segunda-feira, 25 de março de 2013

IGUALDADE: O IDEAL DESCONHECIDO


Todos os homens são criados iguais.

Quando Thomas Jefferson, na Declaração de Independência dos EUA, enunciou os princípios filosóficos que fundamentaram a Revolução Americana, este foi o primeiro princípio que ele anunciou. Tal princípio seria a base e a justificativa para todo o resto. Igualdade — e não liberdade, como seria de se esperar.

A versão original da Declaração dava ênfase à importância da igualdade de forma ainda mais percuciente. A versão final e mais conhecida declara:

Consideramos estas verdades como auto-evidentes: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.

Mas o que Jefferson originalmente escreveu foi isso:

Consideramos estas verdades sagradas e inegáveis: que todos os homens são criados iguais e independentes; que desta criação igual resulta que eles possuem direitos inerentes e inalienáveis, dentre os quais estão a preservação da vida e da liberdade, e a busca da felicidade.

Até onde sei, as palavras foram alteradas não por motivos substantivos, mas sim estilísticos. A versão final de fato flui mais suavemente. Porém, a versão original é mais filosoficamente precisa. Em comparação à versão final, em que igualdade e liberdade são apresentados como sendo apenas dois princípios fundamentais — sendo que a relação de um com o outro é vaga e obscura —, na versão original o valor da liberdade é explicitamente formulado como sendo secundário ao valor da igualdade. Mais ainda: é formulado como sendo derivado da igualdade.

No entanto, nós libertários não falamos tão frequentemente, ou tão calorosamente, sobre igualdade. Em vez disso, falamos sobre liberdade; é por isso que nos chamamos de libertários, e não de igualitários. Por outro lado, aqueles que com mais frequência invocam a questão da igualdade nos discursos políticos atuais tendem a ser inimigos dos princípios libertários que nós esposamos. Sendo assim, e tomando por base as palavras de Jefferson, como pode a igualdade ser nosso ideal, se é também o ideal deles?

A resposta está no fato de que é necessário especificar conceitos: igualdade de quê? Igualdade em relação a quê? Nossos oponentes igualitários defendem a igualdade socioeconômica — algumas vezes interpretada como igualdade de oportunidades socioeconômicas, e algumas vezes interpretada como igualdade de resultadossocioeconômicos. (Nos dias de hoje, a diferença entre as duas está cada vez mais obscura, uma vez que a desigualdade de resultados é interpretada como evidência indiscutível da desigualdade de oportunidades). Que tipo de igualdade nós defendemos?

Com alguma frequência, sugere-se que a versão libertária de igualdade refere-se à igualdade legal — isto é, igualdade perante a lei. De fato, é verdade que o ideal de igualdade legal é constantemente invocado por libertários contra vários programas que apresentam uma linhagem socioeconomicamente igualitária (tais como leis trabalhistas e leis antidiscriminação que dão aos empregados, ao mesmo tempo em que negam aos empregadores, o direito de terminar a relação empregador-empregado de acordo com sua vontade).

Porém, uma igualdade legal deste tipo é muito limitada para constituir o ideal libertário. Assim como os igualitários socioeconômicos consideram que a igualdade legal é inadequada porque (na memorável frase de Anatole France) proíbe tanto os ricos quanto os pobres de dormir embaixo de viadutos, os libertários também não ganhariam muitos aplausos caso, por exemplo, ampliassem a injustiça do recrutamento militar obrigatório também para as mulheres — isso seria um avanço em termos de igualdade legal, mas dificilmente um avanço em termos de liberdade. Como disse Murray Rothbard,



A justiça da igualdade de tratamento depende acima de tudo da própria justiça deste tratamento. Suponhamos, por exemplo, que João, com sua comitiva, proponha-se a escravizar um grupo de pessoas. Devemos afirmar que a "justiça" exige que cada um seja escravizado igualmente? E suponhamos que alguém tenha a sorte de escapar. Devemos condenar este fugitivo pelo fato de ele ter se esquivado da 'igualdade de justiça' dada aos seus companheiros?

Similarmente, o conceito de igualdade de liberdade também é incapaz de capturar todo o ideal libertário. Um mundo no qual todos os indivíduos tivessem uma ínfima e idêntica quantia de liberdade não seria um mundo libertário. Podemos falar, como fez Herbert Spencer, sobre uma lei que estipulasse uma liberdade idêntica para todos (Lei de Igual Liberdade), mas tal lei especificaria não apenas a equalização da liberdade, mas também a suamaximização; não é o quesito 'igual' quem efetua o verdadeiro trabalho. A lei da liberdade idêntica trata a igualdade como sendo, na melhor das hipóteses, uma restrição sobre a liberdade máxima, e não a sua base.

Digo "na melhor das hipóteses" porque a liberdade idêntica para todos é uma consequência lógica da liberdade máxima, e não algum tipo de restrição sobre ela. Citando Rothbard novamente:

Caso uma pessoa deseje obrigar todos os homens a comprar um carro, ela pode formular tal objetivo da seguinte maneira: "Todo homem deve comprar um carro", em vez de usar termos como: "Todos os homens devem ter igualdade na compra de um carro". . . . A Lei de Igual Liberdade de Spencer é redundante. Pois, se cada homem tem a liberdade de fazer tudo o que queira, infere-se desta mesma premissa que a liberdade de nenhum outro homem foi infringida ou invadida. . . . O conceito de "igualdade" não tem lugar legítimo na "Lei de Igual Liberdade", podendo ser substituído pelo determinante lógico "todo". A "Lei de Igual Liberdade" poderia muito bem ser renomeada "Lei da Liberdade Total".

Mas se nem a igualdade legal e nem a igualdade de liberdade são suficientes para uma sociedade livre, então em que sentido podemos deduzir que temos o direito à liberdade do mero fato de termos sido criados iguais?

Para obtermos a resposta a esta questão, temos de ir à fonte de Jefferson, John Locke, que nos diz exatamente o que é "igualdade" no sentido libertário: mais especificamente, trata-se de uma condição onde a reciprocidade determina todo o poder e toda a jurisdição, ninguém tendo mais que os outros; evidentemente, seres criados da mesma espécie e da mesma condição, que, desde seu nascimento, desfrutam juntos de todas as vantagens comuns da natureza e do uso das mesmas faculdades, devem ainda ser iguais entre si, sem subordinação ou sujeição. . . .

Em suma, a igualdade de que Locke e Jefferson falam é a igualdade de autoridade: a proibição de qualquer "subordinação ou sujeição" de um indivíduo a outro. Dado que qualquer interferência de A na liberdade de B constitui uma subordinação ou sujeição de B a A, o direito à liberdade advém diretamente da igualdade de "poder e jurisdição". Como explica Locke:

Sendo todos iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens. . . . Dotados de faculdades similares, dividindo tudo em uma única comunidade da natureza, não se pode conceber que exista entre nós uma "hierarquia" que nos autorizaria a nos destruir uns aos outros, como se tivéssemos sido feitos para servir de instrumento às necessidades uns dos outros, da mesma maneira que as ordens inferiores da criação são destinadas a servir de instrumento às nossas.

Esta é uma notável declaração pré-kantiana do princípio de que seres humanos não devem ser tratados como meros meios para a consecução dos fins almejados por outros. (Observe, também, como tanto Locke quanto Jefferson invocam a independência como sendo um corolário de igualdade de autoridade).

Podemos entender agora por que tanto a igualdade socioeconômica quanto a igualdade legal são insuficientes para se chegar ao radicalismo da igualdade lockeana. Nenhuma destas duas formas de igualdade questiona a autoridade daqueles que administram o sistema legal; tais administradores são requeridos meramente para garantir igualdade entre os administrados. Assim, comparada à igualdade legal, a igualdade socioeconômica, não obstante as arrojadas alegações de seus partidários, não representa nenhum desafio adicional ao poder vigente. Ambas as formas de igualdade apelam a esta estrutura de poder para que ela tome determinadas medidas; e, ao fazerem isso, ambas pressupõem — na verdade, pedem por — uma desigualdade de autoridade entre aqueles que administram o arcabouço legal e aqueles que são os administrados.

A versão libertária da igualdade não é limitada desta maneira. Na visão de Locke, igualdade de autoridade significa negar aos administradores do sistema legal — e consequentemente ao próprio sistema legal — quaisquer poderes além daqueles em posse dos indivíduos comuns:

Cabe a cada um, neste estado, assegurar a "execução" da lei da natureza, o que implica que cada um tem o direito de punir os transgressores desta lei com uma severidade tal que venha a impedir sua violação. . . . Pois nesse estado de perfeita igualdade, onde naturalmente não há superioridade ou jurisdição de um sobre o outro, o que um pode fazer para garantir essa lei, todos devem ter o direito de fazê-lo.

A igualdade lockeana envolve não apenas uma igualdade perante os legisladores, os juízes e a polícia, como também, e de maneira ainda mais crucial, uma igualdade junto aos legisladores, juízes e policiais.

Por este critério, Murray Rothbard, em sua defesa do anarcocapitalismo, acaba se revelando um dos mais consistentes e completos teóricos igualitários de nossa era. Sendo ele o autor do ensaio O igualitarismo é uma revolta contra a natureza, Rothbard pode muito bem estar se revirando em seu túmulo ao ouvir tal descrição a respeito de si próprio. Porém, como veremos, aquilo que Ayn Rand costumava dizer sobre o capitalismo — que o capitalismo é um ideal desconhecido — se aplica a fortiori para a igualdade: o conceito de igualdade, propriamente entendido, é também de várias maneiras um ideal desconhecido — desconhecido tanto para seus defensores quanto para seus detratores.

Desde a época de Locke, libertários têm se dividido em dois campos. Alguns, como Rothbard, adotaram a igualdade lockeana como sendo um padrão absoluto para todo e qualquer sistema legal. Outros, seguindo o próprio Locke, consideraram que a igualdade lockeana pura gera uma restrição impraticável sobre um sistema legal. Sendo assim, eles defenderam abrir mão de uma determinada quantidade de igualdade lockeana com o intuito de tornar praticável a proteção legal da igualdade lockeana que restasse.

Minha afinidade está com o primeiro grupo. Da maneira como vejo, os argumentos de Locke para a incompatibilidade da igualdade lockeana com uma ordem legal operante incorrem na falácia da composição ou na falácia da reificação. Por exemplo, da alegação de que todo mundo deveria submeter suas contendas a uma entidade externa, Locke falaciosamente infere que deveria haver uma entidade externa para quem todo mundo submeteria suas contendas. Isso é semelhante a dizer que da afirmação todo mundo gosta de pelo menos um programa de TV, pode-se inferir que existe apenas um programa de TV do qual todo mundo gosta.

No entanto, mesmo que o segundo grupo esteja certo, e de fato fosse necessário abrir mão de uma determinada quantidade de igualdade lockeana com o intuito de proteger o que restasse, ainda assim seria verdade que quaisquer poderes exclusivos do governo que fossem além do que é estritamente necessário para o funcionamento de um sistema legal constituiriam uma injustificável afronta à igualdade humana. Ambos os grupos procuram, de qualquer forma, minimizar qualquer afastamento da igualdade lockeana. Sendo assim, os libertários tradicionalmente direcionam sua ira contra as desigualdades de autoridade que existem entre, de um lado, o cidadão comum, e, do outro, os administradores do sistema legal (bem como os grupos de interesses privados que, por meio de lobbies e contratos, se beneficiam com os privilégios concedidos pelo governo).

A escritora Wendy McElroy pesquisou a interação dentro do movimento feminista de três ideais igualitários distintos: um ideal "convencional" — igualdade perante a lei — e dois ideais mais "radicais" — igualdade socioeconômica, a qual McElroy identifica como sendo um ideal socialista ou marxista, e aquilo que venho chamando de 'igualdade de autoridade', o qual McElroy identifica como sendo um ideal individualista ou libertário:

O significado de igualdade diverge dentro do movimento feminista. Ao longo de grande parte de sua história, o feminismo convencional considerou a igualdade como sendo tratamento igualitário sob as leis vigentes e representação igualitária dentro das instituições vigentes. O objetivo não era mudar o status quo, mas sim ser incluído nele. As feministas mais radicais protestaram dizendo que as leis e as instituições vigentes eram a fonte de todas as injustiças, e, sendo assim, não poderiam ser reformadas. [...] 

Seus conceitos de igualdade refletiam isto. Para o individualista, igualdade era um termo político que se referia à proteção dos direitos individuais; ou seja, proteção da jurisdição moral que todo ser humano possui sobre seu corpo. Para as feministas-socialistas, era um termo sócio-econômico. ... Ao passo que a análise de classe marxista utiliza como ponto de referência a relação de uma determinada classe para com o modo de produção, a análise de classe libertária utiliza como critério a relação de uma determinada classe para com os meios políticos. A sociedade é dividida em duas classes: aqueles que utilizam os meios políticos — que é a força — para adquirir riqueza e poder, e aqueles que utilizam os meios econômicos, os quais requerem interação voluntária. A primeira classe é a classe dominante, que vive à custa do trabalho e da riqueza da outra classe.

