necessários para o funcionamento das economias de mercado. Tanto a teoria quanto a história contrariam e desmentem isso. Peguemos os exemplos dos bancos centrais mais famosos do mundo.

O Federal Reserve só foi criado em 1913, o que significa que durante o período de maior enriquecimento da história americana — 1865 a 1913 — não havia nenhum banco central. Mais ainda: quando foi criado, o Fed não possuía a função de gerenciar a oferta monetária do país. Os EUA ainda operavam sob um padrão-ouro clássico e, sendo assim, não havia necessidade de se ter um banco central para controlar a oferta monetária. O uso do ouro, ou de qualquer outra commodity, como moeda impõe uma limitação natural à criação de dinheiro, limitação essa representada pelo custo de se extrair da natureza quantidades adicionais desta commodity. É apenas quando se adota dinheiro de papel e sem nenhum lastro em commodity (o chamado dinheiro fiduciário), que os bancos centrais adquirem a função de controlar a oferta monetária. E é exatamente este gerenciamento da oferta monetária — que leva a uma criação cíclica de dinheiro — o que gera os ciclos econômicos que fustigam as economias de mercado. 

O Banco Central do Canadá só foi criado em 1935. O sistema bancário canadense passou incólume à Grande Depressão, não registrando nenhuma grande falência bancária. Em contraste, milhares de bancos americanos quebraram, não obstante a existência do Federal Reserve. Essas falências bancárias em larga escala só acabaram porque Franklin Roosevelt decretou feriado bancário e criou o FDIC, o seguro federal para depósitos (o que fez com que as pessoas parassem de retirar seu dinheiro dos bancos). O Fed não deu qualquer contribuição para a estabilidade bancária.

O segundo mito é o de que bancos centrais são necessários como emprestadores de última instância — isto é, para ofertar liquidez em épocas de tensão financeira, quando o mercado de crédito interbancário fica paralisado. As operações de liquidez criadas pelo Federal Reserve logo após o colapso do Lehman Brothers em 2008 vêm sendo usadas como o mais recente exemplo prático desta função. Mas o problema é que este argumento inverte causalidade e efeito.

Walter Bagehot, o eminente jornalista financeiro britânico do século XIX, cunhou a expressão "emprestador de última instância" em seu clássico livro "Lombard Street". Ele disse que esta era uma função essencial do Banco Central da Inglaterra.

No entanto, o contexto em que ele disse isso quase nunca é mencionado. Bagehot sabia que um banco central impunha que todos os bancos concentrassem nele suas reservas, automaticamente fazendo com que ele se transformasse em um emprestador de última instância. Se uma instituição ordena que os bancos repassem a ela parte do dinheiro que foi depositado neles, é óbvio que tal instituição se torna uma "emprestadora de última instância". Mas Bagehot não acreditava que um banco central era inevitável ou mesmo desejável.

Para Bagehot, o "sistema natural" era aquele que "surgiria naturalmente caso o governo não se intrometesse no sistema bancário". Haveria "vários bancos de tamanho semelhante ou pelo menos muito parecidos". Ele descreveu este arranjo como "o sistema de várias reservas", no qual cada banco seria responsável por suas próprias reservas, o que levaria a um sistema bancário mais robusto. No debate atual, o celebrado "emprestador de última instância" de Bagehot é uma solução de eficácia secundária — secundária a um arranjo de bancos operando concorrencialmente em um sistema sem um banco central para protegê-los e socorrê-los.

Após a Guerra Civil, o sistema bancário dos EUA não operou como o "sistema natural" visionado por Bagehot. Regulamentações governamentais concentraram as reservas bancárias nas principais cidades americanas, com o previsível resultado de que a economia americana se tornou sujeita a pânicos e corridas bancárias (as quais eram raras em outros países que também ainda não tinham um banco central), culminando no famoso Pânico de 1907. Em vez de corrigir os problemas do sistema bancário nacional, os legisladores, liderados por um presidente progressista, Woodrow Wilson, criaram um banco central, o Federal Reserve System.

Um terceiro mito é o da independência do banco central. Isso varia de país para país, mas em todos o banco central se submete aos caprichos do governo. Varia apenas a intensidade com que tal sujeição é percebida. Nos EUA, o Federal Reserve é visto como sendo uma entidade independente desde o Acordo de 1951 junto ao Tesouro. Após o acordo, o Fed não mais tinha a obrigação de manter os preços dos títulos do Tesouro (o que significa fixar a taxa de juros). Tal obrigação, oriunda das necessidades fiscais impostas pela Segunda Guerra Mundial, havia impedido o Fed de combater a inflação de preços por meio da elevação dos juros durante a Guerra da Coréia.

Desde 1951 não houve nenhuma alteração relevante no status legal do Fed. Ele atuou de forma independente durante algumas épocas — porém, durante outras, suas ações foram completamente submissas a outros setores do governo.