De uma perspectiva libertária, os igualitários socioeconômicos acabam se revelando, de forma muito embaraçosa, apologistas da classe dominante.

A resistência libertária a propostas socioeconomicamente igualitárias é ela própria baseada em um ideal igualitário. Isso é algo raramente reconhecido, mas é uma verdade. O único igualitário socioeconômico que sei que reconhece isto é Amartya Sen. Não obstante, Sen é a exceção que comprova a regra. Pois ele também não entendeu o ponto: ele interpreta igualdade libertária com igualdade de liberdade, uma interpretação que já vimos ser inadequada. Eis como Sen vê a questão:

Os pensadores libertários [...] não apenas são vistos como anti-igualitários, como também são considerados anti-igualitários precisamente por causa do seu interesse prioritário na liberdade. ... [E]ste modo de ver a relação entre a igualdade e a liberdade é completamente inadequada. Os libertários devem considerar importante que as pessoas devam ter liberdade. Dado isso, imediatamente surgem perguntas como:quem, quanto, distribuída como, quão igual? Por isso, o problema da igualdade aparece imediatamente como um complemento da afirmação da importância da liberdade. A proposta libertária tem de ser complementada passando-se a caracterizar a distribuição de direitos entre as pessoas envolvidas. Com efeito, as demandas libertárias por mais liberdade tipicamente incluem características importantes de "liberdade igual", por exemplo, a insistência na igual imunidade à interferência de terceiros. ... A liberdade está entre os possíveis campos de aplicação da igualdade, e a igualdade está entre os possíveis padrões de distribuição da liberdade.

A análise de Sen é confusa neste ponto, e por dois motivos. Primeiro, como já vimos, igualdade de liberdade não é um complemento ao valor da liberdade, mas simplesmente advém do ideal de liberdade total. (A incapacidade de Sen de reconhecer isto pode ser devido ao fato de ele pensar a liberdade em termos positivos, como liberdade de fazer isso ou aquilo, em cujo caso a necessidade de se respeitar a liberdade de terceiros seria uma limitação à própria liberdade do indivíduo, desta forma fazendo com que a liberdade para todos seja impossível. Porém, se a liberdade for entendida em termos negativos, ou seja, liberdade de não sofrer interferências coercivas, então a liberdade total para todos é perfeitamente possível). Segundo, Sen trata a liberdade como sendo algo que os libertários valorizam por algum acaso, e à qual subsequentemente aplicam considerações igualitárias — não reconhecendo que a própria liberdade está fundamentada em uma preocupação com a igualdade no sentido lockeano.

Como já dito, o argumento contra legislações socioeconomicamente igualitárias é, por si mesmo, igualitário; tais legislações invariavelmente envolvem a coerciva subordinação ou sujeição de indivíduos dissidentes aos tributos e regulamentações impostos pelas autoridades estatais, e desta forma pressupõem uma desigualdade de autoridade entre governantes e governados. Como escreveu Ludwig Von Mises:

É importante lembrar que intervenção do governo significa sempre ou ação violenta ou ameaça de ação violenta. Os fundos gastos pelo governo em qualquer de suas atividades são obtidos por meio de impostos. E os impostos são pagos porque os contribuintes não se atrevem a desobedecer aos agentes do governo; eles sabem que qualquer desobediência ou resistência seria inútil. Enquanto perdurar esse estado de coisas, o governo tem a possibilidade de arrecadar tanto quanto queira para suas despesas.

Governo é, em última instância, o emprego de homens armados, de policiais, guardas, soldados e carrascos. A característica essencial do governo é a de impingir os seus decretos por meio do espancamento, do encarceramento e do assassinato. Quem pede maior intervenção estatal está, em última análise, pedindo mais coerção e menos liberdade.

Tampouco iria uma versão anarquista de socialismo funcionar melhor; enquanto algumas pessoas detiverem o privilégio de impor políticas redistributivas à força ou pela ameaça da força sobre terceiros que discordam de tal ideia, haverá desigualdade de autoridade entre os repressores e os coagidos, não importando se aqueles que estão praticando a coerção são cidadãos públicos ou indivíduos privados, e independentemente de eles representarem uma maioria ou uma minoria. Tampouco iria uma selva hobbesiana, na qual qualquer um está livre para impor seu desejo sobre todos os outros, representar a igualdade de autoridade. Pois sempre que uma pessoa for bem sucedida em subjugar uma outra, estará havendo uma desigualdade de autoridade.

A selva hobbesiana pode representar uma igual oportunidade de autoridade, mas neste contexto o libertário defende a igualdade de resultados. (Incidentalmente, é por isso que o direito à liberdade é inalienável). Somente o uso defensivo de força é justificável, uma vez que tal uso, em vez de violar, restaura a igualdade de autoridade. Da mesma maneira, uma democracia idealizada, na qual cada cidadão possui a mesma chance de ascender a uma posição de poder político, também representa apenas uma igual oportunidade de autoridade, e não uma igualdade de resultados; sendo assim, seria também uma afronta à igualdade lockeana. Para um libertário, o ditado "qualquer um pode se tornar presidente", se fosse verdadeiro, teria o mesmo sentido de "qualquer um pode ser o próximo a assaltar você."

Desigualdade de autoridade é muito mais ofensivo, do ponto de vista moral, do que a mera desigualdade socioeconômica; logo, sempre que demandas por igualdade socioeconômica entrarem em conflito com demandas por igualdade libertária — algo que geralmente ocorre —, deve-se dar preferência a esta última.

Os igualitários socioeconômicos comprovam — se não por suas palavras, por suas ações — que eles consideram a desigualdade de autoridade um mal maior do que a desigualdade socioeconômica. A maioria dos igualitários socioeconômicos que conheço certamente ficaria mais ultrajada em ser assaltada por um colega do que em saber que tal colega está recebendo um salário maior. Logo, na prática, eles claramente reconhecem qual destas desigualdades é um mal maior. Com efeito, a maioria dos igualitários socioeconômicos conduz suas interações pessoais diárias de acordo com uma escrupulosa aderência a princípios libertários, e espera receber o mesmo tratamento em retorno.

Os igualitários socioeconômicos também dizem que a desigualdade socioeconômica é em si mesma uma forma de desigualdade de autoridade, tendo portanto de ser proibida. Porém, como afirmou Rothbard, esta combinação de ideias é inconsistente:

O indivíduo A recusa-se a realizar uma troca com B. O que devemos dizer ... caso B mostre uma arma e ordene A a realizar a troca? ... B está cometendo violência; não há dúvidas quanto a isso. ... [E]ssa violência tanto é invasiva e, portanto, injusta, ou defensiva, e portanto, justa. Caso adotemos o argumento do "poder econômico", devemos escolher a última postura. Caso o rejeitemos, temos de adotar a primeira. ... O estatista "moderado" não pode logicamente dizer que há "muitas formas" de coerção injustificada. Ele deve escolher uma ou outra, e manifestar-se conforme a postura escolhida. Ou ele deve dizer que há uma única forma de coerção ilegal — a violência física evidente — ou deve dizer que só há uma forma de coerção ilegal: a recusa de se fazer uma troca.

Para expandir este argumento de Rothbard: uma proibição sobre todos — ou mesmo sobre quase todos — os casos de desigualdade lockeana não é consistente com o fato de que tanto a desigualdade socioeconômicaquanto a iniciação de força são formas de desigualdade lockeana, pois um banimento efetivo da desigualdade socioeconômica requer o endosso de uma sistemática iniciação de força em escala maciça. Logo, igualitários socioeconômicos, caso queiram ser consistentes, podem oferecer seu ideal somente como um substituto para a igualdade lockeana, e não como uma extensão dela. (O mesmo ponto se aplica àqueles estatistas que dizem que direitos negativos são muito bons, mas que precisamos também de direitos positivos — como se cada direito positivo acrescentado não significasse um direito negativo removido).

Dada a vasta desigualdade de autoridade entre o aparato estatal e seus súditos — ou seja, dada a vasta desigualdade socioeconômica entre eles —, como é possível que aqueles que se consideram tão dedicados à igualdade humana prontamente se tornem apologistas do estado? Isso é algo que atordoa os libertários. Não dá para entender como é que aqueles que demonstram tamanha sensibilidade em relação a restrições de escolha e a diferenças de poder de barganha, quando estas derivam de fatores de mercado, se tornam tão incrivelmente cegos para as restrições de escolha e os desiguais poderes de barganha gerados pelo braço armado do estado, o qual tem plenos poderes para impingir suas demandas por meio da violência legalizada.

O filósofo chinês do século V a.C., Mo-tzu, certa vez observou que, se alguém é capaz de reconhecer um ato de agressão injusta quando este é perpetrado por um indivíduo contra outro, mas não é capaz de reconhecer a mesma injustiça quando o mesmo ato é perpetrado por um grupo organizado de indivíduos, então tal pessoa deve ter uma mente confusa em relação ao que é certo e ao que é errado. Igualitários socioeconômicos, portanto, devem viver sob algum tipo de confusão mental. Mas por quê?

Um cínico poderia responder dizendo que os igualitários socioeconômicos não são de modo algum confusos; sua suposta devoção à igualdade seria simplesmente um disfarce para se conseguir mais poder, sendo que eles isentam o estado de suas críticas porque planejam algum dia estar em seu comando, ou pelo menos estar em boas relações com quem está no comando. Essa me parece ser uma análise sensata de alguns — mas somente de alguns — igualitários socioeconômicos. A maioria dos igualitários socioeconômicos que conheço pessoalmente é sincera em seu igualitarismo e bem intencionada em seu estatismo.

Não estou com isso querendo dizer que eles são totalmente inocentes; afinal, um estatista inocente seria aquele que dissesse: "Eu reconheço — e quem não reconheceria? — que a coerciva subjugação de indivíduos ao estado por meio da violência legalizada ou da ameaça dela é um grande mal. Mas este mal, infelizmente, é necessário para se prevenir males ainda maiores". Um estatista que assumisse este ponto de vista não poderia se sentir jubiloso em relação ao seu estatismo; ao contrário, ele teria de se comportar com a trágica solenidade de Agamenon, que sacrificou sua filha para salvar a frota.

Igualmente, o inocente estatista dificilmente poderia se permitir chegar a esta lúgubre conclusão sem antes investigar as possíveis alternativas — as quais, para um estatista na academia, teria de envolver pesquisas cuidadosas e tentativas de refutação de (e ele desesperadamente esperaria não conseguir refutar) toda a rica literatura libertária que argumenta que a maioria dos outros males que ele cita pode ser evitada por meios não-estatistas. Por estes critérios, poucos estatistas se qualificam como inocentes. Buscar por alternativas à desigualdade de autoridade seria reconhecer que o estatismo envolve tal desigualdade. Pior ainda: seria reconhecer isso antes de se certificar de que existem alternativas. Isso forçaria o estatista a ter de fazer uma desagradável escolha, a qual ele prefere evitar. Logo, considero o estatismo como sendo, pelo menos na maioria dos casos, um vício moral, e não um mero erro cognitivo, da mesma maneira que o racismo e o sexismo são vícios morais, e não meros erros cognitivos.

Porém — e, novamente, assim como o racismo e o sexismo —, o estatismo é um tipo de vício moral que tende a adentrar a alma por meio do auto-engano, por meio de uma osmose semi-consciente. O estatismo é um tipo de banalidade arendtiana. Não é algo que você abraça por meio da aceitação direta. É uma forma de cegueira espiritual que pode, e de fato consegue, infectar até mesmo aqueles são realmente sinceros e bem intencionados (Não estou aqui sugerindo que libertários são geralmente mais virtuosos do que estatistas. A justiça é apenas uma virtude dentre várias, e o libertarianismo é apenas uma aplicação da justiça; portanto, a única moral autocongratulatória que podemos nos permitir é que somos melhores do que nossos colegas em um aspecto de uma virtude).

Qual forma essa cegueira espiritual assume? De um lado, a ideologia estatista tem de fazer com que a violência do estado se torne invisível. Somente assim a afronta à igualdade que tal ideologia diz representar será encoberta. Assim, estatistas tendem a tratar as ordens governamentais como se fossem feitiçarias, algo que passa diretamente do decreto para o resultado, sem a inconveniência dos meios; dado que, no mundo real, o principal meio empregado pelo governo é a violência — tanto sua ameaça quanto sua efetivação —, encarar os decretos estatais e sua violenta implantação como uma espécie de magia serve para disfarçar tanto a imoralidadequanto a ineficiência do estatismo, uma vez que tal postura simplesmente ignora todo o estrago deixado no caminho entre o decreto e o resultado.

No entanto, por outro lado, a efetividade de decretos governamentais depende exatamente de as pessoas estarem perfeitamente cientes da força que está por trás destes decretos. Sendo assim, o estatismo pode manter sua plausibilidade somente ao implicitamente projetar um tipo de paródia grotesca da doutrina católica da transubstanciação: assim como o pão e o vinho devem ser transformados em sua essência no corpo e no sangue de Cristo para desempenharem seu papel espiritual necessário, ao mesmo tempo em que devem manter a aparência externa de pão e vinho para efetuarem seu papel prático necessário, a violência do estado, para ser justificada, tem de ser transubstanciada em sua essência em uma pacífica feitiçaria, ao mesmo tempo em que, para ser efetiva, deve manter a aparência externa de violência. (Esta sacralização da violência do estado explica como, por exemplo, os defensores do desarmamento se consideram genuínos oponentes da violência ao mesmo tempo em que ameaçam maciça e sistemática violência contra cidadãos pacíficos.)

Porém, ignorar ou mascarar a violência sobre a qual a legislação socioeconômica necessariamente se baseia é aquiescer à injusta subjugação e sujeição que tal violência personifica. É tratar aqueles subjugados e sujeitados como meros meios para os fins almejados por aqueles que fazem a subjugação, e assim pressupor que há uma desigualdade legítima de poder e de jurisdição entre os dois grupos. A repulsa libertária contra tal arrogante pressuposição é ipso facto um impulso igualitário. Aqueles que não sentem nenhuma repulsa não devem esperar que suas credenciais igualitárias não sejam questionadas; eles podem até reverenciar a igualdade na teoria, mas são incapazes de reconhecê-la na prática.

Pois, à medida que passávamos, e contemplávamos a devoção daquelas pessoas, vimos um altar com esta inscrição: PARA O IDEAL DESCONHECIDO. Aquilo que eles ignorantemente veneravam, era aquilo que nós havíamos imposto a eles. Por muito tempo, permitimos que nossos confusos oponentes monopolizassem a bandeira da igualdade. Temos mais direito a ela do que eles. Já passou da hora de tomarmos essa bandeira de volta.

[1] Murray N. Rothbard, Governo e Mercado: a economia da intervenção estatal (Instituto Mises Brasil, 2012), p. 160.[2] Rothbard, Governo e Mercado, p. 233
[3] John Locke, Segundo Tratado sobre o Governo II. 4.
[4] John Locke, Segundo Tratado sobre o Governo II. 6.
[5] John Locke, Segundo Tratado sobre o Governo II. 7.
[6] "Introduction: The Roots of Individualist Feminism in 19th-Century America," pp. 3, 23, in Wendy McElroy, ed., Freedom, Feminism, and the State, 2nd ed. (New York: Holmes & Meier, 1991), pp. 3-26.
[7] Amartya Sen, Inequality Reexamined (Cambridge: Harvard University Press, 1992), pp. 21-23.
[8] Ludwig von Mises, Ação Humana XXVII. 2.
[9] Rothbard, Governo e Mercado, pp. 245-246
[10] Burton Watson, ed. & trans., Mo Tzu: Basic Writings (New York: Columbia University Press, 1963), pp. 50-51.

Roderick T. Long é membro sênior do Ludwig von Mises Institute, professor de filosofia na Universidade de Auburn, Alabama, e autor do livro Reason and Value: Aristotle Versus Rand. Ele preside o Molinari Institute e a Molinari Society.

O IDH E O CONTO DO IMPERADOR SEM ROUPA

Na fábula de Hans Christian Andersen apenas as pessoas inteligentes poderiam ver o tecido especial (que não existia) com o qual se faria a "roupa nova do imperador". Mas sem ser avisada, uma criança notou que o imperador estava sem roupa. Desde a sua criação em 1990, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) tem feito o papel da criança na fábula ao chamar a atenção das sociedades para como elas estão "vestindo-se" com as peças básicas do desenvolvimento humano.


Com a notícia oficial de que o Brasil continua estável no ranking do IDH, parece que o imperador continua vestido, mas uma olhada mais detalhada nos números trazidos pelo IDH e sua nova metodologia sugere pelo menos a existência de três conjuntos de razões para preocupar-nos com a roupa do imperador, mesmo correndo o risco de parecermos pouco inteligentes para a corte.

O primeiro conjunto de razões é sobre a tendência agregada do ranking do Brasil no longo-prazo. Quando comparamos a evolução do IDH desde a sua criação notamos que o Brasil já esteve muito melhor posicionado no ranking, por exemplo 51º em 1990, 58º em 1996 e 63º em 2005. De fato, desde esse último ano, o ranking do Brasil no IDH vem caindo, atingindo o seu ranking mais baixo de toda a história justamente em 2012. Pode-se contra-argumentar que em outros anos não foram incluídos 187 países como em 2012 e 2011 (a média histórica é de 175 países), mas o fato é que a maior parte das inclusões ao longo do tempo foram abaixo do Brasil.

Nos últimos 10 anos, o Peru ultrapassou o Brasil no ranking e em 2012 o Brasil ultrapassou o Equador. Outros países, aparte das quedas da Argentina e Costa Rica, se mantiveram estáveis no ranking, o que não é uma boa notícia para o Brasil: a desaceleração do crescimento do IDH do país é mais significativa do que a de outros países latino-americanos e não se vislumbra possibilidades do Brasil alcançar o IDH de países como Chile, Argentina, Uruguai, Cuba, Panamá, México, Costa Rica e mesmo Venezuela no médio prazo.

Argumentos do tipo "a taxa de crescimento do IDH brasileiro de 1990 a 2012 foi de 24%, maior que a do Chile, Argentina e México" infelizmente ignoram que se considerados outros períodos, por exemplo nos últimos 5 anos, a taxa de crescimento do IDH da Argentina e de outros 7 países latino-americanos é superior a do Brasil. O problema não é que o Brasil não tenha melhorado no longo-prazo, o problema é a desaceleração recente do crescimento do IDH brasileiro, principalmente levando-se em consideração que países como o Brasil na 85º posição deveriam crescer mais do que países como Chile (40º) e Argentina (45º) pela simples razão que têm mais espaço para crescer dentro da escala zero a um do IDH.

O segundo conjunto de razões é sobre as deficiências estruturais que seguem no país, principalmente nas áreas da saúde e da educação. Dentro de um conjunto de 12 países latino-americanos que estão no mesmo grupo de desenvolvimento do Brasil, mais Chile e Argentina, pode-se notar que o Brasil é o país que tem a taxa de expectativa de vida mais baixa de todos. Enquanto vivemos em média 74 anos, pessoas que vivem no Chile vivem 79,3 anos, na Argentina 76,1 anos, no Uruguai 77,2 anos, etc. O Brasil é um dos países latino-americanos onde a distribuição da expectativa de vida é mais desigual, com perdas de 14,4% no IDH-saúde. Também é o país com o pior índice de satisfação com a saúde, com apenas 44% de aprovação. Na educação, temos a maior taxa de abandono do primário (24,3%) e uma das menores taxas de matrícula no terciário (36,1%) dentre os países latino-americanos no mesmo grupo de desenvolvimento. O dados do IDH revelam que enquanto o país não investir pesadamente em saúde e educação, não deve haver evolução relativa no ranking do IDH. Associado ao primeiro conjunto de razões, não deve haver convergência também em relação aos países latino-americanos melhor posicionados no ranking.

O terceiro conjunto de razões é metodológico. Atualmente há muita dificuldade para se entender e interpretar o índice. Existem dois problemas principais que explicam essa dificuldade: o IDH passou a ser calculado em 2010 a partir de "postos variáveis", isto é, com base nos valores máximos e mínimos observáveis anualmente para todos países. Com isso, o valor absoluto per se do IDH deixou de ter valor. É preciso agora um recálculo do índice para que ele possa ser comparado ano a ano. E aí vem o segundo problema. Quando esse recálculo é feito, grande parte da variação do IDH que poderia ser observada esse ano (já que não foi registrada no ano anterior), fica computada no ano contra-factual, ou seja, no ano ajustado, que de fato nunca existiu e nem vai existir. O recálculo do valor absoluto do índice em si não é o problema, mas o do ranking sim. Com isso passa desapercebida a queda do Brasil no ranking do IDH no longo prazo. Por que não dizemos que caímos uma posição no ranking em 2012 e caímos 11 posições em 2011? (parcialmente pela entrada de 7 novos países a frente do Brasil?) Fica o medo talvez de dizermos que o imperador está sem roupa.

Seria injusto qualificar os programas sociais brasileiros de uma "linda roupa" feita com o tecido especial do alfaiate de Christian Andersen. Há muita coisa boa feita no país e elogios são devidos às várias políticas públicas nacionais, principalmente as que se preocupam com as pessoas mais pobres. A questão não parece ser "o quê", mas o "como" dessas políticas, porque vistas sob a ótica do IDH elas têm produzido o impacto do imperador sem roupa. Possivelmente os programas sociais focam demais na renda como critério de seleção e avaliação de impacto dos mesmos. Moral da história: olhe, olhe de novo, olhe de novo, de novo, precisamos da coragem das crianças e do que é dito pelo IDH para que enfrentar o óbvio e para que todos tenhamos um futuro melhor no nosso país. Por: Flavio Comim Valor Econômico

domingo, 24 de março de 2013

UM VÍDEO QUE ILUSTRA O MELHOR ARTIGO JÁ ESCRITO SOBRE O LIVRE MERCADO

O homem é capaz de manejar ferramentas. Com muito treino e dedicação, ele pode ser capaz de manejá-las com total exímio. Ele pode se tornar produtivo e atingir limites que parecem impossíveis para terceiros. 

Mas um homem sozinho não pode fazer muita coisa. Sua qualidade de vida será extremamente baixa caso não haja uma divisão do trabalho, isto é, caso outros indivíduos também dediquem suas habilidades àquilo que sabem fazer melhor. 

Segundo Ludwig von Mises,

Tão logo o trabalho é dividido, a própria divisão passa a exercer uma influência diferenciadora. O fato de o trabalho ser dividido possibilita um maior aperfeiçoamento do talento individual, o que por si só já faz com que a cooperação seja ainda mais produtiva. 

Por meio da cooperação, os homens são capazes de alcançar aquilo que estaria além de suas capacidades enquanto indivíduos; e até mesmo o trabalho que um indivíduo é capaz de realizar sozinho se torna mais produtivo. 

Porém, tudo isto só pode ser entendido em toda a sua complexidade quando as condições que governam o aumento da produtividade sob a cooperação são especificadas com precisão analítica.

E foi justamente visando a analisar toda essa complexidade permitida pela divisão do trabalho, que Leonard E. Read, fundador do instituto Foundation for Economic Education — o primeiro moderno think tank libertário dos EUA —, escreveu em 1958 aquele que é considerado até hoje o melhor e mais sucinto artigo sobre o funcionamento do livre mercado e sobre os milagres operados pela divisão do trabalho: Eu, o lápis.

O artigo mostra por que ninguém é capaz de construir sozinho um objeto tão aparentemente simples quanto um lápis. Um simples lápis é um instrumento tão complexo, que todo o processo de coordenação e cooperação necessário para fabricá-lo está muito além da capacidade de imaginação de um ser humano comum.

Esta constatação foi capaz de persuadir inúmeras pessoas acerca do poder e da criatividade do livre mercado. 

Desde que foi escrito, há mais de meio século, este artigo permanece a pedra no sapato coletivista de keynesianos e marxistas: os primeiros consideram o livre mercado um arranjo ineficiente em termos de produção, um arranjo no qual o governo tem de interferir e regular de modo a direcionar a produção para aqueles setores que os burocratas do governo consideram mais importantes; já os últimos defendem que a produção só será eficiente se o governo for o proprietário de dos meios de produção e dos recursos naturais. O artigo de Read, ao apresentar tanto a teoria quanto a realidade, mostra o quão parvas são as afirmações destas duas ideologias.

Adam Smith tornou-se famoso por apresentar o conceito da mão invisível do mercado, a qual possibilitava a cooperação sem coerção. Já Friedrich Hayek deu ênfase tanto à importância do conhecimento disperso pela sociedade quanto à função do sistema de preços em emitir informações que farão com que os indivíduos façam as coisas desejáveis sem que nenhum comitê central tenha de ditar ordens. Nenhum outro artigo consegue, de maneira tão sucinta, tão persuasiva e tão eficaz, ilustrar o funcionamento prático de todos estes conceitos.