Durante a década de 1950, quando o presidente do Fed era William McChesney Martin, a inflação se manteve baixa. No entanto, isso pouco teve a ver com Martin. O presidente Dwight Eisenhower era resolutamente contra a inflação, e durante sua gestão o governo federal praticamente não apresentou déficits orçamentários. Quando os presidentes Kennedy e Johnson aceitaram o ativismo fiscal keynesiano, os déficits cresceram. Martin não demonstrou problema algum em acomodar o aumento dos gastos do governo com inflação monetária. Ele não acreditava que a política monetária poderia — ou deveria — operar de forma independente da política fiscal. O resultado foi a primeira contínua inflação de preços da história americana em períodos de paz.

A independência do Fed atingiu seu ponto mais baixo sob a gestão de Arthur Burns. O diário que ele mantinha durante os anos Nixon confirma que a política do Fed havia se tornado totalmente submissa aos objetivos do governo e à campanha à reeleição de Nixon. Como ele escreveu certa vez em seu diário, "Eu estava encarregado de cuidar da política monetária e ele [Nixon] não precisava se preocupar quanto à possibilidade de o Federal Reserve restringir a economia". O resultado desta postura foi a grande inflação da década de 1970.

Paul Volcker, que foi o presidente do Fed de 1979 a 1987, restaurou a reputação anti-inflacionária da instituição. Sua gestão é considerada até hoje o genuíno modelo de independência. E, verdade seja dita, havia vários políticos no legislativo, bem como pessoas fora do governo, que criticavam asperamente sua política de restrição monetária, a qual de fato domou a inflação e estimulou o crescimento econômico americano da década de 1980. Não obstante essas reclamações, Volcker, assim como seu antecessor Martin, tinha o apoio resoluto dos dois presidentes americanos a cujas administrações ele serviu: Jimmy Carter e Ronald Reagan.

Atualmente, é difícil ver algum resquício de independência no comportamento do Fed sob Ben Bernanke. Em 2011, o Fed comprou 77% dos títulos da dívida que foram emitidos pelo Tesouro, um comportamento sem precedentes. Com seu compromisso de manter a taxa básica de juros em praticamente zero durante um longo prazo, Bernanke vinculou a política monetária à política fiscal do governo Obama com o objetivo de inflar artificialmente os preços dos ativos (imóveis e ações) da economia americana. Isso é o oposto do que deve fazer um banco central independente — e denota um Fed ainda mais submisso a um presidente do que ele já havia sido durante a era Burns/Nixon.

A lição de toda esta história é aquilo que chamo de "banco central sem romance", parodiando um famoso artigo escrito pelo Nobel de economia James Buchanan intitulado "Política sem Romance". Um banco central é necessário apenas para uma economia que aceita que o governo detenha o monopólio da produção de papel-moeda fiduciário. E, durante alguns períodos, ele de fato pode se comportar de maneira independente — mas não quando o governo decide incorrer em déficits orçamentários de larga escala, como os atuais que estão ocorrendo nos EUA sob Obama.

Buscar a estabilidade de preços é um objetivo que praticamente todos concordam ser a responsabilidade de um banco central. No entanto, foi exatamente neste objetivo que tanto o Fed quanto vários outros bancos centrais do mundo fracassaram miseravelmente. Desde sua criação em 1913, os preços ao consumidor americano aumentaram 2.240%. 

Se um governo conseguir acabar com seus déficits orçamentários, a estabilidade de preços pode vir a ser um objetivo alcançável para seu banco central. Caso contrário, a existência de um banco central não passa de pura mitologia.

Por: Gerald P. O’Driscoll é membro sênior do Cato Institute e foi vice-presidente da sucursal do Federal Reserve em Dallas.

ATORMENTANDO A HUMANIDADE

Os luditas que não se cansam de atormentar o bem-estar da humanidade 


Há certas ideias econômicas que não apenas são logicamente erradas como também nunca foram confirmadas por nenhum fato histórico. Já se demonstrou por que elas estão erradas há pelo menos 250 anos. No entanto, elas ainda possuem ferrenhos defensores até hoje. E o que é pior: quanto mais se prova que elas não têm nenhuma lógica, mais seu número de defensores aumenta.

Há algo estranho que parece ser inerente à maneira como o homem pensa sobre sua própria riqueza. Há algo que parece persuadi-lo de que tudo aquilo que ele já viu acontecer repetidas vezes em vários países simplesmente não aconteceu. Ou, se claramente aconteceu, não mais continuará acontecendo.

Uma destas ideias é a de que impostos sobre o consumo de bens importados aumentam a riqueza de quase todas as pessoas da sociedade. Esta é a doutrina de que tarifas e cotas de importação impostas pelo governo irão de alguma forma deixar as pessoas mais ricas. Este erro foi refutado definitivamente por um dos maiores filósofos de todos os tempos, David Hume, em 1752. Aproximadamente 25 anos depois, foi refutado em detalhes por Adam Smith, amigo de David Hume, em seu livro clássico A Riqueza das Nações. Não obstante, apesar de haver uma concordância quase universal entre economistas sérios, e apesar dos repetidos sucessos econômicos de países que reduziram suas tarifas e cotas de importação, medida essa que levou a uma crescente prosperidade, ainda existe uma linha dura de pensamento anti-econômico que diz que o governo federal — mas nunca governos estaduais e municipais — deve aumentar os impostos sobre bens importados. Caso contrário, a população do país ficará pobre.

Por mais que se escreva sobre isso, e eu o continuarei fazendo, não tenho a menor ilusão de que os ferrenhos obscurantistas irão algum dia entender que impostos sobre o consumo de mercadorias importadas não tornam uma população mais rica. Algumas pessoas simplesmente não possuem a capacidade intelectual de seguir uma linha de raciocínio econômico. Isso inclui pessoas que acreditam que tarifas e cotas de importação tornam a maioria das pessoas de um país mais ricas.

A mentalidade ludita

Existe outra falácia igualmente sem nenhuma lógica e que é idêntica à falácia dos indivíduos pró-tarifas de importação. Tal falácia também possui vários seguidores. Trata-se da crença de que as máquinas e a automação deixam os trabalhadores mais pobres. Esta crença é frequentemente rotulada de 'filosofia ludita'. Um sujeito chamado Ned Ludd supostamente saiu quebrando máquinas de tear durante um acesso de fúria em 1779. Em 1811, um artigo sobre Ludd foi publicado em um jornal. Isso inspirou várias pessoas a repetirem o feito. Quando então elas saíram quebrando máquinas, elas foram chamadas de luditas.

Quem eram esses agressores? Eram pessoas que até então possuíam empregos altamente bem pagos como fabricantes de determinados bens que atendiam às demandas de pessoas ricas. Era um mercado bem restrito. Com o tempo, essas pessoas foram descobrindo que sua clientela cativa estava diminuindo em decorrência do fato de outros produtores terem passado a utilizar máquinas para produzir em massa esses mesmos bens. Essa produção em massa aumentou a oferta desses bens. Tal aumento da oferta levou a uma redução de preços. Essas pessoas repentinamente descobriram que seu trabalho era caro e pouco produtivo.

Tais pessoas eram membros de uma guilda que por séculos havia utilizado seu poder político em áreas urbanas para adquirir o monopólio de mercados específicos. Elas descobriram que a concorrência de preços trazida pelas máquinas estava reduzindo suas rendas. Em resposta, eles destruíam as máquinas. Em outras palavras, elas utilizavam de violência contra produtores e proprietários de máquinas com o objetivo de manter seu monopólio. Antes, elas utilizavam seu poder político para alcançar este mesmo objetivo.

O termo "sabotador" vem de "sabot", que é sapato em francês. Operários atiravam sapatos nas máquinas com o intuito de destruí-las e, com isso, reduzir a produção de bens altamente específicos. Tal ato era visto pela maioria das pessoas como destrutivo, mas ele claramente trazia benefícios de curto prazo para aqueles que estavam enfrentando a concorrência das máquinas. No final, tudo era apenas mais um dos vários casos de violência contra proprietários e empreendedores.

Atualmente, a maioria das pessoas crê que tais atos de violência são moralmente errados. Elas também acreditam que são economicamente errados. Essa é uma vantagem que temos hoje. Há um número maior de pessoas que começou a entender princípios básicos de economia — no caso, que tudo aquilo que aumenta a oferta de bens, e que também é lucrativo para a pessoa que está aumentando a oferta de bens, é bom para a maioria dos cidadãos desta sociedade.

O problema é que a filosofia dos luditas ainda continua presente entre nós. Hoje, tal filosofia é encontrada mais especificamente naquele que criticam a automação e o uso da robótica. Ainda hoje, há várias pessoas cujo conhecimento econômico sobre a natureza do livre mercado e sua relação com a prosperidade econômica é precário. Tais pessoas são hostis a uso de robôs em todas as áreas de produção. Quero dizer, em quase todas. Curiosamente, elas aceitam a automação e o uso intensivo de máquinas naquelas tradicionais linhas de montagem, as que vêm utilizando robôs há 30 ou 40 anos (como o setor automotivo). Em outras palavras, para casos específicos, estes progressistas se tornam tradicionalistas. Para eles, o mundo de 30 ou 40 anos atrás era bom. Aqueles dias eram muito melhores do que os dias de 100 ou 200 anos atrás.

No entanto, o aumento da produtividade que levou o mundo aos bons tempos de 40 anos atrás foi baseado na adoção de técnicas de produção em massa as quais hoje chamaríamos de automação e robótica. Foi a adoção de máquinas no lugar da mão-de-obra humana, algo que por sua vez se baseou em novos suprimentos de energia, o que permitiu que todo o mundo se tornasse mais rico. Pense nas invenções do século XIX. Pense na ferrovia. Pense na colheitadeira. Pense na máquina de costura. Todas essas invenções substituíram o trabalho manual por equipamentos. Os condutores de charrete perderam a competição contra o motor a vapor, e o mundo ficou em melhor situação por causa disso.