O livre mercado, ao ampliar a divisão do trabalho, ao estimular a destreza, a aptidão e a maestria suprema das pessoas, e ao permitir e estimular a criatividade em larga escala, faz com que todas as civilizações se beneficiem dos esforços de indivíduos. Vemos diariamente os resultados produzidos por estes incentivos. Sentimos diariamente os resultados trazidos pela divisão do trabalho e pela criatividade. Tudo isto está multiplicado por bilhões de participantes. São poucas as pessoas que realmente entendem como este sistema funciona. 

A melhor maneira de entender esta mágica é vendo o vídeo abaixo, que é uma animação do artigo de Read. 

sábado, 23 de março de 2013

O PLANO E O FATO

O que o sr. Frias e seus empregados fingem ignorar é que aquilo que a ditadura quis fazer e não fez é exatamente o que os comunistas já fizeram e que já está em plena vigência neste país.

O caso do “Dicionário Crítico”, que lembrei no artigo “Devotos de um vigarista”, é apenas a figura mais extrema, caricatural e grotesca que o fenômeno assume no Terceiro Mundo, mas ignorar o pensamento do adversário e tampar os ouvidos às objeções são hábitos gerais e infalíveis da intelectualidade esquerdista em toda parte.

Em Thinkers of the New Left (1985), onde examina os principais expoentes de uma escola de pensamento que ainda é a mais influente na esquerda hoje em dia, Roger Scruton observa que nenhum deles jamais deu o menor sinal de querer responder às críticas feitas à teoria marxista por Max Weber, Werner Sombart, F. W. Maitland, Raymond Aron, W. H. Mattlock, Böhm-Bawerk, Popper, Hayek ou von Mises.

Poderia acrescentar Eric Voegelin, Cornelio Fabro, Rosenstock-Huessy, Norman Cohn, Dietrich von Hildebrand, Alain Besançon e uma infinidade de outros autores merecidamente tidos também como clássicos.

No Brasil você não verá nenhum marxista discutindo as objeções de Gilberto Freyre, Mário Ferreira dos Santos, J. O. de Meira Penna, Paulo Mercadante, Antonio Paim, Orlando Tambosi, Ricardo Velez Rodriguez, Gustavo Corção, João Camilo de Oliveira Torres, José Guilherme Merquior.

O marxismo universitário vive e prospera de ignorar a cultura universal das idéias e sonegá-la aos estudantes. Ao mesmo tempo, infunde neles a impressão sedutora e enganosa de que, por terem lido os autores aprovados pelo Partido, são muito cultos.

É a forma mais extrema e radical da incultura organizada, da ignorância obrigatória, da burrice prepotente e intolerante.

Enquanto os anticomunistas de todos os matizes não cessam de analisar e refutar o marxismo, escrevendo milhares de livros a respeito, os marxistas fogem sistematicamente ao debate. Quando não se contentam em baixar sobre os adversários a mais pesada cortina de silêncio, dedicam-se a difamá-los pelas costas, inventando a respeito as histórias mais escabrosas, tratando-os como criminosos, colocando-os em “listas de inimigos” e cumprindo à risca a regra de Lênin: não discutir com o contestador, mas destrui-lo politicamente, socialmente e, se possível, fisicamente.

Que maior prova se poderia exigir de que essas pessoas, que se atribuem o monopólio de todas as virtudes, são as mais perversas, malignas e desprezíveis que já infestaram a profissão intelectual?

A ascensão da escória marxista ao primeiro plano da vida nacional foi e é a causa principal ou única da destruição da cultura superior e do sistema educacional no Brasil.

Com ares de escândalo e indignação, a Folha noticia a descoberta de um plano do governo militar, concebido pelo ministro Alfredo Buzaid nos anos 70, para refrear a infiltração comunista nas universidades e órgãos de mídia. O plano não foi levado a efeito, tanto que a era dos militares foi o período de maior prosperidade da indústria do livro esquerdista no Brasil e a época da conquista da mídia pelos comunistas. Mas o jornal do sr. Frias não perdoa nem a simples idéia. Que horror, que coisa mais tirânica, mais nazista, pensar em impedir o acesso dos comunistas a todas as cátedras, a todas as páginas de jornais, a todos os megafones!

O que o sr. Frias e seus empregados fingem ignorar é que aquilo que a ditadura quis fazer e não fez é exatamente o que os comunistas já fizeram e que já está em plena vigência neste país, com uma amplitude e uma rigidez que ultrapassa tudo o que os militares pudessem ter sonhado em matéria de controle hegemônico dos canais de comunicação e ensino.

As gerações mais novas, que não conheceram o Brasil dos anos 50-60, já nasceram dentro dessa atmosfera, que lhes parece normal, e não notam a diferença. Mas um simples detalhe basta para mostrar o que aconteceu: o ponto de vista cristão-conservador, que era oficialmente o do Estadão, do Globo e parcialmente da própria Folha naquela época, está totalmente excluído, proibido e criminalizado em toda a mídia. Os editoriais escritos pelos srs. Roberto Marinho e Júlio de Mesquita Filho jamais poderiam ser publicados, hoje, nos próprios jornais que esses homens fundaram, onde o máximo que se permite, num espacinho minoritário, é um pouco de liberalismo chocho e inofensivo, quando não a pura crítica de esquerda a algum desmando ou patifaria mais vistosa do governo petista. Se até essa oposição mole e parcial é hoje abertamente condenada como “extremismo de direita”, é notório que a medida geral de aferição mudou, e quem a mudou foi a própria mídia. E se jornais e canais de TV dão alguma cobertura à Sra. Yoani Sanchez, é precisamente porque esta é anticastrista sem ser anticomunista e suas críticas ao governo cubano são brandas e autocensuradas em comparação com as de outros dissidentes, que contam a história inteira. Estes jamais aparecerão no Globoou na Folha. E alguém é capaz de imaginar, hoje em dia, uma novela da Globo defendendo os valores cristãos que eram tão caros ao sr. Roberto Marinho?

Por que uma simples intenção não realizada do governo militar deveria ser considerada mais repugnante e assustadora do que o fato consumado, a mesmíssima intenção realizada em muito maior escala pela esquerda triunfante e dominadora, senhora absoluta das páginas da própria Folha? A simples redação dessa mesma notícia já não revela a inversão de critérios, imposta como norma universal e inquestionável que só loucos e extremistas ousariam contestar? O sr. Frias não sabe ler o seu próprio jornal? Não enxerga que ele mesmo foi, em pessoa, um dos artífices do plano do ministro Buzaid realizado com signo oposto? Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio.

sexta-feira, 22 de março de 2013

A GUERRA DOS GOVERNOS CONTRA O DINHEIRO VIVO CONTINUA


Utilizando as próprias leis de curso forçado contra o estado?

A implacável guerra contra o uso de dinheiro em espécie que está sendo travada por governos ao redor do mundo chegou ao seu ápice na Escandinávia. O pretenso motivo apresentado por nossos soberanos para suprimir o uso do dinheiro em espécie é o de manter a sociedade a salvo de terroristas, sonegadores, lavadores de dinheiro, cartéis de drogas e todos os diversos tipos de vilões, reais ou imaginários. 

Porém, o real objetivo da recente enxurrada de leis que visam a tornar menos convenientes as transações em dinheiro vivo — chegando a limitar ou até mesmo a proibir o uso do dinheiro em vários casos — é o de forçar o público geral a efetuar seus pagamentos por meio do sistema financeiro. Ao ser obrigado a utilizar o sistema financeiro, o público involuntariamente provê amparo ao instável sistema bancário de reservas fracionárias. E, ainda mais importante, tal medida amplia a capacidade dos governos de espionar as mais particulares atividades financeiras de seus cidadãos e a manter o registro de todas elas. 

Um engenhoso amigo da Noruega brigou para proteger seu básico direito de poder utilizar dinheiro em espécie. Ele invocou contra o governo a lei de curso forçado criada pelo próprio governo. Eis a sua história em suas próprias palavras:

Aproximadamente um mês atrás, tive uma consulta médica na repartição municipal de 'serviços de saúde de emergência' (uma instituição estatal).

Após a consulta, pedi para pagar em dinheiro. Fui informado que o caixa estava fechado, que eu receberia uma fatura e que eles normalmente não aceitam dinheiro. Ato contínuo, disse à enfermeira (?) que estava em serviço de que há uma lei de curso forçado da moeda e que esta lei obriga pessoas e empresas a aceitarem pagamento em dinheiro vivo.

Algum tempo depois, quando recebi a fatura, liguei para a seção de contabilidade daquela repartição. Disse à contadora que gostaria de pagar em dinheiro. Ele me disse que isso não era possível. Perguntei se ela estava a par da lei de curso forçado, e citei a legislação específica. Ela então ficou totalmente na defensiva. Ela chegou até a alegar que as questões legais acerca do atual arranjo — o de não aceitar dinheiro — já haviam sido resolvidas pelo governo. Eu disse que apresentaria uma queixa por escrito.

E foi o que fiz. Alguns dias depois, telefonei para saber se a queixa havia sido recebida. Ela confirmou que sim. Agora a contadora estava aparentemente mais interessada em discutir o assunto.

Ontem, recebi a resposta por escrito. Muito gentilmente, os burocratas falaram que abririam uma exceção e que apenas desta vez eu poderia pagar em dinheiro. Mas eu só poderia pagar em dinheiro se levasse a quantia exata. Adicionalmente, fui expressamente informado de que não haveria uma próxima vez. Hoje, fiz o pagamento em dinheiro.

Por que eles cederam? Minha suspeita é que, além de terem entendido que sua justificativa legal não procedia, eles perceberam estavam lidando com alguém que aparentemente não iria desistir, e que abrir uma exceção pontual evitaria o fardo de ter de lidar com alguém que tinha um interesse jurídico formal em desafiar este sistema anti-dinheiro. As alternativas seriam alterar seu sistema voluntariamente ou arcar com o desgaste de uma queixa-crime administrativa — ou, ainda pior, um processo judicial.

É claro que as coisas seriam muito melhores se não fossemos forçados a utilizar esse dinheiro fiduciário de curso forçado. No entanto, era de ser esperar que as instituições governamentais ao menos aceitassem as leis de curso forçado da moeda criadas pelo próprio governo.

A guerra do governo da Suécia contra o dinheiro enfrenta resistência — e há um banco heróico

A guerra contra o dinheiro na Suécia pode estar arrefecendo. O movimento anti-dinheiro tem sido vigorosamente promovido pelos principais bancos comerciais suecos, com o explícito e entusiasmado apoio do Riksbank, o Banco Central da Suécia. Com efeito, dos quatro principais bancos suecos, três não mais estão aceitando pagamento em dinheiro — mais especificamente, de 780 agências, 530 não aceitam pagamento em dinheiro e nem descontam cheques em dinheiro. 

No caso do Nordea Bank, 200 de suas 300 agências operam hoje totalmente sem dinheiro, e três quartos das agências do Swedbank não mais lidam com dinheiro. Como abertamente admitiu Peter Borsos, porta-voz do Swedbank, seu banco está "atuando ativamente para reduzir a [quantidade] de dinheiro vivo na sociedade". 

Essa escalada rumo a uma sociedade sem dinheiro vivo não tem, imagina!, de maneira alguma o objetivo de aditivar os ganhos dos bancos com tarifas de serviço sobre o uso de cartões ou, ainda mais importante, de aliviar o sistema bancário de reservas fracionárias dos riscos e das limitações impostas por saques em dinheiro ou possíveis corridas bancárias.[1] Não, é claro que não. Segundo Borsos, os motivos são a preocupação com o ambiente e com a segurança dos clientes, além da redução dos custos gerais. "Nós emitimos 700 toneladas de dióxido de carbono ao transportamos dinheiro em carros-fortes. Isso custa à sociedade 11 bilhões por ano. E dinheiro vivo estimula assaltos." Hans Jacobson, presidente do Nordea Bank, apresenta um argumento similar: "Nossa missão a fazer as pessoas entenderem que é melhor e mais seguro para elas utilizar cartões em vez de dinheiro".

Felizmente, parece que o povo sueco não está caindo nesta propaganda anti-dinheiro regurgitada por banqueiros e burocratas do Riksbank, e está resistindo à imposição de uma economia sem dinheiro. Foi noticiado que, no ano passado, o valor das transações em dinheiro vivo na Suécia foi de 99 bilhões de coroas, o que representou uma redução apenas marginal em relação a 10 anos atrás. E entre um terço e metade das transações comerciais envolvendo pequenas lojas ocorrem em dinheiro vivo. Adicionalmente, um estudo mensurando a satisfação de clientes bancários publicado em outubro de 2012 pelo Índice de Qualidade sueco indicou que o índice de satisfação caiu entre os clientes do Swedbank, do Nordea e do SEB em decorrência de suas políticas de eliminar transações em dinheiro em suas agências bancárias. Ainda mais animador é o fato de que o Handelsbanken, o maior banco da Suécia, se comprometeu a atender os clientes que exigirem dinheiro vivo. Como disse Kai Jokitulppo, chefe dos serviços privados do Handelsbanken:

Enquanto nossos clientes estiverem demandando dinheiro vivo, é importante que nós continuemos satisfazendo essa demanda. . . . Há localidades em que outros bancos estão tomando outras decisões. A consequência é que estamos ganhando clientes deles, e a resposta destes novos clientes tem sido positiva.

Menos de 10 das 461 agências do Handelsbanken não estão atualmente lidando com dinheiro vivo, mas o objetivo do banco é ter dinheiro em todas as suas agências já no primeiro trimestre de 2013.

A França intensifica sua guerra ao dinheiro

A agência governamental de auditoria da França, Cour des Comptes, informou ao governo francês que estava "sonhando" em prognosticar que a economia francesa cresceria 0,8% em 2013, o que permitiria ao governo alcançar sua meta de ter um déficit orçamentário de apenas 3% do PIB. No entanto, a agência disse ao primeiro-ministro francês Jean-Marc Ayrault que uma taxa de crescimento de 0,3% era o valor mais provável, o qual não será suficiente para satisfazer a meta de redução do déficit orçamentário.

Isso ocorreria não obstante — ou, o que é mais provável, por causa de — um aumento generalizado de impostos ter sido implementado pelo novo governo socialista, aumento esse que objetivava extrair mais €32 bilhões das já sobrecarregadas empresas e famílias francesas. Sendo assim, será que um desesperado Ayrault iria finalmente passar a enxergar a realidade econômica e reduzir o orçamento do burocrático e intumescido governo francês, um orçamento que é generosamente recheado de subsídios corporativos e pacotes de socorro para grandes empresas? De modo algum. Em vez disso, Ayrault convocou uma reunião do Comitê Nacional Anti-Fraude para tomar medidas severas contra sonegadores. Ele próprio presidiu o comitê — "O primeiro a ser presidido por um chefe de governo", exultou ele.

A evasão de impostos na França foi estimada como sendo da ordem de €60 a €80 bilhões anuais. Escondida nesta proposta de severidade contra os sonegadores e de extração de mais receitas de seus "residentes fiscais" — aqueles nativos e estrangeiros que ainda não recorreram ao exílio parcial para fugir dos impostos franceses — está uma draconiana cláusula que pretende reduzir o valor máximo de pagamento que pode ser feito em dinheiro vivo por transação: de €3.000 para €1.000. Sob este novo limite, um cidadão francês não poderia nem mais comprar um carro usado com dinheiro vivo. Tal cláusula, no entanto, não será aplicada àqueles nativos e estrangeiros ricos que foram espertos o bastante para já terem colocado sua renda fora do alcance das garras do voraz estado francês tornando-se residentes fiscais de outros países. Estes estariam sujeitos a um limite de €10.000 por transação em dinheiro vivo (o atual limite é de €15.000 por transação). Esta exceção feita aos que residem em outros países poderia ser chamada de "exceção Depardieu", em homenagem ao ator francês Gerard Depardieu, que recentemente causou frisson ao obter um passaporte russo com o intuito de tirar proveito da alíquota única de imposto de renda da Rússia, de 13%.

Um comentarista, utilizando de grande discernimento, resumiu bem o inextricável elo entre a guerra contra o dinheiro vivo e a guerra às liberdades pessoais:

Com esta lei, o governo francês poderá novamente apertar o cerco sobre seus cidadãos, restringindo sua liberdade de escolha (a maneira como irão efetuar seus pagamentos), abolindo qualquer privacidade nestas transações, e criando mais um nível de controle governamental. Tão logo as pessoas se acostumem ao novo limite de €1.000 — baseando-se no princípio do incrementalismo com que restrições à liberdade são implementadas nas democracias —, o cerco será apertado novamente e com ainda mais intensidade, até que o governo finalmente seja capaz de documentar todas as compras feitas por "residentes fiscais", pois tudo será feito eletronicamente. 

Sacar dinheiro dos bancos e não depositá-lo novamente é um instrumento poderosíssimo para abalar um sistema bancário de reservas fracionárias. Ver mais detalhes aqui.

Por: Joseph Salerno  vice-presidente acadêmico do Mises Institute, professor de economia da Pace University, e editor do periódico Quarterly Journal of Austrian Economics.

Tradução de Leandro Roque

quinta-feira, 21 de março de 2013

MEC AVALIZA ANALFABETISMO

Redações que receberam nota máxima na avaliação do Enem 2012 (Exame Nacional do Ensino Médio) tinham erros de ortografia, como "rasoavel", "enchergar" e "trousse", informou o jornal carioca O Globo. As "melhores" redações do Enem têm erros de ortografia, concordância verbal, acentuação e pontuação. Estes textos tiveram a nota máxima - 1000 - na avaliação do MEC (Ministério da Educação). Os textos recebidos tinham problemas de acentuação em palavras como indivíduo, saúde, geográfica e necessário, além de algumas frases não terem ponto final. 


Em uma das redações analisadas, o candidato erra duas vezes a concordância. Escreve, por exemplo, "essas providências, no entanto, não deve (sic) ser expulsão". O estudante conjuga ainda o verbo haver, no sentido de existir, no plural: "É fundamental que hajam (sic) debates".

Para o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), uma redação nota máxima pode apresentar alguns desvios nas competências avaliadas. Segundo a nota enviada ao jornal, "um texto pode apresentar eventuais erros de grafia, mas pode ser rico em sua organização sintática, revelando um excelente domínio das estruturas da língua portuguesa".

E ainda há quem se espante. Na Universidade Federal de Santa Catarina, encontrei meninas em final de curso que grafavam “eu poço”. Professor algum as reprovava. Eu as reprovei. A crise surgiu quando reprovei a sobrinha de um deputado. Nossa! Veio o departamento todo em cima de mim, mais o grêmio de alunos e inclusive a reitoria. Havia uma conspiração toda para aprovar uma analfabeta, só porque era sobrinha de um deputado. Mais tarde, só bem mais tarde, fui saber que já haviam sido emitidos trezentos convites para sua festa de formatura. Seria a festa do ano em Florianópolis. Não foi.

Tive não poucas alunas em final de curso cometendo esse tipo de erro. Não tinham condições sequer de entrar na universidade e estavam prestes a dela sair, aptas para o magistério. Que se pode esperar de tal ensino? A universidade quer clientela e escancara generosamente suas portas.

Leitores estão perplexos com os alunos do ENEM. Nos anos 80, quem estava perplexo era eu, com minhas quartanistas. Mas como exigir conhecimento do vernáculo de alunos, quando jornalistas – profissionais que lidam com a palavra – já não conseguem mais distinguir o L do U? Não passa dia em que não encontremos, nos jornais, mal por mau e vice-versa. Isso sem falar no infame “confraternizar-se”, que parece estar virando norma.

Sob a rubrica “Nossa imprensa desvairada”, tenho denunciado as barbaridades que eventualmente me caem em mãos. Outro dia, encontrei no UOL esta beleza: miquitórios. Veja tem sido mais o veículo mais imune ao analfabetismo. Mesmo assim, em uma edição on line de 2010, encontrei artigo em que o redator grafa pelo menos oito vezes “a enfisema”. É o moderno cacoete de achar que palavra que termina em A é sempre do gênero feminino. Ainda na UFSC, encontrei alunas que falavam em “a esperma”.

Não bastasse isso, a peste já está contaminando a pós-grad. Comentei outro dia artigo da CartaCapital, de autoria do Dr. Leonardo Massud, que se assinava como advogado criminal, professor de Direito Penal da PUC-SP, mestre e doutorando pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, autor do livro “Da Pena e Sua Fixação: Finalidades, circunstâncias e apontamentos para o fim do mínimo legal”. E que no entanto grafava “mal vizinho”, “mal pagador”.

A mais curiosa pérola, no entanto, não foram erros de grafia. E sim o de um aluno que, numa redação sobre imigração no Brasil no século XXI, lá pelas tantas escreveu uma receita de miojo.

Nos dois primeiros parágrafos, o concorrente discorre normalmente sobre o tema em questão. No entanto, entra no próximo período descrevendo um "passo a passo" para cozinhar o alimento. Ele escreve: "Para não ficar muito cansativo, vou agora ensinar a fazer um belo miojo, ferva trezentos ml’s de água em uma panela, quando estiver fervendo, coloque o miojo, espere cozinhar por três minutos, retire o miojo do fogão, misture bem e sirva".

Após o trecho, ele retoma os movimentos imigratórios e encerra o texto de forma adequada. Teve 560 pontos. A meu ver, os examinadores foram mesquinhos. Minha nota seria a máxima, 1000. O aluno demonstrou senso de humor. Ou talvez tenha pretendido encher lingüiça para completar o número de linhas exigido. Sem falar que o Vladimir Safatle ou o Tarso Genro em muito tornariam seus artigos mais inteligíveis se, cá e lá, intercalassem uma receita não digo de miojo, mas talvez de churrasco ou tutu.

Outro aluno, de São José do Rio Preto, no interior paulista, escreveu o hino do Palmeiras inteiro. E tirou 500 – quase metade (48,4%) dos inscritos não conseguiram esse desempenho em 2012. O texto, postado em sua página no Facebook, ainda tem palavras grafadas de maneira errada – como “hostenta”. Nesta altura, o problema não é mais dos alunos, mas dos corretores. Devem estar lendo as provas em diagonal, ou nem mesmo lendo.

Fiz brincadeira semelhante em meus dias de faculdade. Em meu vestibular, na prova de francês, sei lá a propósito de quê, escrevi: “Où est la vraie beauté? Dans le mugir d’un boeuf ou dans le sourire d’un enfant?” Passou. Mais tarde, na disciplina de História da Filosofia, dissertando sobre a enteléquia aristotélica, acrescentei sem mais nem menos ao final de um período: “azar, azeite, azia”. Eu desconfiava que o professor não lia os trabalhos e queria testá-lo. Não deu outra. O professor não tugiu nem mugiu.

A propósito, quem conhece hoje esta expressão. Nem os lexicógrafos, ao que parece. No portal eletrônico “Nossa Língua Portuguesa”, encontro: “No momento não dispomos de definição para a palavra sem tugir nem mugir. Ou a grafia está incorreta ou essa palavra ainda não consta em nossos bancos de dados”. 

Quando o dicionário Houaiss aceita a forma “adéqua” na conjugação de adequar, que se pode esperar de um aluno que faz o ENEM? Se o latim corrompido gerou a última flor do Lácio, qualquer dia o brasileiro ainda gera uma nova língua. Por: Janer Cristaldo

A FEMINIZAÇÃO DA SOCIEDADE NAS CAMADAS MAIS BAIXAS DO MERCADO DE TRABALHO

Crianças pequenas tendem a se comportar de maneiras distintas de acordo com seu sexo. Meninos pequenos são irrequietos e se aborrecem com mais facilidade. Meninas pequenas são mais dóceis e conseguem ficar muito tempo sentadas de forma quieta. Ficar quieto quando se está há muito tempo sentado não é uma característica masculina. É algo que requer disciplina e que deve ser infundido em uma criança.


Homens não tendem a se afiliar a igrejas tanto quanto mulheres. Creio que isso tem a ver com o requerimento de ter de ficar sentado durante um culto. Um culto religioso baseia-se em pregações e em ficar sentado durante um bom tempo. E, dado que homens devem ficar sentados em uma igreja, o sermão tem de ser bom para fazer com que homens fiquem sentados quietos durante muito tempo.

E fora das igrejas?

Há algumas áreas da vida em que as mulheres têm claras vantagens sobre os homens. Obviamente, a maior delas é na criação de filhos.

O surgimento de ferramentas e máquinas altamente especializadas possibilitou às mulheres efetuarem certos tipos de trabalho que elas não eram aptas a realizar antes do desenvolvimento destas tecnologias. Mulheres não possuem vantagem em relação a homens no que diz respeito a cortar lenha. Mas elas certamente são tão bem capacitadas quanto os homens para apertar um interruptor. Homens não têm vantagem nesta área. Sendo assim, naqueles trabalhos em que apertar botões substituiu o corte de lenha, seria ingenuidade imaginar que as mulheres ficariam de fora desta área por muito tempo.

Capitalização e urbanização

Com a ascensão da economia de mercado, e especialmente com o aumento dos investimentos em máquinas e bens de capital, o mundo deixou de ser uma economia majoritariamente rural e se transformou em uma economia baseada em grandes conglomerados urbanos. Isso começou ainda em 1820 na Grã-Bretanha e nos EUA. Esta mudança marcou o advento de uma era totalmente nova na história humana, uma era em que o crescimento econômico passou a se dar a uma taxa de aproximadamente 2% ao ano. Isso nunca havia acontecido até então.