Não importa quantas histórias sejam contadas e quantos exemplos práticos sejam relatados sobre o incremento no padrão de vida do mundo atual em decorrência do aumento do uso de energia e do aumento do uso de máquinas — a mentalidade ludita continua firme e forte entre nós. Há pessoas que continuam afirmando que a automação nós deixará mais pobres. Elas estão dizendo isso há 200 anos.

Aumentos no padrão de vida estão diretamente relacionados a um aumento na quantidade de bens e serviços disponíveis. E isso foi possibilitado pela automação.

Há uma regra fundamental na economia que nunca deve ser ignorada: qualquer coisa que possa ser feita lucrativamente por uma máquina deve ser feita por uma máquina. Por que isso é verdade? Porque a mão-de-obra humana é, de longe, a mais versátil e a mais móvel dentre todos os capitais. As pessoas são capazes de estar sempre aprendendo novas formas de servir seus clientes. Macaco velho realmente aprende novos truques. No entanto, para fazê-lo aprender novos truques, ele tem de enfrentar a realidade: o que quer que ele fazia antes para ganhar a vida pode agora ser feito de maneira mais eficiente e mais barata por uma máquina. Macaco velho pode aprender novos truques, mas a necessidade é a mãe da invenção. Macaco velho prefere fazer truques velhos. E ele prefere ganhar uma renda alta para fazer truques velhos. Mas o progresso econômico não os permitirá continuar auferindo uma renda alta fazendo truques velhos se surgirem novas ferramentas que irão possibilitar que novatos façam esses mesmos truques — e os façam de maneira até melhor — a um preço menor.

A maneira como o Ocidente enriqueceu após 1800 foi por meio do empreendedorismo, da criatividade, da redução do custo da energia (possibilitada por maiores investimentos e maior acumulação de capital) e da invenção de máquinas melhores e mais eficientes. Nós enriquecemos porque fomos capazes de aproveitar a produtividade da natureza, na forma de energia e por meio de equipamentos especializados, e utilizá-la para substituir a valiosa mão-de-obra dos seres humanos, mão-de-obra essa que consequentemente foi liberada para ser utilizada em outros setores, o que permitiu um aumento generalizado da oferta de bens e serviços.

Trabalhadores demitidos

Os luditas sempre afirmam estar falando em nome dos trabalhadores que foram substituídos pelas máquinas e cujos serviços não mais conseguem concorrer em um livre mercado. Os luditas se posicionam a favor do trabalhador demitido como se as necessidades de um trabalhador demitido gozassem de uma maior autoridade moral do que os desejos de consumidores que estão sempre à procura de bens melhores e mais baratos. O ludita parte do princípio de que o livre mercado deve funcionar em benefício do produtor e não em beneficio do consumidor.

Essa é a lógica da guilda. É a lógica de uma pessoa que não mais é capaz de competir com a produtividade de máquinas que podem operar dia e noite lucrativamente, com interrupções apenas ocasionais para manutenção. Sempre que for lucrativo para o empreendedor substituir um ser humano por uma máquina, a conclusão é uma só: os consumidores estão sendo mais bem servidos pela máquina. Quem diz isso? Os próprios consumidores. São eles que compram os produtos das máquinas. São eles que, ao propiciarem lucros para o empreendedor, mostram para ele que sua decisão foi acertada.

Por que deveríamos criticar consumidores em nome do operário dispensado, uma vez que o operário dispensado pode agora servir diferentes consumidores e produzir diferentes serviços, sendo que estes serviços são exatamente aqueles que estão sendo demandados pelos consumidores? Por que temos de defender o estilo de vida do operário que não mais é capaz de concorrer com uma máquina inanimada, em detrimento do consumidor?

Seguidas vezes, os suspeitos de sempre dizem que a automação deixará a sociedade mais pobre como um todo. Eles dizem que ficaremos mais pobres como nação ou como civilização porque haverá um constante fluxo de novos equipamentos que irão aumentar a produtividade dos produtores. 

Sempre que alguém se aproximar de você dizendo que o livre mercado nos deixará mais pobres, comece a procurar os reais objetivos desta pessoa. Pesquise quem são as pessoas que ele representa. Pesquise em nome de quem ele está falando. Siga o dinheiro. Se sua investigação não gerar nenhum resultado interessante, rastreie a ideia até suas origens. Pode estar certo de que não se trata de uma ideia nova. Pode estar certo de que outra pessoa, uma década ou um século atrás, surgiu com esse mesmo argumento. E defendendo os interesses de alguém mais poderoso.

Então o livre mercado nos deixará mais pobres. Por quê? Porque ele permitirá que pessoas criativas sirvam seus consumidores de maneira mais completa e mais eficaz. Isso é um perigo para produtores relaxados ou defasados que não são capazes de concorrer com novos métodos de produção. O ludita sempre falará em nome do produtor, e especificamente do produtor desalojado, que não é capaz de concorrer de maneira eficaz. Ele nunca falará em nome do consumidor, que é em sua maioria formada por pessoas mais pobres que o produtor. 