Quando os homens saíram do meio rural para trabalhar nas fábricas, a educação das crianças — mais especificamente, dos meninos — passou a ser tarefa das esposas. Antes, os homens levavam seus filhos para os campos para ensinar a eles o básico sobre a vida, bem como os detalhes da agricultura. A divisão do trabalho dentro da família era clara. As mães ensinavam as filhas a serem esposas e mães; os homens ensinavam os filhos a serem maridos e pais. Esta divisão do trabalho foi a base de todas as sociedades desde o início da história escrita.

E então, em um período de apenas 50 anos, tudo isso mudou para milhões de pessoas. A ordem social não se ajustou de forma rápida o bastante — ou da forma sistemática como deveria — para permitir que os novos papeis dentro da família fossem distribuídos de uma forma que ao menos se assemelhasse àquele padrão familiar vigente há milênios. Tradições são resilientes, não morrem facilmente. Uma mudança cultural e comportamental leva tempo para se impor.

No século XIX, a educação não apenas deixou de ser um sistema dominado por homens e voltado para os meninos, como passou a ser dominado por mulheres. Esse arranjo prepondera até os dias de hoje no ensino básico e no ensino fundamental.

Como isso ocorreu? Uma resposta: salários baixos.

Mulheres jovens e solteiras — e, em alguns casos, casadas — se mostraram dispostas a lecionar nas escolas locais em troca de baixos salários. De meados do século XIX até os dias atuais, as mulheres se tornaram dominantes no sistema de ensino escolar, desde a educação básica até a oitava série. Consequentemente, os padrões do que se entende por 'bom ensino' e 'bom aprendizado' foram feminizados. O sistema educacional básico passou a ser mais voltado para meninas. Essa pedagogia se tornou o padrão dominante em todo o Ocidente. Houve uma feminização do ensino no Ocidente. Meninos se contorcem; meninas ficam quietas. Aí jaz a diferença básica na educação formal. As mulheres determinam as regras.

Na realidade, essa mudança de padrões começou a ocorrer ainda antes de ser adotada nas escolas. Ela ocorreu primeiro na família. Só depois ela se difundiu para o sistema escolar. Todo o processo tem a ver com a oferta competitiva de mão-de-obra. As fábricas costumavam utilizar a mão-de-obra de homens ou de mulheres solteiras. Em alguns casos, costumava-se incluir crianças. Mas não se utilizava mulheres com filhos pequenos. Estas tinham de ficar fora do sistema fabril, o que significava que elas agora estariam no comando da educação dos filhos homens. Os pais desapareciam do lar durante pelo menos 12 horas por dia. Isso representou uma fratura radical na história da humanidade. 

Os homens começaram a ganhar proeminência no sistema educacional apenas no ensino médio. E, não fosse a imposição de leis e a criação de programas federais nos EUA (como a agência Equal Opportunities Employment Commission), que viriam a ser copiados pelo resto do mundo, os homens ainda estariam dominando o ensino universitário. Nas ciências naturais, eles ainda dominam. Esta é uma área em que as mulheres ainda estão excluídas pelas forças do mercado. Elas não vão para as ciências naturais, e nem todas as lamúrias e reclamações dos progressistas podem mudar esse fato.

David Rothkopf, presidente da Garten Rothkopf, empresa internacional especializada em estudar tendências globais, afirmou que, dentre as aproximadamente 6.000 pessoas que constituem a superclasse internacional, apenas 6% são mulheres. Ele diz que este é o mais importante processo discriminatório do mundo. Quanto ao porquê de ele existir, eu não sei. Sei apenas o seguinte: ele de fato existe. Pode ter algo a ver com capacidade inata. Pode ter algo a ver com o fato de que mulheres geralmente não gostam de trabalhar para outras mulheres. Pode ter algo a ver com a incompatibilidade entre criar filhos e ter um desempenho de alto nível em termos de gerar grandes volumes de receita ou de fazer grandes contribuições para a mídia, para a filosofia, e na academia em geral.

Há algumas coisas que realmente sabemos. Há certas áreas em que as mulheres não competem bem. Uma delas é no xadrez. Outra é em matemática de nível complexo. Mas talvez a mais óbvia da história ocidental seja teologia. Não há uma única teóloga digna de nota na história da Igreja. Isso não tem nada a ver com discriminação. Qualquer mulher pode escrever um livro sobre teologia. Beth Moore [evangelista americana] parece escrever um livro por mês voltado para mulheres religiosas. Mas ela não é teóloga.

A feminização da educação ocorreu nos países protestantes. Mas mesmo no caso dos países católicos, as freiras dominam o sistema educacional até pelo menos o ensino fundamental, e possivelmente até o final do ensino médio.

Tudo está relacionado à propensão de se trabalhar em troca de salários extremamente baixos. Em regra, as famílias não estão dispostas a pagar muito caro pela educação de seus filhos. Isso significa que as mulheres, por normalmente estarem mais dispostas a trabalhar em troca de salários menores, serão a mão-de-obra predominante nas escolas que não cobram mensalidades caras. Por estarem dispostas a ofertar serviços educacionais a preços menores, as mulheres contínua e universalmente ganharam a batalha neste setor. É somente para aqueles pais que estão dispostos a pagar muito caro pelo ensino de seus filhos, que os homens se tornam dominantes na educação. É somente em escolas e universidades extremamente caras que os homens são maioria entre os professores.

Conclusão

Com a exceção daquelas ilhas de excelência de sempre, o sistema educacional convencional da maioria dos países ocidentais irá ruir e perder importância. Dado que as escolas e universidades ocidentais atuais nada mais são do que usinas de doutrinação e estupidificação, e dado que os testes confirmam que o preparo básico das pessoas recém-formadas está em queda livre, a retirada dos filhos do sistema educacional convencional é uma tendência que veio para ficar. Aqueles que resistirem a essa tendência e mantiverem seus filhos no sistema educacional convencional estarão criando filhos que futuramente sofrerão sérias desvantagens comparativas.

A tendência é que a educação convencional seja substituída por aulas via internet. Já há uma grande movimentação no desenvolvimento de materiais de ensino online. Estes materiais didáticos são escritos majoritariamente por homens. Mas normalmente quem os ensina a seus filhos são as mães. Ainda assim, a tendência é que haja uma desfeminização da educação. Dado que tais materiais estão livres do jugo politicamente correto que vem oprimindo o Ocidente, eles tendem a se especializar mais de acordo com os gêneros a partir da quinta séria. Isso também irá favorecer a desfeminização da educação voltada para os meninos. É um palpite.

Quanto mais os materiais forem baseados no autodidatismo, menos feminizados eles serão. As mães irão especificar os cursos para seus filhos, e o lado digital da educação provavelmente será mais masculino do que feminino, embora talvez isso não ocorra em nível do ensino básico. No ensino básico, as mulheres provavelmente ainda dominarão. No entanto, tão logo a criança chegue ao ensino fundamental, a educação online será mais masculina do que feminina.

A feminização das camadas mais baixas do mercado de trabalho não acabará tão cedo. A masculinização das posições mais prestigiadas também não acabará tão cedo. O seu objetivo, seja como pai, seja como profissional, é fazer seus planos de acordo com esta realidade.

Por: Gary North , ex-membro adjunto do Mises Institute, é o autor de vários livros sobre economia, ética e história. 

quarta-feira, 20 de março de 2013

ALGUNS DETALHES POUCO CONHECIDOS DA CRISE FINANCEIRA DE 2008


Não demorou muito para que os detratores do mercado descarregassem seus ataques histéricos ao capitalismo logo após os eventos de 2008. A crise financeira que resultou na quebra de vários bancos foi interpretada como sendo a prova cabal do quão destrutivo o "capitalismo desregulado" pode ser e do quão perigosos seus defensores são — afinal, os defensores do livre mercado se opuseram a todos os pacotes de socorro concedidos aos bancos, pacotes esses que supostamente salvaram os EUA de outra Grande Depressão.

Em seu livro The Great Deformation, David Stockman — ex-congressista e diretor da Secretaria de Administração e Orçamento do governo Reagan de 1981-85 — conta toda a história da recente crise, e ataca impiedosamente o senso comum que credita às políticas do governo e a Ben Bernanke o mérito de ter salvado os americanos de outra Grande Depressão. Neste campo, a contribuição de Stockman é sem precedentes. 

O livro aborda todos aqueles argumentos que foram apresentados em defesa dos pacotes de socorro em 2008, os quais até hoje ainda representam o senso comum da mídia e da academia. Tanto naquela época quanto hoje, o principal argumento sempre foi o de que, caso o governo não interviesse, um "efeito contágio" iria fazer a crise financeira se propagar para todos os setores da economia americana, indo para muito além de alguns poucos bancos e corretoras de Wall Street. Sem os pacotes de socorro, as folhas de pagamentos de todas as empresas americanas não mais poderiam ser cumpridas. Os caixas eletrônicos parariam de soltar dinheiro e ficariam paralisados. Mas as sábias decisões políticas tomadas pelo Tesouro e pelo Federal Reserve impediram estes e outros cenários tenebrosos, e impediram a segunda Grande Depressão.

Peguemos o exemplo do socorro à gigante AIG [American International Group, corporação americana provedora de serviços financeiros e seguros nos EUA e em outros países]. A AIG era uma empresa que fornecia seguros contra calotes de hipotecas. Os bancos concediam empréstimos para a aquisição de imóveis, e essas carteiras de empréstimos eram seguradas pela AIG. Para fazer tal seguro, a AIG vendia para os bancos um instrumento chamado CDS [credit default swap], e os bancos faziam uma série de pagamentos periódicos para a AIG em troca destes CDS. Caso os devedores dessem o calote nos empréstimos bancários, a AIG pagaria aos bancos. 

Porém, como os calotes foram vários, a AIG ficou completamente insolvente e foi socorrida pelo governo americano. O socorro ocorreu sob um ambiente de total histeria. Disseram ao público que a AIG tinha de ser socorrida pelo governo porque, caso contrário, todo o sistema bancário americano, cujas perdas estavam seguradas pela AIG, quebraria. O problema é que praticamente nenhum dos CDS vendidos pela AIG estava em posse dos bancos convencionais, aqueles fora de Wall Street. E mesmo em Wall Street os efeitos seriam confinados a apenas uma dúzia de bancos e corretoras, sendo que absolutamente todos eles possuíam um amplo colchão para absorver tais prejuízos.

No entanto, graças aos pacotes de socorro do governo, os barões não tiveram um dólar de prejuízo em suas hipotecas caloteadas. No final, todo o socorro orquestrado pelo governo se resumiu a proteger os ganhos de curto prazo e os bônus dos executivos a serem pagos no final daquele ano.

Essa proteção do estado aos grandes não foi de modo algum uma medida inédita. Dez anos antes, o Fed já havia emitido um sinal bastante claro de qual seria sua política futura: ele socorreu um hedge fund chamado Long Term Capital Management (LTCM). Se aquela empresa foi socorrida, concluiu Wall Street, então não mais há limites para os tipos de loucura que o Fed socorreria com sua criação de dinheiro.

Desde o início, o LTCM, diz Stockman, era "um flagrante desastre financeiro que havia acumulado taxas de alavancagem de 100 para 1 com o objetivo de financiar gigantescas apostas especulativas em moedas, ações, títulos e derivativos ao redor do globo. A acentuada temeridade e a vultosa escala das especulações do LTCM não possuíam paralelo na história financeira americana . . . . O LTCM era algo explicitamente insolvente, e não tinha absolutamente nenhum direito de recorrer ao governo para utilizar recursos públicos para se safar."

Quando o índice S&P 500 disparou 50% ao longo dos quinze meses seguintes, isso não era um sinal de que as empresas americanas estavam vendo suas perspectivas de lucros aumentarem 50%. Ao contrário, tal aumento indicava a confiança de Wall Street de que o Fed iria impedir que futuros investimentos errados recebessem as tradicionais punições impostas pelo livre mercado. Sob este 'capitalismo de estado', o índice do mercado de ações passou a refletir "o estímulo monetário que era esperado do Banco Central, e não a expectativa de aumento dos lucros de empresas operando no livre mercado."

Não foram apenas algumas empresas específicas que usufruíram das benesses do Fed de Alan Greenspan e Ben Bernanke; todo o mercado de ações foi beneficiado. As políticas do Fed passaram a se concentrar no "efeito riqueza" gerado pelo aumento dos preços das ações. A ideia era que, se o Fed estimulasse os preços das ações, os americanos donos destas ações se sentiriam mais ricos e consequentemente estariam mais propensos a gastar mais e a se endividar mais para continuar consumindo, desta forma estimulando a atividade econômica. E foi isso o que aconteceu.

Esta abordagem política, por sua vez, praticamente compeliu a implementação dos pacotes de socorro que inevitavelmente viriam. Qualquer evento que pudesse derrubar os preços das ações iria frustrar esse efeito riqueza. E isso não era tolerável. Logo, o sistema teria de ser estimulados por todos os meios necessários.

Quais os resultados desta política? Ela tem algo do que se gabar? Stockman fornece a resposta:

Se os planejadores centrais do sistema monetário estavam tentando criar empregos por meio do sinuoso método do "efeito riqueza", então eles têm de estar profundamente constrangidos pela sua incompetência. A única coisa que ocorreu no front da criação de empregos ao longo da última década foi uma maciça expansão das 'brigadas do urinol e do diploma' — isto é, os empregos foram criados apenas em hospitais, clínicas de repouso, agências de saúde domiciliar e faculdades. Com efeito, o complexo educacional-hospitalar responde pela totalidade dos empregos criados desde o final da década de 1990 nos EUA.

Enquanto isso, o número de empregos realmente capazes de sustentar uma família de classe média não aumentou absolutamente nada entre janeiro de 2000 e janeiro de 2007, permanecendo em 71,8 milhões. Toda a forte expansão ocorrida no mercado imobiliário, no mercado de ações e no consumo das famílias conseguiu, no final, produzir apenas esta amarga estatística. E quando se considera todo o período de 12 anos desde 2000, houve uma criação líquida de 18.000 empregos por mês — um oitavo da taxa de crescimento da força de trabalho.

Abaixo, a evolução da taxa de emprego em relação ao total da população.



Após o estouro da crise financeira, o Fed continuou criando dinheiro para irrigar o mercado de ações. Em setembro de 2012, o S&P já havia subido 115% desde suas mínimas atingidas no pós-crise. Dos 5,6 milhões de empregos capazes de sustentar uma família de classe média perdidos durante a recessão, somente 200.000 haviam sido restaurados até aquele mês. E durante esta tão badalada "recuperação", o fato é que as famílias americanas gastaram, no terceiro trimestre de 2012, US$30 bilhões a menos em alimentos do que gastaram durante o mesmo período de 2007.

O repentino surgimento de enormes déficits orçamentários nos últimos anos, na casa de US$ 1 trilhão, simplesmente explicitou aquilo que a bolha dos anos Bush havia escondido. A falsa riqueza gerada pela expansão do mercado imobiliário e do consumismo no período 2000-2008 conseguiu reduzir temporariamente a quantidade de dinheiro gasta em programas assistencialistas, e temporariamente aumentou a quantidade de receita tributária auferida pelo governo. Porém, tão logo essa falsa prosperidade se arrefeceu, o verdadeiro déficit, o qual havia apenas sido suprimido por estes fatos temporários, começou a aparecer.

Durante todo este período de bonança artificial, o Fed havia garantido aos americanos que os EUA estavam vivenciando uma genuína prosperidade. Ao inundar Wall Street com dinheiro criado do nada, o Fed viu o valor das ações e dos imóveis disparar e anunciou que estava contente com o "efeito riqueza" assim gerado. As pessoas passaram a utilizar a contínua valorização de seus imóveis como colateral para refinanciar suas dívidas e conseguir mais empréstimos junto aos bancos, aumentando continuamente seu consumo e seu endividamento. Ao testemunhar esta farra consumista, o Fed maravilhou-se com o fato de que os dados macroeconômicos eram ainda melhores do que o esperado. 

Que estas deformações tenham sido confundidas com prosperidade e crescimento econômico sustentável é uma boa prova da insensatez sem fim das doutrinas monetárias hoje em voga no meio monetário.

Stockman também discute em seu livro as condições fiscais do governo americano. Parte dessa história nos remete aos gastos militares dos anos Reagan. A história narrada por Stockman, que foi membro daquele governo, não é a mesma que se ouve da boca dos políticos. A verdadeira história é exatamente aquela da qual todo mundo suspeitava: um frenesi de programas irrelevantes e arbitrários, os quais, uma vez iniciados, não mais eram interrompidos, dado que vários empregos passaram a depender deles.

Mas pelo menos esta escalada dos gastos militares gerou o colapso da União Soviética, certo? Stockman não acredita nisso. "Os US$3,5 trilhões (em dólares de 2005) gastos em defesa durante os anos Reagan não fizeram com que o Kremlin erguesse a bandeira branca da rendição. Praticamente nenhum dólar foi gasto em programas que de fato ameaçassem a segurança soviética ou debilitassem sua estratégia de intimidação nuclear."

No cerne do programa de gastos militares do governo Reagan . . . havia um paradoxo. Os tambores da guerra rufavam uma estratégica ameaça nuclear que virtualmente ameaçou a civilização americana. No entanto, o dinheiro estava sendo realmente gasto em tanques, barcaças de desembarque anfíbio, helicópteros de apoio aéreo aproximado, e uma vasta armada convencional de navios e aviões.

Estas armas seriam de pouco valor na eventualidade de um embate nuclear, mas eram muito adequadas a missões imperialistas de invasão e ocupação de outros países. Ironicamente, portanto, a corrida armamentista do governo Reagan foi justificada por um Império do Mal (como ele se referia à URSS) que estava rapidamente desaparecendo, mas, no final, foi utilizada para iniciar guerras eletivas contra um Eixo do Mal que nem sequer existia.

O que realmente viria a derrubar a União Soviética era a sua própria economia centralizada — um ponto que, observa Stockman, os economistas libertários já vinham anunciando havia algum tempo. Os neoconservadores, por outro lado, faziam ridículas alegações sobre as capacidades soviéticas e sobre sua 'portentosa' economia exatamente em uma época em que sua decrepitude já deveria estar óbvia para todos. Estas asserções inflamadas sobre os inimigos do regime continuaram a ser o procedimento padrão dos neoconservadores até muito tempo depois do fim dos anos Reagan.

No final, o objetivo do livro de Stockman é mostrar como todos os intelectuais da mídia e do meio político enganaram e manipularam os americanos. Acima de tudo, seu objetivo é mostrar que as tentativas de culpar os atuais problemas econômicos dos EUA no "capitalismo" são ilógicas e absurdas, e revelam uma completa falta de entendimento sobre como a economia tem sido deformada ao longo das últimas décadas.

Stockman bate com gosto nos formadores de opinião progressistas — defensores do cidadão comum, como gostam de se autointitular — que defenderam os pacotes de socorro aos bancos e naqueles pretensos "livre-mercadistas" que defenderam o TARP (Troubled Asset Relief Program — Programa de Alívio para Ativos Problemáticos), como praticamente todos os candidatos republicanos de 2012, com a exceção de Ron Paul. Ambos os lados, em uníssono com a mídia convencional, repetiram continuamente estórias assustadoras sobre o quão grande seria a tragédia caso o governo não tomasse dinheiro dos pequenos para dar para os grandes. E ambos os lados só tinha coisas boas a dizer sobre como o Fed gerenciou a economia americana nos últimos 25 anos.

O livro de Stockman mostra com dados, argumentos e uma sólida teoria por que o livre mercado tem de ser exonerado das acusações violentamente proferidas por burocratas, políticos e seus aliados, todos ávidos para encontrar um bode expiatório que os livrasse das consequências trágicas de suas próprias políticas.

Por: Lew Rockwell  presidente do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State. 

Tradução de Leandro Roque

A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA CATÓLICA E O CAPITALISMO

Um dos traços mais característicos do pensamento católico ao longo dos séculos sempre foi a ênfase na razão. A mente do homem, de acordo com esta tradição, é capaz de apreender e compreender toda a ordem que existe no mundo, ordem essa que está fora de sua mente. O homem é capaz de abstrair "pressupostos universais" de uma miríade de objetos e dar um sentido aos vários fenômenos que lhe rodeiam. Com isso, ele é capaz de encontrar ordem no caos dos dados dispersos ao seu redor. Neste aspecto, o ser humano se difere dos animais, que não têm essa capacidade racional.

Para um católico, Deus e a Bíblia são teleológicos, o que significa dizer que, segundo ambos, as coisas têm propósitos. Por exemplo, não cabe ao homem definir, de acordo com suas vontades arbitrárias, os propósitos do casamento e da sexualidade. Deus pune aqueles homens que ignoram, em nome de seus próprios caprichos, a ordem e o propósito que Ele construiu em Sua criação. Católicos, em geral, nunca foram nominalistas: eles não consideravam a vontade de Deus como sendo algo absolutamente impenetrável, e nem Suas leis morais como sendo essencialmente arbitrárias. Determinadas ações não se tornavam boas só porque Deus havia dito que eram boas; Deus havia dito que eram boas porque elas eram boas. Assim, desde o mundo físico até o mundo dos preceitos morais, Deus se mostrava perfeitamente racional e metódico.

O mercado e a mão de Deus

Ao longo da história da Igreja, vários pensadores escolásticos viam as mãos da divina providência na bela ordem e harmonia criada pelo livre mercado e pela divisão do trabalho — um acréscimo, devo dizer, àquela ordem existente no âmbito físico que São Paulo e a teologia católica como um todo sempre apontaram como evidência da existência de Deus e de sua bondade. 

O cardeal jesuíta Juan de Lugo, perguntando-se qual seria o preço de equilíbrio, já no ano 1643 chegou à conclusão de que o equilíbrio dependia de um número tão grande de circunstâncias específicas que apenas Deus seria capaz de sabê-lo ("Pretium iustum mathematicum licet soli Deo notum"). Outro jesuíta, Juan de Salas, referindo-se às possibilidades de saber informações específicas do mercado, chegou à conclusão de que todo o mercado era tão complexo que "quas exacte comprehendere et ponderare Dei est non hominum" (somente Deus, e não o homem, pode entendê-lo exatamente).

Os pensadores iluministas viam a regularidade dos fenômenos naturais como sendo uma emanação dos decretos da Providência, e quando esses mesmos pensadores descobriram uma regularidade semelhante na ação humana e na esfera econômica, eles interpretaram essa realidade como sendo mais uma evidência do zelo paternal do Criador do universo. Os liberais diziam que o funcionamento do mercado livre, no qual o consumidor — isto é, qualquer cidadão — é o soberano, produz melhores resultados do que os decretos de governantes sagrados. Observem o funcionamento do sistema de mercado, diziam eles, e lá descobrirão a mão de Deus.

O grande economista liberal clássico (e católico) do século XIX Frédéric Bastiat descreveu as consequências desta constatação em sua obra publicada postumamente Economic Harmonies:

Se existem leis gerais que agem de maneira independente das leis escritas, e se o único poder das leis escritas é decretar se elas são legais ou não, então é imperativo estudarmos estas leis gerais. Se elas podem ser objeto de investigação científica, então existe algo que pode ser chamado de ciência econômica. 

Por outro lado, se a sociedade é uma invenção humana, se os homens são meras matérias inertes, e se um grande gênio — como disse Rousseau — tem de transmitir sentimento e vontade, movimento e vida a estes homens, então não pode haver algo chamado ciência econômica: existe apenas um indefinido número de arranjos possíveis e casuais, e o destino das nações dependerá exclusivamente do pai fundador a quem a população, por puro acaso, incumbir seu destino.

O problema com a Doutrina Social da Igreja

A principal dificuldade com boa parte daquilo que passou a ser chamado de 'Doutrina Social da Igreja' desde a publicação da encíclica Rerum Novarum (1891), do Papa Leão XIII, é que tal conjunto de ensinamentos pressupõe que a vontade humana é o suficiente para resolver questões econômicas, e que os ensinamentos e as conclusões das leis econômicas podem ser tranquilamente ignorados. 

Com efeito, assim como a Escola Historicista Alemã à qual Ludwig von Mises se opôs, os proponentes da doutrina social efetivamente negam a própria existência de leis econômicas. Por conseguinte, as pessoas que seguem tal corpo de pensamento rejeitam por completo o papel da razão em avaliar as consequências de políticas econômicas "progressistas" e em compreender a ordem e a harmonia que podem existir em fenômenos complexos (neste caso, nos fenômenos de mercado).

Esta atitude é contraditória porque vai diretamente contra toda a tradição intelectual católica, segundo a qual o homem deve adequar suas ações à realidade, e não embarcar na impossível e tola tarefa de forçar o mundo a se adequar aos seus desejos. Os seguidores deste corpo de pensamento desejam obrigar a realidade a apresentar resultados que não podem ser efetivados apenas pela vontade.