Avaliamos a riqueza per capita por meio daquilo que somos capazes de comprar; e quando podemos comprar mais coisas com nossa renda, estamos mais ricos. No entanto, os luditas entre nós alegam que, na condição de consumidores, estamos iludidos. Estamos tomando decisões de curto prazo quando compramos coisas mais baratas. Estamos julgando nossa situação econômica exclusivamente por meio do que podemos comprar. Eles nos dizem que deveríamos tomar nossas decisões que impeçam novos métodos de produção de serem implantados, pois estes novos métodos irão aumentar nossa renda real (poder de compra). Eles nos dizem que o aumento da renda real é um passivo terrível. O aumento da renda real nos deixará mais pobres. Com este raciocínio, os luditas agitam contra a adoção de catracas eletrônicas em ônibus e contra a substituição de condutores de metrôs por máquinas que fazem o mesmo serviço.

A mentalidade ludita é impermeável à lógica econômica. É impermeável ao entendimento da história. Para um ludita, o livre mercado age contra os verdadeiros interesses dos consumidores. Ao redor de todo o mundo, os consumidores, desde 1980, aumentaram suas aquisições de bens e serviços. Por quê? Porque, dado que consumidores também são produtores, eles aumentaram a oferta de bens e serviços. A oferta criou demanda. A única maneira de alguém poder ir ao mercado e comprar bens e serviços é tendo anteriormente produzido bens e serviços. E a única maneira de se adquirir algo sem antes ter ofertado algo é fazendo com que políticos tributem pessoas produtivas e transfiram o dinheiro para grupos de interesse. Em todo caso, sem uma produção anterior, não pode haver nova demanda. Falando de outra forma, "Você não pode conseguir algo em troca de nada".

O raciocínio ludita se baseia nesta suposição: indivíduos que agem segundo seus próprios interesses, comprando bens e serviços de baixo custo, estão atuando contra os interesses do país. Este era o argumento dos mercantilistas do final do século XVII. Este foi o argumento que Adam Smith criticou em A Riqueza das Nações. Esta é a essência de todos os sistemas que recorrem à interferência estatal na economia. O argumento afirma que políticos sabem melhor do que todos os cidadãos o que é bom para o país. O argumento diz que consumidores, que agem individualmente em busca de seus próprios desejos da maneira menos cara possível, estão totalmente desorientados e equivocados. Enquanto indivíduos, eles estão tomando decisões que solapam sua própria riqueza. Essa é a essência do argumento coletivista. Essa é a essência do keynesianismo. Essa é a essência de todas as formas de intervencionismo estatal.

O argumento diz que indivíduos, na condição de tomadores de decisões responsáveis pela administração de sua própria riqueza, estão cegos em relação ao que é realmente bom para a sociedade. Em outras palavras, o livre mercado, ao permitir que indivíduos possuam esse tipo de autoridade independente, leva a uma situação em que a vasta maioria das pessoas fica em uma situação pior. Em suma, a liberdade econômica é autodestrutiva.

Conclusão

Sempre haverá políticos que recebem doações de alguma guilda de produtores e trabalhadores prestes a serem desalojados pela concorrência das máquinas. Tais pessoas querem fechar o mercado para si próprias, e estão dispostas a pedir que o governo envie homens com armas e distintivos para impedir que empreendedores eficientes satisfaçam os desejos de consumidores.

A mais séria ameaça, no entanto, é intelectual. É o raciocínio ludita, presente na academia e na mídia, que solapa a esperança das pessoas no futuro. Se o livre mercado é autodestrutivo, pois a busca individual pelo interesse próprio é destrutiva para a nossa renda real, então não podemos confiar na liberdade. Não podemos também nutrir nenhuma esperança legítima em relação ao futuro. Dois séculos de liberdade econômica enriqueceram o mundo de uma maneira que era totalmente inimaginável em 1800; mas isso não pode continuar, dizem os luditas. A liberdade econômica não mais irá produzir uma cornucópia. Por que não? Porque a busca individual pelo interesse próprio, feita de maneira voluntária e sem nenhuma coerção, é, segundo os coletivistas, uma cilada e uma ilusão.

Conclusão: precisamos de mais funcionários públicos com armas e distintivos para restringir o empreendedorismo e a busca pelo interesse próprio. Em suma, precisamos de mais governo para suprimir nossos desejos de melhorarmos de vida. Isso nos deixará em melhor situação.

Quem são os iludidos?

Por: Gary North , ex-membro adjunto do Mises Institute, é o autor de vários livros sobre economia, ética e história. Visite seuwebsite.

quinta-feira, 7 de março de 2013

CONFLITOS CULTURAIS

Uma maneira efetiva de evitar os conflitos culturais e sociais inerentes à democracia atual


Em seu livro From Dawn to Decadence, lançado em 2001, o historiador Jacques Barzun afirmou que o separatismo seria uma "forte tendência" do século XXI. Ele forneceu vários exemplos ilustrando que "a maior criação política do Ocidente, o estado-nação, estava seriamente afetada."

Entre outros exemplos, Barzun citou os esforços dos bascos e dos alsacianos por uma maior independência em relação à França; o desejo de independência da Córsega; as guerras civis na Irlanda do Norte, na Argélia e no Líbano; os espanhóis bascos lutando para se separar da Espanha; o colapso da União Soviética em vários territórios menores e os problemas da Rússia com a Chechênia; as brigas dos governos turcos e iraquianos com os separatistas kurdos; os zapatistas rebeldes do México; as demandas periódicas de Quebec por mais autonomia em relação ao governo canadense; e os conflitos étnicos e religiosos nos Bálcãs. Com efeito, ao redor de todo o mundo, encontramos evidências de estados-nação sendo fragilizados e se debatendo contra movimentos separatistas.

Nos EUA, a força de tais movimentos nunca esteve tão evidente quanto atualmente. Foi possível testemunhar a divisão do país durante a última eleição presidencial, na qual os densos conglomerados urbanos da região leste se contrapuseram às amplas comunidades do centro e do meio-oeste do país. Vários movimentos separatistas estão aflorando no Texas. O que antes se manifestava timidamente, hoje já se mostra mais explicitamente. A eleição americana simplesmente salientou todas as diferenças políticas profundamente incompatíveis em relação a uma ampla gama de questões.

Em termos globais, embora haja forças neutralizantes que visam a contrabalançar tendências separatistas — por exemplo, os esforços de entidades governamentais internacionais como a União Europeia ou as Nações Unidas —, estas forças conseguem no máximo mascarar toda a turbulência inerente a um arranjo que tenta forçosamente integrar pessoas com visões políticas conflitantes. 

A questão é que, assim como a intervenção estatal na economia faz com que capital e outros recursos escassos sejam investidos de forma errônea e insustentável, a intervenção estatal em outros aspectos sociais de nossas vidas também gera fissuras políticas e cria relações antagonistas entre vários grupos distintos, uma vez que cada grupo almeja objetivos diferentes e muitas vezes contraditórios. Seria correto dizer que a intervenção estatal em nossas vidas cria uma situação exatamente igual àquela descrita por Auberon Herbert no final do século XIX:



Sob uma organização política centralizada, você forçosamente mistura todos os tipos de indivíduos, os semelhantes e os completamente opostos, e os obriga a atuar e a falar por meio de um mesmo representante político.

As consequências desta mistura não-natural já eram nítidas àquela época. Atualmente, as subdivisões dentro da sociedade aumentaram. Além do eterno conflito entre pagadores de impostos e consumidores de impostos, há agora também o novo conflito entre os "cidadãos opressores" e os vários grupos vitimistas, que se autodenominam 'minorias oprimidas'. Não importa o que um cidadão faça ou como ele aja: suas características étnicas e raciais, bem como suas preferências sexuais e ideológicas irão automaticamente classificá-lo em um destes dois grupos. No final, tudo se resume ao mesmo objetivo: um grupo querendo viver à custa do outro; um grupo querendo confiscar a renda do outro; um grupo querendo tolher a liberdade do outro em prol de seus "direitos".

É evidente que até mesmo o mais justo, imparcial e ponderado indivíduo irá inevitavelmente se tornar intolerante se você colocá-lo em uma situação na qual ele possui apenas duas opções desagradáveis: devorar ou ser devorado. 

Como fazer com que volte a ser possível que um indivíduo mantenha suas convicções e ainda assim seja completamente tolerante a tudo o que seu vizinho diz ou faz? E como fazer com que este seu vizinho tenha o mesmo comportamento?

A política cria um arranjo em que, nas palavras do poeta Longfellow, "o homem tem de ser ou a bigorna ou o martelo". Assim, uma vasta máquina política é criada com o intuito de representar uma ampla variedade de interesses, cada qual fazendo de tudo para sobrepujar os interesses dos outros grupos.

À medida que o estado-nação cresce, essa mistura de semelhantes e opostos vai se tornando cada vez mais problemática. Aqueles grupos que possuírem mais conexões políticas irão utilizar o estado para seus interesses próprios, o que inevitavelmente significa a opressão dos grupos opostos. Vai se tornando cada vez mais difícil, se não impossível, reconciliar as diferenças dentro de um mesmo território. O estado-nação se torna um instável composto de pluralidades, incapaz de formar aquela maioria contente que é quem dá a liga à sociedade de um país. É neste solo pantanoso que as sementes do separatismo prosperam.