Consequentemente, um seguidor da doutrina social da Igreja irá fornecer declarações do tipo: "É bom que as famílias prosperem. Consequentemente, a adoção de tal política [aumento da tributação sobre os mais ricos, aumento do salário mínimo, legislação antitruste, mais regulamentações etc.] é moralmente obrigatória." Em outras palavras, queremos X, portanto devemos fazer Y. (A conexão entre X e Y muitas vezes é apenas implícita, mas está lá). Mas e se 1) Y afastar você de X; 2) houver melhores maneiras de se chegar a X sem usar Y; ou ambos? 

O corpo da doutrina social católica é repleto de tais declarações, de tal forma que não é fácil fazer uma distinção entre princípios básicos e recomendações. O problema, naturalmente, é que todas estas recomendações são contestáveis, muito embora um grande número de proponentes da doutrina social passe a lamentável impressão de que todas elas já foram decididas, e que apenas alguns teimosos, por algum motivo egoísta, obstinadamente se recusam a assentir.

Assim, por exemplo, a ideia de que todo homem deve ganhar um salário alto o bastante que lhe permita sustentar sua família e dar a ela um razoável conforto representa um objetivo social desejável. Já a sugestão de que tal resultado pode ser criado por decreto — isto é, a sugestão de que a vontade do homem pode estabelecer tal situação simplesmente porque ele quer que isso aconteça, e que as leis econômicas não são válidas para ajudar a prever o provável resultado de tais medidas — é totalmente ilógica. Tal postura é tão intelectualmente defensável quanto a sugestão de que o desejo humano de voar torna supérflua qualquer necessidade de levar em consideração a lei da gravidade.

Defender a estipulação de um valor salarial mínimo que permita o consumo de vários bens tido como essenciais para uma família é uma das bandeiras da doutrina social da Igreja. A alegação é que isso irá ajudar as famílias mais pobres e que, de quebra, o aumento do consumo delas irá "estimular o crescimento econômico" — como se simplesmente sair consumindo coisas pudesse tornar a sociedade mais próspera, ou como se mais gastos em consumo fosse exatamente o que o estado devesse estimular.

É claro que tal política salarial é recomendada com a genuína intenção de melhorar a vida das pessoas. Porém, se sabemos que tal política sugerida tenderá a piorar a situação geral, pois ela irá (entre outras coisas) aumentar o desemprego, então não apenas é lícito, como também é moralmente obrigatório do ponto de vista da obediência católica, se opor a ela. 

Adicionalmente, se sabemos que o funcionamento normal de uma economia de livre mercado baseada na propriedade privada já possui uma inerente tendência natural a gerar contínuos aumentos salariais (ver aqui, aqui e aqui), então certamente este é mais um argumento em favor de se rejeitar a ideia de imposição de um determinado valor salarial mínimo e de se defender um arranjo de livre mercado baseado na propriedade privada (arranjo este em que ninguém tem a permissão de roubar ou de agredir inocentes).

E há ainda outras situações paradoxais. Sempre que você defende a economia de livre mercado dizendo que tal arranjo é o mais condizente a gerar prosperidade, os adeptos da doutrina social são rápidos em dizer criticamente que a prosperidade material não é tudo. No entanto, quando alguns bispos progressistas divulgam aqueles seus pavorosos manifestos contendo "sugestões" de políticas econômicas, eles deixam perfeitamente claro que estão advogando políticas que visam a melhorar a situação material das pessoas. Eles acreditam que a intervenção estatal irá deixar as pessoas em uma situação materialmente melhor. Sendo assim, se somos "materialistas", então todo defensor da doutrina social também o é. Nada contra. O debate, portanto, deve se concentrar na abordagem econômica dos bispos. Se ela irá ou não gerar a prosperidade prometida.

A encíclica Populorum Progressio (1967) do Papa Paulo VI, por exemplo, foi além das observações morais que se pode fazer sobre o desenvolvimento do Terceiro Mundo e passou a de fato sugerir recomendações políticas, colocando dessa forma os católicos na injusta posição de aparentar "dissidência" em relação ao Papa ao proporem alternativas. Peter Bauer, o profético economista que alertou durante décadas sobre os efeitos perniciosos que os programas de ajuda internacional teriam sobre as nações do Terceiro Mundo, observou que não havia nada de particularmente católico, ou mesmo cristão, na encíclica, e que ela estava meramente repetindo, com algumas nuanças religiosas, o pensamento convencional.

Hoje sabemos o quão desastrosas foram as recomendações da Populorum: as ajudas internacionais fortificaram os piores regimes políticos , atrasaram indefinidamente as reformas necessárias e destroçaram dezenas de países, com vários grupos étnicos e raciais recorrendo à violência para tentar se apropriar de parte do dinheiro das ajudas internacionais. A própria ideia da ajuda internacional introduziu incentivos perversos a essas sociedades; tornou-se insensato criar coisas que satisfizessem os desejos de seus conterrâneos, pois era mais racional dedicar esforços improdutivos para fazer campanhas que lhe garantissem mais dinheiro externo. Por outro lado, Hong Kong, Chile e Coréia do Sul só se tornaram prósperos depois que a ajuda internacional foi interrompida e eles foram forçados a adotar políticas econômicas racionais e sensatas.

Paulo VI também adotou a badalada tese de Raul Prebisch e Hans Singer, que dizia que uma deterioração secular dos termos de troca entre o mundo desenvolvido e o mundo em desenvolvimento — sempre em detrimento deste último — era uma inevitabilidade, pois havia a suposta tendência de os preços dos bens manufaturados (especialidade dos países desenvolvidos) subirem e, ao mesmo tempo, os preços das commodities (especialidade dos países em desenvolvimento) caírem. Entretanto, essa suposta deterioração dos termos de troca nunca ocorreu, como o economista Gottfried Haberler já vinha argumentando dez anos antes da Populorum Progressio, se alguém se deu ao trabalho de escutar. Mas foi baseando-se nessa tese errônea que Paulo VI condenou o livre comércio, negando que este fosse um caminho para a prosperidade do mundo em desenvolvimento. (Curiosamente, hoje são os países desenvolvidos que condenam o livre comércio, argumentando que ele é prejudicial para os países ricos e benéfico para os países pobres). Os países que seguiram a tese Prebisch/Singer ficaram muito atrás daqueles que se integraram à divisão internacional do trabalho. Não há como negar isso.

Teria sido uma "dissidência" dizer que o erro factual do Papa acerca dos termos de troca era realmente um erro factual? Seria "dissidência" ter apontado que essas recomendações não lograriam o efeito a que se propunham? Deveríamos acreditar que a autoridade papal sobre assuntos de fé e moral se estende também a análises de causa e efeito aplicadas a programas de ajuda internacional? Essas perguntas se respondem a si próprias.

É um dever moral apontar os erros e corrigi-los

A infalibilidade papal é válida para questões de moral e fé, e não para questões econômicas. Um católico não deve negar a autoridade moral do Papa, mas ele também não tem de levar a ferro e fogo toda e qualquer recomendação econômica da Santa Sé. Por um bom tempo, vários católicos sofreram com a ideia de que não concordar com algumas sugestões de política econômica emitidas pela Santa Sé ou por prelados ao redor do mundo seria uma espécie de desobediência aos ensinamentos da Igreja. 

Nenhum católico deve apoiar uma política que seja intrinsecamente má. A ideia é simplesmente que, quando existem várias alternativas moralmente lícitas, escolher uma delas é uma questão de inteligência, de bom juízo e de exercício adequado da razão. Se eu posso recomendar um método de se alcançar um determinado fim, e se este método não for inerentemente imoral e for muito mais efetivo do que qualquer alternativa sugerida por alguns líderes católicos (sendo que cada uma delas iria piorar a situação), então não há nada de especialmente subversivo em se oferecer esta sugestão. 

O próprio Papa Leão XIII reconheceu isto quando disse que,

Se eu tivesse de me pronunciar sobre qualquer aspecto de um problema econômico vigente, estaria interferindo na liberdade de os homens lidarem com seus próprios afazeres. Determinados casos devem ser resolvidos no campo dos fatos, caso por caso, na medida em que vão ocorrendo.... [O]s homens precisam realizar tais afazeres por meio de suas próprias obras, e este princípio está além de qualquer questionamento.... [E]ssas coisas devem ser solucionadas ao longo do tempo e da experiência. 

Deixe-me ser bem claro: aqueles católicos que são seguidores das teorias da Escola Austríaca de economia, como eu, não estão exigindo que os papas façam pregações sobre economia austríaca desde a Cátedra de Pedro. Ninguém que conheça a evolução do pensamento econômico dos membros da igreja ao longo dos séculos ousaria afirmar que há apenas uma visão que constitui a "visão católica da economia". Contra aqueles que sugerem que um católico deve abordar assuntos econômicos de apenas uma maneira, o professor Daniel Villey nos lembra que "a teologia católica não exclui o pluralismo de opiniões a respeito de assuntos profanos". Católicos austríacos não dizem que "a nossa ciência econômica é a única católica"; apenas dizemos que aquilo que defendemos e ensinamos não apenas não vai contra o catolicismo tradicional, como na verdade é profundamente compatível com ele.

Existe uma profunda semelhança filosófica entre o catolicismo e o brilhante edifício de verdades encontrado na Escola Austríaca de economia. O método austríaco da praxeologia deveria ser especialmente atraente para o católico. Carl Menger e principalmente Mises e seus seguidores procuraram fundamentar princípios econômicos baseando-se em verdades absolutas, verdades perceptíveis por meio de uma reflexão sobre a natureza da realidade. O que, dentre tudo o que existe nas ciências sociais, poderia ser mais compatível à mente católica do que isto?

Igualmente, a economia austríaca nos revela um universo de ordem, cuja estrutura podemos compreender por meio de nossa razão. Como explicou o professor Jeffrey Herbener, "Uma abordagem causal-realista da economia surgiu no meio cristão porque era somente naquele meio que os estudiosos concebiam a natureza como uma ordem interconectada, uma ordem criada no fluxo do tempo por Deus, uma ordem criada do nada e governada por leis naturais determinadas pelo próprio Deus, leis estas que o intelecto humano seria capaz de descobrir e utilizar para entender a natureza com o objetivo de dominá-la para a glória de Deus." A alternativa seria aquele mundo de John Stuart Mill, que postulou ser perfeitamente possível encontrar algum lugar no universo onde dois mais dois não fossem quatro — uma visão que, nas palavras de Herbener, "está fundamentada na ideia metafísica de que o universo não é uma criação sistemática e ordeira." Qual destas duas visões é a mais compatível com o catolicismo não é difícil de ser discernido.

Conclusão

Grande parte dos conselhos econômicos apresentados como sendo parte integrante da doutrina social da Igreja ao longo do último século sofre de sérios defeitos de lógica e possui assertivas factualmente errôneas. Tal posição, independente de seus proponentes perceberem ou não, representa o triunfo da vontade sobre o intelecto, a substituição da análise racional das leis da interação social pela vontade arbitrária, além de ignorar as inevitáveis consequências da violenta interferência sobre esta interação social. Tal postura, além dos danos que ela causa à riqueza vigente na economia, é completamente estranha à Igreja Católica, uma instituição que sempre enfatizou a capacidade da mente de perceber a (e se deleitar com a) regularidade e a sistematicidade do mundo criado por Deus e de saber se adequar a esta criação divina.

A verdade, dizem os catecismos católicos, consiste na adequação da mente à realidade. A "doutrina social" católica, por outro lado, demanda com grande frequência que o homem permita que seus meros desejos e sentimentos formem seu juízo a respeito de questões econômicas. Avaliar as consequências de medidas econômicas com o auxílio das leis econômicas, e olhar para o âmbito econômico reconhecendo nele a ordem e a regularidade que a própria Igreja diz serem reflexos da perfeição do próprio Deus — esta é a postura católica.

Santo Agostinho certa vez disse: "In fide, unitas; in dubiis, libertas; in omnibus, caritas" (na fé, unidade; em questões incertas, liberdade; em todas as coisas, caridade). A demanda por caridade e o desejo de ajudar ao próximo tornam imperativo que não defendamos políticas econômicas insensatas que só irão prejudicar justamente aqueles a quem queremos ajudar.

Por: Thomas Woods  membro sênior do Mises Institute, especialista em história americana. É o autor de nove livros, incluindo os bestsellers da lista do New York Times The Politically Incorrect Guide to American History e, mais recentemente, Meltdown: A Free-Market Look at Why the Stock Market Collapsed, the Economy Tanked, and Government Bailouts Will Make Things Worse. Dentre seus outros livros de sucesso, destacam-se Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental (leia um capítulo aqui), 33 Questions About American History You're Not Supposed to Ask e The Church and the Market: A Catholic Defense of the Free Economy (primeiro lugar no 2006 Templeton Enterprise Awards).