A ideia de que o tamanho do governo possui limites naturais que não podem ser excedidos — pois isso desencadearia as forças do separatismo — é similar à ideia misesiana de que o socialismo é impossível. A tradição misesiana sempre afirmou que o socialismo é impossível. A incapacidade de um sistema socialista de fazer cálculos econômicos — ou, em outras palavras, sua incapacidade de determinar lucros e prejuízos — torna a economia incapaz de incorrer nos mais básicos processos de produção. Sendo incapaz de racionalmente escolher os meios disponíveis com os quais alcançar os fins desejados, uma economia puramente socialista (isto é, uma na qual o governo é o proprietário dos meios de produção) se dissolveria no mais completo caos.

(A longeva existência da velha União Soviética e de outros países socialistas pode ser explicada pelo fato de que seus planejadores centrais recorriam aos preços de mercado utilizados pelos países capitalistas ao redor do mundo. O experimento soviético também foi mantido vivo pelo vibrante mercado negro que subsistia em paralelo à economia oficial. Ironicamente, o socialismo só conseguiu se manter operante — e muito longe daquele esplendor teórico prometido — por causa da existência daqueles mesmos mercados que os socialistas haviam jurado abolir).

Parece verossímil que, assim como o governo não é capaz de calcular no que tange a recursos econômicos, ele também não é capaz de calcular no que diz respeito a decidir aspectos não-econômicos da vida social dos cidadãos. As diferenças fundamentais entre os vários indivíduos da população fazem com que o problema seja insolúvel; as pessoas sempre serão forçadas a apoiar políticas ou a fazer certas coisas que em outras circunstâncias não apoiariam ou não fariam. Porém, assim como uma economia socialista como a União Soviética tinha seus mercados negros e recorria a pontos de referência nas economias de mercado de todo o mundo, as pessoas coagidas por um estado-nação também podem se organizar e alterar este arranjo, readquirindo algumas liberdades individuais e com isso tornando sua vida mais suportável.

O que é possível fazer? O que pode ser feito quando suas liberdades individuais estão cada vez mais oprimidas, tanto em termos econômicos quanto em termos sociais?

Um arranjo viável e eficaz já no curto prazo é a descentralização. O federalismo pleno. Plena autonomia local em relação ao governo federal. Isso pode não ser fácil de ser alcançado, pois exige organização política, muita persistência e, acima de tudo, uma fatia da população educada nos princípios da liberdade. Trata-se de uma tarefa bastante árdua. O objetivo é simples, mas sua implementação é trabalhosa. No entanto, vale ressaltar, não há outro arranjo que possa ser efetivado em um prazo humanamente suportável. 

Do nosso lado, ajudando a ganhar adeptos para a causa, temos o fato de que a experiência e toda a história intelectual do liberalismo comprovam que um governo descentralizado é o arranjo mais compatível com as aspirações de longo de prazo para a liberdade.

Por que a postura em prol da descentralização? Há vários motivos.

Primeiro: em um arranjo descentralizado, as jurisdições têm de concorrer entre si para atrair residentes e capital. Isso fornece algum incentivo para maiores graus de liberdade, nem que seja porque o despotismo em nível local não é nem popular e nem produtivo. Se os déspotas ainda assim insistirem em ser totalitários, as pessoas e o capital sempre poderão sair dali e ir para outra jurisdição. Por outro lado, se há apenas uma vontade soberana e uma grande máquina burocrática e autoritária para impingir esta vontade, você não tem para onde correr.

Segundo: quanto mais perto estão das pessoas, menos ruins e menos opressoras tendem a ser as leis. E sob estas condições é mais propício haver um genuíno 'poder emanando do povo'. Mesmo que isso não ocorra, pequenas unidades de governo permitem que as pessoas se locomovam de uma jurisdição para outra. Essa concorrência entre jurisdições leva todo o sistema a um maior grau de liberalização. Capital e mão-de-obra irão para as áreas que permitem mais liberdade, uma vez que jurisdições despóticas afugentam riqueza e talento.

Terceiro: o localismo internaliza a corrupção, de modo que ela passa a ser mais rapidamente descoberta e extirpada. Sob esta mesma perspectiva, a corrupção de um governo local pode ser até benigna em comparação à corrupção federal: é mais fácil, tendo uma renda apertada, subornar um guarda que vai lhe dar uma multa de trânsito a subornar todo o DENATRAN.

Quarto: a tirania em nível local minimiza os estragos na mesma intensidade que a tirania em nível macro a maximiza. Se Hitler governasse somente Berlim, Stalin somente Moscou e Franklin Roosevelt somente Washington, os efeitos de suas políticas dementes poderiam ter sido contidos. E isso não é uma consideração meramente utilitarista, pois significa que pessoas más são impedidas de violar os direitos das outras pessoas que estão fora de sua jurisdição.

Quinto: não é possível crer que algum governo utilizará seus poderes para intervir de forma sensata. Gozando de tamanha concentração de poder, governos centralizados irão sempre invocar bons motivos para suas medidas, mesmo que tais motivos sejam uma mera camuflagem para se adquirir ainda mais poder e controle sobre a vida da população. O roteiro típico é mais ou menos assim: o governo se autoconcede um determinado poder para intervir em um arranjo voluntário — por exemplo, nas relações trabalhistas entre empregadores e empregados. Tal medida é imediatamente celebrada pelos progressistas como sendo sensata e necessária. Porém, tão logo este poder é adquirido pelo governo, ele é utilizado para impor legitimidade a todo tipo de planejamento central, impedindo os governos locais de adotar legislações próprias (por exemplo, localidades mais pobres não podem revogar o salário mínimo, o que leva ao desemprego da mão-de-obra menos produtiva).

Sexto: uma pluralidade de formas de governo — uma "separação vertical de poderes" — impede que o governo central acumule poder excessivo. Governos locais são compreensivelmente ciosos e zelosos quanto à sua jurisdição, e tendem a resistir a investidas hostis do governo central. Isso é ótimo. Com efeito, toda a história da liberdade está ligada aos gloriosos resultados gerados por estruturas institucionais concorrentes, sendo que em momento algum se pode confiar a alguma delas o completo controle sobre uma determinada área.

Apenas para deixar claro, tudo isso que foi dito não implica que libertários devem ser agnósticos em relação à questão de como deve ser o governo. As leis devem proteger o indivíduo e sua propriedade contra qualquer tipo de agressão. Este princípio tem de ser seguido em todas as épocas e em todos os lugares. Mas isso não significa que deve haver um único legislador. Para maximizar as chances de que as boas leis prevalecerão sobre as ruins no longo prazo, e impedir tomadas de poder desde cima, é necessário haver uma multiplicidade de formas jurídicas.

Murray Rothbard costumava recorrer a uma ótima frase para resumir esta posição: direitos são universais, mas devem ser impingidos localmente. Esses dois princípios frequentemente estão em conflito. No entanto, se você abrir mão de um deles, estará colocando toda a sua liberdade em risco. Ambos são importantes. Nenhum deve prevalecer sobre o outro. Um governo local que viola direitos é intolerável. Um governo central que governa em nome dos direitos universais é igualmente intolerável. O paraíso seria direitos universais localmente impingidos. Não, isso ainda não existe. Mas é por isso que os libertários existem: para trabalhar em prol deste ideal.

Por fim, existe uma outra forma de descentralização sobre a qual você certamente ouve bastante. Ela é frequentemente defendida por aqueles que vociferam contra todas as formas atuais de globalização, especialmente na forma de corporações multinacionais. Eles reclamam da centralização da vida moderna e sentem nostalgia dos tempos antigos. Eis o problema: esse tipo de centralização que eles lastimam é resultado de decisões voluntárias tomadas no mercado. Trata-se de uma centralização livremente escolhida. Os planos destas pessoas para fazer retroceder essa centralização iriam requerer uma maciça coerção e iriam produzir acentuadas calamidades econômicas.

No que diz respeito a associações voluntárias e economia de mercado, libertários não podem tomar uma decisãoa priori sobre qual seria a melhor maneira de organizar este arranjo. Rothbard defendia corporações multinacionais e o livre comércio global, mas ele também sabia que uma integração excessiva da estrutura de produção é ruim para os negócios. As empresas perdem a capacidade de calcular seus lucros e prejuízos quando elas se tornam responsáveis por grande parte da produção interna de seus próprios bens de capital. No extremo, se uma única empresa fosse a proprietária de todos os meios de produção, ela estaria sujeita ao mesmo tipo de caos calculacional que aflige uma economia socialista. Sua incapacidade de alocar recursos racionalmente rapidamente levaria a prejuízos.

Qual o impacto que esse raciocínio gera sobre a organização de outras instituições da sociedade, como a igreja, a família, as associações civis e os movimentos ideológicos? É melhor a centralização ou a descentralização? A resposta deve ficar por conta da experiência. A Igreja Católica é doutrinariamente centralizada, mas descentralizada administrativamente. A família, entre as gerações, não é centralizada. Os avós estão lá para dar conselhos e serem amados, e não para administrar e dar ordens. Associações civis assumem vários formatos, desde associações nacionais até clubes locais.

Na vida intelectual, precisamos de uma vasta multiplicidade de mecanismos que impeçam a corrupção e a concessão a ideias estatizantes. Mesmo no movimento libertário é necessário haver diversidade e experimentações, e não centralização, comando e controle.

Na gerência de empreendimentos, na organização de ideias e nas ponderações sobre a própria vida, é recomendável ter equilíbrio e temperança. Sendo assim, podemos articular estes dois princípios. Nas questões públicas, precisamos de direitos universais localmente impingidos. Nas questões privadas e econômicas, não precisamos nem de centralização nem de descentralização, mas de equilíbrio e temperança, tentativa e erro. Em minha visão, essas formulações representam o ápice do pensamento virtuoso, das boas leis e da sociedade próspera.

Por: Lew Rockwell é o presidente do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State.  Tradução de Leandro Roque